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GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

SCINTILLA

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009


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SERVUS GIEBEN

2 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009


GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

SCINTILLA
REVISTA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVAL

ISSN 1806-6526

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 1-179.


jul./dez. 2009

Instituto de Filosofia São Boaventura – IFSB


Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM

Curitiba PR
2009

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009


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IFSB – Instituto de Filosofia São Boaventura
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Editor: Dr. Enio Paulo Giachini
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Dr. Joel Alves de Souza, UFPR
Dr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJ
Revisão e editoração: Equipe interna
Diagramação: Sheila Roque
Capa: Luzia Sanches

Catalogação na fonte
Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia
São Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro Universitário
Franciscano, v.1, n.1, 2004-
Semestral
ISSN 1806-6526
1. Filosofia - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.
3. Mística – Periódicos.
CDD (20. ed.) 105
189
189.5
SUMÁRIO

EDITORIAL ......................................................................... 7
Enio Paulo Giachini

ARTIGOS ............................................................................. 9
Grosseteste e ciência universal ........................................... 11
Servus Gieben
“A luz deriva do bem e é imagem da bondade”: A metafísica
da luz do Pseudo-Dionísio Areopagita na concepção
artística do abade Suger de Saint-Denis............................. 39
Ricardo da Costa
La metafísica de la luz como punto de partida en la
filosofía política de Alberto Magno ................................... 53
Prof. Dr. José Ricardo Pierpauli
As imagens da luz e do fogo nas obras de Meister Eckhart e
Mechtild de Magdeburg ................................................... 77
Matteo Raschietti
A causa final do poder do principans no Defensor da paz de Mar-
sílio de Pádua ................................................................... 91
José Antônio de C. R. de SOUZA

COMENTÁRIOS .................................................................. 119


[Parábolas do saber e da luz] ............................................. 121
Hermógenes Harada
Homenagem e tributo de um leigo a
Hermógenes Harada ......................................................... 129
Gilvan Fogel
Testemunho pessoal sobre Frei Hermógenes
Harada, OFM. ................................................................ 141
Dom João Mamede Filho, OFM Conv

TRADUÇÕES .......................................................................... 147


Da luz ou do começo das formas ...................................... 149
Roberto Grosseteste
[Gradações da luz] ............................................................ 159
Nicolau de Cusa
Ensaio de uma teoria das cores [extratos) .......................... 165
J. W. Goethe

RESENHAS ............................................................................. 173


Al-Farabi: De scientiis ........................................................ 175
Prof. Dr. Jakob Hans Josef Schneider
GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

EDITORIAL
Enio Paulo Giachini

O fenômeno da luz foi um intenso ponto de convergência da


pesquisa, do interesse intelectual e de vida medieval. As partições
do enfoque sobre esse fenômeno, tais como luz física, espiritual,
alegórica etc., devem-se a uma visão fragmentária e setorizada dos
fenômenos, própria da era moderna e de nossos tempos. Tampouco
nos ajudaria nesse problema afirmar que os medievais tinham um
enfoque unitário do fenômeno. Importa então deter-nos em buscar
atravessar, pelo questionamento, o que nós próprios compreendemos
por abordagem setorizada e abordagem unitária do fenômeno da luz,
limpando nosso lume visivo-intelectivo para que o fenômeno possa
brilhar e mostrar-se por si próprio.
É essa proposta de reflexão que seguem os artigos e textos clássicos
sobre o assunto, apresentados neste número de Scintilla. A dificuldade
do tema não encontrou muitas contribuições, mas a densidade das
abordagens compensa um pouco, esperamos, essa carência.
Junto com os artigos que tratam do tema, procuramos também
apresentar alguns textos clássicos sobre a temática da luz e da cor.
Roberto Grosseteste, Nicolau de Cusa, Goethe. Poderiam ter sido
outros também, como Dionísio Areopagita, Agostino, Marcílio Fic-
cino e outros ainda, mas essa lacuna se deve mais à contingência de
nossa limitação.
Ao lado do clássico texto sobre o tema da luz, De luce, de Roberto
Grosseteste, queremos acentuar de modo especial dois extratos de texto
de Nicolau de Cusa. O grau de dificuldade para compreender esses

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ESNIO PAULO
ERVUS GIACHINI
GIEBEN

textos nos faz pressentir, aos poucos, na medida em que nos entrega-
mos à sua leitura e que vamos deixando de lado nosso saber prévio,
que se trata de um fenômeno absolutamente encarnado em nosso
cotidiano vivo, um fenômeno tão próximo e de abrangência tão ampla
que se torna condição de possibilidade de sua própria abordagem.
Como na era primitiva, o esforço intenso para produzir o fogo, que
brotava de repente e iluminava a vida, a esperança, as possibilidades
de vida do homem, a abordagem do tema da luz também apresenta
uma dificuldade extremada, que, na possibilidade de abrir-se, inunda
instantaneamente a totalidade do real.
Os autores dos artigos que tratam do tema são Servus Gieben,
Ricardo da Costa, José R. Pierpauli e Matteo Rasquietti. Temos tam-
bém um artigo do Prof. José Antônio de C.R. de Souza.
No vagar do avanço da revista, propomo-nos o cultivo da me-
mória, re-cordação, de um personagem que mereceu inclusive a ho-
menagem de um número especial de Scintilla (volume especial, 6.3),
e que nos deixou em 21 de maio do presente ano, Fr. Hermógenes
Harada. A ele deve essa revista, e todos nós, re-cordação, inspiração e
agradecimento. Na seção de comentários, onde ele sempre escreveu,
desde a criação da revista, vamos continuar, na medida do possível,
expondo textos, extratos de textos, depoimentos etc. de e sobre o
mesmo. Este número traz os depoimentos do Prof. Gilvan L. Fogel
e de D. Fr. João Mamede Filho, OFM Conv.
Fica nossa gratidão e o desafio de seguimento.

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ARTIGOS

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SERVUS GIEBEN

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GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

GROSSETESTE E CIÊNCIA
UNIVERSAL
Servus Gieben*

Na manhã do 7º centenário da morte de Grosseteste, meu profes-


sor de filosofia franciscana do Colégio Internacional St. Lawrence de
Brindisi em Roma, Hadrijan Borak1 , depois da aula, me falou que o
tópico da luz em Grosseteste poderia ser tomado como tema de pes-
quisa de uma tese doutoral. Mas seguramente eu não podia imaginar,
na época, que os ensinamentos desse “escolástico e bispo” medieval
iriam fascinar-me por toda a vida. Mas de fato, minha tese doutoral
em 1953 foi realmente sobre De metaphysica lucis apud Robertum
Grosseteste.
O que vou expor a vocês nesse escrito é a visão integral da luz em
Grosseteste como a chave para resolver e conectar tanto as questões
teológicas, pastorais e filosóficas quanto as científicas. À primeira vis-
ta, isso pode parecer um tanto abstruso, sobretudo para aquelas pes-
soas que se habituaram a uma especialização cada vez maior e apenas
conseguem sobrever o que entra no âmbito de aplicação de sua própria
investigação. Como foi que Grosseteste chegou a essa visão grandiosa

*
Servus Gieben é de origem olandesa, mas por toda sua vida ativa trabalhou na Itália.
Desde 1953 é membro do Instituto Histórico dos Capuchinhos em Roma. Sua espe-
cialidade é a filosofia medieval, e em particular a filosofia de Roberto Grosseteste. Nos
últimos decênios dirige o museu franciscano, anexo ao predito instituto. Tradução de
Enio Paulo Giachini.
1. Ele era um capuchinho croata, professor de filosofia franciscana de 1946-1970;
sobre suas vida e obras cf.: TENŠEK, Zdenko Tomislav. Fra Hadrijan Borak (1915-
1993), in: Kacic, 25 (1993) 835-845.

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SERVUS GIEBEN

e unitiva do cosmos, seus habitantes e seus problemas? Será que seu


exemplo não poderia talvez apontar algum paradigma para nossa era e
para nossas mentalidades densintegradoras?
É preciso deixar claro que Roberto Grosseteste não foi o primeiro
nem o último escolástico medieval a tentar fazer uma síntese de todo
conhecimento disponível. Os séculos XII e XIII produziram um gran-
de número de sumas enciclopédicas, tanto para intelectuais, quanto
para o povo simples2 . Evidentemente, havia então muitas pessoas como
Cristianus, que se correspondia com o grande enciclopedista alemão
Honorius Augustodunensis. Junto ao seu amigo, ele deplora a situa-
ção geral: “Que vergonha viver como animais, ignorando completa-
mente as coisas que vemos diariamente, que estão ao nosso redor e
foram feitas para nós”3 . Assim como a maioria dos escolásticos de sua
época, Roberto Grosseteste estava plenamente ciente da necessidade
de instruir o povo e fazer com que percebesse e compreendesse o mun-
do em que vivia. Seu aprendizado extremamente amplo capacitou-o
ao aconselhamento metódico sobre problemas relacionados com agri-
cultura e pecuária, medicina e física, música e matemática, assim como
questões filosóficas, teológicas, pastorais e bíblicas. Todavia, o que o
distinguia dos outros autores não era seu conhecimento e sua leitura
dos autores latinos e gregos, dos autores pagãos e religiosos, mas certos
insights, que como fios urdidos na complexa trama de seu tecido
doutrinal, davam uma virtuosidade marcante e um colorido especial
ao todo.

2. Cf. GRÖBER, G. Übersicht über die lateinische Litteratur von der Mitte des VI.
Jahrhunderts bis zur Mitte des XIV. Jahrhunderts. Neue Ausgabe, München, 1963, 247-
250 (§ 14-144); VERGER, J. Enzykopädie, Enzyklopädik, II. Lateinisches Mittelalter
und Humanismus, in Lexikon des Mittelalters III, München/Zürich, 2032-2034.
3. Epistola Christiani ad Honorium solitarium, in PL 172, 119: “Miserum esse videtur
res propter nos factas quotidie spectare et cum jumentibus insipientibus, quid sint,
penitus ignorare”.

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Filosofia cristã

São esses, antes de qualquer outro, os três elementos básicos de sua


filosofia cristã: sabedoria (sapientia), participação (participatio) e
exemplarismo (exemplarismus).

Sabedoria (sapientia)

Grosseteste alcançou sua maturidade como cientista na época em


que estudou e comentou o Analíticos posteriores de Aristóteles. Na obra
de Aristóteles ele encontrou a exposição teorética da função da obser-
vação e da fundamentação geral na construção de um corpo do conhe-
cimento científico. Ele chega a reconhecer que a razão dorme até ser
despertada pelos sentidos4 . Seguindo Aristóteles, ele discute as causas
da ignorância e o efeito dos sentidos maltemperados. Todavia, ultra-
passando o pensamento de Aristóteles, ele admite uma plena justifica-
ção do conhecimento adquirido sem o auxílio dos sentidos, sine sensus
adminiculo. Esse conhecimento não é um privilégio reservado a Deus
e aos espíritos celestiais, é uma qualificação da natureza pertencente à
inteligência humana, embora ameaçado pelos obstáculos confusos e
instáveis que surgem dos sentidos corpóreos e suas fantasias5 . Que esse

4. Commentarius in posteriorum analyticorum libros 1, 14 ed. Pietro Rossi, Firenze,


1981, 215-216. “Ratio enim in nobis sopita non agit nisi posquam per sensus
operationem, cui admiscetur, fuerit expergefacta. Causa autem quare obnubilatur visus
anime per molem corporis corrupti est quod affectus et aspectus anime non sunt divisi,
nec atingit aspectus eius nisi quo atingit affectus sive amor eius. Cum igitur amor et
affectus anime convertitur ad corpus et ad illecebras corporales necessario trahit secum
aspectum et avertit eum a sua lumine, quod se habet ad ipsum sicut sol se habet ad
oculos exteriores”.
5. Commentarius in posteriorum analyticorum libros 1,14, ed. Pietro Rossi, Firenze,
1981, 213: “Et similiter si pars suprema anime humane, que vocatur intellectiva et que
non est actus alicuius corporis neque agens in operatione sui propria instrumento
corporeo, non esset mole corporis corrupti obnubilata et aggravata, ipsa per irradiationem
acceptam a lumine superiori haberet completam scientiam absque sensus adminiculo,
sicut habebit cum anima erit exuta a corpore et sicut forte habent aliqui penitus
absoluti ab amore et phantasmatibus rerum corporalium”.

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SERVUS GIEBEN

conhecimento nu e puro das coisas divinas é realmente possível,


Grosseteste prova através do desejo natural que de tal sentimos, na
medida em que por natureza não desejamos coisas impossíveis6 . O
nome apropriado desse conhecimento que contempla todas as coisas
na luz de Deus é sabedoria (sapientia).
Numa afirmação muito esmerada, Tomás de York, um dos me-
lhores discípulos de Grosseteste, retoma a questão. Ele escreve em seus
Sapientiale “você deve saber que aqui há dois modos de alcançar o
conhecimento. Um deles parte de baixo, diga-se, a partir da via dos
sentidos. Parece que o único a sustentar isso teria sido Aristóteles ao
afirmar que todo conhecimento provém dos sentidos. Segundo a sa-
bedoria dos cristãos e dos filósofos, nós sabemos porém que há uma
outra via, a saber, de cima, e não dos sentidos, pela via do influxo e
pela recepção do primeiro (motor). O conhecimento adquirido nesse
caminho é mais certo do que o outro. Passando de um pensamento ao
outro, essa via não se baseia no ensino externo, mas unicamente na
iluminação interior”7 . É nesse plano que Grosseteste discorda de
Aristóteles e outros filósofos, sobretudo em relação a essas questões
importantes como a eternidade simples unicamente do deus trino, da

6. “Quod autem possibilis sit nuda et pura cognitio divinorum absque phantasmatibus
manifestum est ex hoc quod naturaliterappetimus nudum et purum eorum intellectum
et contemplationem. Non enim naturaliter appetimus impossibilia”. Cf. Commentarius
in De Divinis Nominibus IV, in Rome, Bibl. Vat., MS Chigi A.V.129, f. 306vb.
7. “Scire debes quod duplex est via cognoscendi, quarum una est ab inferiori, hoc est
per viam sensus, cuius solus assertor sicut videtur fuit Aristoteles, cum dicit quod
omnis cognitio est a sensu. Nos autem secundum sapientiam christianorum et
philosophorum scimus esse aliam, videlicet a superiori et non a sensu, hoc est per viam
influentiae et receptionis a Primo. Et haec cognitio est certior alia et haec est via quae
currit ab idea in ideam, quae non est per doctrinam exteriorem sed tantum
illuminationem interiorem”. Cf. Sapientiale, I, 30 in Firenze, Bibl. Naz., MS Conventi
sopp. A.6.437, f. 36b, quoted by E. Longpré, Fr. Thomas d’York O.F.M., La première
Somme métaphysique du XIIIe siècle, in Arch. Franc. Hist. 19 (1926) 903.

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GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

não perpetuidade do movimento e do tempo e, consequentemente, a


não perpetuidade do mundo, criado em e com a extensão do tempo8 .

Participação (participatio)

De manhã, ao despertar, antes de qualquer outra coisa, o bispo de


Lincoln costumava dizer em inglês Jesu mercy, Jesu grant mercy. Com
essa invocação, ele pedia perdão de seus pecados a Deus, agradecendo-
o por ter-lhe preservado a vida durante a noite. Implorando a proteção
divina, persignava sua fronte, sua boca e seu peito com o sagrado nome
do Senhor sobre cuja presença ele buscava concentrar a si mesmo9 .
Esse simpático ritual matinal, recordado pelo cronista medieval, mui-
to nos ensina sobre o modo de vida de Grosseteste. A plena consciên-
cia de estar nas mãos de Deus não provinha muito das circunstâncias
precárias do viver medieval, mas de sua forte convicção filosófica de

8. “Consimile accidit Aristoteli et aliis, qui per discursum rationis firmiter sciunt
aeternitatem simplicem esse et tamen ipsam aeternitatem simplicem perspicue non
intellexerunt, sed sub phantasmate extensionis temporalis quasi a longe speculantes
eam viderunt, et sequentes ipsum phantasma extensionis temporalis multa
inconvenientia affirmaverunt, sicut de perpetuitate motus et temporis et per consequens
mundi. Et necesse fuit philosophos in hunc errorem incidere, cum mentis aspectus vel
intelligentia non possit superius ascendere, quam ascendunt eius affectus, et ita, cum
philosophorum affectus ligati erant plus cum transitoriis quam cum aeternis, ipsorum
apprehensiva in phantasmatibus mutabilium detenta simplicitatem aeternitatis attingere
on potuit”. Cf. De finitate motus et temporis, 105.
9. “Sanctus Robertus Grosted, archidiaconus Leycestre, consecratus a sancto Edmundo
Cantuariensi, vir magne sanctitatis et inter doctores anglorum famosior. De isto refertur
Roberto, quod cum mane fuisset excitatus a sompno, dicebat: “Jesu mercy, Jesu grant
mercy”, primo pro peccatorum venia, secundum pro adhibita nocturna custodia, et
tunc idem nomen fronti, ori et pectori inscribebat cum pollici, et illum cuius nomen
sibi imprimebat pro divina tutela ante oculos cordis sui constituebat”. Cf. De civitate
et episcopis Lincolnie, in London, British Library, MS Cotton. Titus A 19, f. 4r-6v, e
especialmente a respeito dessa oração matinal de Roberto Grosseteste, cf. GIEBEN, S.
“Anecdota Lincolniensia: La preghiera mattutina del vescovo, La debolezza umana
della sorella Ivetta, L’eretica che non voleva bruciare”, in: Negotium fidei. Miscellanea di
studi offerti a Mariano D’Alatri in occasione del suo 80° compleanno, a cura di P. Maranesi,
Roma 2002, 127-144.

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SERVUS GIEBEN

que Deus é forma e a forma de todas as coisas. Sem muita cerimônia,


ele expôs o que isso significava para ele numa longa carta endereçada a
Adam de Exeter, um de seus discípulos prediletos10 . Imagine-se o se-
guinte caso extraordinário, escreve ele: Um arquiteto deve construir
uma casa com material líquido, como por exemplo, água. O arquiteto
encarregado da obra é dotado de faculdades extraordinárias. Ele conce-
be a forma exata da casa em sua mente, pelo único poder de sua von-
tade; ele é capaz de aplicar o material-a-ser-moldado-na-casa na forma
da casa que ele tem em mente. No poder de sua vontade, a forma
mental da casa recebe a forma eficiente da casa real. Embora o material
para a construção seja líquido, ele formará realmente a casa, enquanto
esse maravilhoso arquiteto não retirar sua vontade. Nesse mesmo sen-
tido, a forma do selo se mantém na água enquanto a matriz de prata
permanece impressa ou aplicada na água. Todavia, no mesmo instante
em que, retirando sua vontade, o maravilhoso arquiteto retira a aplica-
ção do material na forma em que tem na mente, a casa-água se desin-
tegra; assim como a água perde a forma do selo se a matriz de prata
não mais estiver nela aplicada. O exemplo apresentado por Grosseteste
parece ser completamente imaginário e fictício, mas ele explica: “as-
sim, no mesmo sentido em que essa forma na mente desse arquiteto
deverá ser a forma da casa, a arte da sabedoria ou a palavra do onipo-
tente Deus é a forma de todas as criaturas”11 .

10. Cf. De unica forma omnium, in: Die philosophischen Werke des Robert Grosseteste,
Bischofs von Lincoln, publicado pela primeira vez numa edição crítica por L. Baur,
Münster i.W. 1912, 106-111.
11. “Imaginare itaque in mente artificis artificii fiendi formam, utpote in mente
architectoris formam et similitudinem domus fabricandae, ad quam formam et exem-
plar solummodo respicit, ut ad eius imitationem domum faciat; et imaginare cum ho
per impossibile ipsius architectoris volentis domum fabricare voluntatem ita potentem,
quod se sola applicet materiam formandam in domum formae in mente architectoris,
qua applicatione figuraretur in domum; et imaginare cum his, quod materia domus
esset fluida, nec posset permanere in forma recepta in se, si separeretur a forma in mente
architectoris, sicut aqua figurata sigillo argenteo separato sigillo statim amitteret figu-
ram receptam. Imaginare itaque voluntatem artificis applicantem materiam domus ad

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GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

Em diversas obras o bispo retorna a esses conceitos, asseverando


que exatamente como cada criatura vem à existência do nada, assim,
largada a si mesma, deverá necessariamente retornar ao nada. E uma
vez que ela não existe a partir de si mesma (ex se), mas, considerada
nela mesma, está sujeita à não-existência (labile in non esse), onde e
como a criatura pode ter existência, a não ser ligada com aquilo que a
sustenta, de tal modo a não se degradar e voltar ao nada? É por isso que
Grosseteste afirma que parece que para a existência da criatura nada
mais há que o ser sustentada pela palavra eterna12 .
Em seu comentário sobre o salmo 72 ele especifica que isso não
significa como se Deus fosse, por assim dizer, uma parte continente e
uma parte essencial de sua criatura, mas que ele daria forma a sua cria-
tura, reconvocando-a e aderindo-a a si mesmo, como o vaso conforma
a água que, sem o suporte do vaso, não manteria sua própria figura e
forma13 .
Depois de empregar a mesma imagem do vaso em seu comentário
sobre De divinis nominibus, ele amplia seu significado: ademais, pela

formam in mente architectoris non solum, ut per hanc applicationem formetur in


domum, sed etiam applicantem illam ei, quamdiu domus manet in esse domus, ut
formata in esse servetur. Eo itaque modo, quo forma huius in mente huiusmodi
architectoris esset forma domus, est ars, sive sapientia, sive verbum omnipotentis Dei
forma omnium creaturarum”. Cf. De unica forma omnium, in Die philosophischen Werke
des Robert Grosseteste, ed. Baur, 109-110.
12. “Similiter omnis creatura ex se, si sibi relinqueretur, sicut est ex nichilo, sic relaberetur
in nichilum. Cum igitur non ex se sit, sed in se solum consideratum, invenitur labile in
non-esse: ubi vel quomodo videbitur quod sit, nisi in coaptatione ad illud quod supportat
ipsam ne fluat in non-esse et in conspectione, quod hoc supportatur ab illo? Hoc est
igitur, ut videtur, alicui creaturae esse, quod ab aeterno Verbo supportari”. Cf. De
veritate, in Die philosophischen Werke des Robert Grosseteste, ed. Baur, 141.
13. “Nec hoc dicitur quasi esset pars continens et pars essentialis creaturae suae, sed sic
est creaturam formans, per revocationem et adhaesionem creaturae ad se, sicut vas
figurat aquam, extra quod figuram et formam non retinet”. Cf. Comm. in Psalmos, in
Bologna, Archiginnasio, MS A. 983, f. 43ra.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009 17


SERVUS GIEBEN

participação no ser-em-si-mesmo e no bem-em-si-mesmo, todas as


coisas existentes têm existência e são boas. Seja como for, não é por seu
hábito e por sua qualidade que o ser-em-si-mesmo é participado por
eles, mas enquanto aquilo que efetiva neles sua essência natural e sua
bondade qualitativa e beneficente. Fora da participação no ser-em-si-
mesmo e no bem-em-si-mesmo, de modo algum eles existiriam nem
seriam bons14 .

Exemplarismo (Exemplarismus)

É essa dependência metafísica do ser eterno que doa um senso


genuíno à metáfora muitas vezes empregada que caracteriza as criatu-
ras como “palavras que anunciam os mistérios ocultos de Deus”15 ou
que assevera, como no Dictum 48, que “a máquina do mundo deve
evidentemente falar da arte eterna na qual este foi criado... é uma espé-
cie de palavra visível dessa arte e da palavra invisível”16 .
Na época de Grosseteste, essa afirmação se constituía
tranquilamente numa doutrina comum. Todos concordavam que as
idéias divinas constituíam a base ontológica das realidades finitas e de
sua cognoscibilidade. E isso de tal modo que o cronista franciscano

14. “Multo magis, participatione per se entis et per se boni, sunt omnia quae sunt et
entia et bona. Non tamen est per se ens et bonum participatum ab eis ut eorum habitus
et qualitas, sed ut efficiens in ipso essentiam naturalem et bonitatem ipsorum qualitativam
et bonificativam, sine cuius per se entis et per se boni participatione nec essent modo
aliquo nec bona essent”. Cf. Comm. in De divinis nominibus, IV, in Roma, Bibl. Vat.,
MS Chigi A.v.129, f. 329ra.
15. “Ipsae figurae et formae et species rerum sensibilium quasi quaedam litterae sunt
seu quaedam verba annuntiantia naturas rerum occultas et annuntiantia Dei invisibilia”.
Cf. De operationibus solis, in J. McEvoy, Robert Grosseteste, Exegete and Philosopher,
Aldershot (Variorum) 1994, I, 72.
16. “Mundi machina manifestissime loquitur aeternam artem per quam facta est… est
quoddam illius artis et invisibilis Verbi visibile verbum”. Cf. Dictum 48, in Cambridge,
Gonville & Caius College, MS 380*/380, f. 39va.

