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Salvagiio tocando nas nossas pragas. oO humanismo tornoy. se como que a grande vitima do préprio progresso. Nés nog encontramos diante de uma situagfo em que JA n&o temos mais condigdes de aceitar um relacionamento que se cong. trua na base do Desconhecido e do Nada. Pois pretendemogs controlar tudo. 3.2.9. A Criagao No portico dos templos Zen, tanto na Chi- na, quanto no Japao, as vezes se acha pen- durada uma tdbua tosca com a inscrigao: “Olha bem debaixo de teus pés”! As pre- sentes reflexdes sobre as obras de arte a partir da criagdo, recomendam ¢ entregam a este olhar debaixo dos pés! Toda criago é uma atropelada que nfo tem nem data de nascimento, nem berco de origem. Pois é a prépria criag&o que faz a data e determina a origem de criadores e obras. Se a arte de criar for um rio, a criagZo nao é nem a margem, nem 0 leito, mas a correnteza, € 0 criador é 0 barco balangando na passagem das Aguas, que demarcam as mat- gens e estendem o leito para o curso e percurso da histéria humana. . Em suas peregrinages de ser, no ser & vir a sef, o homem, em todos nds, vive, em todo momento e a cada passo de sua passagem pela vida, a identidade e diferenga entre real, realizagdo e realidade. “O homem ¢ uma ponte”, 4 pregava Zaratustra: mas ponte niio se reduz a instalagao. S6 h4 ponte e s6 se da ponte onde e porque acontece traves- ‘sia, Nao se trata, porém, de fato entre fatos, nem de coisa 234 entre coisas, seja dada, feita ou pronta, seja deste ou de ou- tro mundo. Trata-se da estranheza constitutiva e do desafio rio da existéncia historica, porque finita, dos homens. A realidade é sempre subrepticia, Sua vigéncia nunca ¢ direta, seu vigor nunca é imediato. Seu impacto é sempre obliquo. Arealidade se da nas realizagdes na medida em que se re- trai nas peripécias do real. Assim em todo ser humano, a humanidade nem se esgota nem prescinde dos individuos. Tudo que se apresenta ao homem é sempre concreto, nas- cido e crescido de uma pluralidade. Ora dar-se enquanto se retrai, tornar-se presente na auséncia, manter-se vigente na falta, eis o vigor e a forga inovadora da criag4o em toda e qualquer obra. O modo de ser de uma criacdo se define, pois, pela integragéio de identidade e diferenca no seio deste vigor. A existéncia histrica de toda criagdo ¢ a viagem que os homens sempre fazem entre realizagdo e realidade nos transcursos de diferenciagio do real. Para realizar-se € a0 realizar-se, o homem irrompe num mundo e nesta irrupgao e por ela se lhe instalam niveis, se lhe impdem limites de re- lacionamento com tudo que é e esta sendo. Em sua histéria, o homem realiza, de algum modo, todas as realizagdes. Impulsionado pelo impacto obliquo e arrastado pelo subtrair-se continuo da realidade nas realizagées, o homem constréi sua existéncia na tensdo entre as obras de suas mos eos recursos de ser, ndo ser e vir a ser. As €pocas histricas s&o as vicissitudes deste impacto obliquo ¢ deste contacto direto, i.¢, dos intersticios instalados nos contactos com 0 real ‘pelo impacto da realidade. Sé realizag6es server de arranque e oferecem alvo a0 empenho de suas referéncias. Para criar uma obra, o homem é criado pela obra. O Grito de Eduard Munch é 0 grito que toda criagio sempre dé para a hist6ria humana: o homem ¢ uma realizagao que, diretamente, so alcanga outras realizagdes e jamais atinge a realidade, Mas as vezes produz realizagdes, que parccem abolir as diferengas da temporalidade. Pois d&o acesso, em- eatin spemeayprtee bora indireto ¢ velado ao desafio da realidade. So as obras de arte. Em seu envio, encontram-se momentos, tragos, combinagdes, tensdes, movimentos de uma temporalidade no apenas povoada de realizages, mas sobretudo carrega- da pela realidade em retraco, em contrag&o, em protegtio, em distensio. A experiéncia histérica deste retirar-se se dé numa aventura e é toda um salto na luminosidade de uma escu- ridiio estimulante de desempenhos. O instante de invengao da obra nfio apenas nfo se repete, como nunca se aprende. Todo instante se improvisa num risco e se arrisca numa im- provisacSo. O instante de risco e improvisagao se propoe nas experiéncias, nas tensdes, nos impulsos de um traco, de um movimento, de um som, de uma presenga, com to- das as insegurancas, hesitagdes e ansiedades, mas também com toda a ousadia, aventura e o fascinio da cria¢4o de uma obra. O homem se faz, ent&o, a grande obra de arte, por ser a unica obra de todas as criagdes. Dele valem sempre as palavras de Zaratustra: “o grande no homem é ser ele uma travessia e ndo um ponto final. O amAvel no homem é ser ele a avalanche de uma descida e a forga de uma passagem” (Werke, DTV, 224, 16). No grande Didlogo, POLITEIA, Republica, Platio encontra na Cidadania a vigéncia essencial da POLIS, a vi- talidade de toda politica. Trata-se de um impulso da realida- de com que Platao nos faz experimentar a finitude da condi- ¢4o humana, com uma formulagio lapidar de trés palavras apenas: TA MEGALA PANTA EPISPHALE Rep 49749 “Tudo que é grande precipita-se numa avalanche de transformagdes!”. Toda criag&o esté numa tempestade histérica. Toda 236

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