Em um dia pálido e chuvoso Nannerl acordou com apenas uma
certeza acerca de seu estar-no-mundo: estava completamente sozinha. Pode-se dizer que uma série de acontecimentos e situações a levaram ao sentimento de profunda solidão mundana. Porém, o motivo mais cruel e crucial para tanto foi que, em uma viagem de negócios, seu pai havia sido explodido em uma acidente de avião do outro lado do planeta. Além de perder seu maior amor, seu único parente vivo e a única pessoa que ela sabia que a amava incondicional, Nannerl também perdeu toda a qualidade de vida que conhecia até então: para poder continuar seus estudos, teve que vender a casa, os móveis, os quadros valiosos e até seu querido violino Guarneri. Ela até tentou voltar a tocar no pequenino violino barato que ganhara quando começou a aprender, mas, por mais que ela tocasse as notas, a música não saía mais como antes. Não tinha mais alma no seu toque e sua música soava como um texto construído com palavras soltas, sem nenhum significado. A culpa não era da qualidade do violino, mas de seu próprio espírito que tinha se fechado para o mundo. Ela não conseguia mais expressar qualquer tipo de emoção. Nannerl, então, seguiu o conselho da maioria das pessoas: depois de algum tempo trabalhando em cargos pequenos e estudando, conseguiu passar em um concurso muito bom. Logo, sua vida voltou a ser financeiramente confortável: comprou uma bela casa, podia viajar para onde quisesse, doava dinheiro para a caridade e tinha ao seu dispor todas as benesses de uma vida de classe média alta. Porém, bastava olhar para o seu rosto para ver que ela não estava feliz; seu olhar era apático, sorria apenas por conveniência social e evitava conversas longas. Em qualquer lugar do firmamento, apenas bastava a visualização de um violino para que uma facada de saudade atravessasse seu coração, mas julgava que tinha perdido toda a sua habilidade. Alguns anos passaram e em uma festa foi apresentada a um nobre que trouxera um violino Stradivarius. Tal nobre o herdara e o tocava apenas razoavelmente. Os olhos de Nannerl brilharam, pois há muito tempo não via um violino tão raro em tamanha proximidade física com ela. Um antigo colega de faculdade insistiu para que ela tocasse, pois ele sabia que a Nannerl de antes jamais deixaria passar tal oportunidade. O nobre, herdeiro do violino, e todos os que se lembravam de sua antiga paixão ao violino também se somaram ao pedido. Nannerl, a priori, argumentou que por ter passado tanto tempo sem nenhum treino, provavelmente já não sabia mais tocar direito. Todavia, algum ímpeto a invadiu e o lado violinista que lhe restava implorou para que tocasse aquele artefato histórico. Cheia de borboletas em seu estômago, sentindo-se como uma refugiada que tentava voltar a escrever em sua língua natal depois de uma vida inteira falando e escrevendo em outro idioma, Nannerl tocou a primeira nota a esmo e se maravilhou pela audição de uma nota tocada por ela mesma, em um instrumento de sonoridade tão deliciosa. O estado de maravilhamento foi tão poderoso que ela foi completamente dominada pela Nannerl adormecida que amava mais a música do que a própria vida. Ela começou a tocar uma música composta por todo o seu eu interior. Mesmo estando inteiramente afastada dos estudos de harmonia e teoria musical, sua música tinha a perfeição formal e harmônica de Johann Sebastian Bach, apenas ao seguir o seu instinto. De olhos fechados, ela passou a expressar com a linguagem abstrata da música tudo o que há tanto tempo estava preso nela. Tocava com a impetuosidade de um Ludwig van Beethoven, a verdade de um Chico Buarque, a graça de uma Chiquinha Gonzaga, a genialidade de um Niccolò Paganini. Apesar de seus dedos, de fato, já estarem desacostumados com a técnica violinística, aquela emoção que demorou tanto tempo para conseguir ser expressada a tomou de tal modo que parecia que seus dedos ainda tinham a destreza de quando treinava todo dia e soava como se Jascha Heifetz, Christian Ferras e Rachel Barton Pine tivessem se unido e possuído os seus dedos, depois de um workshop no paraíso dos anjos violinistas que ultrapassaram as técnicas conhecidas pelos homens e que agora tocavam com as técnicas desenvolvidas pelos seres imortais. Havia momentos em que aquela música apalpava Nannerl com a delicadeza da interpretação de Claude Debussy e momentos onde ela era conduzida com a quase violência de um Apocalyptica. Era uma linguagem tão transcendente que deixou Nannerl toda arrepiada, e mesmo parecia que aquelas notas emitidas pelo violino entrelaçavam a sua língua, como se ela quisesse solfejar e beijavam todo o seu corpo, como se tivessem a intenção de unir Nannerl e aquela melodia em um único ser etéreo. Nannerl tocava com uma emoção e de uma maneira que era incapaz de conter. Em um crescendo, aquela música cresceu, cresceu até que no rompante de um dó lhe penetrou tão profundamente que a garota involuntariamente soltou um gemido. Contudo, nenhum dos espectadores atentou para tal gemido porque a própria música gemia, gemia, gemia. A música de tal modo emocionou e tocou a todos que ninguém notou que dos ouvidos de Nannerl saíam as borboletas que antes embrulhavam seu estômago: eram borboletas pequeninas que tinham uma asa em formato de clave de sol e outra asa em formato de clave de fá. Elas voavam em direção ao mundo dos sons! Maior do que a penetração física foi a penetração daquela música na alma de Nannerl, era tão forte que lágrimas caíram intensamente, como as de um bebê que chorava depois de nascer. Não eram apenas lágrimas de tristeza, eram lágrimas que expeliam todas as emoções que a menina sentira em toda a sua vida até então. A música tirou todas as vestes que Nannerl tinha usado para cobrir e fechar o seu interior: agora sua alma estava completamente nua e exposta para o mundo. Era tudo tão divino e chegou a um êxtase tão maravilhoso que Nannerl chegou a pensar que iria morrer naquele instante para renascer na forma daquela música! Tocou e tocou a música até se despedir dela em um abraço lacrimoso com a mais sincera afeição, pois tanto os beijos quanto as canções têm um acorde final. Sem fôlego, Nannerl abriu os olhos com a expressão de quem finalmente havia redescoberto o que é o amor.