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GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

Salimbene pôde cunhar esse fato em forma de um chiste. Ele conta que
certa vez teve um superior que podia ser qualquer coisa menos bonito. Por
isso, um outro frade disse jocosamente que ele deveria ter tido uma idéia
horrenda em Deus, pois sua cabeça era disforme, parecendo mais como
um capacete dos antigos com muitos cabelos na fronte17 .
Mas o exemplarismo de Grosseteste não reduz em última instân-
cia as criaturas a idéias eternas. Ele sabe que, na obra da criação, Deus
manifesta a si mesmo externamente e sabe que ele é triuno. Enquanto
obras de suas mãos, as criaturas devem, por isso, de algum modo reve-
lar a natureza triuna de seu criador. É isso que ele procura demonstrar
em seu Dictum 60: “Omnis creatura speculum est, de quo resultat
similitudo Creatoris, unitatis scilicet et trinitatis”18 .
Vamos supor, afirma ele, que houvesse apenas duas criaturas: uma
racional e outra corpórea. Para essa última, escolhemos uma tão insig-
nificante quanto possível: atomus qualis volitat in sole, uma partícula
de pó revoluteando na luz do sol. Todavia, isso deve ser suficiente
como ponto de partida para argumentar da existência do criador triuno.
A existência da partícula de pó pressupõe um criador de poder infini-
to, a passagem do nada para o ser, por mais minúsculo que seja, é
infinita e consequentemente requer um poder eficiente infinito. Mas
uma vez que a partícula de pó é um corpo, a mente tem ciência de que
isso é tridimensional. Em cada corpo tridimensional, porém, é possí-
vel descrever a esfera e nessa esfera infinitos círculos, e em cada círculo

17. “Habui quemdam ministrum in Ordine fratrum Minorum, qui dictus est frater
Aldevrandus, et fuit de oppido Flaniani, quod est in episcopatu Imole, de quo frater
Albertinus de Verona, cuius est sermonum memoria, ludendo dicebat, quod turpem
ydeam in Deo habuerat. Habebat enim caput deforme et factum ad modum galee
antiquorum et pilos multos in fronte”. Cf. Salimbene de Parma, Cronica, nuova edizione
critica a cura di G. Scalia, I, Bari 1966, 198s.
18. Cf. GIEBEN, S. “Traces of God in Nature according to Robert Grosseteste. With the
Text of the Dictum “Omnis creatura speculum est”, in: Franc. Studies 24 (1964) 144-158.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009 19


SERVUS GIEBEN

infinitas figuras. E uma vez que de cada uma dessas infinitas figuras se
pode desenvolver uma ciência demonstrativa, na partícula de pó deve
estar inscrita uma ciência infinita. Ora, isso só é possível se houver ali uma
sabedoria infinita. Assim, chegamos à conclusão de que o pó deve ter sido
criado por um infinito poder e por uma infinita sabedoria.
Chegar a esse importante conhecimento deve ter sido seguramen-
te uma grande conquista para a mente. Por isso, criando a partícula de
pó, o criador fez uma coisa muito útil para a mente. E mais, uma vez
que a mente, ela própria, não pode dar conta desse bem, o criador deve
ser um criador bom. Por outro lado, a mesma utilidade que oferece o
pó a cada mente singular, oferece quantum in se est a um número
infinito de mentes, na medida em que foram criadas. Assim, parece
que a utilidade da partícula de pó, considerada em si mesma, é infini-
ta, e isso, novamente, supõe que o poder infinito que criou o pó por
sua sabedoria infinita é infinitamente bom. Nesse sentido, a partir da
partícula de pó, demonstra-se o poder infinito, a bondade infinita e a
sabedoria infinita do criador.
Pode-se ver mais claramente a amplitude com que o exemplarismo
trinitário pervade a doutrina de Grosseteste a partir do fato de que sua
metafísica da luz foi moldada no modelo trinitário.

Metafísica da luz

Dentro do arcabouço de sua filosofia cristã geral, Grosseteste in-


troduz agora sua teoria da luz, que atravessa todos os níveis do ser.
Partindo de Deus, a luz suprema, todas as criaturas participam, em
níveis variados e de acordo com suas possibilidades, na alegria e energia
dessa qualidade. Tanto para as criaturas espirituais quanto para as cor-
póreas, ser luz é a qualidade essencial de sua existência. É comum pen-
sar que nos escritos medievais de filosofia e teologia, a luz represente
uma mera metáfora comparando e equiparando coisas de diferentes

20 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009


GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

níveis. Realmente, muitas vezes isso pode muito bem ser o caso. Toda-
via, quando o conceito de luz se torna, enquanto fundamental, uma
idéia como essa do ser ele próprio, parece não ser adequado classificá-
la sob a linguagem metafórica. Em seu comentário sobre a Física,
Grosseteste fez a seguinte sugestão: “Forte omnis entitas lux est” =
talvez toda e qualquer entidade seja luz19 . Vamos ver que essa é exata-
mente a opinião consolidada, proposta pelo bispo em suas obras tardi-
as e chamada globalmente de sua metafísica da luz.

A natureza e as qualidades da luz

Ao discutir a teoria aristotélica sobre a atualidade e a potencialida-


de no comentário que fez de sua Física, Grosseteste acrescenta sua marca
pessoal, introduzindo um conceito estranho à teoria de Aristóteles: ele
fala que não pode haver transição da potencialidade para a atualidade
sem a replicação da forma atual ou sem a reversão da forma replicada
em uma forma em si menos replicada20 . De outro modo, sem a cria-
ção de algo novo ou a não ser que isso já tenha estado presente antes,
como pode surgir uma coisa de outra – e em sentido inverso? “Si enim
ex A, quod est, fieret B, quod non est, sine alicuius novi creatione:
quomodo erit hoc nisi quia A, suam formam replicando, gignet B aut
regredietur in B, quod sui replicatione genuerit A, sicut replicatione
unitatis fit omnis numerus, et de minore numero maior numerus, et
replicationis solutione de maiori minor. Sic omnis species corporalis
fit formae primae corporalis simplicis maiori vel minori replicatione”21 .

19. Embora essa expressão ocorra em dois dos três manuscritos, a edição de Dales
acabou colocando o texto nas notas de rodapé (Roberti Grosseteste Episcopi Lincolniensis
Commentarius in VIII Libros Physicorum Aristotelis, Colorado: Boulder, p. 12, nota 41).
20. “Nec potest hec egressio esse de potentia ad actum nisi forme actualis presentis
replicatione aut replicate in se minus replicatam reversione”. Na edição de Dales (p. 16-
17) o texto está totalmente corrompido.
21. Cf. Commentarius in VIII Libros Physicorum, ed. Dales, 17, com inúmeras correções.

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SERVUS GIEBEN

Grosseteste conclui que há muitas pessoas que pensam que qualquer


outra espécie de coisas é um número22 .
Não é difícil de traçar nessa doutrina a influência de João Escoto
Eriúgena e da metafísica do número de Thierry de Chartres. Mas, em
minha opinião, foi um dos mais originais insights de Grosseteste para
explicitar melhor o conceito aristotélico de entelequia, como
“replicabilitas”, na transição de potencialidade para atualidade. É só
mais tarde que ele irá estabelecer uma distinção entre replicabilidade
ativa e passiva, por exemplo, a replicabilidade da forma e da matéria
correspondente.
Agora estamos dando mais um passo, ao descobrir que para
Grosseteste, a própria natureza da luz se constitui exatamente nessa
“replicabilitas”. Logo no começo de seu tratado De luce ele constata:
“Eu propus que essa é a luz, de sua própria natureza processa a função
de multiplicar a si mesma e difundir a si mesma instantaneamente em
todas as direções. O que quer que perfaça isso é a própria luz ou está
fazendo essa obra em virtude de sua participação na luz, à qual perten-
ce essencialmente essa operação”23 . Partindo de uma análise da luz no
mundo físico, Grosseteste tira conclusões com a qualidade de validade
universal. Isso pode ser visto com maior propriedade num resumo da
doutrina do bispo, produzido por um aluno do círculo de S.
Boaventura, numa obra chamada De symbolica theologia24 . Num es-

22. “Et hoc forte est quod multi putant omnem speciem numerum esse”. Ibid. 17.
23. “Lucem esse proposui cuius per se est haec operatio scilicet se ipsam multiplicare et
in omnem partem subito diffundere. Quicquid igitur hoc opus facit, aut est ipsa lux
aut est hoc opus faciens in quantum participans ipsam lucem quae hoc facit per se”. Cf.
Die philosophische Werke des Robert Grosseteste, Bischofs von Lincoln, editadas criticamen-
te por vez primeira a cura de L. Baur, Münster i. W. 1912, 51-52.
24. Cf. S. Gieben, Robert Grosseteste and Adam Marsh on Light in a Summary
atributed to St. Bonaventure, in Aspectus et affectus. Essays and Editions in Grosseteste
and Medieval Intellectual Life in Honor of Richard C. Dales, edited by G. Freiberg,
New York, 1993, 17-35. O texto do resumo está publicado nas p. 28-35.

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GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

quema cuidadosamente estruturado, o autor anônimo expõe quase


todos os mais importantes textos de Grosseteste sobre o assunto. A
luz corpórea, afirma ele, pode ser considerada a partir de quatro pon-
tos de vista: sua substância, sua virtude, sua forma, sua operação. Em
relação à sua substância, a luz é de origem nobre, substancial na
quididade, sutil na essência. Em relação a sua virtude, é multiplicável,
inflexível, incompreensível. No que diz respeito à sua forma, é em si
mesma absolutamente bela, ela produz a beleza nas coisas belas, nas
coisas feias é permanentemente bela. A operação da luz pode ser consi-
derada nela e por si mesma, ou em relação com outros seres. Em e por
si mesma, a luz existe e é engendrada de chofre, engendra e se difunde
de chofre, se difunde e brilha de chofre. Ademais, ela tem a qualidade
característica que não se recusa a nada, revela toda e qualquer coisa e
distingue todas as coisas singularmente. Em referência a outros seres
existentes, a ação da luz, ou melhor, a luz enquanto operando, pode
ser considerada em conexão com coisas que existem na mente de Deus,
com a morada criada dos bem-aventurados, com a máquina universal
do cosmo. Enquanto máquina do cosmo, a distinção deve ser feita
entre o “minor mundus” – ou seja o homem – e o “maior mundus”,
isto é, o todo do mundo material. O homem pode ser relacionado
com a luz como para com sua alma, seu corpo e para com sua conjun-
ção (quantum ad animam, quantum ad corpus, quantum ad
coniunctum), enquanto que a totalidade do mundo material pode
estar sujeita à operação da luz como sua região supracelestial, celestial e
subcelestial. Para cada uma dessas, mais de vinte modalidades nas quais
a luz está presente e operando, Grosseteste oferece soluções coerentes e
não raro originais. Vamos ver algumas delas.

Hipótese big-bang

Todos conhecem a hipótese do big-bang. É a visão cosmológica


de que a atual aparente expansão do universo partiu de uma violenta
explosão de um material, na origem, altamente comprimido, homo-

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009 23


SERVUS GIEBEN

gêneo e com calor intenso, contendo matéria e energia. Essa hipótese


foi veiculada por vez primeira em 1927 pelo sacerdote George Lemaître,
professor da Universidade de Louvain25 . Na época isso foi visto como
um desastre científico, mas em 1950, uma nova estimativa de distância
entre as galáxias mostrou que, apesar de tudo, isso era plausível. Outra
evidência de uma observação de 1960 tende a confirmar a hipótese.
Gostaria de lembrar que, três anos antes de George Lamaître, John
Alexander Smith do Magdalen College enviou um epílogo emociona-
do à British Academy relativo ao mesmo assunto. Ele assevera que
Grosseteste estava correto em sua teoria da luz. Ele sempre acreditara
ser possível e fecundo do ponto de vista de ciência desenvolver essa
tese dentro de uma teoria da física capaz de ser expressa matematica-
mente. Respondendo uma carta de Andrew George Little, ele justifica
sua opinião. A carta de Smith foi escrita no Magdalen College, Oxford,
em 15 de novembro de 1924. Está preservada até hoje na biblioteca de
Greyfriar. Eis uma passagem da mesma:
Por tão longo tempo, nossas mentes foram obscurecidas pela
visão newtoniana que, como eu disse, é difícil para nós retroce-
der para antes dele. Mas isso não é impossível, e o que Hegel e,
melhor que ele, Goethe disseram sobre a luz e a cor pode servir
para nos fornecer ajuda e uma boa consciência disso. Atualmen-
te estou muito interessado na arte, tentando compreender isso,
acho útil deter-me nesse assunto já que é uma visão mais enge-
nhosa. Acredito que seja possível e cientificamente útil desen-
volver essa tese dentro de uma teoria da física passível de ser
expressa matematicamente (embora as matemáticas que prevejo
que seriam necessárias, estão fora de meu alcance). Nisso inclu-
sive Grosseteste conseguiu abrir um determinado caminho, con-
cebendo a luz como uma força ou uma forma de energia que age
numa autoexpressão instantânea (ou sem tempo), de chofre,
em todas as direções a partir do centro – uma teoria que retor-

25. The Big Bang and Georges Lemaitre: Symposium [Louvain-la-Neuve (Belgium)],
October 10-13, 1983, Dordrecht, c1984.

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GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

nou ou está retornando na teoria científica moderna. (É claro


que o que se está dizendo não é a “instataneidade” mas “uma
velocidade que ultrapassa qualquer outro movimento” ou “uma
velocidade maximamente absoluta”). Em assim se expandindo,
vem a ocupar lugar, e, enquanto “corpo”, às vezes é definida
como aquilo que ocupa espaço, parece como se estivéssemos
contando a nós mesmos como se gera corpo.
É uma outra questão se, adotando essa física (tão especulativa),
se poderá explicitar alguma coisa na natureza da realidade
ultrafísica como em pensamento acreditamos nós próprios apre-
ender isso. Continuo achando que não: enquanto uma figura
ou analogia pode ir de baixo para cima”26 .
Esse texto marcante coloca a teoria de Grosseteste sobre a luz no
centro das disputas modernas a respeito da origem e do começo do
universo. Valeria a pena pesquisar se aqui há alguma conexão entre o
sacerdote de Louvain e o bispo de Lincoln.
O que diria Grosseteste atualmente em seu tratado sobre a luz? Ele
parte da afirmação clara: “Em minha opinião, a primeira forma corpó-
rea, que alguns chamam de corporeidade, é a luz. Isso porque, de sua
natureza verdadeira, a luz difunde a si mesma em todas as direções, de
um modo que um ponto de luz irá produzir instantaneamente uma
esfera de luz de qualquer dimensão, a menos que algum objeto opaco
se lhe interponha27 . Depois, ele argumenta que a multiplicação de um
ser simples em um número infinito de vezes deverá produzir uma
quantidade finita: “Por isso, quando a luz, que nela mesma é simples,
é multiplicada uma infinidade de vezes, isso deve estender a matéria,
que é igualmente simples, numa dimensão finita”28 . Chegando a esse

26. Essa missiva foi mandada para a biblioteca de Greyfriars junto com os jornais e
livros pela viúva de A. G. Little. Seu conteúdo aparece aqui em apêndice.
27. Cotejo o texto da versão inglesa feita por C. C. RIEDL. Robert Grosseteste, On Light
(De luce). Milwauke, 1942, 10.
28. Id. Ibid. 11.

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SERVUS GIEBEN

ponto, ele afirma com mais cuidado: “Digo que, por causa da multi-
plicação infinita de si mesma, a luz estende equanimemente a matéria
em todas as direções, igual em todos os lados na forma de uma esfera
e, como uma consequência necessária dessa extensão, as partes extre-
mas da matéria são mais estendidas e mais rarefeitas do que as que
estão mais próximas ao centro. E enquanto as partes extremas são rare-
feitas no mais alto grau, as partes internas têm a possibilidade de serem
novamente rarefeitas. Nesse sentido, a luz, estendendo a matéria pri-
meira na forma de uma esfera e rarefazendo suas partes mais extremas
ao mais alto grau possível, nas partes mais extremas atualizam comple-
tamente a potencialidade da matéria, deixando essa matéria sem qual-
quer potencialidade para uma posterior impressão. E assim o primeiro
corpo na parte extrema da esfera, o corpo que é chamado de
firmamento, é perfeito, porque nada tem em sua composição a não
ser matéria primeira e forma primeira”29 .

A luz triuna de Deus

É muito comum as pessoas pensarem que os autores medievais,


falando em termos de luz sobre Deus e outros seres espirituais, fazem
isso de modo hiperbólico. Minha opinião é de que nos equivocamos
em relação aos insights de Grosseteste quando forçarmos suas opiniões
expressas para dentro de um veio de interpretação equivocado; quan-
do ele lê no texto grego do Evangelho de S. João o que afirmou o
Cristo “ego eimi o fos o alethinos”, seguramente, com S. Agostinho,
tomou essa palavra ao pé da letra: “non sic dicitur Christus lux sicut
lápis, sed illud proprie istud figurative”30 . Ele ancorava essa opinião
noutros textos escriturísticos e na interpretação dos mesmos feita pe-

29. Id. Ibid. 13.


30. “De dotibus”, ed. por J. GOERING in: Medieval Studies 44 (1982) 105.

26 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009


GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

los padres da Igreja, tanto latinos quanto gregos. Deus é luz, o pai das
luzes e, segundo Dionísio Areopagita, “arkhifotos”, origem e princípio
de toda luz, seja ela espiritual ou corpórea. Ele é “archetypus lucis vel
luminis”31 , “lux super omnem lucem”32 ou simplesmente a fonte da
luz – enquanto luz original (“archilucus” é a versão que dá Grosseteste
para o grego “arkhifotos”), vale dizer, enquanto a luz primordial e trans-
cendente (“yperfotos”) – que em si mesmo e de modo supremo congre-
ga e precede toda dominação ou primazia do poder iluminador33 . Para
sumarizar esses ensinamentos, ele afirma: “Por natureza e na realidade,
ou presentemente e antes de tudo, ou seja, primeiramente e em si
mesmo, Deus é a substância e a essência da luz espiritual e assim nada
pode luzir com luz espiritual se não participar da luz que é ele”34 . É
evidente que todas essas afirmações são pura doutrina de Dionísio.
Mas isso oferece a Grosseteste a oportunidade de expor uma de suas
teses mais ousadas, relativas à natureza triuna de Deus, que vem for-
mulada na oitava parte do Hexaëmeron, com as seguintes palavras:
“Esse Deus existe em três pessoas, seguindo o fato de que Deus é luz,
não corpórea mas luz incorpórea, ou melhor ainda, nem corpórea nem
incorpórea, mas superior a ambas”35 . Sua argumentação segue um des-

31. Cf. Comm. In De Divinis Nominibus, IV, in Roma, Bibl. Vat. MS. Chigi A.v. 129,
f. 307 vb e 310vb.
32. Cf. Comm. In De Mystica Theologia, ed. U. Gamba, Milano 1942, 24.
33. “Et simpliciter radius fontanus, resume, est comprehendens in seipso ut archilucus,
id est principaliter lucens et superlucus, id est superlucens, et superhabens omnem
dominationem seu principalitatem illuminativae virtutis”.Cf. Comm. In De Divinis
Nominibus, IV, in Roma, Bibl. Vat. MS. Chigi A.v. 129, f.312vb.
34. “Deus est naturaliter et vere seu existenter et principaliter, hoc est primo et per se,
substantia et essentia luminis spiritualis et ideo non potest aliquid spiritualiter lucere
nisi participatione luminis quod ipse est”. Cf. Comm. in De Celesti Hierarchia, XIII, in
Roma, Bibl. Vat. MS. Chige A.v. 129, f.250ra.
35. “Quod autem Deus sit in personis trinus, inde sequitur quod Deus est lux, non
corporea sed incorporea; immo magis neque corporea neque incorporea, sed supra
utrumque”, in Robert Grosseteste, Hexaëmeron. Ed. por R. C. DALKES e S. GIEBEN,
Londres, 1982, 220.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009 27


SERVUS GIEBEN

dobramento original. Parte de seu conceito de luz, o qual, em virtude


de sua própria natureza e essência, engendra de si mesmo seu resplen-
dor. E mais, a luz geradora e o esplendor gerado abraçam-se mutua-
mente e de si mesmos inspiram um fervor mútuo. Mas, entre o que
gera (gignens) e o que é gerado (genitus) é possível conceber cinco tipos
de relação comparativa. Pode ser relacionada como aliud e alius, ou
como alius e alius, ou como aliud e aliud, ou não como alius ou alius
mas simplesmente como alterum, ou nem como alius nem como aliud
nem como alterum. Dentre esses cinco tipos de relação, quatro não
podem ser aplicados a Deus, e alguns deles podem ser aplicados a Deus
e a qualquer outra coisa. Pois, em parte alguma é possível que quem é
gerado (genitus) não seja diferente de quem engendra (gignens) enquanto
alius ou aliud ou alter. Tampouco, de modo algum, é possível que
quem é gerado (genitus) difira de quem engendra (gignens) enquanto
aliud mas não enquanto alius. É impossível que em Deus a distinção
entre quem é gerado (genitus) e quem engendra (gignens) seja concebida
como alterum, uma vez que o termo alterum denota uma diferença aci-
dental. Do mesmo modo é impossível que em Deus a diferença entre
quem é gerado (genitus) e quem engendra (gignens) seja definida como
aliud, uma vez que em Deus não há multiplicidade de naturezas. Resta,
assim, que em Deus genitus e gignens não são diferentes como aliud mas
como alius. A mesma razão se aplica também tanto para aquele que inspira
(spirans) como para aquele que é exalado (qui spiratur). Por isso, em Deus
há um, o outro e o terceiro, cada um dos quais sendo uma substância
individual da natureza racional, e portanto três pessoas. Ali não pode
haver um quarto alius ou ser concebido como existindo. Qual o quar-
to elemento poderia ser adicionado à luz geradora, ao esplendor gera-
do e ao fervor mútuo que de ambos procede?36

36. “Omnis autem lux hoc habet naturaliter et essentialiter quod de se gignit suum
splendorem. Lux autem gignens et splendor genitus necessario se amplectuntur mutuo,
et spirant de se mutuum fervorem. Gignens autem et genitus aut est aliud et alius, aut
non aliud sed alius, aut non alius sed aliud, aut nec alius nec aliud sed alterum solum,
aut nec alius nec aliud nec alterum. De istis quinque membris huius divisionis quatuor

28 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009


GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

Iluminação ordenada hierarquicamente

Na visão de Grosseteste, o mundo dos anjos e das almas bem-


aventuradas no paraíso está totalmente dominado pela metafísica da
luz. Sendo uma expressão de Deus (imago dei); como todas as criatu-
ras, em sua própria natureza os anjos são a manifestação da luz inaces-
sível de Deus, comunicada a todos os níveis hierárquicos, em acordo
com a capacidade que esses tem de recebê-la. Em seu comentário à
Hierarquia celeste, ele escreve: Por esse motivo, o raio da luz divina é
chamado de cabeceira de nascente, na medida em que é princípio e
origem de toda luz e por isso é chamado de superexpansivo, na medi-
da em que está presente no todo, ofertando a si mesmo em participa-
ção em acordo com a capacidade de cada coisa, enquanto permanece
sempre o mesmo, por ser imutável e simples, por ser indivisível em si
mesmo, e não apenas um mas a unidade primordial. A participação
desse raio, nele mesmo totalmente diverso, é cada vez diferente nos
participantes, por causa da capacidade receptiva desses. Algo parecido
acontece com os raios do sol. O solo e a madeira não são iluminados
por dentro, pois não são capazes de receber sua iluminação. Na mesma
linha, uma vontade obstinada e enrijecida não é suscetível ao raio divi-

impossibile est in Deum cadere, et quedam de hiis in Deum vel in alium. Non enim
alicubi possibile est ut genitus a gignente nec alius, nec aliud, nec alter sit. Item nusquam
possibile est ut genitus a gignente sit aliud, nec tamen alius. In Deo autem non est
possibile ut genitus a gignente sit alterum, cum alterum dicamus per differentiam
accidentalem. Neque iterum in Deo possibile est ut genitus a gignente sit aliud, cum
non sit in Deo substanciarum multitudo. Relinquitur ergo quod ibi sit genitus a
gignente non aliud, sed solum alius; et eadem est ratio de spirante et illo qui spiratur.
Est igitur apud Deum unus et alius et tertius, quorum quilibet est individua substantia
racionalis nature, et ita tres persone; nec potest ibi quartus alius aut esse aut cogitari.
Quis enim quartus potest adici luci gignenti et splendori genito et ex ambobus procedenti
fervori mutuo?”, in Robert Grosseteste, Hexaëmeron, ed. por R. C. DALES e S. GIEBEN,
Londres 1982, 220.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009 29


SERVUS GIEBEN

no”37 . A água é menos aberta à luz do sol do que o ar, e o ar é menos que
o éter. Assim também, em acordo com seu grau de pureza, os espíritos
celestes são mais ou menos capazes de receber a iluminação divina.
Essa iluminação se aplica tanto ao conhecimento quanto à afeição,
tanto à vida intelectual quanto à volitiva, tanto à verdade quanto à
bondade, na medida em que isso concerne à essência de suas raízes.
Apelando mais uma vez para a imagem do sol, Grosseteste afirma no
De libero arbitrio: “Pois o esplendor do raio do sol não é o calor, e o
calor não é o esplendor; todavia, calor e esplendor nada mais são que
uma única essência do raio, e ambos são um na essência de um raio.
Pois bem, aspectus e affectus, ou seja, razão e vontade livre, são uma
única coisa na essência singular de sua raiz, embora falando de modo
simples um não seja o outro”38 .

37. “Radius autem divinae lucis ideo dicitur fontanus, quia principium est et origo
omnis luminis, et ideo dicitur superexpansivus, quoniam omnibus est praesens, omnibus
se tribuens ad participandum secundum uniuscuiusque susceptibilitatem, semper
similiter se habens quia immutabilis, simplex quia in se impartibilis et non solum unus
sed unitas primordialis. Est autem differens huius radii omnino in se differentis
participatio secundum differentias participantium, quemadmodum est et radii solaris.
Sicut enim terra et ligna non illustrantur intrinsecus a radio solari sed inparticipabilia
sunt illustrationis illius, sic voluntas obstinata et indurata inparticipabilis est radii
divini; et sicut superiora elementa inparticipabilia sunt illustrationis interioris a radio
solari, aqua tamen minus et obscurius aere, et aer minus et obscurius ethere, sic et
diverse voluntates secundum minores et maiores sui puritatis differenter sunt divini
radii participabiles”. Cf. Comm. in Cel. Hierarchia IX, in Roma, Bibl. Vat. MS Chigi
A.v.129, f. 243vb.
38. Sicut itaque splendor radii solis non est calor neque calor et splendor, et tamen calor
et splendor non sunt aliud quam una esssentia radii et ambo sunt unum in unius radii
essentia, sic aspectus et affectus, ratio scilicet et voluntas, scilicet simpliciter loquendo
haec non sit illa, sunt tamen unum in radicis una essencia”. Cf. De libero arbitrio, c. 17,
ed. L. Baur, Münster i. W. 1912, 228.

30 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009


GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

Experiência da vida humana

Num comovente sermão feito a ordenandos a respeito do simbo-


lismo da “porta do tabernáculo” (Lv 8,33), o bispo recomenda que
seus ouvintes imitem os frades menores “qui in vite sancte excellencia
admiranda de seipsis faciunt miracula”.. a que tipo de milagre maravi-
lhoso na vida dos santos frades estará ele aludindo? Considera-os os
melhores seguidores do modelo da vida angelical, dos quais está falan-
do no sermão e que devem ser imitados por todos nós39 . Por refrea-
rem os prazeres mundanos, os frades eram considerados capazes de
obter a pureza de coração necessária, de modo que eles, de mente aber-
ta (irreverberato aspectu) e sem serem perturbados pela nuvem dos fan-
tasmas (sine nubilo phantasmatum), podem ver a própria luz da ver-
dade mais suprema. Todos nós somos convidados a partilhar essa feli-
cidade, pois “são bem-aventurados os puros de coração porque eles
verão a Deus”; e com o salmista podemos dizer: “Posso ouvir o que o
Senhor Deus me diz”. Na realidade, ver e ouvir são aqui a mesma
coisa40 , conclui o bispo.
Na metafísica da luz de Grosseteste, o homem constitui um ele-
mento muito importante. Ele é o centro que cria unidade no univer-
so. Sua alma racional se comunica com os anjos na natureza da racio-
nalidade e da inteligência. Nessa comunicação, eles possuem uma liga-

39. “Harum beatitudinum specialissimam imitationem nunc michi videntur habere


fratres minores qui in vite sancte excellencia admiranda de seipsis faciunt mirabilia.
Simus igitur et nos eorum imitatores”. Cf. Dictum 52, in Cambridge, Caius MS.
380*/380, 48vb.
40. “[Cherubini] ... limpidissime in ipsa veritatis luce universam pulchritudinem
contuentes. De huius itaque pulchritudinis contuitu reportemus et nos oculi interioris
munditiam, qua sine nubilo phantasmatum lucem ipsam summae veritatis irreverberato
aspectu contueamus. Beati enim mundi corde quia ipsi Deum videbunt, et cum
psalmista dicere valeamus ‘audiam quid loquatur in me Dominus Deus’, quia illud
idem est videre et audire”. Cf. Dictum 52, in Cambridge, Caius Ms. 380*/380, 48vb.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009 31


SERVUS GIEBEN

ção indissolúvel, uma vinculação conjunta de uma unidade natural


(unitas naturalis). Não existe tal comunicação entre a alma racional e o
corpo. Esse, por outro lado, liga-se conjuntamente numa unidade pes-
soal (unitas personalis)41 . Todavia, o corpo humano se comunica em
natureza com todas as naturezas corpóreas, desde os corpos celestes até
os quatro elementos dos quais é composto. Isso acontece por causa da
natureza da luz, a qual refletindo-se dos corpos celestes vai gradual-
mente sendo incorporada no fogo, no ar, na água e na terra. Ademais, a
alma racional se comunica com a alma sensitiva dos animais na potencia-
lidade sensitiva, e com a alma vegetativa das plantas na potencialidade
vegetativa. Em virtude disso, o homem possui uma comunicação natural
(communicat in natura) com todas as criaturas42 . Essa centralidade do
homem no universo é para Grosseteste uma das razões da Encarnação do
filho de Deus, supondo-se sempre que não houvesse havido o pecado
de Adão. Assim, antecipando a doutrina do bem-aventurado John Duns

41. “Anima autem rationalis et angelus communicant in natura rationalitatis et


inteligentie, qua communicatione habent indissolubile vinculum et concatenacionem
naturalis unitatis. Anima autem rationalis non potest communicare cum corpore in
specie et natura. Est tamen anima rationalis apta nata ut sit perfecctio corporis organici,
et uniatur ei in unitatem persone; quapropter angelus et anima rationalis concatenata
sunt per unitatem naturalem. Anima vero rationalis et corpus humanum conveniunt
in unitatem personalem”. Cf. Robert Grosseteste, De cessatione legalium, edited by
R.C.Dales e E.B. King, Londres, 1986, 130.
42. “Corpus autem humanum habet communionem in natura cum omnibus naturis
corporalibus, quia corpora celestia communicant cum igne elemento in natura lucis;
ignis et aer in natura caloris; aer et aqua in natura humiditatis; aqua et terra in natura
frigiditatis. Corpus autem humanum constat ex quattuor elementis, quapropter
communicat in natura cum illis, et per consequens cum celestibus corporibus cum
quibus communicat ignis in natura lucis. Communicat etiam per consequens cum
omnibus naturis elementis communicantibus cum ipsis elementis. Communicat quoque
anima rationalis cum anima sensibili brutorum in potentia sensitiva, et cum anima
vegetabili plantarum in potentia vegetativa. Quapropter et homo communicat in
natura cum omni creatura”. O argumento é usado por Grosseteste no curso de uma
discussão sobre a questão “An Deus esset homo etiam si non esset lapsus homo”, na
terceira parte do De cessatione legalium, 130-131.

32 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009


GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

Scotus, isso se torna um argumento que afirma Cristo ter a primazia


absoluta, como o primogênito de toda criatura43 .
É pela luz que a alma humana atua em todos os sentidos
corpóreos44 . Essa opinião de S. Agostinho foi sustentada firmemente
por Grosseteste em seu comentário sobre o Hexaëmeron. Sempre re-
cordando que o bispo de Hipona considera a luz como uma substância
corpórea, sendo isso numa categoria maximamente sutil. De outro lado,
S. João Damasceno defendeu que a luz era uma qualidade do fogo, sem
qualquer subsistência própria. De acordo com Grosseteste, isso não era
uma afirmação contraditória. Em sua opinião, as duas afirmações eram
verdadeiras. Ele é totalmente explícito: “Dizemos que a luz deve ser dita
necessariamente nas duas direções, pois configura (designs) uma substân-
cia corpórea, da espécie a mais sutil, próxima da imaterialidade que é por
natureza autogenerativa; mas isso significa igualmente a qualidade inci-
dental que procede da ação natural generativa da substância da luz.
Pois o movimento indeficiente da ação generativa é uma qualidade da
substância que está indeficientemente gerando a si mesma”45 .
Por causa dessa luz, a alma exerce sua atividade em todos os senti-
dos, usando-os como instrumentos46 . Em De iride, ele escreve que

43. Cf. D.J. UNGER, “Robert Grosseteste, Bishop of Lincoln (1235-1253), on the
Reasons for the Incarnation”, in Franciscan Studies 16 (1956) 1-36.
44. “Luz igitur est per quam anima in omnibus sensibus agit et que instrumentaliter in
eisdem agit”. Cf. ROBERT GROSSETESTE, De cessatione legalium, ed. por R.C. Dales e E.B.
King, Londres, 1986, 98.
45. “Dicimus quod necesse est lucem dupliciter dici: signat enim substantiam
corpoream subtilissimam et incorporalitati proximam, naturaliter sui ipsius generativam;
et significat accidentalem qualitatem, de lucis substancie naturali generativa accione
procedentem. Ipsa enim generative acctionis indeficiens mocio qualitas est substancie
indeficienter sesegenerantis”. Cf. Robert Grosseteste, Hexaëmeron, ed. Por R.C. Dales
e S. Gieben, Londres, 1982, 98-99.
46. “Lux igitur est per quam anima in omnibus sensibus agit et que instrumentaliter in
eisdem agit”. Ibid. 98.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009 33


SERVUS GIEBEN

não se deve pensar que a emissão dos raios visíveis seria uma posição
imaginária divorciada das coisas, como acreditam as pessoas que consi-
deram a parte e não o todo. Deve-se ter em conta, ao contrário, que
uma espécie visível é uma substância similar à natureza do sol, apare-
cendo e irradiando, e a radiação de cada espécie, junto com a radiação
do corpo exterior que aparece, é a total responsável pela visão47 . E
noutro contexto, ele comenta: “O raio visual é a luz que sai do espírito
visual luminoso para o obstáculo, uma vez que a visão não se comple-
ta apenas na recepção da forma sensível sem matéria, mas é completa-
do na recepção recém-mencionada e na radiosidade que sai do olho”48 .
O mesmo se aplica também à atividade da alma de ouvir, tocar, degus-
tar e cheirar. Todas essas atividades são feitas na alma pela luz.

O mundo físico

Depois dos estudos fundamentais de Ludwig Baur49 , Alistair


Crombie50 e outros, não parece muito adequado explicar aqui, em
detalhes de que modo, segundo Grosseteste, a luz está atuando no

47. “Nec putandum quod egressio radiorum visualium sit positio imaginaria solum
absque re, sicut putant illi qui partem considerant et non totum. Sed sciendum quod
species visibilis est substantia assimilata nature solis lucens et radians, cuius radiatio
coiuncta radiationi corporis lucentis exterius totaliter visum complet”.Cf. De iride, in
Die philosophischen Werke des Robert Grosseteste, Bischofs von Lincoln, editadas critica-
mente por vez primeira a cura de L. BAUR, Münster i. W. 1912, 72.
48. “Radius namque visualis est lumen digrediens a spiritu visibili luminoso usque ad
obstaculum, quia non perficitur visus in sola receptione forme sensibilis sine materia,
sed perficitur in receptione dicta et radiositate egrediente ab oculo”. Cf. Commentarius
in posteriorum analyticorum libros II, 4, ed. Pietro Rossi, Firenze, 1981, 386.
49. BAUR, L. “Das Licht in der Naturphilosophie des Robert Grosseteste”, in:
Abhandlungen aus dem Gebiete der Philosophie und ihrer Geschichte, eine Festgabe zum
70. Geburtstag Georg Freiherrn von Hertling. Freiburg i.B. 1913, 41-55.
50. CROMBIE, A. C. Robert Grosseteste and the Origins of Experimental Science, 1100-
1700, Oxford, 1953.

34 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009


GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

mundo físico. É sabido universalmente que Grosseteste sustentava que


as leis da lux eram a causa geral por trás de muitos fenômenos aparen-
temente diferentes. Basta lembrar ocorrências como a origem do som em
geral, de trovões e ecos em particular, a aparição do arcoiris, o refletir-se da
luz no espelho, a aproximação de objetos distantes no binóculo. Por meio
de aspectos matemáticos da luz, Grosseteste sustentou sempre ser possível
explicitar diferenças qualitativas na força física como provindas de diferen-
ças quantitativas, baseadas na estrutura geométrica. Essa visão das coisas
levou-o a tentar explicar a intensidade do calor e da luz como devidos à
concentração de raios, e o calor ele mesmo como dispersão das partes
moleculares devido ao movimento51 .
Talvez, para concluir, seja válido enfatizar por que Grosseteste con-
siderou necessário continuar, inclusive como teólogo, seus estudos so-
bre o mundo físico. Numa nota extensa ao capítulo 24 de sua tradu-
ção do livro De fide orthodoxa de João Damasceno, ele explica seu
pensamento. Essa nota é devida ao fato de, no livro legado pela tradi-
ção, faltar texto:
Esses dois capítulos, a saber, o vinte e quatro, sobre os mares, e
o vinte e cinco, sobre os ventos, são omitidos em diversos ma-
nuscritos gregos; talvez porque pareçam não conter uma temática
teológica. Mas segundo o homem verdadeiramente sábio, toda
notícia da verdade é fecunda na explicação e compreensão da teo-
logia. Assim, uma vez que esses capítulos se encontram no manus-
crito grego, não queremos omiti-los, pois temos certeza de que um
tão grande autor não os teria escrito nesse livro se não reconhe-
cesse neles alguma utilidade para a Sacra Escritura52 .

51. CROMBIE, A.C. Robert Grosseteste, 110-112.


52. Haec duo capitula, scilicet vigesimum quartum de pelagis et vigesimum quintum
de ventis omissa sunt in quibusdam exemplaribus graecis; forte qua non multum
videntur esse materiae theologiae, cum tamen secundum vere sapientes omnis veritatis
notitia utilis est ad theologiam exponendam et intelligendam. Ideo nos invenientes
haec in exemplari graeco nolumus ea omittere, tenentes pro certo quod tantus auctor ea
in hoc libro non scripsisset nisi eorum utilitatem aliquam in sacra scriptura cognovisset”.
Cf. Rome, Bibl. Vat. MS Chigi A. VIII, 245, f. 16va.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009 35


SERVUS GIEBEN

Diante de tal parâmetro para julgar a autenticidade de um texto,


muitos editores modernos podem seguramente franzir a testa em de-
saprovação. Seja como for, nessa nota, Grosseteste manifesta sua con-
vicção profunda de que o amor à verdade de modo algum pode ser
vedado. Essa era a busca pela ciência universal, tão universal como a
própria verdade ela mesma. Tão universal como a essência do ser e de
seu princípio existencial de atividade: LUZ.

Apêndice

Carta de J. A. Smith para A. G. Little


Magdalen College, Oxford. 15.11.1924.
Meu caro Little,
Tenho sido inquestionavelmente lento em responder sua carta do
dia 9, em parte porque não tenho comigo cópia das obras de
Grosseteste. Meu epílogo entusiasmado no B.A. foi um tanto impro-
visado, citando de memória (pois estava bastante seguro de estar cer-
to). Ademais, eu não deveria ir tão longe se desse a impressão de que
esse remanescente particular poderia ser datado de 1224.
A citação vem de seu De luce (Ed. de Baur, p. 57, 5ss). Talvez você
possa dizer quem são os dicentes ali referidos.
Eu não tenho competência para falar da genealogia dessa física e
metafísica da luz, pois suspeito que isso provém em grande parte do
séc. X, do escritor árabe Al-hazen. Parece ter sido exposto de modo
relativamente extenso nas obras de Witelo por volta de 1270, que
conheço apenas de citações. Essa última fonte é seguramente platôni-
ca, e seu percurso de lá corre através da névoa do neoplatonismo.
Nossa mente foi de tal modo obscurecida pela visão newtoniana
da luz que, como eu afirmei, é difícil para nós retornar, e ir além do

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GROSSETESTE E CIÊNCIA UNIVERSAL

mesmo. Mas não é impossível, e o que disse Hegel e melhor que ele
Goethe, sobre luz e cor pode servir-nos de auxílio e de boa consciên-
cia. Atualmente estou muito interessado na arte, empenhado em
compreendê-la, e acho que pode ser útil deter-me nesse assunto como
se fosse uma visão mais engenhosa. Acredito que isso seja possível, e
seja cientificamente útil desenvolver essa tese dentro de uma teoria da
física passível de ser expressa matematicamente (embora as matemáti-
cas que prevejo serem necessárias, estejam fora de meu alcance). Nisso
inclusive Grosseteste conseguiu abrir um certo caminho, concebendo
a luz como uma força ou uma forma de energia que age numa
autoexpressão instantânea (ou sem tempo), de chofre, em todas as
direções a partir do centro – uma teoria que retornou ou está retornan-
do na teoria científica moderna. (É claro que o que se está dizendo não
é a “instataneidade” mas “uma velocidade que ultrapassa qualquer ou-
tro movimento” ou “uma velocidade maximamente absoluta”). Em
assim se expandindo, vem a ocupar lugar e, enquanto “corpo”, às vezes
é definida como aquilo que ocupa espaço, e é como se estivéssemos
contando a nós mesmos como se gera corpo.
É uma outra questão se, adotando essa física (tão especulativa), se
poderá explicitar alguma coisa na natureza da realidade ultrafísica como
em pensamento acreditamos nós próprios apreender isso. Continuo
achando que não: tampouco como uma figura ou analogia de baixo
pode ser aplicada para cima. A intenção de minha leitura foi defender
essa convicção, ou seja, sustentar que Grosseteste tinha razão. Mas o
assunto é difícil e é muito fácil ser levado a extravagâncias e paradoxos.
Foi um grande prazer e uma grande honra, para mim, vê-lo no
auditório, e de que algo que eu disse tenha despertado seu interesse.
Saudações cordiais,
de seu J. A. Smith.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 11-37, jul./dez. 2009 37


“A LUZ DERIVA AO BEM E É IMAGEM DA BONDADE”...

“A LUZ DERIVA DO BEM E É IMAGEM


DA BONDADE”: A METAFÍSICA DA
LUZ DO PSEUDO-DIONÍSIO
AREOPAGITA NA CONCEPÇÃO AR-
TÍSTICA DO ABADE SUGER DE
SAINT-DENIS
Ricardo da Costa*

O lugar [Saint-Denis] gozava de uma nobreza muito antiga e se


distinguia por sua dignidade régia; costumava ser usado como
palácio real e militar. Sem demora ou fraude era entregue a César
o que é de César, mas não se tributava a Deus o que é de Deus
com a mesma exatidão e fidelidade. Falo do que ouvi, não do
que vi: frequentemente, dizem alguns, o próprio claustro do
mosteiro se enchia de soldados, urgiam-se negócios e pleitos, e
às vezes era aberto a mulheres. Quem nesse ambiente era capaz
de pensar no celeste, no espiritual e no divino? Mas agora ali se
busca a Deus, cultiva-se a continência, vive-se a disciplina com
vigilância e frequentam-se as leituras santas. O silêncio habitual
e a ausência perpétua de todo ruído mundano convidam a me-
ditar as realidades celestiais. Ademais, a ascese da continência e
o rigor da observância se alternam com a doçura dos hinos e
salmos (...).
Não reproduzi as desventuras passadas para confusão ou opróbrio
de ninguém, mas para ressaltar com mais graça e formosura o es-
plendor da mudança, comparada com a vida anterior. Pois os bens
atuais se destacam ainda mais quando cotejados com os males an-
teriores. As coisas semelhantes entre si se conhecem por sua analo-
gia, mas as que são contrárias agradam ou desgostam mais. Por
exemplo, junta o negro com o branco: pelo mútuo contraste co-

* Medievalista da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Acadêmico correspon-


dente n. 99 da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009 39


RICARDO DA COSTA

meçarás a distinguir cada um por sua própria cor. O mesmo ocorre


com a fealdade, que, próxima da beleza, faz com que esta se torne
ainda mais formosa e a outra mais disforme.
Carta 78 (4, 5) de Bernardo de Claraval a Suger, abade de
Saint-Denis.
Em 1127 São Bernardo (1090-1153) se reconciliou com Suger
(c. 1085-1151)1 . Em uma carta (n. 78)2 , Bernardo congratulou-se
efusivamente com ele por ter reformado sua abadia, mas, sobretudo,
por passar a viver uma vida verdadeiramente cristã, modesta, mesmo
em meio ao fausto do poder3 .
Essa importante reforma e redecoração levada a cabo por Suger
em Saint-Denis, a mais régia das igrejas (originalmente um mosteiro),
deu origem a uma nova arte, o gótico4 , que, em Saint-Denis, foi a mais
perfeita expressão concreta da filosofia da metafísica da luz do Pseudo-
Dionísio Areopagita (séc. V). No espetáculo poético da esfuziante ir-
radiação da luz em Saint-Denis, a transcendência repousou na matéria,
a luz na cor, a contemplação na ação.

1. Apesar da abadia de Saint-Denis ser um lugar régio, centro de educação de príncipes,


não tinha boa reputação antes da chegada de Suger à abadia. Bernardo falava dela
como a sinagoga de Satanás e Abelardo criticava sua corrupção sob o abaciado de Adão,
predecessor de Suger. Além dessa degeneração moral, havia ainda a decadência física. A
infraestrutura arquitetônica estava quase em ruínas. JAQUES PI, Jéssica. La estética del
románico y el gótico. Madrid: A. Machado Libros, 2003, p. 257.
2. Obras Completas de San Bernardo VII. Cartas. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos
(BAC), MCMXC, pp. 286-303.
3. Para a vida do abade Suger, o texto clássico é de PANOFSKY, Erwin. “O abade Suger
de S. Denis”. In: Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002, pp.
149-190. Suger foi conselheiro de Luís VI (1081-1137) e Luís VII (1120-1180), e
regente de 1147 a 1149, quando Luís VII se engajou na Segunda Cruzada. É conside-
rado um dos maiores patronos da arte em toda a Idade Média. Dicionário Oxford de
Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 512.
4. WILLIAMSON, Paul. Escultura gótica (1140-1300). São Paulo: Cosac & Naif,
1998, p. 11.

40 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009


“A LUZ DERIVA AO BEM E É IMAGEM DA BONDADE”...

Imagem 1

Rosácea do transepto norte da basílica de Saint-Denis. O tema é a criação, com Deus no


centro, os seis dias da criação no segundo círculo, o Zodíaco no terceiro círculo repre-
sentando a harmonia da ordem celeste e, no círculo maior, os trabalhos dos homens que
representam a ordem da terra. Tudo se expande e difunde a partir da irradiação do bem,
exatamente como os escritos do Pseudo-Dionísio.

Feliz com sua obra, Suger descreveu-a em dois tratados, “Das obras
realizadas durante sua administração” (De rebus in administratione sua
gestis) e o “Segundo livro da consagração da igreja de Saint-Denis”
(Libellus alter de consecratione ecclesiae sancti Dionysii)5 . Ele concebeu
seu monumento como uma obra teológica, naturalmente alicerçada e
influenciada pelos (supostos) escritos do patrono da abadia, São Di-
nis6 . Todos os restos mortais dos reis que ali descansavam estavam na
companhia de um túmulo sagrado, o do próprio Dionísio7 .

5. Os dois documentos foram publicados em El Abad Suger. Sobre la Abadía de Saint-


Denis y sus tesoros artísticos (ed. de Erwin Panofsky). Madrid: Ediciones Cátedra, 2004.
Esta será a edição que embasará o nosso artigo.
6. Primeiro bispo de Paris, martirizado em 272. Na Idade Média, acreditava-se que São
Dionísio e Dionísio Areopagita eram a mesma pessoa.
7. DUBY, Georges. O tempo das catedrais. A arte e a sociedade (980-1420). Lisboa:
Editorial Estampa, 1979, p. 104.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009 41


RICARDO DA COSTA

Esses textos (Corpus Dionisiacum), os mais importantes da tradi-


ção mística medieval, foram oferecidos ao rei Pepino, o Breve (715-
768) pelo papa Paulo I (†767). Luís, o Piedoso (778-840) encomen-
dou ao abade Hilduíno a tradução do códice grego. O trabalho foi
concluído em 835, mas a tradução foi mal feita, de modo que Carlos
II, o Calvo (823-877) pediu uma nova tradução, desta vez ao “pai da
filosofia medieval”, o irlandês João Escoto Eriúgena (c. 815-885), que
terminou o trabalho em 8628 .
Assim, no tempo do abade Suger, os escritos do Pseudo-Dionísio
circulavam em todos os ambientes intelectuais da Europa: de Hugo
(1096-1141) e Ricardo de São Vítor (†1173) a Pedro Abelardo (1079-
1142) e Pedro Lombardo (c. 1110-1164), todos o estudaram e o co-
mentaram.
Mas qual a fundamentação filosófica para o esplendor de Saint
Denis? Como o Pseudo-Dionísio estrutura a meditação filosófica de
Suger exposta em seus tratados? Nosso objetivo nesse opúsculo é esta-
belecer essa conexão, apresentar as linhas-mestras dos dois tratados de
Suger e confrontá-los com os aspectos mais gerais dos textos do
Areopagita, particularmente em seu texto Dos nomes divinos, uma das
obras do Corpus Dionisiacum.

Consonantia et claritas

Em Dos nomes divinos, o Pseudo-Dionísio afirma que as coisas


divinas, inteligíveis, revelam-se e mostram-se a nós de acordo com a
medida da inteligência de cada um, embora permaneçam incompre-
ensíveis para tudo aquilo que está no âmbito dos sentidos. No entan-
to, o bem não permanece totalmente incomunicável, pois, por sua

8. MARTINS-LUNAS, Teodoro H. “Introducción”. In: Obras completas del Pseudo


Dionisio Areopagita. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), MCMXCV, p. 20.

42 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009


“A LUZ DERIVA AO BEM E É IMAGEM DA BONDADE”...

bondade, manifesta seu “raio supersubstancial”, e assim ilumina cada


criatura proporcionalmente à sua inteligência (I, §1, 6 e §2, 10)9 .
Trata-se de uma concepção emanante, baseada no modelo da luz: o
ser tem a natureza da luz e emana como esta. O bem é belo, e é harmo-
nia e luz, proporção e claridade. Esplendor. Luz. O homem deve mirá-
la, amá-la e aspirar a ela10 .
Para o Areopagita, deve-se atribuir à Trindade a substância
supersubstancial, a inefabilidade, a “afirmação e negação de toda coisa
que está acima de toda afirmação e negação” (II, §4, 42)11 . Embora
tentemos sempre definir o uno, ao fim das contas, dele não podemos
dizer nada: isso é o que exige o seu programa de teologia negativa –
uma reflexão sobre a inadequação existente entre todas as nossas deno-
minações, baseadas na pluralidade e na contraposição12 . Nossa lingua-
gem, imperfeita, somente expressa os símbolos do inefável (que é a
verdadeira natureza do mundo), nunca o próprio inefável13 .
O bem, “divindade superdivina”, envia os raios de sua bondade
absoluta. É como o Sol que, pelo simples fato de existir, ilumina as

9. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos (introd., trad. e notas de


Bento Silva Santos). São Paulo: Attar Editorial, 2004, p. 59-60.
10. TATARKIEWICZ, Wladyslaw. Historia de la estética. II. La estética medieval. Madrid:
Akal Ediciones, 2002, p. 33.
11. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos, op. cit., p. 73.
12. FLASCH, Kurt. El pensament filosòfic a l’Edat Mitjana. D’Agustí a Maquiavel.
Santa Coloma de Queralt: Obrador Edèndum, 2006, p. 76.
13. O inefável é aquilo que, por sua beleza indescritível, não se pode nomear ou
descrever, e, por isso, tem caráter incomunicável, indizível. Não obstante sua
inacessibilidade substancial, o prazer que causa ao seu contemplador é inebriante,
encantador. Para o Areopagita, o inefável é o próprio bem, que é verdadeiro e real, isto
é, Deus. De modo muito inferior, a sensação do inefável está presente em muitas
sensações humanas (a música, o amor, a liberdade etc.). Esse tema foi abordado pelo
filósofo francês (de origem russa) Vladimir Jankélévitch (1903-1985).

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009 43


RICARDO DA COSTA

coisas que podem participar de sua luz. Mais: o bem é tão perfeito que
seus raios não só O difundem, mas também fazem com que os seres
inferiores tendam aos superiores e tornem o desejo do bem algo imu-
tável e elevado.
Por exemplo, as luzes das várias lâmpadas de uma casa, mesmo
que totalmente imanentes umas das outras, mantêm sua distinção re-
cíproca, que subsiste, e estão “unidas na distinção e distintas na união”.
Pois todas essas luzes se unem em “uma só luz e fazem brilhar uma
única luz indivisível” (II, §4, 45)14 .
Tudo isto provém da Bondade, causa universal da união e da reci-
procidade existente no “ordenamento supracósmico” (IV, §2, 102-
104)15 . Exatamente como o planejamento espacial da rosácea do
transepto norte da basílica de Saint-Denis: o Bem, no centro de tudo,
...é causa também dos movimentos da enorme evolução celeste,
que sucede sem rumor, e das ordens, das belezas, das luzes e das
estabilidades das estrelas e dos vários cursos de algumas estrelas
errantes e do retorno periódico aos seus pontos de partida das
duas luminárias que a Sagrada Escritura chama grandes16 , por
cujo curso são definidos os dias e as noites, e medidos os meses
e os anos, que precisam os movimentos cíclicos do tempo e das
coisas que estão submetidas ao tempo, os enumeram, os orde-
nam e os contêm (IV, §4, 112)17 .

14. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos, op. cit., p. 73.


15. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos, op. cit., p. 91.
16. “Deus disse: ‘Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite;
que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e os anos; que sejam
luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra’, e assim se fez. Deus fez os dois
luzeiros maiores: o grande luzeiro para governar o dia e o pequeno luzeiro para governar
a noite, e as estrelas. Deus colocou no firmamento do céu para iluminar a terra, para
governarem o dia e a noite, para separarem a luz e as trevas, e Deus viu que isso era bom”
(Gn 1,14-18); “Ele fez os grandes luminares: porque o seu amor é para sempre! O sol
para governar o dia, porque o seu amor é para sempre! A lua e as estrelas para governa-
rem a noite, porque o seu amor é para sempre!” (Sl 136 (135) 7-9).
17. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos, op. cit., p. 93.

44 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009


“A LUZ DERIVA AO BEM E É IMAGEM DA BONDADE”...

Paz. Harmonia. Ordem. Hierarquia. Todos esses conceitos, comple-


tamente estranhos ao homem atual, estruturavam a percepção das sensibi-
lidades letradas dos séculos XI-XII para as coisas sublimes, para a concór-
dia, a adequação, a conformidade18 . Tudo a partir da difusão da luz:
A luz deriva do bem e é imagem da bondade; por essa razão cele-
bra-se o bem chamando-o luz como o arquétipo que se manifesta
na imagem (...) a imagem onde se manifesta a bondade divina, isto
é, este grande sol todo luminoso e sempre reluzente segundo a
tênue ressonância do bem, ilumina todas aquelas coisas que são
capazes de participar dele e tem uma luz que se difunde sobre
todas as coisas e estende sobre a totalidade do mundo visível, a
todos os escalões de alto a baixo, os esplendores dos seus raios, e, se
alguma coisa não participa nessa irradiação, tal fato não se deve
atribuir à sua obscuridade ou à insuficiência da distribuição da sua
luz, mas às coisas que não tendem à participação da luz por causa
de sua inaptidão em recebê-la (IV, §4, 117)19 .
E por não terem princípio nem fim, as inteligências divinas giram
de modo helicoidal em torno do belo e do bem e, em relação às coisas
inferiores, se movem em linha reta. O mesmo ocorre com a alma
iluminada, que se move em um movimento helicoidal de atos com-
plexos e progressivos (IV, §8-9, 147-148)20 .

18. “Ordem ‘é o que podemos perceber no espetáculo dos planetas onde cada elemen-
to ocupa seu lugar e sua ordem sem ser um empecilho para o outro’. Esta sentença
formulada no século XII no círculo da escola de Abelardo, sugerindo a harmonia
comum ao cosmo e à congregação dos homens, situa-se na longínqua herança da
concepção antiga, grega e romana, de ordo rerum. Desde a época dos pais da Igreja, os
autores cristãos encontraram nos antigos, estóicos e sobretudo platônicos, um antigo
quadro de reflexão sobre o sistema social concebido como uma concórdia de ordens
reguladas de acordo com o modelo da harmonia dos planetas.” – IOGNA-PRAT,
Dominique. “Ordem(ns)”. In: LE GOFF, Jacques, e SCHMITT, Jean-Claude (coords.).
Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP:
Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 305.
19. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos, op. cit., p. 94.
20. DIONÍSIO PSEUDO-AREOPAGITA. Dos nomes divinos, op. cit., p. 99-100.
Platão já afirmara no Timeu (VI, 33b): “Quanto à forma (do universo), concedeu-lhe a
mais conveniente e natural. Ora, a forma mais conveniente ao animal que deveria
conter em si mesmo todos os seres vivos, só poderia ser a que abrangesse todas as formas
existentes. Por isso, ele torneou o mundo em forma de esfera, por estarem todas as suas

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009 45


RICARDO DA COSTA

Em outra obra, Da hierarquia eclesiástica, o Areopagita deixa clara


a forma como nós podemos ascender às coisas superiores:
Os seres celestes, devido à sua natureza intelectual, vêem a Deus
diretamente. Nós, pelo contrário, nos elevamos até onde pode-
mos na contemplação do divino por meio de imagens sensíveis
(I, §2, 373B)21 .
Os homens, particularmente aqueles que pertencem à hierarquia ecle-
siástica, necessitam servir-se de signos sensíveis para se elevarem espiritual-
mente às realidades do mundo inteligível, em direção ao divino (I, §5,
377a; V, §2, 501D)22 . Ao ler o Pseudo-Dionísio, Suger aceitou essa escala
de ascensão rumo ao mundo real, e tentou, de todas as maneiras, salvar a
sua alma, reformando a sua igreja e dando o exemplo para fomentar um
zelo constante no cuidado da Igreja de Deus. E isso
...sem nenhum desejo de vanglória e sem exigir nenhuma retri-
buição de louvor humano ou recompensa passageira, a não ser

extremidades a igual distância do centro, a mais perfeita das formas e mais semelhante
a si mesma, por acreditar que o semelhante é mil vezes mais belo do que o dessemelhante.
Ademais, por vários motivos, deixou lisa sua superfície exterior.”; e VI, 34a: “...por
todas essas razões, a divindade eterna, tendo em mente a divindade que viria algum dia
a existir, deixou-a lisa e uniforme, com todas as partes eqüidistantes do centro, completa
e perfeita e composta só de corpos perfeitos. No centro colocou a alma, fazendo que se
difundisse por todo o corpo e completasse seu envoltório, depois do que formou o céu
circular com movimento também circular, céu único e solitário, porém capaz, em
virtude de sua própria excelência, de fazer companhia a si mesmo, sem necessitar de
ninguém nem de conhecimentos nem de amigos, mas bastando-se a si mesmo. Com
todas essas qualidades, engendrou uma vida feliz.” – PLATÃO. Diálogos (trad. de
Carlos Alberto Nunes). Belém: EDUFPA, 2001, p. 69-70. O tema do círculo como
figura geométrica perfeita remonta, no mínimo, a Santo Agostinho. Em sua obra Sobre a
potencialidade da alma (Petrópolis: Vozes, 2005), Agostinho dialoga com Evódio sobre
as figuras geométricas, discutindo as propriedades destas, entre elas a igualdade, até
chegarem ao círculo, a figura geométrica mais perfeita. Agostinho diz (cap. 11, p. 58):
“Quanto à figura mais excelente, não duvidará que seja aquela cujo perímetro está
eqüidistante do centro de tal maneira que qualquer ponto da superfície dista igualmen-
te do centro, sem ângulos que impeçam a igualdade, de cujos centros podemos traçar
linhas iguais para qualquer dos limites da figura”.
21. “La jerarquía eclesiástica”. In: Obras completas del Pseudo Dionisio Areopagita. Madrid:
Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), MCMXCV, p. 192.
22. “La jerarquía eclesiástica”, op. cit., p. 195 e 236-237.

46 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009


“A LUZ DERIVA AO BEM E É IMAGEM DA BONDADE”...

para que a Igreja, depois de nossa morte, não visse diminuída


sua fortuna por algum engano ou fraude de alguém... (Suger,
Das obras realizadas durante sua administração, I, 156)23 .

Deus é luz

Assim, embasado na metafísica da luz do Pseudo-Dionísio


Areopagita, Suger pôs mãos à obra. Entre 1137 e 1144, dirigiu pesso-
almente a construção de um pórtico e fachada novos, além de um
coro e uma galeria coberta. No portal da igreja, Suger mandou gravar
com letras douradas e de cobre os seguintes versos:
Quem quer que tu sejas,
caso queiras exaltar a glória dessas portas,
que não te deslumbres com o ouro nem com os gastos,
mas com o trabalho da obra.
Pois a obra nobre brilha, mas esta obra,
que brilha com nobreza,
iluminará as mentes para que, sendo luzes verdadeiras
cheguem à luz verdadeira,
onde Cristo é a verdadeira porta.
A porta dourada define dessa maneira a luz interior:
a mente estúpida se eleva em direção à verdade passando pelo
material
e antes, imersa no abismo, ressurge à vista dessa luz.
E no lintel:
Acolhe, juiz implacável, as orações de teu filho Suger,
Faz com que, por tua clemência, eu esteja entre as tuas ovelhas.
(Suger, Das obras realizadas durante sua administração,
XXVII, 12-22)24 .
Esse “poema” define muito bem qual era a função da obra de arte
no pensamento de um de seus mecenas mais audaciosos: iluminar a
23. El Abad Suger. Sobre la Abadía de Saint-Denis y sus tesoros artísticos (ed. de Erwin
Panofsky). Madrid: Ediciones Cátedra, 2004, p. 57.
24. El Abad Suger. Sobre la Abadía de Saint-Denis y sus tesoros artísticos, op. cit., p. 65.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009 47


RICARDO DA COSTA

alma e ajudá-la a caminhar passo a passo rumo à luz, graças, sobretu-


do, à qualidade, perfeição e significado das (novas) formas artísticas.
Parafraseando Boécio (outro autor muito lido na Alta Idade Média)25 ,
Suger quis fazer com que as coisas existentes se aproximassem o máximo
possível das formas essenciais26 . Em outras palavras, ele tentou estreitar a
distância entre a coisa concreta (id quod est) e sua essência (esse), ao colocar o
mundo material a serviço da elevação espiritual, ao modelar os edifícios e
incrementar os tesouros da Igreja, e, sobretudo, ao ajustar a reforma de sua
construção às “harmonias sublimes do sobrenatural”27 .
Em seu conjunto, o esquema decorativo foi inspirado pelos escri-
tos de Hugo de São Vítor (1096-1141)28 , mas todo o alicerce filosó-
fico pertence à inspiração de natureza neoplatônica dos escritos do
Pseudo-Dionísio29 .
Imagem 2

Fachada ocidental da igreja


da abadia de Saint-Denis,
consagrada em 1140 (con-
forme gravura de A. e E.
Rouarge, antes da restaura-
ção de 1833-1837).

25. Juntamente com Agostinho e o próprio Pseudo Dionísio Areopagita.


26. FLASCH, Kurt. El pensament filosòfic a l’Edat Mitjana, op. cit., p. 89.
27. DUBY, Georges. “Arte e sociedade”. In: DUBY, Georges e LACLOTTE, Michel.
História Artística da Europa I. A Idade Média. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997, p. 60.
28. WILLIAMSON, Paul. Escultura gótica (1140-1300), op. cit., p. 12.
29. JAQUES PI, Jéssica. La estética del románico y el gótico, op. cit., p. 257.

48 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009


“A LUZ DERIVA AO BEM E É IMAGEM DA BONDADE”...

Suger quis que todo o interior da igreja fosse invadido pela luz.
Sua obra é o apogeu das inovações monásticas do século XI30 . Mas à
filosofia mística Suger legou uma das passagens mais deslumbrantes
para a plena compreensão do simbolismo do concreto como suporte à
contemplação das realidades celestes:
Assim, por puro amor à Mãe Igreja, contemplamos esses dife-
rentes ornamentos novos e antigos, e vemos a admirável cruz de
Santo Elói, jóia incomparável, que o povo chama “Crina”, posta
acima do altar de ouro. Então digo, suspirando do mais profun-
do do coração: “Toda pedra preciosa é teu ornamento, o sárdonix,
o topázio, o jade, o crisólito, o ônix e o berilo, a safira, o
carbúnculo e a esmeralda31 . Para aqueles que reconhecem as
propriedades das pedras preciosas, salta à vista, para grande as-
sombro, que, da lista mencionada, só nos falta o carbúnculo,
mas as outras abundam copiosamente.
Então, quando por causa da dileção ao decoro32 da casa de Deus,
o agradável aspecto das pedras preciosas de múltiplas cores me
distancia, pelo prazer que produzem, de minhas próprias preo-
cupações, e quando a honesta meditação me convida a refletir
sobre a diversidade das santas virtudes, trasladando-me das coi-
sas materiais para as imateriais, creio residir em uma estranha
região do orbe celeste, que não chega a estar inteiramente na
superfície da terra nem na pureza do céu, e creio poder, pela
graça de Deus, trasladar-me de um lugar inferior para outro

30. DUBY, Georges. “Arte e sociedade”, op. cit., p. 60.


31. “Assim diz o Senhor Iahweh: Tu eras um modelo de perfeição, cheio de sabedoria,
de uma beleza perfeita. Estavas no Éden, jardim de Deus. Engalanavas-te com toda
sorte de pedras preciosas: rubi, topázio, diamante, crisólito, cornalina, jaspe, lazulita,
turquesa, berilo; de ouro eram feitos os teus pingentes e as tuas lantejoulas. Todas essas
coisas foram preparadas nos dias em que foste criado” (Ez XXVIII,12-13).
32. No original, decorus (acatamento das normas morais, decência). Segundo Suger, esse
conceito, associado ao de convenientia (concórdia), determina a utilização das pedras
preciosas na missa, pois elas fazem com que o espectador concentre seu olhar nelas e
assim sua mente seja captada para o centro do sacrifício de Cristo no altar. JAQUES PI,
Jéssica. La estética del románico y el gótico, op. cit., p. 269, nota 314.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009 49


RICARDO DA COSTA

superior, de um modo anagógico (Suger, Das obras realizadas


durante sua administração, XXXIII, 26-14)33 .
Com base em Ezequiel, Suger ornamenta a decoração do altar e
medita as santas virtudes das pedras preciosas. Na Idade Média, acredi-
tava-se que as pedras tinham poderes curativos34 . O tema foi herdado
da Antiguidade: com base na História Natural, de Plínio, o Velho,
Isidoro de Sevilha (c. 560-636) descreve, em suas Etimologias, a ori-
gem de pedras verdes (doze classes), rosas, púrpuras, brancas, negras,
cristalinas, cor de fogo, douradas e de cores variadas, e afirma que a
origem das gemas remonta às montanhas do Cáucaso, quando Pro-
meteu colocou um fragmento de pedra em um ferro e o transformou
em um anel35 .
Seja como for, Suger descreve um estado quase de transe induzido
ao referir-se ao efeito hipnótico das cores das gemas, que fazem com
que seu espírito seja transportado para outra dimensão (como uma
experiência premonitória da vida após a morte, e da beleza do encon-

33. El Abad Suger. Sobre la Abadía de Saint-Denis y sus tesoros artísticos, op. cit., p. 79-
81, confrontado com JAQUES PI, Jéssica. La estética del románico y el gótico, op. cit., p.
269-270.
34. Por exemplo, Afonso X, o Sábio, entre 1252 e 1284, mandou traduzir um Lapidário
árabe para o castelhano. Nele, “apresentam-se 360 pedras, cujas propriedades estão
relacionadas aos 360 graus do Zodíaco, trinta pedras para cada um dos 12 signos. Cada
uma recebe suas propriedades físicas e suas virtudes operativas das estrelas que formam
as constelações. A maior parte das descrições das pedras traz a indicação de uso para o
tratamento de doenças, mas também seu emprego nas mais diversas circunstâncias da
vida cotidiana. As receitas combinam, freqüentemente, o uso de partes de animais, e
um bom número delas emprega também as plantas. Pedras, plantas, animais, seres sutis
e astros intervêm continuamente na vida humana.” – MATTOS, Carlinda Maria
Fischer. A classificação dos seres no “Lapidário” de Alfonso X, O Sábio. Tese de doutorado,
UFRGS, 2008.
35. SAN ISIDORO DE SEVILLA. Etimologías II. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos (BAC), MCMXCIV, p. 279. “Nos casos em que se interessavam por expli-
cações naturalistas, recorria-se à Naturalis historia de Plínio, o Velho, morto no ano de 79
d. C.” – FLASCH, Kurt. El pensament filosòfic a l’Edat Mitjana, op. cit., p. 110.

50 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009


“A LUZ DERIVA AO BEM E É IMAGEM DA BONDADE”...

tro com a verdadeira Luz). A seguir, opondo-se à tradição cisterciense,


ele confessa que lhe compraz que os objetos mais valiosos sirvam, aci-
ma de tudo, à administração da Santa Eucaristia. E uma vez mais ele
recorre à Bíblia para fundamentar a sua escolha pela suntuosidade:
Cada qual siga sua convicção36 . Confesso que a mim me compraz
sobretudo que os objetos de grande valor, os objetos mais luxu-
osos, devem servir acima de tudo a administração da Sacrossan-
ta Eucaristia. Se os vasos de ouro das libações, os copos de ouro
e os pequenos almofarizes serviam, segundo a palavra de Deus e
a ordem do Profeta, para recolher o sangue de bodes e novilhos
ou das vacas vermelhas, quanto mais os cálices de ouro, as pe-
dras preciosas e tudo que existe de mais valioso entre todas as
coisas criadas deve ser exposto, com reverência constante e ple-
na devoção para receber o sangue de Cristo37 . Certamente nem
nós nem nossas possessões são suficientes para esse serviço. (...)
Os detratores objetam que uma mente santa, um espírito puro
e uma intenção fiel deveriam ser suficientes para a administra-
ção da Santa Eucaristia, e nós também afirmamos explícita e
expressamente que essa disposição interior é essencial. Mas re-
conhecemos que nos ornamentos externos dos santos cálices não
deve haver nenhum outro propósito que não seja o serviço do
sagrado sacrifício, com toda a pureza interior e toda nobreza
exterior. Pois em todas as coisas devemos servir de uma maneira
universal e com máxima decência a Nosso Redentor, que em
todas as coisas de uma maneira universal e sem qualquer exce-
ção não se negou a nos ajudar; que uniu a sua natureza à nossa
sob a forma de um único e admirável indivíduo que, colocando-
nos à sua direita nos prometeu que, em verdade, possuiríamos o
seu reino38 , Nosso Senhor que vive e reina pelos séculos dos
séculos39 (Suger, Das obras realizadas durante sua administração,
XXXIII, 29-19)40 .

36. Rm 14, 5.
37. Hb 9, 13-14.
38. Mt 25, 33.
39. Tb 9, 2; Ap 1, 18; 5, 14; 11, 15; 15, 7.
40. El Abad Suger. Sobre la Abadía de Saint-Denis y sus tesoros artísticos, op. cit., p. 80-83,
confrontado com JAQUES PI, Jéssica. La estética del románico y el gótico, op. cit., p. 270-271.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009 51


RICARDO DA COSTA

Conclusão

A filosofia do Pseudo-Dionísio Areopagita impregnou a medita-


ção estética do abade Suger de Saint-Denis, de modo que lhe propi-
ciou uma experiência místico-sensorial de profundo e duradouro al-
cance para a história da arte no Ocidente Medieval. A busca do luxo e
da suntuosidade no cerimonial, e sobretudo a escolha da inundação da
luz através dos vitrais fez com que o Suger “arquiteto” agisse como um
filósofo, um neoplatônico do século XII41 .
Assim, propondo-se a “com todo o ânimo e empenho de sua mente
acelerar a ampliação daquele lugar”, Suger, o regente do reino e filho de
camponeses entusiasmado com a metafísica da luz do Areopagita, sem o
saber, sintetizou todas as formas arquitetônicas regionais em um estilo
novo, que ele chamava moderno, e que hoje chamamos gótico.
A filosofia nunca mais influenciaria a arquitetura de maneira tão
duradoura.
Esse opúsculo é dedicado à memória de Erwin Panofsky (1892-
1968) e Georges Duby (1919-1996), grandes intelectuais que se dedi-
caram ao estudo de Suger e da arte medieval.

41. Parafraseio – e assim homenageio – Erwin Panofsky que, em sua magistral obra
intitulada Arquitetura gótica e escolástica (Martins Fontes, 2001) assim se referiu a
Pierre de Montereau: “...parece que em 1267 o próprio arquiteto foi considerado uma
espécie de escolástico (p. 17).

52 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 39-52, jul./dez. 2009


LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO PUNTO DE PARTIDA...

LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO


PUNTO DE PARTIDA EN LA
FILOSOFÍA POLÍTICA DE ALBERTO
MAGNO
Prof. Dr. José Ricardo Pierpauli
Investigador Independiente-CONICET

Introducción

Emitte lucem team et veritatem team, ipsa me deduxerunt et


aduxerunt in montem sanctus tuum et tabernacula tua…1 El texto
bíblico, utilizado por Alberto, bien puede ofrecer una síntesis de la
totalidad de su sistema. Si a Tomás de Aquino puede adjudicársele con
razón el haber constituido una síntesis predominantemente metafísica,
a su maestro Alberto Magno se le debe reconocer en justicia el mérito
de haber sido el primero en elaborar una síntesis de carácter teológico2 .
Dicha labor de síntesis puede ser entendida en dos sentidos. El primero
de ellos es de orden histórico-filosófico y el segundo es sistemático.
Desde el primer punto de vista, fue Alberto el primer gran teólogo del
siglo XIII, en conciliar en cuanto era posible, la totalidad de las tesis de
los filósofos precedentes, colocándolas al servicio de una mejor
comprensión del texto sagrado. Esa y no otra era su intención. Incluso
su cuidadoso comentario del corpus aristotélico se desarrolló en el marco
de una fuerte controversia teológica. El Doctor universalis se entregó a
la difícil tarea de estudiar y comentar los textos del Estagirita en la
íntima convicción de que, en primer lugar, el mundo árabe había

1. SALMOS, 42-3.
2. Cf. KLUXEN, W. “Albert der Grosse”, en: Staatslexicon, erster Band, Freiburg-
Basel-Wien, 1995, p. 90.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 53-75, jul./dez. 2009 53


PROF. DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

realizado una indebida apropiación de sus tesis y, en segundo lugar,


que las tesis del filósofo, mal interpretadas en muchos casos por los
árabes, podían ser reexaminadas y puestas al servicio del saber teológico,
sin por ello traicionar su lógica interna3 . De este modo Alberto
caracterizó aquello que se denominó el aristotelismo cristiano,
diferenciándolo definitivamente del averroista4 .
Desde el punto de vista sistemático debe señalarse que fue en el
interior de la sagrada teología donde el Doctor universalis articuló los puntos
de partida de las diversas disciplinas a las que se abocó durante su larga
labor científica. En efecto, para nuestro caso, dos son las disciplinas que se
articulan armónicamente, a fin de explicar el alcance del concepto de lux
en la filosofía práctica de Alberto. Ellos son la psicología racional y la
filosofía política. A su vez, ambas disciplinas se explican desde el interior
de la Suma Teológica de Alberto. El caso del concepto de lux, de su metafísica
y de su alcance en orden a la filosofía política, constituye tal vez un buen
ejemplo de lo dicho. Así pues, el ámbito de la psicología racional, el de la
teología y por último, el de la filosofía política constituyen los tres niveles
en los que el presente estudio se desarrolla.
A través del concepto de lux une Alberto la tradición neo-platónica
con la aristotélica. Dicha unión se proyectó hacia el interior de la obra
de Tomás de Aquino, mas fue desintegrándose progresivamente, tanto
en el caso concreto de los discípulos de aquel como en el círculo de los
de éste. La nueva separación del neo-platonismo respecto del
aristotelismo no solo marcó el tono característico de las corrientes fi-

3. Cf. MANDONNET, P. OP. Siger de Brabant et L´Averroisme Latin au XIIIme


Siècle.Fribourg-Suisse, 1899, p. XLIII y s.
4. Cf. GRABMANN, M. “Der Einfluss Alberts des Grossen auf das mittelalterliche
Geistesleben. Das deutsche Element in der mittelalterlichen Scholastik und Mystik”,
en: GRABMANN, M. Mittelalterliches Geistesleben. Abhandlungen zur Geschichte
der Scholastik und Mystik, T. II, Hildesheim/Zürich/New York, 1984, p. 325.

54 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 53-75, jul./dez. 2009


LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO PUNTO DE PARTIDA...

losóficas desde principios del siglo XIV, sino que se proyectó hacia la
modernidad, dando origen a la filosofía racionalista e iluminista5 . En
el interior aun de la Edad Media, el trasfondo neo-platónico con que
Alberto recibió y explicó el concepto de lux sirvió como base de la
mística alemana6 . También, para el caso concreto de la filosofía políti-
ca del Doctor universalis, el concepto de lux ofrece un acabado ejemplo
no solo de la integración entre el neo-platonismo y el aristotelismo,
sino principalmente y a diferencia de su discípulo Tomás de Aquino,
del predominio del matiz neo-platónico sobre el aristotélico.
Punto de partida del presente estudio lo constituye un texto, por
demás sugestivo, ubicado en el prólogo de Alberto a su Comentario a
la Política de Aristóteles. Allí dice: omnes philosophi radicem immortalitatis
– animae – vere possuerunt in intellecto adepto. ...Centraré pues mi atención
en el examen de la filosofía política, vale decir, en el concepto de luz de la
inteligencia humana. De particular relevancia es el hecho que tanto Alberto
como posteriormente su discípulo Tomás comenzaran sus respectivos
comentarios a la Política de Aristóteles con una reflexión que, referida al
intelecto humano como punto de partida de la filosofía política, vinculan
dicho intelecto con su fuente primera, esto es, con la inteligencia de
Dios Creador7 . Esa relación será explicada en lo que sigue y a la misma
aludo mediante la expresión metafísica de la luz.
Así pues, la tesis que será defendida puede expresarse del modo
siguiente: La justicia divina se expresa de dos modos en el orden de la
creación. Se expresa en primer lugar, como justicia natural y, en segun-

5. Para un examen de la proyección del movimiento albertista durante los siglos XIV y
XV, cf. KALUZA, Z. “Les Débuts de L´Albertisme tardif (Paris et Cologne)”, en:
HOENEN /De LIBERA, Albertus Magnus und der Albertismus. Deutsche philosophische
Kultur des Mittelalters, Leiden/New York/Köln, 1995, ps. 207-246.
6. Un ejemplo de dicha influencia lo ofrece el Paradisus animae intelligentis de M. Eckhart.
Cf. VAN DER BRANDT, R. “Die Eckhart-Predigten der Sammlung Paradisus Anime
Intelligentis näher betrachtet”, en: HOENEN / De LIBERA, op. cit., ps. 181-183.
7. Cf. SANCTI THOMAE DE AQUINO, Sententia libri politicorum, ed. Leon., T.
XLVIII, Roma, 1971, p. 69-1/5.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 53-75, jul./dez. 2009 55


PROF. DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

do lugar, se expresa como esencia, en la íntima constitución de cada


ente. Alberto se vale del concepto de lux para explicar la metafísica y el
alcance teológico del intelecto humano. Para el caso concreto del hombre,
la justicia divina se expresa, en el acto creador, mediante la posesión del
intelecto humano: …nos autem dicimus secundum fidem, quod anima
rationalis est essentialiter intellectus…8 A su vez, la justicia política resulta
de una labor creativa de la razón humana. Para dicha tarea se vale la razón
de su luz connatural, que es uno de los modos de participación de la luz
divina en la criatura racional, y de la participación de aquella luz, a través
del conocimiento de las cosas divinas. La formulación de la justicia políti-
ca sobre la base de la justicia natural y sobre la base de la posesión del saber
acerca de las cosas divinas caracteriza, a su vez, aquello que Alberto, en
seguimiento de la doctrina de Alfarabi, llamó el intelecto adquirido. El
intellectu adeptus, al que debe entenderse como una perfección del intelec-
to posible9 , es el punto de partida para la reflexión política y el resultado
de la reconstrucción del orden de la creación según la medida de la
inteligencia humana. Alberto explica su doctrina del intelecto adquirido
en dos lugares que, a nuestros fines, resultan determinantes. Ellos son, en
la Suma Teológica y en su Comentario a la Política de Aristóteles. Sin
embargo, importantes elementos pueden recogerse del comentario a
los Nombres divinos de Dionisio, obra que, por su cercanía en el tiempo
respecto del comentario tanto de la Ética a Nicómaco, como del
comentario de la Política del Filósofo resulta, como la Suma Teológica,
de relevante valor hermenéutico10 .

8. ALBERTUS MAGNUS. Super Dionysium De divinis nominibus, ed. Colon., Ope-


ra Omnia, Tomus XXXVII, Münster, 1972, p. 134-4.
9. Per hoc intellectui adepto sive possesso inteligibilis efficitur, quod ipsa est lumen agentis
intellectus, qui proprius actus est intellectus possibilis… ALBERTUS MAGNUS. De XV
problematibus. ed. Colon., T., XVII, pars. I, Münster, 1975, p. 42-21 y s. Citado en:
FRIES, A. Albertus Magnus. Ausgewälte Texte, Darmstadt, 1987, p. 180.
10. Cf. RODOLFI, A. Introduzione, traduzione, note e apparati, en: Alberto Magno
L´Unita dell´Intelletto. Milán, 2007, p. V.

56 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 53-75, jul./dez. 2009


LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO PUNTO DE PARTIDA...

1 El conocimiento de la realidad como primera perfección de


la luz natural de la inteligencia

El hecho de comenzar un estudio como el presente con una breve


reconstrucción de la gnoseología realista de Alberto tiene por finalidad
poner en evidencia que el Doctor universalis es, en este punto, tan
platónico como aristotélico. En efecto, Alberto se vale de la observación
empírica a fin de ascender hasta la cúspide de todo conocimiento y
hasta la primera causa de todo lo causado. Ya desde el punto de partida
se ponen pues en evidencia la armónica combinación entre el realismo
aristotélico y la orientación mística de todo el sistema de Alberto.
Luego, desde una consideración general del sistema, el Doctor universalis
es más neo-platónico que aristotélico. Sobre el trasfondo de las prece-
dentes consideraciones examinaré la psicología racional de Alberto, en
cuanto la misma se orienta hacia su filosofía política. El programa de
mi exposición en este punto será pues, el siguiente. Partiendo del
presupuesto que la constitución del objeto de conocimiento se corres-
ponde, a los fines del acto de conocer, con la constitución del alma
humana, examinaré primeramente la constitución del objeto de
conocimiento. En segundo lugar, la organización de la psiquis humana
y, en tercer lugar, los rasgos característicos del acto de conocer, que
especifica la relación que une al objeto de conocimiento con el sujeto
cognoscente.
O el objeto del conocer es forma pura, o bien es un compuesto de
materia y forma. Dado que nuestra intencionalidad es principalmente
política, me ocuparé tan solo de subrayar la relevancia del ente concre-
to y de su orientación teleológica que es el hombre. Desde un punto
de vista general, la materialidad del objeto es el primer centro de
referencia de los sentidos. Su forma constitutiva, para el caso, el alma
humana, fluye desde el interior del compuesto. Veamos de qué modo
está organizada el alma humana en correspondencia con la estructura
óntica del objeto de conocimiento. Debemos partir de los tres grados

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delineados por Aristóteles para caracterizar el alma en general. Así pues,


distinguimos el alma puramente vegetativa, el alma sensitiva y el alma
intelectiva, que es la forma superior de organización y el motor del
alma misma… anima est instrumentum intelligentiae, secundum quod
lumen animae intellectivae est movens…11 El Doctor universalis iden-
tifica aquí, una vez más, la inteligencia con la idea de lux. Sin embar-
go, aclara que, en rigor, dicha luz debe identificarse con propiedad al
llamado intelecto agente al que debe la alma su propia existencia:
…anima non habet esse intellectualis nisi per intellectum agentem…12
El intelecto agente, cuya función es esencialmente activa, ofrece al
llamado intelecto posible, el resultado de su actividad. De este modo,
a la función activa del intelecto agente, le corresponde la función pasiva
del intelecto posible. Es mediante la dinámica de ambas operaciones
del intelecto que puede alcanzarse aquel hábito al que Alberto deno-
mina intelecto adquirido. A su vez, desde el punto de vista de la
naturaleza del objeto de conocimiento, debe aclararse que en la media
en que el objeto es conocido en su dimensión meramente teorética, el
intelecto se vale de su función especulativa, mientras que cuando nos
orientamos hacia el objeto, en cuanto a los modos posibles de alcanzar
su finalidad propia, nos valemos del intelecto práctico. Dichas funcio-
nes, la especulativa y la práctica, caracterizan lo que podríamos llamar
la dimensión operativa de la inteligencia, en cuanto que el intelecto
posible y el agente caracterizan la dimensión quasi-estática de la
inteligencia. Digo quasi estática pues pretendo dejar a salvo la actividad
del intelecto agente. El intelecto posible y el agente despliegan sus fun-
ciones, diríase, en el interior de la inteligencia misma, mientras que el
práctico y el especulativo se definen por su radical orientación extra
animae. Por último las cuatro funciones intelectivas, la pasiva, la activa,

11. ALBERTUS MAGNUS. Super Dionysium De divinis nominibus. ed. Colon.,


Opera Omnia, Tomus XXXVII, Münster, 1972,p. 121-59.
12. ALBERTUS MAGNUS. op. cit. ps. 134 y 135.

58 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 53-75, jul./dez. 2009


LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO PUNTO DE PARTIDA...

la especulativa y la práctica, alcanzan su coronación mediante el hábito


llamado por Alberto intelecto adquirido. El mismo se caracteriza por
la reconstrucción del orden de la creación en la inteligencia humana,
según los límites de ésta. De lo dicho se deduce claramente que en
verdad la totalidad de la actividad intelectiva encuentra su origen en el
intelecto agente y que el intelecto adquirido constituye una perfección,
como se dijo, del intelecto posible, en cuya esfera se consolida el acto
radical del conocer13 . Con todo, la materialidad del ente concreto,
objeto de conocimiento, es el primer dato que se nos ofrece a
consideración. Así pues, a la materialidad del objeto le corresponde el
nivel sensible de organización del alma humana y a la forma que fluye
desde el interior del objeto de conocimiento, le corresponde la
organización intelectiva del alma humana.
Veamos a continuación de qué modo es posible el acto de conocer, sin
perder de vista que es a partir del acto de conocer que se constituye final-
mente la verdadera ciencia, objeto del intelecto adquirido, y la que es ubicada
por Alberto como presupuesto de la política. Ante todo, señala Alberto
aquello que es característico del intelecto humano: …inspicere simplicem
quidditatem rei est hominis, sicut in quo terminatur eius cognitio…14
Nuestros sentidos se orientan radicalmente hacia lo tangible. Hay, en este
primer momento, lo que podría denominarse un contacto meramente
material entre la capacidad sensitiva y la materialidad del objeto15 . Sin
embargo, para Alberto apprehendere est accipere formam16 . El único modo
posible de tornar compatible la aprensión intelectiva con un objeto real de
conocimiento que es materia y forma y que se nos ofrece primariamente
como pura materialidad es proceder a la des-materialización de dicho obje-

13. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., ps. 114-65 y s.


14. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., ps. 134-46.
15. Cf. SCHNEIDER, A. Die Psychologie Alberts des Grossen, Nach den Quellen dargstellt.
Münster, 1903, ps. 88 y s.
16. ALBERTUS MAGNUS. Summa de creaturis, De homine. ed. A. Borgnet, Volumen
trigesimum quintum, París, 1896. Citado en FRIES, A. op. cit., p. 134.

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to, pues, como fue dicho, es desde el interior de la materia desde donde
fluye la forma que es el auténtico objeto de aprensión del intelecto huma-
no. Dicha des-materialización se produce, según el Doctor universalis, de
conformidad con cuatro pasos sucesivos. En el primero de ellos los senti-
dos captan una primera expresión de la forma, pero aún unida a la materia.
Dicho de otro modo, los sentidos captan un objeto compuesto de materia
y forma, aun cuando la forma no hubiera sido enteramente separada de la
materia. Se trata, si se quiere, de la primera visión del objeto, que opera-
mos a través de uno de los sentidos exteriores o de la combinación de
varios. En el segundo paso corresponde la primacía a la tarea de las potencias
imaginativas, mediante la constitución de la representación del objeto en
el interior de la psiquis humana. Aquí no hay en rigor una completa des-
materialización, pues el fantasma que representa la cosa real no se nos
ofrece desprendido de las cualidades materiales tales como color, tamaño,
posición etc.
Una vez constituido el fantasma tiene lugar, en un tercer momen-
to, la captación de ciertas cualidades propias del objeto que no son
alcanzadas por la pura sensitibilidad. Tal es el caso de cualidades como
la afabilidad, la amistad y la delectabilidad. Recién en un cuarto mo-
mento procede el intelecto agente a captar la forma pura, desprendida
de toda materialidad. De este modo queda constituida, no la forma
según que antes fuera descubierta en la materialidad del objeto, sino al
modo de specie o intentio. La specie constituye la representación
intelectiva de la esencia del objeto de conocimiento, siendo finalmen-
te este tipo de aprensión el que da origen al auténtico conocimiento, el
cual es propio solo del hombre17 . Es recién en este momento cuando
nace lo que llamamos un cierto contacto espiritual entre el objeto de
conocimiento y el sujeto cognoscente18 .

17. Cf. SCHNEIDER, A. op. cit., p. 185.


18. Cf. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., citado en FRIES, A. op. cit., ps. 134-136.

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LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO PUNTO DE PARTIDA...

2 Transformación de la gnoseología aristotélica en el interior


del neoplatonismo de Alberto Magno

Ahora bien, conviene recapitular el significado del acto de conocer


a partir del alcance que Alberto le otorga al concepto de lux. Dos tipos
de luces pueden ser diferenciadas en principio19 . Una de ellas es la lux
vera, esto es la luz como fuente de toda luminosidad que solo en Dios
tiene su lugar. El segundo es la luz participada en el orden de las criatu-
ras. A su vez, en el ámbito de dicha participación deben subdistinguirse
dos nuevos niveles de significación. En primer lugar, posee el hombre
la luz del intelecto básicamente identificado con el intelecto agente20 .
En segundo lugar, las cosas nos ofrecen su propia luminosidad en la me-
dida en que conocemos sus esencias. Así pues, Dios es la fuente de luz
tanto del hombre, como de las demás cosas creadas.
Dios-lux vera

Luz participada en las criaturas:

Intelecto agente Esencia del objeto de


conocimiento

19. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae sive mirabilis scientia Dei. ed. Colon.,
Opera Omnia, Tomus XXIV, pars I, Münster, 1978, ps. 15-41.
20. Et ideo dicitur a quibusdam esse in horizonte aeternitatis ettemporis. Et intellectus etiam,
qui fluit ex ipsa, secundum quod ipsa emanat a causaprima et stat per ipsam in esse, propter hoc
varius in se et in speculatione, quoniam id quod fluit ab ea, secundum quod ipsa est resolutio
naturae intellectualis primae conversa ad primam causam per lucis suae participationem, est in
ea sicut lux et estintellectus agens… ALBERTUS MAGNUS. De unitate intellectus. Ed.
Colon., Opera Omnia, Tomus XVII, pars. I, Münster, 1975, ps. 22-9.

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Veamos de qué modo Alberto prolonga el alcance de la gnoseología


aristotélica, mediante la utilización de los elementos neo-platónicos
recibidos y reelaborados en el nivel teológico. En efecto, dicha
gnoseología, básicamente de origen aristotélico, encuentra su necesario
complemento en el marco de la Suma Teológica del Doctor universalis,
proyectándose, no solo al nivel práctico en el que la política y la ética
se inscriben, sino aun al conocimiento místico. En efecto, el auténtico
conocimiento tiene lugar cuando conocemos la esencia de cada cosa,
su relación de participación respecto de la luz divina y, además, el orden
total de la creación, según su disposición jerárquica, determinada por gra-
dos de mayor o menor proximidad, en el orden de la perfección, respecto
de Dios, suma perfección, desde el que todo fluye y hacia quien toda
criatura se orienta como a su última perfección21 . A su vez, el conocimiento
racional de las cosas creadas nos permite iniciar un ascenso que, trascendiendo
los límites de la razón humana, nos eleva al conocimiento místico: Est
enim impressio quaedam et sigillatio divinae sapientiae in nobis, ut mens
humana dei sapientes sit sigillum, impressa formis et rationibus causae primae
in sapientia sua creationis et reparantis et glorificantis sua causata22 . Un
poco más adelante agrega Alberto: Per talem igitur impressionem factam in
nobis constat, quod fit in nobis, nobis ascendentibus ad deum et ad ipsam,
sicut cera ascendit ad sigillum, et non e converse. Propter quod oratione
et devotione plus acquiritur quam studio23 .

21. Alberto ofrece una interesante clasificación del orden de la creación, desde la que
puede extraerse el siguiente pasaje. El mismo constituye la base teórica necesaria que
nos permitió completar la gnoseología aristotélica con el esquema general neo-platónico
que predomina en la obra del Doctor universalis. Dice Alberto: ...Tertius ordo universi est
ad Deum, sicut dicit Dionysius, quod Deus omnibus aequaliter adest, sed non omnia sibi
aequaliter adsunt; eo quod non aequaliter bonitates suas participant seu percipiunt.
ALBERTUS MAGNUS. Summa de creaturis, De homine. ed. A. Borgnet, Volumen
trigesimum quintum, París, 1896, p. 661.
22. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae.Op. cit.,ps. 1-34 y s.
23. ALBERTUS MAGNUS. op. cit. ps. 1-44 y s.

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LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO PUNTO DE PARTIDA...

El acto del conocimiento intelectual es solamente posible en virtud


de la participación de la luz divina en la constitución de la inteligencia
humana y en virtud de la proporcionalidad que media entre la
constitución del intelecto humano y la constitución ontológica de los
objetos de conocimiento. Dicho acto se caracteriza por la aprensión de
la quididad de la cosa, a la que aquí hemos puesto en sinonimia con la
luz participada por Dios en las cosas. De este modo, conocer bien
puede definirse como la adecuación de la luz propia del objeto de
conocimiento con la luz de la inteligencia humana. Luego, el objeto
de conocimiento es en primer lugar, la esencia del objeto, en segundo
lugar el orden de la creación en el que dicho objeto se inscribe y por
último, en lo que respecta a la orientación práctica de la gnoseología
de Alberto, lo justo natural que se expresa precisamente como ordo
naturae. …deus secundum naturales iustitiam est causa omnis naturales
iustitiae, quae est in rebus, inquantum ipse est causa propriae, idest
essentialis, operationis rerum. Ipse enim per suam iustitiam dat omnibus
ordinem secundum proportionem ad ea quae sunt suae naturae…24 Mas,
dado que el concepto central que orienta el presente examen es la
constitución del llamado intelecto adquirido, punto de partida del
conocimiento político, debe decirse que el conocimiento de la realidad
natural, alcanzado mediante la luz natural de la inteligencia, no resulta
aun suficiente para constituir aquella perfección del intelecto posible.

3 El conocimiento de la sagrada teología como última


perfección de la luz natural de la inteligencia

Si antes diferencié dos grandes niveles de significado para el con-


cepto de lux, siendo el primero y analogante principal el de lux vera,
esto es en Dios mismo, conviene señalar ahora que la ciencia que

24. ALBERTUS MAGNUS. Super Dionysium De divinis nominibus. ed. Colon.,


Opera Omnia, Tomus XXXVII, Münster, 1972, ps. 373-38.

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reconoce a Dios como su objeto propio, es decir, la sagrada teología, es


también luz en un sentido análogo al modo metafórico. En efecto,
dicho conocimiento científico ofrece una nueva luminosidad
sobreañadida a la luz natural de la inteligencia. Dicitur enim scientia
tua, quia ad deum est sicut finem. Hinc est enim, quod psalm dicitur:
Emitte lucem tuam et veritatem tuam; ipsa me deduxerunt et
adduxerunt in montem sanctum tuum et tabernacula tua25 . El texto se
vale claramente de la dinámica exitus et reditus aportada por la filosofía
neo-platónica y muestra el reemplazo del bien por Dios como princi-
pio y fin de ese movimiento26 . Así pues, la clasificación propuesta
hasta aquí admite una nueva distinción. En efecto, Dios, luz verdadera
y fuente de toda luminosidad, se expresa de tres modos. En primer
lugar, como fuente de luz en la propia criatura racional. Aludo aquí a
la esencia o quididad de cada ente y a la luz de la inteligencia humana.
Se expresa, en segundo lugar como justicia divina, según que el orden
de la creación lleva implícito su sello y, en tercer lugar se expresa
analógicamente a través del saber científico que lo reconoce como ob-
jeto, esto es la teología sagrada.
Sola autem illa est – vale decir, la teología sagrada – quae cor
elevat et elevatum purificat et in aeterna fundat immortalitate
Sap XV-3. Nosse te est consummata iustitia, et scire iustitiam
tuam et virtutem tuam radix est immortalitatis. Hinc est, quod
dicit Alfarabius in libro De intelletctu et intelligibili, quod omnes
philsophi in intellectu adepto divino radicem posuerunt
immortalitatis animae27 .
Dos dificultades deben resolverse aquí. En primer lugar, de qué
modo se conectan por un lado el conocimiento de lo real y, por el

25. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae. op. cit., ps. 2-68.


26. Cf. ANZULEWICZ, H. “Pseudo-Dionysius Aeropagita und das Strukturprinzip
des Denkens von Albert dem Grossen”, en: BOIADJIEV; KAPRIEV; SPEER, Die
Dionysius-Rezeption im Mittelalter. Brepols, 2000, p. 257.
27. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae. op. cit., ps. 1-58 y 2-1.

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LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO PUNTO DE PARTIDA...

otro, el saber teológico? En otras palabras, admite el sistema de Alberto


una tajante separación entre el conocimiento de las cosas concretas y
aquel que adquirimos mediante el estudio de las Sagradas Escrituras?
La segunda dificultad: De qué modo puede resolverse la evidente
desproporción que media entre los límites del intelecto humano y la
magnitud del concepto de Dios como primero y último objeto de
conocimiento? Respecto de la primera dificultad. Alberto resuelve la
cuestión integrando el realismo aristotélico y la constitución, también
aristotélica, de materia-forma, en el interior de su esquema onto-teo-
lógico de origen neo-platónico. En efecto, es conociendo la forma
como accedemos a la esencia, mas una indagación ascendente acerca
del qué y de los por qué conduce al espíritu humano hacia la pregunta
por Dios. En cuanto a la segunda dificultad. Alberto resuelve el pro-
blema de modo parcialmente diferente que Aristóteles y que su discí-
pulo Tomás de Aquino. El texto que sigue, elocuente por sí mismo,
permite alcanzar una mayor claridad a los fines de nuestro asunto:
Et si obicitur, quod dicit Philosophus, quod dispositio nostri
intellectus ad manifestissima naturae est sicut dispositio
oculorum vespertilionum ad lucem solis, oculus autem
vespertilionis nihil videt in lumine solis, sed fugit ipsum, ergo
et intellectum noster manifestissima et prima fugit et non
quiescet in eis: dicimus, quod hoc accidit oculis vespertilionis,
inquantum sunt vespertilionis, non in quantum sunt oculi.
Oculi quippe herodii applicantur lumini solis in rota et
quiescunt in ipso. Et sic accidit intellectui, inquantum noster
est, hoc est cum continuo et tempore reverberari a naturae
manifestissimis et primis. Inquantum autem intellectus est et
quaedam natura divina, ut dicit Philosophus in X Ethicorum,
nihil adeo convenit ei sicut quiescire in primis28 .
La luz de la inteligencia humana encuentra en la luz divina un
lugar de reposo, así como las garzas encuentran reposo girando alrededor

28. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae. ps. 3-29 y s. Cf. Ibidem, p. 16-66.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 53-75, jul./dez. 2009 65


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del sol. Alberto nos sugiere que el intelecto humano encuentra reposo
en la reflexión de cada cosa por referencia a Dios. Así por tanto, el
conocimiento de la realidad natural alcanza, mediante el conocimiento
teológico, su última perfección en cuanto conocimiento29 . La doctrina
del texto se apoya en el carácter participado de la inteligencia humana,
pero dicho carácter abre a la vez el paso a una nueva conclusión. En
efecto, según Alberto hay en el hombre algo de divino30 . Mediante
dicha idea quiere significar que es precisamente el intelecto humano lo
divino que hay en el hombre, siempre claro está, entendido de modo
análogo y participativo.
Nihil enim nisi intellectuale est intellectus divinus, prout ipse
lux est et causa omnium intellegibilium; et ex illo in nobis est
scientia divina. Et hoc est quod dicit Psalmus XXXV-10: In
lumine tuo videmus lumen. Et illud signatum est super nos
lumine vultus tui, domine, dedisti laetitiam in corde meo31 .
Una observación retrospectiva de los textos comentados permite
ahora demostrar que el intelecto adquirido, que es una perfección del
intelecto posible, solo puede alcanzarse cuando el conocimiento de
todo lo real es coronado mediante el conocimiento de la ciencia sagra-
da. De este modo, la luz natural participada por Dios en el hombre
alcanza, en la luz divina, su última perfección y es a la misma a la que

9. Intellectus noster diversis perficitur luminibus et elevatur; et ex lumine quidem connaturali


non elevatur ad scientiam trinitatis et incarnationis et resurrectionis, ex lumine autem
fluente asuperiori natura ad supermundana elevatur, quaepotentia sola divina et voluntate
sunt…Et his lumine desuper influente assentit et certius ea scit quam illa quae ex lumine
sibi connaturali accipit. ALBERTUS MAGNUS. Summa tehologiae, ps. 2-26.
30. La presencia de Dios en la inteligencia humana, entendida al modo de participación
de la luz divina en la luz natural del intelecto, constituye, según Alberto, una garantía
a los fines de los conocimientos de rango inferior. Al respecto afirma: Est enim ab
intellectu divino sicut ab efficiente et ex intellectu divino sicut a primo formali et de ipso,
prout est ars plena rationibus omnium quae sunt, et ad ipsum et propter ipsum sicut ad
finem. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae, op. cit., ps. 3-11.
31. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., ps. 2-26.

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LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO PUNTO DE PARTIDA...

alude Alberto, tomando la expresión de Alfarabi32 , al referirse a dicho


intelecto. Conviene por último señalar, a propósito de la clasificación
esquemática del significado del concepto de lux, que en el mismo con-
texto teológico que venimos comentando, Alberto incluye una
interesante aplicación de su doctrina de los universales al problema del
estatuto científico de la ciencia sagrada. En efecto, el Doctor universalis
distingue cuatro tipos de universales, en primer lugar, el universal
predicative, en segundo lugar, el universal exemplariter, en tercer lugar,
el universal in significando y por último el universal in causando. Al
primer tipo pertenece la luz divina misma en cuanto solo de Dios se
predica, al segundo modo – exemplariter – vale decir toda vez que un
universal se refiere a muchos entes, corresponde el modo de conocer
humano, según que el hombre se vale de la luz participada para conocer.
Al tercer tipo de universal – in significando – corresponde la teología
sagrada en cuanto ciencia y, por último, al cuarto modo – in causando
– pertenece la luz divina que se refleja en la esencia de cada ente creado33 .
Aclarado pues el alcance y el sentido del concepto de intelecto ad-
quirido y su íntima relación con la idea de lux, conviene ahora resolver
la siguiente cuestión: Cuando Alberto alude a la posesión del intelecto
adquirido, nada menos que en el prólogo de su Comentario a Política
de Aristóteles, quiere darnos a entender que el conocimiento de la sa-
grada teología y aun la misma contemplación mística constituyen algo
así como prerrequisitos para alcanzar el conocimiento práctico de la
ciencia política?

32. Cf. GILSON E. (ed.). “Liber Alpharabii de intellectu et inltellecto”, en: Les sources
Greco-arabes de l´augustinisme avicennisant, Archives d´Histroire Doctrinale et Lettéraire
du Moyen Age. París, 1929,ps. 117-82.
33. Cf. ALBERTUSMAGNUS. Summa theologiae. ps. 7-11 y s.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 53-75, jul./dez. 2009 67


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4 A modo de conclusión: El conocimiento de la realidad a la


luz de la ciencia sagrada como presupuesto de conocimiento
práctico-político

Debe aclarase que Alberto34 , como su discípulo Tomás35 lo había


hecho antes, adjudica a la teología, además de su carácter primaria-
mente especulativo, el carácter derivado y secundario de ciencia práctica.
Si bien es verdad que todo conocimiento, y sin duda también el polí-
tico, se perfecciona mediante el conocimiento de la teología y de la
contemplación de Dios, Alberto puntualiza, en su Comentario a la
Ética a Nicómaco – Super ethica – la importancia del ejercicio de la
virtud moral o política, como prerrequisito tanto para el ejercicio de la
autoridad política como para el desarrollo de la vida política misma:
…non oportet, quod alius intercedat pro disciplinato nisi sua discipli-
na36 . Así pues, si bien el contemplativo alcanza un mayor conocimiento
de Dios, dicha actitud tiene lugar una vez que el hombre puede librarse
de las preocupaciones mundanas, a fin de dedicar su atención tan solo
a Dios. El caso del hombre político es diferente según Alberto. Este no
puede soslayar las preocupaciones de la vida mundana, pero si puede y
aun debe purificarlas mediante el ejercicio de la virtud política. Dicho
ejercicio contribuye, en el caso del político, a la preparación del alma
para alcanzar su última perfección. No es por tanto requerido el
conocimiento teológico al hombre político, sino solamente y nada
menos que la condición de hombre virtuoso.
In duplici ergo facie acceptus intellectus necesse est, quod duos
fines habeas: unum scilicet operationum, et alterum

34. …in veritate sacra scriptura practica est et stat in opera virtutis vel tehologicae vel
cardinalis… ALBERTUS MAGNUS. op. cit.,ps. 13-58.
35. Cf. THOMAE AQUINATIS, Summa theologiae. I Pars, Q. I, art. 4, San Paolo,
Torino, 1988, p. 5.
36. Cf. ALBERTUS MAGNUS. Super ethica. ed. Colon., Opera omnia, Tomus XIV,
Pars I, Münster, 1968-1972, p. 1-54.

68 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 53-75, jul./dez. 2009


LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO PUNTO DE PARTIDA...

contemplationum. Cum autem felicitas operative perficiens


hominem et purgans a passionibus operator ad impassibilitatem
intelectus, ne passione alteratus ducatur et abducatur,
passionibus autem non subiacens, sed aversus ab eis et depuratus
et liber, perfectus sit ad contemplationem: constat, quod felici-
tas civilis operative ulterius ordinatur ad felicitatem
contemplativam, quae est ultimum omnium bonorum…Civilis
autem moderator, et non abstergit passionis; ergo purgatoria
virtute utitur; Politicus enim abstergere non potest passiones,
vivens in domo et civitate, sed excellentias passionum sufficit in
talibus moderari37 .
Sin embargo, el ejercicio de la virtud política presupone el
conocimiento de las cosas políticas, vale decir, al ejercicio virtuoso de
la vida política le antecede un conocimiento orientado primeramente
con finalidad práctica. Conocer la esencia de cada cosa es, según se
dijo, conocer su orden constitutivo, y, agregamos ahora, su orientación
teleológica connatural. Así pues, dicho conocimiento nos ofrece un
paradigma con finalidad normativa. Descubriendo la orientación na-
tural de cada cosa hacia un fin, puede el hombre discernir, según el alcan-
ce natural de la luz de su inteligencia, la lux divina al modo de lex naturae.
Del encuentro entre la justicia divina, expresada aquí como justo natural,
con la inteligencia humana, surge la justicia política. Vale decir, si antes
sostuve que la relación de proporcionalidad entre la luz de cada cosa, ma-
nifestada como quididad o esencia, y la luz del intelecto agente, hacia posible
el acto del puro conocimiento, puedo afirmar ahora que la relación de
proporcionalidad que media entre lo justo natural, expresado tanto en
la cosa en sí, como en la inteligencia humana38 , torna posible la
elaboración racional de la justicia política. Lo dicho aquí me permite
reformular el esquema presentado más arriba.

37. ALBERTUS MAGNUS. Ethica. ed. A. Borgnet, T. VII, L. 1, Tr. 1, cap. 1.Citado
en: FRIES, A. op. cit., p. 188.
38. Cf. CUNNINGHAM, S. Reclaiming Moral Agency. The Moral Philosophy of Albert
the Great, Washington D. C., 2008, ps. 216-217 y 236.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 53-75, jul./dez. 2009 69


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Justicia divina
(lux vera)

Justicia natural
(Como luz participada en las criaturas)

Como ius naturae en la en la orientación


inteligencia humana teleológica de cada cosa

Convendrá ahora volver nuestra atención sobre el texto que, to-


mado del prólogo de Alberto a su Comentario a la Política de Aristóteles,
dio origen al presente estudio. Allí dice Alberto:
Ptolomeus in Almagesto dicit, quod non est mortuus, qui
scientiam vivificavit; nec fuit pauper, qui intellectui dominatus
est, sive qui intellectum possedit. Ratio autem dicti est quod
dicit Alfarabius in libro de Intellectu et Intelligibili, quod
omnes Philosophi radicem immortalitatis – animae – vere
possuerunt in intellecto adepto: secundum enim illum
intellectum extendit se anima rationalis ad principia
incorruptibilis veritatis: nec potest esse quod mortale sit, quod
subiectum est incorruptibilis veritatis. Quia dicit Aristoteles
in VI Ethicorum, quod unumquodque quod in aliquo est, est
in eo secundum potestatem eius quod inest: et ideo si
incorruptibilis veritas est in intellectu adepto, oportet quod et
ipse incorruptibilis sit. Haec etiam causa quare talis pauper

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LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO PUNTO DE PARTIDA...

esse non potest: quia cum pauper sit non sibi sufficiens, et talis
ex possessione et superpositione et pulchrorum et bonorum
omnium sibi sufficiat ad utramque felicitatem, politicam scili-
cet et contemplativam, pauper esse nunquam potest39 .
Como puede deducirse de lo dicho hasta aquí, Alberto alude, en la
primera parte de su texto, a un tipo de perfección del intelecto posible
que se obtiene mediante un conocimiento integral del orden de la
creación a la luz de la sagrada teología. Si bien Alberto no afirma
explícitamente que el político deba reunir la condición de teólogo o
de místico y, por el contrario, sostiene que le cabe, cuando menos, el
ejercicio purificador de la virtud política, el texto parece sugerir que el
hombre, en su dimensión política, debe poseer ciertamente un
conocimiento teológico de carácter orientador, pues la totalidad de su
actividad se ordena finalmente hacia Dios como a su objeto. Es aquí
donde adquiere la mayor significación el sentido de la dinámica exitus
et reditus que caracteriza la obra de Alberto y a través de la cual se
concreta la influencia neo-platónica antes señalada. En efecto, el
conocimiento político parece presuponer una orientación espiritual
básica en orden a la trascendencia. El hombre político en que Alberto
piensa es antes racional y más aun religioso. Sin embargo, ello no
conlleva la pérdida de autonomía de la ciencia política respecto de la
ciencia sagrada. Aun cuando la conexión entre el Prólogo al Comentario
a la Política y el contexto teológico en Alberto es muy clara, debe
señalarse que el Doctor universalis orienta su filosofía política hacia las
relaciones interpersonales como a su objeto material y al orden de la
justicia natural y política como a su objeto formal. Subiectum autem
sive materia est communicatio oeconomica et communicatio civiles
secundum ordinem recti et iusti, in qua ostenditur homo perfectus
secundum virtutem secundum quam naturaliter est homo animal

39. ALBERTUS MAGNUS. In politicorum Lib VIII. ed. A. Borgnet, París, 1891, p. 6.

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PROF. DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

conjugale, et secundum quam homo naturaliter est animale civile40 .


Alberto diferenció claramente la actitud contemplativa de la práctica.
Refiriéndose a esta última afirma: …magis attenditur quam doctrina
quia sicut dicit in Ethicis, ad acquisitionem virtutis tria exiguntur, scilicet,
scire, vele, et perseverare in operibus difficilibus41 .
Por su parte el saber acerca de lo político se adquiere mediante la
combinación del método compositivo y el resolutivo. Si bien es sabi-
do que el Doctor universalis se caracterizó por su agudo sentido de la
observación empírica, por lo demás, patente en sus trabajos dedicados
a las ciencias naturales, debe saberse también que dicho método encontró
su correcta aplicación al caso de la ciencia política. Est enim via
communis, ut dicit Aristóteles in III Physicorum, quod compositum non
cognoscimus, nisi cum scimus ex quipus, et quot, et qualibus est42 .Pero,
como antes fue puntualizado, el sistema general de Alberto no pierde
su orientación neo-platónica, ni aun a propósito de la lectura que rea-
liza de los textos de Aristóteles. La luz natural de la inteligencia continúa
en la búsqueda de su última perfección en la lux divina. Un texto,
tomado del Comentario a la Política de Aristóteles, muestra de qué
modo concibe Alberto la política a la luz de la primera causa y fuente
de toda perfección. Sicut dicit Aristóteles in II Physicorum, est natura
praeter rationem faciens impetum; quod esse non potest nisi ex vi
superioribus naturae alicuius, quae dominatur in complexione causarum43 .
De lo dicho puede deducirse, a modo de conclusión, que la
tendencia natural del hombre hacia el conocimiento de la verdad y de

40. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., p. 6.


41. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., p. 7.
42. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., p. 9. Cf. GRABMANN, M. “Zur
philosophischen und naturwissenschaftlichen Methode in den Aristoteleskommentaren
Alberts des Grossen”, en: Angelicum, Volumen XXI, Roma, 1944, p. 51.
43. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., p. 13.

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LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO PUNTO DE PARTIDA...

la consecución del bien político es debida a la participación de la lux


divina al modo de inteligencia. He puntualizado que, de un modo
más propio, debe identificarse dicha participación con el intelecto agen-
te. Ahora bien, el conocimiento político, desde que es útil para
encaminar al hombre hacia un fin eminentemente práctico, se vale
esencialmente del conocimiento práctico. La luz del intelecto se mate-
rializa, a los fines de la función práctica de la inteligencia, al modo de
prima principia. Esto es, cuando el intelecto agente procura abstraer la
forma rei, lo hace proyectando los primeros principios ubicados, según
Alberto, en la synderesis. Dichos primeros principios adquieren el esta-
tuto de iuris naturalis. Dice el Doctor universalis:…in veritate synderesis
est vis cum habitu principiorum iuris naturalis…44
Así pues, frente al caso concreto, de qué modo debo obrar para
traducir, según las circunstancias, el imperativo enunciado en el primer
principio práctico, a saber, bonum faciendum et malum vitandum esse?
Alberto explica que, una vez conocido el objeto, y sus leyes constituti-
vas, debo preguntarme: De qué modo es posible actuar aquí y ahora? La
respuesta – debo obrar de este modo en concreto – resulta de confrontar
las exigencias de la naturaleza de la cosa junto con su natural orientación
teleológica, con las variantes posibles que el caso concreto ofrece a
consideración. Es de eso modo, mediante el conocimiento de la
orientación teleológica del objeto, que se traducen los llamados
primeros principios prácticos, pues el restablecimiento del orden de
cada cosa es principalmente su propio bien. Con todo debemos dar un
paso más. En efecto, cuando alcanzamos la conclusión: aquí y ahora
debo actuar de este modo y no de otro, tiene lugar lo que Alberto llama
la constitución de la conciencia moral obligatoria. Mas en su interior
actúan, como se dijo, aquellos prima principia ubicados en el interior
de la synderesis. El Doctor universlis parece coronar aquí, en la synderesis

44. ALBERTUS MAGNUS. Summa de creaturis, De homine. op. cit., p. 593.

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PROF. DR. JOSÉ RICARDO PIERPAULI

y en el acto de configurar nuestras normas del obrar moral y político,


la serie análoga de participación de la lux divina. La synderesis es por
último, luz participada de la inteligencia divina en la criatura racional:
…sed dicitur scintilla conscientiae, eo quod conscientia sequitur ex synderesi
et ratione.El Doctor universalis define la synderesis del modo siguiente:
...synderesis est specialis vis animae, in qua secundum
Augustinum universalia iuris descripta sunt; sicut enim in
speculativis sunt principia et dignitates, quae non addiscit
homo, sed sunt in ipso naturaliter, et iuvatur ipsis ad
speculationem veri; ita ex parte operabilium quaedam sunt
universalia dirigentia in opera, per quae intellectus practicus
iuvatur ad discretionem turpis et honesti in moribus, quae non
discit homo, sed secundum Hieronymum est lex naturalis scripta
in spiritu humano45 .
El texto reúne los elementos hasta aquí descritos. Así como el in-
telecto agente es el motor de la inteligencia, la synderesis constituye
una capacidad especial del alma humana en la que constan, desde el
mismo acto de la creación, los derechos naturales, a través de cuyos
cauces adquiere la persona humana, en cuanto animal político, la
perfección en el orden de la política. Si la lex naturae es, en cierto
modo, una luz constitutiva en la persona, también lo son sus derechos
naturales. Lex naturae y ius naturae son pues los dos modos en que,
por último, se especifica la lux divinae en la criatura racional. Los pri-
ma principia constituyen de este modo cierta presencia, por
participación, de Dios en la criatura racional y la garantía firme para
formular las normas del obrar político virtuoso. El caso concreto del
concepto de lux nos permitió comprobar el alcance de la dinámica
neo-platónica exitus et reditus que dinamiza el sistema. Si antes sostuve
que el orden de la psiquis humana se correspondía con el orden natu-
ral, expresado en cada objeto de conocimiento y además aclaré que el
conocimiento práctico tiene su origen allí donde conocemos al hombre

45. ALBERTUS MAGNUS. op. cit., p. 593.

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LA METAFÍSICA DE LA LUZ COMO PUNTO DE PARTIDA...

según su orientación teleológica connatural, subrayo ahora que la


metafísica del Doctor universalis está condicionada por su teología y
ambas, por su mística. Si pues, la filosofía política depende en impor-
tante medida de la metafísica de Alberto, también la política está con-
dicionada por la mística. En efecto, es en virtud de dicha ordenación
última que podemos afirmar dos cosas. La primera, que el hombre
político es también racional y religioso. La segunda, que el bien políti-
co abre el cauce hacia la última perfección de la criatura racional. Es en
dicha perfección donde la inteligencia humana reposa contemplando a
Dios que es fuente de la luz sobrenatural y espiritual, así como las
garzas, reposan contemplando el sol que es la fuente de la luz natural.
Neque est possibile nostro animo ad non-materialem illam ascen-
dere caelestium hierarchiarum imitationem et contemplationem,
nisi ea quae secundum ipsum est, materiali manuductione utatur,
visibiles quidem formas invisibilis pulchritudinis imaginationes
arbitrans, sensibiles suavitates sive fragantias invisibilis distributionis
figuras, et immaterialis luculentiae imaginem materialia lumina et
secundum intellectum contemplativae pulchritudinis discursas dis-
ciplinas46 .
Mediante el recurso al texto de Dionisio el Aeropagita Alberto ha
transformado definitivamente la gnoseología realista de Aristóteles. Es
a través del conocimiento de las formas visibles que podemos alcanzar
las invisibles. La claridad y la fragancia de las cosas divinas solo pueden
alcanzarse mediante la purificación del alma en el ejercicio de la virtud
política. Mas la virtud política está finalmente pre-ordenada por el
conocimiento de la lex divina. Las formas de ordenación política que
la razón práctica postula, iluminada por la luz natural participada en la
sindéresis, constituyen modos posibles de perfección del intelecto ad-
quirido. A su vez el centro de referencia del intelecto adquirido no es
otro que el ejercicio de la virtud política, orientada hacia la última
contemplación de la fuente de toda luminosidad en Dios.

46. ALBERTUS MAGNUS. Summa theologiae, ed. cit., p. 17-22.

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AS IMAGENS DA LUZ E DO FOGO...

AS IMAGENS DA LUZ E DO FOGO


NAS OBRAS DE MEISTER ECKHART E
MECHTILD DE MAGDEBURG
Matteo Raschietti

Meister Eckhart: herege ilustre ou mestre de espiritualidade?

De acordo com o biógrafo suíço Kurt Ruh, o conceito de “místi-


ca”, na história da pesquisa científica, indica um movimento e, mais
especificamente, uma época: a época da mística alemã. A questão, entre-
tanto, é controversa em se tratando de Meister Eckhart: é correto afirmar
que ele foi, antes de tudo, um místico? A palavra “mística”, de fato, pode
dar azo a uma espécie de “censura historiográfica”, na medida em que é
contraposta à escolástica, considerada por alguns a expressão dominante e
mais desenvolvida do pensamento medieval. Essa forma de pensar, além
de não fazer jus à complexidade da realidade medieval, contribuiu para
alimentar uma interpretação minimalista de Eckhart como um escolástico
medíocre, ou como expressão de um pensamento nacional alemão cujo
surgimento coincidiu com o fim da escolástica.
O juízo de Etienne Gilson a esse respeito contribui notavelmente
para jogar uma luz no túnel dessa controvérsia:
O pensamento de Eckhart não é simples, e é fácil explicar o
embaraço de historiadores que querem encerrá-lo numa fórmu-
la ou mesmo designá-lo por determinado nome. Alguns vêem
nele, antes de mais nada, uma mística, outros uma dialética
platônica e plotiniana – e, provavelmente, todos têm razão.
Mística e dialética estão longe de se excluírem. Talvez não se
estivesse muito distante da verdade, representando Eckhart como
uma alma devorada pelo amor a Deus, favorecida talvez por um
sentimento intenso da presença divina e pedindo à dialética

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 77-89, jul./dez. 2009 77


MATTEO RASCHIETTI

todas as justificações que ela era capaz de lhe dar. É notável em


todo caso que seus sucessores o tenham compreendido assim.
Porque Eckhart deixou discípulos e, sem dúvida, não é por aca-
so que esses discípulos se encontram ao mesmo tempo entre os
mestres da espiritualidade cristã. Se esta não tivesse sido o solo
nutriz da especulação eckhartiana, as condenações doutrinais
de que foi objeto teriam posto um fim à sua história1 .
No seu pensamento místico, Eckhart não nega o conhecimento
de matriz aristotélica, mas contesta sua validade absoluta. Se a verdade
do conhecimento se limita ao objeto conhecido, o turíngio impele
com decisão o conhecimento para o horizonte do não-objeto.E abrir-se
ao não-objeto significa abrir-se ao nada. Na abertura ao nada como ao ser
autêntico não se assiste, segundo o dominicano, a um conhecimento do
ser supremo mas a uma contínua criação de Deus na alma do homem.
Nesse horizonte Deus cria o homem e o homem cria Deus. Se, portanto,
a propósito de Eckhart se fala de um pensamento místico, há nele tam-
bém uma dimensão metafísica, pois nas suas reflexões exegéticas da Sagra-
da Escritura ele nunca abandona o plano do intelecto. Aliás, é possível
constatar que ele procede com uma coerência extremamente racional,
inclusive quando focaliza a sua problemática mística. Em Eckhart não
se verifica o divórcio entre mística e teologia.
A mística do Mestre dominicano foi exclusivamente uma mística
em língua vernácula, pois o latim era cada vez mais uma língua exclu-
sivamente erudita (ao lado da sua elevada função litúrgica, que conser-
vou ainda por séculos). O caso mais interessante é o da linguagem dos
sermões (junto aos tratados). Sendo que sua língua erudita era o latim,
este deveria ter moldado e norteado também a linguagem dos ser-
mões, como aconteceu com os humanistas alemães dois séculos de-
pois. Mas não é assim. Estrutura e expressão da proposição são total-
mente diferentes nas obras em alemão e nas obras em latim.

1. GILSON, E. Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martin Fontes, 1998. Tradução:
Eduardo Brandão, p. 870-871.

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AS IMAGENS DA LUZ E DO FOGO...

Meister Eckhart e os movimentos populares da sua época

Os séculos XII e XIII assistiram a um processo de transformação


das bases tradicionais mais estáveis da sociedade medieval, cujas causas
podem ser identificadas no crescimento demográfico, num renovado
impulso mercantil e na concentração das populações nas cidades, com
um consequente rearranjo social. Do ponto de vista cultural, a intro-
dução das idéias aristotélicas e sua interpretação arábico-judaica no
mundo latino forneceram novos elementos para o nascimento de no-
vas correntes de pensamento, nem sempre em consonância com a or-
todoxia da Igreja, que na época era a instituição religiosa e política
mais poderosa. De acordo com o juízo de Nachman Falbel,
a religiosidade desta época foge dos padrões oficiais porque tudo
leva à busca de novas interpretações. Não foi por acaso que,
neste período histórico, surgiram as novas ordens religiosas, com
personalidades como as de são Francisco de Assis e são Domin-
gos. Por trás de tudo isso podemos verificar o profundo abismo
que começou a se formar, separando a religião oficial, ditada por
seus representantes, e a religiosidade popular, emanada de no-
vas circunstâncias. A Igreja dessa época foi incapaz de enfrentar
a crescente onda de anticlericalismo, característica dessa nova
religiosidade que parecia ansiar por uma religião mais humana,
mais próxima do sentimento popular. Podemos ver um traço de
humanização, inspirado num cristianismo popular, até no re-
pentino despertar da adoração pela Virgem dessa época2 .
Segundo esse mesmo autor, os séculos XII e XIII, do ponto de
vista da história da Igreja ocidental, poderiam ser chamados de séculos
heréticos: “a palavra heresia (do grego hairesis, hairein, que significa
escolher) acompanhou a vida da Igreja desde seus inícios, e para os
escritores eclesiásticos o termo designava uma doutrina contrária aos
princípios da fé oficialmente declarada”3 . A característica principal das

2. FALBEL, N. Heresias medievais. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976, p. 93.


3. Ibidem, p. 13.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 77-89, jul./dez. 2009 79


MATTEO RASCHIETTI

heresias da baixa idade média é seu caráter popular, baseado numa “nova
visão da instituição eclesiástica e do cristianismo como religião vigente
na sociedade ocidental. [...] Na verdade, podemos ver na crítica heréti-
ca, ou melhor dito, em parte desta crítica, uma tentativa de apontar os
erros e os desvios da instituição eclesiástica, da sua intervenção no po-
der secular à custa de sua missão espiritual; enfim, uma tentativa de
alertar a sociedade cristã de que os seus representantes desvirtuaram a
verdadeira imagem da religião fundada por Cristo”4 . A instituição que
melhor representou a reação eclesiástica frente a esse fenômeno foi a
Inquisição que, aliada ao braço secular, incorporou a prática de man-
dar à fogueira todos os que condenava como heréticos. Em 1229, no
Concílio de Toulouse, foi criado oficialmente o Tribunal do Santo
Ofício, sob o pontificado de Gregório IX, e os Dominicanos “logo se
puseram à disposição da nova instituição, cabendo-lhes a tarefa de le-
gislar e condenar os heréticos, entregando-os ao braço secular”5 . Para
executar essa prática, inquisidores experientes elaboravam manuais com
vistas a orientar os perseguidores das heresias sobre seus fundamentos
doutrinários, assim como sobre os modos de conseguir a confissão
dos acusados. Um dos mais famosos foi Bernard Guy que, além de
escrever o manual Practica Inquisitionis haereticae praevitates, redigiu
uma obra com o nome de Liber Sententiarum Inquisitionis Tolosanae,
“que revela muitos aspectos dos métodos utilizados para obter-se a
confissão do herético e levá-lo a contradizer-se até revelar a sua verda-
deira crença”6 . Umberto Eco, no romance Il nome della rosa, apresenta
um retrato desse homem pelas palavras de Adso de Melk, o noviço
beneditino protagonista da história:
Era um dominicano de quase setenta anos, franzino mas direito
em sua figura. Me impressionaram seus olhos cinzentos, frios,

4. Ibidem, p. 13-14.
5. Ibidem, p. 17.
6. Ibidem, p. 18.

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AS IMAGENS DA LUZ E DO FOGO...

capazes de fitar sem expressão, e que muitas vezes teria visto, ao


invés, relampejar de forma equívoca, hábil tanto para esconder
pensamentos e paixões, quanto para expressá-los de propósito.
[...] Parecia-me que ele pedisse informações sobre as colheitas,
sobre a organização do trabalho no monastério. Entretanto,
apesar de colocar as questões mais inocentes, fitava seu
interlocutor com olhos penetrantes, depois colocava repentina-
mente uma nova pergunta, e aí a vítima empalidecia e balbuci-
ava. Dessa forma eu cheguei à conclusão de que, de algum modo
singular, ele estava inquirindo, e valia-se de uma arma formidá-
vel que todo inquisidor no exercício da sua função possui e ma-
nobra: o medo do outro. Porque aquele que é inquirido diz ao
inquisidor, pelo temor de ser suspeitado de algo, o que pode
servir para tornar suspeito alguém outro7 .
É interessante mencionar, enfim, o desenvolvimento de um pro-
cesso por heresia, como é descrito por Nachman Falbel em sua obra:
o processo movido contra o herético muitas vezes era feito de tal
modo que o acusado ignorava o nome do próprio acusador, sen-
do que mulheres, escravos ou crianças podiam servir de teste-
munhas da acusação, mas nunca de defesa. Para obter a confis-
são podiam-se utilizar métodos que não deixavam de ser, de
certa forma, torturas, como, por exemplo, a fadiga, proposital-
mente provocada, ou o enfraquecimento físico do acusado. Uma
vez apurada a culpa, concedia-se ao réu um prazo para que se
apresentasse espontaneamente ao tribunal. Caso isso não ocor-
resse, poderia ser denunciado pelo inquisidor e ser preso. Em
caso de confissão da culpa, dava-se ao acusado a oportunidade
de retratar-se, sendo que, neste caso, deveria submeter-se a uma
série de penitências, flagelações, peregrinações e, em casos mais
graves, à prisão. Porém, se o acusado persistisse em seu pecado,
era julgado e entregue ao braço secular que, por sua vez, o con-
duzia à fogueira8 .
Meister Eckhart, forçado no final de sua vida a enfrentar um pro-
cesso inquisitorial por heresia, que visava esmagá-lo como intelectual,

7. ECO, U. Il nome della rosa. Milano: Bompiani, 1980, p. 303-305.


8. FALBEL, N. Op. cit., p. 17.

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MATTEO RASCHIETTI

como religioso e como homem, reagiu – como escreve Loris Sturlese


num artigo publicado em 2001 –
com audácia e habilidade, apelando para seus estimadores, de
um lado, e à Sede Apostólica do outro. Fazendo propaganda do
seu processo, que de acordo com as prescrições da autoridade
eclesiástica deveria ter acontecido “sem suscitar escândalo”, ou
seja, rápida e eficazmente e de forma absolutamente reservada,
Eckhart conseguiu provavelmente engatilhar aquelas dinâmicas
político-eclesiásticas complexas que causaram a avocação do pro-
cedimento de Colônia para Avignon, apesar da oposição ferre-
nha dos juízes delegados do Arcebispo, os quais chegaram a
recusar uma carta testemunhável9 para Eckhart. Com a avocação
do processo para Avignon, e sua transformação de processo por
heresia a processo por erro doutrinal, Eckhart conseguiu esca-
par do perigo iminente da fogueira. Ele teve salva sua vida, e o
desfecho foi uma espécie de acordo. Eckhart retratou, sim, uma
seleção das suas teses, e tudo aquilo que pudesse “produzir nas
mentes dos fiéis um sentido herético ou errôneo e inimigo da
verdadeira fé”, mas (apenas) “quanto ao sentido herético” que
podia ser produzido a partir delas; o papa condenou a seleção
retratada, declarando salva a alma de Eckhart. [...] Em outras
palavras, Eckhart reivindicou a retidão de sua doutrina e revo-
gou suas eventuais interpretações errôneas alheias: zombaria ex-
trema dos censores, ou acordo alcançado, a muito custo e cons-
cientemente, com a Sede Apostólica?10 .
O pensamento do Mestre dominicano foi associado, na história
da interpretação, ao movimento das beguinas, e suas obras revelam a
influência de duas figuras de relevo desse movimento: Marguerite Porète
e Mechtild de Magdeburg.

9. Recurso judicial que visa a fazer subir ao tribunal competente certos recursos cuja
interposição ou seguimento foram denegados pelo juiz inferior.
10. STURLESE, L. Eckhart, l’inquisizione di Colonia e la memoria difensiva
conservata nel Codice Soest 33. In: Giornale Critico della Filosofia Italiana, 82, 1
(2001), p. 88-89.

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AS IMAGENS DA LUZ E DO FOGO...

O movimento das beguinas

No século XII, particularmente na França, Alemanha e nos Países


Baixos, havia um grande número de mulheres sozinhas, pertencentes à
classe social mediobaixa, que não podiam se casar por escassez de ho-
mens, dizimados pelas cruzadas ou por guerras locais, e que não eram
aceitas pelos poucos conventos femininos existentes na época (mais
interessados em acolher jovens mulheres ricas e nobres). A única alter-
nativa para essas mulheres era viver sozinhas nas periferias das cidades,
rezando e ocupando-se com trabalhos manuais ou dedicando-se ao
ensino. A etimologia do nome beguina é obscura: a hipótese mais pro-
vável é que tenha origem na palavra flamenga beghen, que significa
rezar. Segundo o Dicionário Italiano de Mística (1998), “o termo fran-
cês begin[e], originalmente utilizado no Brabante Meridional, nos ter-
ritórios de Liége e nas regiões renanas, pode ser uma corrupção popu-
lar de Alibigenses, ou deriva do verbo anglo-saxônico beggen (pregar,
mendigar)ou ainda, mais provavelmente, do antigo francês bege (tipo
de lã grossa ou não tingida) com o sufixo inus, ou seja beg(u)inus,
pessoa que vestia o hábito dos hereges (cátaros ou lulardos)”11 .
O fenômeno das beguinas (mulieres religiosae beginae, begginae)”
– escreve Nachman Falbel – “consequência da reforma gregoriana
e da tendência à vida apostólica, foi promovido pelos pregado-
res ortodoxos e hereges. Sob a direção de uma mestra, levavam
vida em comum, sem votos propriamente ditos, dentro de “cor-
tes de beguinas”, dedicando-se à oração, ao trabalho manual, à
assistência aos enfermos, ao cuidado dos cadáveres e à educação
das crianças. A corporação teria sido fundada, de acordo com
uma lenda do século XV, por Santa Bega (+ 694), filha de Pepi-
no, o Velho, ou pelo pregador penitencial Laberto, le bégue (o
gago) ou le bèguin, em Liége, em 1177. Outros pensam que o
nome deriva de al-bigenses, ou talvez do hábito beige ( = bege,
lã em seu estado natural) das mulheres12 .

11. BORRIELLO, L.; CARUANA E.; DEL GENIO, M.R.; SUFFI, N. (orgs.).
Dizionário di Mística. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1998.
12. FALBEL, N. Op. cit., p. 81.

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MATTEO RASCHIETTI

Houve também a versão masculina das beguinas, denominada (com


uma conotação negativa em sentido herético) begardos:
Os begardos (beguines, begines), associação masculina paralela à
das beguinas, surgiram por volta de 1220 nos Países Baixos.
Atuavam na assistência aos enfermos e no sepultamento dos
mortos, e difundiram-se tão extensamente quanto as beguinas.
Bem cedo se desviaram de suas tendências iniciais e se tornaram
suspeitos de heresia, de modo que desapareceram antes do sé-
culo XVI13 .
No século XIII o número dos conventos de beguinas cresceu rapi-
damente em toda Europa, principalmente nas áreas urbanas, e ainda
hoje existem 11 comunidades na Bélgica e 2 na Holanda. Apesar de
não apresentarem nenhum sinal de heresia, as beguinas foram conde-
nadas pelo IV Concílio de Latrão (1215), mas logo em seguida (1216)
o papa Honório III aceitou-as verbalmente, até que o papa Gregório
IX (1227-1241) aprovou-as com a bula Gloriam virginalem em 1233.
Não obstante a aprovação papal, nos anos sucessivos houve uma série
ininterruptade condenações contra as beguinas: nos sínodos de Fritzlar
(1259) e Mainz (1261), no Concílio de Lion (1274), nos sínodos de
Eichstätt (1282) e Bérziers (1299), e, por fim, no Concílio de Vienne
(1311-12), quando foram definitivamente condenadas como hereges.
No dia 1º de junho de 1310, na Place de Grève em Paris, foi queima-
da na fogueira a beguina Marguerite Porète, junto ao seu livro Le miroir
des simples âmes et anéanties (O espelho das almas simples e aniquila-
das), que influenciou decisivamente o pensamento do dominicano
Meister Eckhart.

A vida de Mechtild

Poucos são os dados biográficos disponíveis sobre Mechtild, in-


clusive aqueles obtidos diretamente da sua obra ou dos acréscimos
feitos pelo tradutor latino: nascida por volta de 1208 na diocese de

13. Ibidem, p. 82.

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AS IMAGENS DA LUZ E DO FOGO...

Magdeburg, quando ainda criança teve sua primeira visão mística, con-
forme ela mesma escreve:
Indigna pecadora, no meu décimo segundo ano de idade, en-
quanto estava sozinha, o Espírito Santo me saudou com um
beatíssimo fluido, de tal forma que nunca mais teria sido possível,
para mim, cair em um grande pecado cotidiano (FL IV, 2)14 .
Essa experiência a levou a abandonar a casa paterna para entrar em
uma comunidade de beguinas, conduzindo uma vida de oração, peni-
tência e encontros místicos com Deus. Por trinta anos guardou segre-
do dessas suas visões, até que, em 1250, aconselhada pelo confessor
dominicano Heinrich von Halle, começou escrever suas Offenbarungen
(revelações) em folhas avulsas. Entretanto, os originais da obra, escri-
tos em vernáculo, foram perdidos. Se, por um lado, essa obra desper-
tou muita admiração por Mechtild, do outro suscitou inveja, ciúme,
calúnias e persecuções, especialmente por parte dos religiosos (homens
e mulheres), cuja corrupção e malvadez foram denunciadas corajosa-
mente pela beguina. Em 1261, uma decisão do sínodo dos Dominica-
nos de Magdeburg contra o movimento das mulheres leigas obrigou
Mechtild a voltar momentaneamente para a família, para depois trans-
ferir-se definitivamente para o convento cisterciense de Helfta. Na paz
do claustro, escreveu o sétimo e último livro de suas revelações, muito
embora estivesse internamente dividida:
Suplicava a Deus de indicar-me se era vontade dele que eu dei-
xasse de escrever. Por quê? Porque reconheço ser agora mais mi-
serável do que fora trinta anos atrás, e mais ainda, quando co-
mecei a escrever (FL VII, 36)15 .
Lá viveu provavelmente ainda por doze anos e faleceu por volta de
1283. Após a morte, sua obra foi traduzida em latim por dois domi-

14. MECHTILD VON MAGDEBURG. La luce della fluente divinità. Firenze: Giunti
ed., 1991, p. 148.
15. Ibidem, p. 331.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 77-89, jul./dez. 2009 85


MATTEO RASCHIETTI

nicanos de Halle com o título de Lux divinationis semper fluens in


corde veritatis ou, mais resumidamente, Revelationes mechthildianae.
A única tradução completa em alemão da baixa idade média falado no
norte (mittelhochdeutsch, mhd) é constituída pelo código do conven-
to de Einsiedeln (Suíça), um manuscrito do séc. XIV. De acordo com
o estudo de Nemes16 , que realiza uma análise pormenorizada das ques-
tões de crítica textual levantadas pela obra de Poor17 . A opção de
Mechtild ao lançar mão do vulgar como instrumentum scripturae se
torna decisiva para o alcance da obra: entre a língua falada na igreja
(latim) e aquela falada na corte (mhd), a beguina escolhe um meio de
expressão para que “todos os aflitos e as pessoas confusas” encontrem
consolação, mas que, os que “acolherem outra consolação sejam ainda
mais confundidos por aquilo que ele fala”18 .

A mística nupcial

A obra de Mechthild se insere naquela corrente de espiritualidade


medieval indicada pelo nome de Brautmystic (mística nupcial), cujo
modelo literário é o Cântico dos Cânticos. É impressionante a riqueza
de imagens utilizadas pela beguina, assim como as metáforas que per-
tencem ao patrimônio comum da mística medieval: todos os místi-
cos, afinal, lançam mão de uma linguagem semelhante constituída de
figuras, fórmulas e imagens na tentativa de expressar a deidade que,
por si, é indizível. Ao contrário de Eckhart, Mechthild nunca cita suas
fontes; mesmo assim, procedendo por analogia e comparação, é possí-
vel individuar na Bíblia (Antigo e Novo Testamento), na Patrística e

16. NEMES, B. J. Neues zu den Fragen der Autorschaft und Kanonizität des Fließenden
Lichts der Gottheit Mechthilds von Magdeburg.
17. POOR, S. S. Mechthild of Magdeburg and her book. Gender and the making of
textual authority. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2004.
18. MECHTILD VON MAGDEBURG. Op. cit., p. 29. Introdução ao FL.

86 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 77-89, jul./dez. 2009


AS IMAGENS DA LUZ E DO FOGO...

no Pseudo-Dionísio Areopagita, a nascente de onde provém sua inspi-


ração. Esse último, em particular, utiliza as metáforas da luz e do sol
como símbolos da deidade. Assim também Mechthild fala para Deus:
“Tu és uma luz de todas as luzes [...]; Meus olhos estão iluminados
pela tua luz de fogo” (FL II, 10.18)19 . Além disso, a luz é uma metá-
fora da alma que, nascida da luz eterna, é por sua vez fonte de luz: “A
alma inocente, segundo a sua natureza, emana sempre luz e esplendor,
porque ela fora gerada da luz eterna sem pena” (FL III, 21)20 . Realida-
de humana e divina ao mesmo tempo, ponto de intersecção de um
único movimento, lugar de eterna felicidade: “É o amor fluente em
movimento, que de Deus flui secretamente na alma e com a sua força
escorre novamente em direção dele, de acordo com a potência dela”
(FL VI, 22)21 .
Diretamente ligada à metáfora da luz, na obra de Mechtild se en-
contra também a imagem do fogo, antiquíssimo símbolo da divinda-
de em todas as religiões, que carrega em si um significado ambivalente:
por um lado ele é destruidor-purificador, mas por outro é gerador de
vida. No capítulo 29 do livro VI, a beguina escreve sobre as dez quali-
dades do fogo divino que provém da nobreza de Deus: “Uma pessoa
indigna refletia com simplicidade sobre a nobreza de Deus. Então Ele
lhe deu um fogo para conhecer com os sentidos e olhar com os olhos
da alma. Ardia sem parar em alto sobre todas as coisas. O fogo ardia
sem começo e continuará sempre a arder sem fim. Esse fogo é o Deus
eterno, que contém em si a vida eterna e dele todas as coisas emana-
ram. [...] Essas coisas saíram do fogo divino e lá retornam fluindo,
cada uma segundo o ordenamento divino, com eterno louvor. Quem
a esse respeito quiser falar mais, se coloque no fogo, e vá e experimen-

19. Ibidem, p. 74 e 76.


20. Ibidem, p. 138.
21. Ibidem, p. 274.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 77-89, jul./dez. 2009 87


MATTEO RASCHIETTI

te, como a deidade eflui e como a humanidade derrama, como o Espí-


rito Santo lute e obrigue muitos corações a amar a Deus ébrios de
amor” (FL VI, 29)22 .

Mechtild de Magdeburg e Meister Eckhart

Um ensaio de Tobin23 sobre os pontos de contato e de divergência


entre Mechthild de Magdeburg e Meister Eckhart põe em evidência
como este também utiliza as imagens da luz e do calor para descrever a
atividade no seio da deidade e os efeitos da sua atividade nas criaturas,
mas “é o uso que ele faz da ‘emanação’ que mais particularmente traz à
tona o imaginário de Mechthild”24 . Por exemplo, na Pr. 50 (Eratis
enim aliquando tenebrae), o dominicano escreve:
Eu falei várias vezes: é da obra em Deus e do nascimento que o
Pai gera seu Filho unigênito, e desse eflúvio floresce o Espírito
Santo, Espírito que eflui de ambos; nesse eflúvio brota a alma
como fluída, e a imagem da deidade é gravada nela. Nesse fluir
e no refluir das três pessoas, a alma é influída e in-formada de
novo na sua primeira imagem sem imagem. É isso que Paulo
entende quando fala: “mas agora uma luz em Deus”. Ele não
diz: “Vós sois uma luz”, mas: “mas agora uma luz”25 .

22. Ibidem, p. 278.


23. TOBIN, F. Mechthild of Magdeburg and Meister Eckhart. In: McGINN. B.
(org.). Meister Eckhart and the Beguine Mystics. Hadewijch of Brabant, Metchthild of
Magdeburg and Marguerite Porete. New York: Continuum, 2001, pp. 44-61.
24. Ibidem, p. 54.
25. “Ich habe es schon öfters gesagt: Von dem Werk in Gott und von der Geburt, in
der der Vater seinen eingeborenen Sohn gebiert, und von diesem Ausfluß erblüht der
Heilige Geist so, daß der Geist von ihnen beiden<ausfließt>, und in diesem Ausflusse
entspringt die Seele <als> ausgeflossen; und das Bild der Gottheit ist in die Seele
eingeprägt, und in dem Ausfließen und im Rückfließen der drei Personen wird die
Seele wieder eingeflößt und wird wieder eingebildet in ihr erstes Bild ohne Bild. Dies
meint Paulus, wenn er spricht: ‘nun aber ein Licht in Gott’. Er sagt nicht: “Ihr seid ein
Licht”, er sagt: ‘nun aber ein Licht’”. DW II,456,6-457,1. Cf. também SA, p. 280.

88 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 77-89, jul./dez. 2009


AS IMAGENS DA LUZ E DO FOGO...

Assim, também, na Pr. 72 (Videns Jesus turbas, ascendit in mon-


tem etc.), o dominicano afirma:
Os maiores mestres dizem: as potências da alma e a própria
alma são plenamente um. O fogo e o clarão (do fogo) são um;
mas quando ele (o fogo) cai no intelecto, cai em uma natureza
diferente (do clarão). [...] Se se toma Deus onde Ele eflui, a
alma não permanece suspensa: ela (a luz acima de toda luz) é
(antes disso) elevada totalmente acima; ela se sobressai acima de
toda luz e de todo conhecimento26 .
As semelhanças que podem ser evidenciadas nas obras da beguina e
do mestre dominicano, assim como suas diferenças, vão muito além
de uma aproximação simbólica. Ainda assim, ou talvez justamente
por isso, mesmo uma análise desse tipo ajuda a endender o Sitz im
Leben no qual Eckhart deu vida à sua teoria da imagem original, inclu-
sive fazendo próprios elementos específicos da produção literária de
grandes místicas como Mechthild. Longe de diminuir seu valor e
sensibilidade, isto enobrece mais ainda sua produção teórica.
mateus.aureny@uol.com.br

26. “Die höchsten Meister sagen: Die Kräfte der Seele und die Seele selbst sein völlig
eins. Feuer und (Feuer-)Schein sind eins; fällt es <= das Feuer> aber in die Vernunft,
so fällt es in eine <vom Schein> verschiedene Natur. […] Nimmt man Gott irgendwo,
wo er aufließt, da bleibt die Seele nicht hängen: es <= das Licht über allem Lichte> ist
<vielmehr> ganz über erhaben; sie entwächst allem Lichte und aller Erkenntnis”. DW
III,253,1-3;6-9.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 77-89, jul./dez. 2009 89


A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

A CAUSA FINAL DO PODER DO


PRINCIPANS NO DEFENSOR DA PAZ
DE MARSÍLIO DE PÁDUA
José Antônio de C. R. de Souza*

Resumo: Neste estudo, com base no Defensor da Paz de Marsílio de Pádua,


analisamos quais são os principais deveres do governante secular inerentes
em seu poder e, consequentemente, qual o melhor regime político, me-
diante o qual, mais facilmente, o governante secular poderá de modo me-
lhor cumprir com seus deveres. Por último, ainda, consideramos a quem
compete julgá-lo e puni-lo devido aos delitos (graves) que tiver cometido.
Abstract: In this study, based in Marsilius’ of Padua, Defensor Pacis we analyze
what are the most important duties of the secular ruler inherent in his power
and, consequently, what is the best political government, by means of most
what, more easily, the temporal ruler would to accomplish his duties. Finally,
we consider who must judge him and punish him on account of the onerous
crimes which he was done.

Alguém que, por acaso folhasse apressadamente os capítulos ini-


ciais do Defensor da Paz (1324-26)1 de Marsílio de Pádua (1280-

* José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza, professor Titular da Universidade


Federal de Goiás, é doutor em história social [Idade Média] (1980), pela Universidade
de São Paulo. É também doutor em história da filosofia e da cultura portuguesa [medi-
eval] (2001), pela Universidade Nova de Lisboa.
Este texto é um dos resultados parciais da 2ª etapa do projeto de investigação
intitulado: Os poderes espiritual e secular na visão de Marsílio de Pádua, apresentado
àFundação para ciência e tecnologia (FCT) do Ministério da Ciência Tecnologia e Ensino
Superior de Portugal (2007), sob a forma de bolsa de pós-doutoramento, à qual agrade-
cemos penhoradamente pelo apoio finaceiro recebido.
1. Tradução do latim e notas por SOUZA, José Antônio de C. R. de, Introdução por
SOUZA, José Antônio de C. R. de; BERTELLONI, Francisco; PIAIA, Gregório. In:
Coleção Clássicos do pensamento político, vol. 12, Petrópolis: Vozes, 1997, 701 p.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009 91


JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

c.1342/3)2 , leigo, médico e assessor político do imperador Ludovico


IV (1314-47), logo iria se deparar com a indicação dos principais de-
veres da responsabilidade dos que exercem o poder político e,
consequentemente, com as finalidades em razão das quais ele foi insti-
tuído. De fato, afirma o Médico Patavino:
... No entanto, para regular os excessos dos atos produzidos
pela inteligência e vontade, ...os quais designamos por ações
transeuntes, e que podem ser realizadas neste mundo em pro-
veito ou em detrimento ou prejuízo de outrem, por quem as
pratica, foi imprescindível estabelecer um ofício ou grupo in-
cumbido de corrigir e reduzir à equidade ou à devida proporção
tais excessos, pois de outra forma adviriam o conflito e, em se-
guida, a divisão entre os cidadãos, e por fim, a destruição da
cidade e a ausência da vida suficiente. Aristóteles denominou
esse grupo social parte judicial ou governante e deliberativa,
nela incluindo todo o aparato que está à sua disposição, cujo
ofício consiste em regular o que é útil e justo ao bem comum...3

2. Nos últimos trinta anos, a bibliografia sobre o Médico paduano e seu pensamento
político aumentou consideravelmente, a par dos estudos clássicos de autoria de GEWIRTH,
A. Marsilius of Padua, The Defender of Peace, vol. I, N. York: Columbia University Press,
1951; PINCIN, C. Marsílio. Torino, 1967; LAGARDE, G. de; QUILLET, J. Baste
mencionar, por exemplo, os volumes V (1979) e VI (1980) de Medio Evo, organizados por
PIAIA, Gregorio; DAMIATA, OFM, Marino, Plenitudo potestatis e Universitas civium in
Marsilio da Padova. Firenze: ed. Studi Francescani, 1983. DOLCINI, Carlo, Introduzione
a Marsilio da Padova. 2a ed., Roma: Laterza, 1999. STREFLING, Sérgio R. Igreja e poder.
Plenitude do poder e soberania popular em Marsílio de Pádua, Coleção Filosofia, vol. 146,
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002; CESAR, Floriano Jonas, Papado, império e o pensamento
de Marsílio de Pádua. São Paulo: Pós-graduação em Filosofia, USP, tese de doutoramento,
mimeo, 2000,AMES, José L. Estado e governo no pensamento de Marsílio de Pádua:
Raízes medievais de uma teoria moderna, em: Ética e filosofia política, vol. 6, número 2,
2003; STREFLING, Sérgio R. O legislador humano e o governante em Marsílio de
Pádua (1280-1342) in: Idade Média: Tempo do mundo, tempo dos homens, tempo de Deus
(SOUZA, José Antônio de C.R. de, org.) Porto Alegre: EST Edições, 2006: 492-497 e o
excelente estudo de AZNAR, Bernardo Bayona. Religión y poder en Marsílio de Padua: La
primera teoría laica del Estado?, Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2007. Da página
351 à 379, deparamo-nos com rica bibliografia atualizada. LEE, Alexander. Roman Law
and Human Liberty: Marsilius of Padua on Property Rights, Journal of the History of Ideas
(JHI), 70 (2009), p. 23– 44.
3. DP I, V, § 7, p. 89-90.

92 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009


A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

Embora, à primeira vista, esse passo de Marsílio seja um tanto


hermético, não é tão difícil inferir dele que os principais deveres do
principantis, sempre com respaldo nas leis, são fazer justiça a todos os
cidadãos, julgando e condenando os comprovadamente criminosos4 ;
manter a paz entre eles e defendê-los contra as ameaças externas; buscar
e promover o bem comum para todos, isto é, o viver bem ou a vita
sufficiens.
Por tais motivos, é também da competência do príncipe estabele-
cer o número de pessoas a integrar esta ou aquela pars em que a civitas
está socialmente organizada, de acordo com as exigências e as necessi-
dades comuns, por exemplo, determinando o contingente militar ou
o número de agricultores etc., de modo que não haja um desequilíbrio
quantitativo entre os integrantes dessas partes, o que acabaria por pre-
judicar toda a sociedade; protegê-las e fazer com que elas cumpram
bem suas obrigações5 .

4. Cf. LAGARDE, G. De. La naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen-Âge. vol.


III, Le defensor pacis. Louvain-Paris: Ed. Nauwelaerts, 1970, p. 116-117: “ ...En ce qui
concerne la première [l’exécutión de la justice coactive,] nous rappellerons d’abord le point de
départ que nous évoquions plus haut. La “ pars judicialis seu principans et consiliativa”
doit “décider du juste et du bien commun” (regulare justa et conferentia communia). C’est
donc tout le domaine des lois et de leur application qui appartient au prince... II n’appartient
à personne d’autre, individu ou collectivité, de rendre la justice, d’appliquer une contrainte
ou d’imposer une peine, en quelque domaine que ce soit...”
5. Idem, ibidem, p. 117-118 : “... Le second point, sur lequel Marsile revient encore avec le
plus d’insistance, est que le prince est (sous et par l’autorité du législateur) le créateur, le
contrôleur et le régulateur de toutes les autres parties de la cité. Il est la première de toutes les
parties, et toutes les autres s’ordonnent à lui... Le prince doit protéger les autres parties de la
cité, les aider à remplir leur tâche propre et les obligations civiques qui découlent de leur
coopération... Marsile ajoute que le rôle du prínce n’est pas seulement de contrôler et de régler
les fonctions, mais aussi de trancher en maître souverain de l’accès de tel ou tel à une fonction.
II a pourtant enseigné d’abord que la nature dotait les hommes des qualités qui les orientaient
vers un office ou vers un autre. Mais il précise vite que l’on ne peut s’en remettre au hasard.
Ce serait le désordre si on laissait chacun suivre sa voie, sans aucune régulation. Le prince
doit fixer des limites numériques pour éviter les engorgements et les pléthores. Il doit contrôler
la qualité des intéressés...”

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009 93


JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

Ora bem, se esses deveres/finalidades, apresentados de maneira re-


sumida, de um lado mostram a causa material sobre a qual o principans
exerce o seu poder, nomeadamente, os cidadãos, bem como indicam a
causa formal, por meio da qual ele deve governar, isto é, as leis6 , toda-
via, não ressaltam a importância desse tema, nem apontam sua cone-
xão com outros assuntos deveras importantes, para que os referidos
deveres/finalidades possam vir a ser cumpridos/alcançados, a saber:
Quais são as virtudes que aquele que exerce o poder político tem de pos-
suir? Dentre os regimes políticos, qual deles é o melhor; e, na hipótese de
o principans transgredir as leis que também regulam a sua conduta, por
quem e de que modo deverá ser ou não corrigido? Esses são os assuntos
que iremos abordar neste trabalho.
Primeiramente, no que concerne às qualidades que o governante
deve possuir, haurindo-se apenas na Ética a Nicômaco e na Política de
Aristóteles e, prescindindo dos ensinamentos das Escrituras e da tradi-
ção cristã7 , Marsílio de Pádua começa o capítulo XIV, da Dictio I,
dizendo que são duas as principais virtudes ou qualidades morais que
se requer do princeps para que governe bem o Estado, a saber, a pru-
dência política, a qual irá guiá-lo intelectualmente, quanto a avaliar o
que é mais proveitoso ao bem comum, e a justiça, mediante a qual,

6. Cf. DP I, X e XI, p. 115-128, a propósito, ver DUBRA, Julio Castelo. La significacion


política del concepto de justicia en Marsilio de Padua, Princípios de filosofia, Natal :
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 11-12 (2002), e principalmente,
AZNAR, Bernardo Bayona. Religión y poder Marsílio de Pádua: La primera teoría laica
del Estado?, Segunda Parte, capítulo 2, Teoría de la Ley, Madrid: Ediorial Biblioteca
Nueva, S.L., 2007, p. 177-165.
7. DAMIATA OFM, Marino. Plenitudo potestatis e universitas civium in Marsílio da
Padova, Firenze: ed. Studi Francescani, 1983, p. 188: “... Come si vede, Marsilio non
prende in considerazione virtù teologiche, in conformità alla netta distinzione fra piano
politico e piano della salvezza eterna, e neppure virtù che si riferiscono alla vita privata del
principans, ma soltanto disposizioni di animo che si fanno valere nei rapporti pubblici...”

94 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009


A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

agirá sempre de acordo com a lei e fará com que ela valha indistinta-
mente para todos os cidadãos8 .
Entretanto, há situações imprevisíveis e casos não previstos nas leis
que exigem decisões rápidas do principans, de modo que, se ele não possuir
a mencionada primeira virtude, ao tomá-las, as suas consequências pode-
rão ser desastrosas para os cidadãos e para o Estado9 .
Ademais, se o governante não possuir a virtude da justiça, numa
dada circunstância em que esteja a julgar alguém, se por ventura se
deixar levar somente por suas inclinações sensuais, e não houver leis
nas quais ele tenha que pautar sua conduta, haverá o risco de ele come-
ter injustiça10 .

8. DP I, XIV, § 2, p. 145-146: “... O futuro governante ideal deve possuir duas


qualidades intrínsecas e relacionadas: a prudência e a virtude moral, especialmente a
justiça. A prudência é necessária para guiar sua inteligência na ação de governar. Por
isso, estáescrito na Política, livro III, capítulo 2o [4o]: A prudência é a única virtude
específica exigida para o governar bem, pois é imprescindível que tanto os súditos como os
governantes possuam as demais virtudes.
A outra qualidade, a virtude moral, acima de todas, a justiça, é o meio através do qual
o sentimento do príncipe se mantém reto, de acordo com as palavras de Aristóteles, na
Ética, livro IV, no Tratado sobre a justiça [capítulo 4o]: O príncipe é o guardião da justiça.
9. DP I, XIV, § 3, p. 146: “... Com efeito, nas ações humanas civis, o ato em si mesmo
ou suas modalidades nem sempre estão regulamentados pela lei. O governante então
deve ser guiado pela prudência, não apenas em seu julgamento a respeito das mesmas,
bem como ao efetivá-lo. Se ele não possuir a prudência poderácometer enganos em tais
circunstâncias...”
10. DP I, XIV, § 6, p. 148: “... Ademais, a bondade moral, a virtude e especialmente a
justiça são igualmente necessárias ao governante, porque se ele for moralmente corrup-
to, a sociedade política sofrerá as conseqüências disso, mesmo que esteja informada
pelas leis. Afirmamos efetivamente antes, que não é fácil e muito menos possível,
regular tudo mediante as leis, de modo que certos casos devem ser confiados ao arbítrio
do juiz, o qual se se deixar levar por um mau sentimento, ao julgá-los, poderá lesar a
sociedade. Aristóteles também diz a mesma coisa na Política, livro III, capítulo 8o [11o]:
Estabelecidos como juízes sobre os assuntos importantes, se forem corruptos, quer dizer depra-
vados, eles causarão muitos prejuízos, e de fato jáprejudicaram bastante a cidade dos
lacedemônios. Uma vez, pois, que os governantes são preservados no seu agir, graças à
virtude moral, especialmente pela justiça, é conveniente, se é que se pode chamar de

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009 95


JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

Para mais, o governante ainda deve possuir a virtude da equidade,


pois, é ela que o orienta, consoante sua formação moral, ante aqueles
casos não contemplados pela legislação do país, a tomar uma decisão
benevolente11 . Enfim, uma outra virtude pessoal imprescindível ao
governante é o devotamento aos cidadãos e ao Estado, os quais irão
sempre impeli-lo a buscar e a promover o bem comum12 .
A par dessas qualidades pessoais, continuando a seguir os
ensinamentos do Estagirita, o Pensador Paduano diz que, ao assumir o

conveniente algo necessário, que nenhum futuro príncipe não a possua, especialmente
a justiça...”. A propósito, observa QUILLET, J.: “ ... Être juste et équitable, pour le prince,
c’est posséder un jugement droit, non perverti par la passion, à l’image de la loi elle-même
qui, nous le verrons, est dépourvue de tout sentiment perverti. Le prince est donc l’incarnation
sensible et particulière de la loi; lorsqu’il a à exercer son équité, il doit être cette mesure
même...” (La philosophie politique de Marsile de Padoue, Paris: J. Vrin, 1970, p. 118).
11. DP I, XIV, § 7, p. 148: “...É ainda oportuno, que o futuro governante possua
igualmente uma determinada virtude chamada equidade que o conduz principalmen-
te conforme o seu sentimento naqueles casos em que a lei é omissa. Por tal motivo, o
Filósofo, na Ética, livro IV [V, 10o], tratado “Sobre a justiça”, diz o seguinte: “A
natureza da eqüidade é de tal forma que amplia a lei quando ela é omissa no tocante a
um caso particular”.
Pensamos que é dessa maneira que os juristas entendem a equidade. Consiste em
fazer uma interpretação com moderação ou benevolente da lei, ante um caso particular
qualquer, contemplado por ela em sua amplitude rigorosa, acerca do qual, no entanto,
de certo modo é omissa, mas não o exclui, todavia, se aquele caso particular tivesse sido
previsto pelo legislador, a lei ou o teria excluído da universalidade da regra com mode-
ração ou totalmente...”. Marino DAMIATA OFM comenta o assunto, dizendo: “...
Occorre tuttavia ripetere un’osservazione già fatta: poiché le leggi non possono prevedere
tutto né tutte le circostanze in cui gli atti umani si realizzano – circostanze che incidono
tanto sulla responsabilità morale quanto sulla loro pericolosità politica – il principans, che
deve dare la sua sentenza con un occhio rivolto alia legge e con l’altro alla realtà, abbisogna
di epikeia. Essa se da un lato gli fa luce quando la legge tace, dall’altro lo guida nell’interpretare
con equità e diremmo con umanità il duro dettato della legge...” (op. cit., p. 189).
12. DP I, XIV, § 7, p. 148: “... Além das sobreditas virtudes, o futuro governante deve
possuir igualmente um devotamento especial ou amor para com a sociedade civil e os
cidadãos, de maneira que a bondade e a solicitude de suas ações promovam o bem
comum e o de cada indivíduo...”

96 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009


A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

poder, o governante deve ter ao seu dispor um efetivo considerável de


soldados, fixado em lei, a tal ponto numeroso que exceda tanto o
poder de cada cidadão, quanto o de cada grupo social, tomado em
conjunto, o qual, entretanto, não deverá exceder o poder do Estado, a
fim de que, de um lado, mediante a coerção armada, ele possa fazer
com que as leis sejam cumpridas, que as sentenças que proferir sejam
aplicadas, que a ordem pública seja mantida, que a defesa do país esteja
assegurada e, de outro, que nunca venha a pensar que, como se fora
um déspota, possa desrespeitar as leis ou estar acima das mesmas13 .
Com respeito aos regimes políticos, os principais autores
escolásticos14 que, antes do Paduano, trataram amplamente desse as-
sunto, se inspiraram no capítulo VIII da Ética a Nicômaco.
No entanto, Marsílio passa ao largo desse texto, tendo se limitado
a se fundamentar num pequeno trecho do livro III, capítulo V da
Política de Aristóteles, no qual o Filósofo apenas enumera os diversos
regimes, bons e corrompidos. Talvez, pela mesma razão, as reflexões

13. DP I, XIV, § 8, p. 149: “... É necessário ainda que o príncipe... disponha... dum
certo número de soldados, por meio dos quais faça cumprir as suas sentenças civis,
empregando assim a força coerciva contra os rebeldes ou desobedientes... Se não fosse
dessa maneira, as sentenças e as leis civis seriam inócuas, porque não seriam cumpridas.
Mas o legislador deverfixar não apenas o número de soldados à disposição do
príncipe... Esse contingente terá de ser bastante numeroso de modo a exceder tanto o
poder individual de cada cidadão, como o de grupos dos mesmos tomados em conjun-
to, entretanto, não deveráextrapolar o poder de toda a coletividade ou de sua parte
preponderante, a fim de que não aconteça que o governante presuma poder violar as
leis, governar à sua margem ou ir contra as mesmas, como se fosse um déspota...”
14. Cf. LAGARDE, G. De. op. cit.,p. 124, nota 52. Aí são mencionados Alberto
Magno, Tomás de Aquino, Pedro de Alvernia, Egídio Romano e seus respectivos
tratados.QUILLET, J. op. cit., p. 118, nota 2, igualmente os arrola: SAINT THOMAS,
in Ethic., 1674-7; De Regno, IV et V [partes essas do tratado escritas por Ptolomeu de
Lucca OP]; ALBERT LE GRAND, Eth. (540); GILLES DE ROME, De regimine
principum, lib. III, pars II, ch. 2, 3 e 4; PIERRE D’AUVERGNE, In Pol. lib. III, lect.
VIII; lib. IV, lect. I, II, III, IV etc.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009 97


JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

do Médico Paduano acerca desse assunto sejam bastante lacônicas. Com


efeito, ele diz que há dois gêneros de regimes políticos: um tempera-
do, o outro corrompido. No regime temperado o principans governa
em proveito do bem comum dos cidadãos, no corrompido, isso não
acontece.
Por sua vez, os dois preditos gêneros se dividem, respectivamente, em
três espécies, a saber, o temperado em monarquia real, aristocracia e repúbli-
ca e o corrompido em monarquia tirânica, oligarquia e democracia15 .
Um pouco mais adiante, com vista a caracterizar pontualmente
cada uma dessas espécies, Marsílio as contrapõe entre si:
Assim, a monarquia real é um governo temperado, no qual o
governante é um só e governa para o bem comum de acordo
com a vontade ou o consenso dos súditos.
Ao contrário, a tirania é um governo corrompido, cujo governante
é um só, mas exerce o poder em seu próprio benefício, não le-
vando em conta a vontade dos súditos.
A aristocracia é um governo temperado no qual governam so-
mente os notáveis, no entanto, para o bem comum, de acordo
com a vontade dos súditos e o consenso dos mesmos.
A oligarquia, seu oposto, é um governo corrompido, na qual gover-
nam alguns ricos ou poderosos, tendo em conta apenas o seu pró-
prio interesse e em desacordo com a vontade dos súditos.
A república, embora designe algo de comum a todo gênero ou
espécie de governo ou regime, conforme um dos significados desse
termo, significa, noutra acepção dessa palavra, uma espécie de go-
verno temperado, na qual todo cidadão pode participar de algum
modo das atividades governamentais ou do conselho, conforme
sua posição, capacidade ou condição. Visa o bem comum e está de
acordo com a vontade ou o consenso dos cidadãos.
A democracia, seu oposto, ‚ um governo no qual o vulgo ou
a multidão dos pobres determina o regime e governa sozi-
nha, não respeitando a vontade, ou não tendo o consenso

15. DP I, VIII, § 2, p. 104.

98 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009


A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

dos outros cidadãos, e desconsiderando o bem comum, na


devida proporção... 16
Do que acaba de ser visto, no tocante aos regimes ou às espécies
políticas temperadas, à parte as suas características específicas, fica um
pouco mais evidente a finalidade do poder político: o governante sem-
pre o exerce em função do bem comum dos cidadãos e sua legitimida-
de se estriba no consenso dos mesmos, concepção essa que entrelaça
intimamente a Ética e a Política, sendo aquela fundamento desta17 .
A propósito do regime República, Lagarde esclarece o pensamento
de Marsílio, afirmando que “...La timocratie a été comprise tantôt
comme une ‘république censitaire’, tantôt comme une ‘république·
militaire’. Apres d’autres, Marsile préfere parler de ‘politia’. Il la définit
comme le régime “dans lequel chaque citoyen participe en quelque
manière et à tour de rôle au gouvernement ou au conseil selon sa dignité,
ses facultés et sa condition, en agissant dans l’intérêt général avec l’accord
des citoyens’”18 .
Em boa parte do capítulo seguinte, o nono, ampliando mais ainda
suas reflexões sobre este assunto e, continuando a basear-se na Política
de Aristóteles, o Médico Patavino dedica atenção especial ao regime
monárquico, discorrendo a respeito de suas modalidades ou diferenças
específicas.

16. DP I, VIII, § 3, p. 105.


17. A propósito, nota J. QUILLET, op. cit., p. 119: “ ... Tout gouvernement est établi en
accord avec les sujets ou contre leur volonté. Le premier est le genre des gouvernements bien
tempérés, le second celui des gouvernements corrompus. Chaque type de gouvernement va alors
être jugé en fonction de cet accord, et de la conformité à une loi faite pour le bien commun des
sujets, ce qui revient au même, puisque...les sujets ne peuvent vouloir que leur bien, et une loi
tendant à ce but.
Par opposition se définit la tyrannie: c’est le gouvernement qui ne tient pas compte
de la volonté des sujets, et donc, du bien commun...”
18. Cf. G. de LAGARDE, op. cit., p. 125.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009 99


JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

Há cinco modalidades de monarquia. Na primeira delas, a mo-


narquia pode ser temporária ou hereditária e restringir-se apenas ao
comando do exército.
Na segunda, existente em certos países asiáticos, o poder político é
transmitido hereditariamente de pai para filho e o monarca governa no
próprio interesse, não no dos súditos. Ademais, as leis que são promulga-
das têm o mesmo escopo e, por isso, o regime, mais apropriadamente
pode ser designado por despótico e tirânico. Dada a índole servil de tais
povos e o atraso cultural em que vivem, somados à força do costume que
perdura há muito tempo, aceitam essa situação sem questioná-la.
A terceira modalidade difere das anteriores apenas pelo fato de, na
morte do monarca reinante, um outro rei ser eleito em seu lugar. Por
isso, o Filósofo designa-a por tirania eletiva19 .
19. DP, I, IX, § 4, p. 109-110: “... Segundo Aristóteles, na Política, livro III, capítulo
3o [14o], são cinco os meios pelos quais se estabelece a monarquia real. No primeiro,
escolhe-se alguém para exercer a função determinada de monarca, todavia, conforme o
regime da comunidade, por exemplo, o comando do exército, ou hereditariamente ou
apenas durante o tempo em que tal pessoa viver. Foi assim que Agamenão foi estabele-
cido como comandante do exército pelos gregos. Nas comunidades modernas esta
função é denominada capitaneato ou comando supremo do exército. Tal pessoa, em
tempo de paz, nunca podia se envolver com as questões judiciais. Mas quando o
exército estava em campanha, tinha o direito de punir com a morte ou com outro
castigo qualquer dos transgressores da ordem.
O segundo é aquele através do qual governam certos monarcas asiáticos, cujo
poder receberam de seus antecessores mediante o direito de sucessão hereditária, de
conformidade com a lei daquela região. Entretanto, reinam simplesmente em seu pró-
prio interesse não levando em conta o bem da coletividade. Portanto, é uma forma de
monarquia quase despótica. Os súditos de tais monarcas suportam esse regime com
paciência, devido à sua índole bárbara e servil, assim agindo por força do hábito. Esse
governo régio é herdado do pai, e os súditos se lhe submetem voluntariamente porque
os primeiros habitantes do lugar foram os antepassados do soberano. Mas de certa
forma, esse regime é também tirânico porque suas leis visam o interesse do monarca, não
do bem comum.
Um terceiro modo de governo real é aquele cujo primeiro a reinar foi eleito para o
cargo, de modo que ele não o exerce por força do direito de sucessão paterna ou

100 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009


A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

A quarta modalidade de monarquia é aquela em que o primeiro


rei daquela sociedade política foi escolhido mediante uma eleição, mas
com o direito de transmitir o seu poder aos descendentes, os quais
governam em proveito do bem comum. Segundo o Estagirita, ela
existiu apenas nos tempos heróicos, isto é, numa época em que os ho-
mens eram semideuses, tendo realizado façanhas de tal magnitude que
somente pessoas com esses atributos seriam capazes de fazê-las, ou
porque, devido às qualidades ou virtudes singulares que possuíam, fi-
zeram enormes benefícios aos seus súditos, por exemplo, congregan-
do-os e reunindo-os num dado território, o qual foi conquistado e
repartido entre eles ou obtido duma outra maneira qualquer20 .

hereditária, mas de acordo com uma lei que não tem em vista o bem comum, antes, pelo
contrário, apenas o do monarca. Daí tal lei ser quase tirânica. Por isso é que Aristóteles,
no mesmo passo de sua obra acima referida, denominou-a tirania eletiva. Tirania face ao
caráter despótico da lei, eletiva porque não era imposta aos súditos contra sua vontade”.
20. DP I, IX, § 4, p. 110-111: “O quarto modo é aquele cujo monarca é instituído
através de uma eleição com o direito à sucessão hereditária, e governa de acordo com leis
que se destinam integralmente ao bem comum. Este modo era o utilizado nos tempos
heróicos, segundo afirma Aristóteles no mesmo capítulo acima aludido. Denomina-se
aquela época de tempos heróicos, porque os astros produziam determinados homens
considerados heróis, isto é, seres divinos devido à grandeza de sua virtude ou porque
tais homens e não outros eram escolhidos príncipes em razão de suas virtudes e das
formidáveis e excelentes obras que realizaram, por exemplo, tendo conseguido reunir
um bom número de pessoas dispersas e congregando-as numa comunidade civil, ou
porque libertaram a região, mediante a luta e o emprego das armas ou ainda porque
talvez a tivessem comprado ou a adquirido de uma outra maneira adequada, e poste-
riormente a dividiram entre os súditos. Resumindo, eles foram eleitos príncipes com
direito à sucessão hereditária ou porque fizeram muitos benefícios à coletividade ou por
causa da excelência de suas virtudes em proveito da multidão, conforme declara uma
vez mais Aristóteles na Política, livro V, capítulo 5o. [VIII, 10o].
Talvez o Filósofo tenha incluído nessa espécie de monarquia aquela em que um só
homem é eleito por toda vida ou apenas por determinado período de tempo. Ele no-la
tornou compreensível distinguindo entre esta e aquela que chamou de tirania eletiva,
pois tal espécie de monarquia é comum a ambas.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009 101


JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

A quinta modalidade é aquela em que o rei governa como senhor de


todos os seus súditos, e, inclusive, dos bens deles e, a nosso ver, ela se
identifica bastante com a segunda e terceira modalidades antes referidas21 .
Do que foi exposto, tendo em vista o objeto que estamos a abor-
dar, notam-se alguns dados importantes: a) no caso da primeira moda-
lidade, as atribuições governamentais atribuídas ao monarca são mui-
to restritas e de sua competência ainda estava excluído o poder judici-
ário; b) tratando-se das modalidades dois, três e cinco, efetivamente,
não passam de variações da tirania ou do despotismo; c) nessas predi-
tas modalidades, o monarca não governa em benefício dos cidadãos
nem, tampouco, seu poder fundamenta-se no consenso dos mesmos.
Nos parágrafos imediatamente a seguir, até quase o final do capí-
tulo em apreço, o Médico Patavino acrescenta e destaca alguns aspec-
tos que julga relevantes com respeito à instituição do governante, a
saber: 1. a monarquia hereditária ou eletiva é o melhor dentre os regi-
mes temperados, desde que o rei tenha o apoio consensual dos cida-
dãos; que se legisle em proveito dos mesmos e que se governe segundo
o que as leis determinam22 ; 2. nos regimes temperados a eleição é o

21. DP I, IX, § 4, p. 110-111: “O quinto modo é aquele em que o príncipe é estabe-


lecido como senhor de todos que integram a comunidade. Ele dispõe dos súditos e de
seus bens e ainda dos bens reais a seu bel-prazer, da mesma forma que o pai de família
usa livremente de tudo que está em sua casa...”
22. DP I, IX, § 5, § 6, p. 111-112: “... Mas um dos tipos de governo temperado, e
provavelmente o mais perfeito, é a monarquia real.... Qualquer um dos casos citados
pode ser considerado como verdadeira monarquia real, na medida em que o soberano
respeite e se apoie na vontade consensual dos súditos e sempre exerça o poder de acordo
com as leis elaboradas para propiciar o bem comum a todos eles. Ao contrário, se o
monarca não agir assim, estará se comportando como um tirano. É por esse motivo que
se lê na Política, livro IV, capítulo 8o [VIII, 10o] o seguinte: eram as monarquias
simultaneamente legítimas – porque a realeza aí tinha sido aceita voluntariamente – e
tirânicas, enquanto o poder aí era exercido despoticamente e conforme o seu arbítrio, quer
dizer, do soberano. Portanto, essas duas características distinguem o governo tempera-
do do corrompido, e segundo inferimos com segurança da opinião de Aristóteles, o

102 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009


A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

procedimento mais usual para instituir ou estabelecer os governan-


tes23 ; 3. é importante e oportuno indagar, refletir e discutir se, entre as
espécies de monarquia eletiva, a melhor de todas é aquela em que: a) à
morte de cada rei, se escolhe ou não um novo monarca; b) à morte de
cada rei, se escolhe um novo monarca que deverá governar por um
prazo determinado ou durante toda sua vida24 ; 4. percorrendo a historia,
constata-se que os seres humanos, dotados com inteligência e liberda-
de, optaram por esse ou aquele regime político, embora, nem sempre
o escolhido fosse o melhor. Por isso, o Estado deve educar o povo,
com vistas a esse objetivo. Além disso, o mais razoável é que cada
povo, habitando num dado território com suas características próprias
e, consoante sua índole, descubra, mediante a experiência, qual é o
regime que mais lhe convém25 , a fim de que possa viver bem e que
o(s) governante(s) lhe possibilite(m) obter a vida suficiente.

consenso dos súditos é o indicativo melhor que diferencia uma da outra... As monar-
quias reais, eletivas ou não, apesar das diferenças entre si, possuem certa semelhança
pelo fato de, em ambas, o soberano governar de acordo com a vontade dos súditos.
No entanto, elas diferem porque em muitas das monarquias não eletivas, os sobe-
ranos governam súditos menos conscientes de seus direitos, cujas leis e características
políticas, por conseguinte, não visam o bem comum, como é o caso das leis bárbaras às
quais jáaludimos. Ao contrário, nas monarquias eletivas, o monarca governa muito mais
de acordo com a vontade dos súditos, promulgando leis mais políticas, conforme já
dissemos, que estejam em função do bem comum...”
23. DP I, IX, § 7 e § 8, p. 113: “... Será então oportuno aos mesmos [súditos] recorrer
à eleição. Esta nunca deixará de existir tanto quanto os seres humanos. Além disso,
obtém-se o melhor governante através dessa forma de escolha, e é oportuno que a
melhor pessoa se ocupe dos negócios políticos, pois, ela deve regular as ações civis dos
demais cidadãos. Na verdade, a maneira pela qual se instituem as outras espécies de
governos temperados é, na maior parte dos casos, a eleição, e às vezes, isso acontecia até
por sorteio, não se levando em conta o direito à sucessão hereditária...”
24. DP I, IX, § 9, p. 113.
25. DP I, IX, § 10, p. 113-114.

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JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

O assunto em exame não se esgota com o final desse capítulo.


Marsílio retoma-o novamente na mesma Parte I de seu tratado, no
capítulo XVI, o mais longo de todos26 .
À partida, continuando a apoiar-se em vários escritos de Aristóteles,
entre os quais a Política e a Retórica, o Filósofo Patavino apresenta uma
série de argumentos que justificam a precedência qualitativa do regime
monárquico hereditário sobre qualquer outro27 .
Lagarde torna a observar que os pensadores que antecederam o
Médico Paduano também tinham comentado as páginas do Estagirita
acerca desse tema, dizendo que:
D’une manière générale, la ligne de partage des opinions était
celle qui séparait les pays d’empire des territoires relevant des
grandes monarchies : Albert le Grand, Godefroid de Fontaines,
Engelbert d’Admont, avec des accents divers, célebrent des
avantages de l’élection, S. Thomas ne prend pas nettement par-

26. DP I, p. 162-181.
27. DP I, XVI, § §1-10, p. 162-168. Marino DAMIATA OFM, op. cit.,p. 183–184,
resume os mais importantes deles e outros mais alegados em favor dessa tese, dizendo o
seguinte: “... un monarca, il quale assume il potere succedendo al padre, mostrerà, se non
altro per proprio interesse, verso la civitas la stessa oculata premura che di solito si usa verso
un patrimonio privato27 sarà meno incline ad abusare dei propri poteri, nell’intento di
evitare malcontenti che potrebbero essergli fatali27; troverà facilmente consensi ed obbedienza
presso i sudditi, abituati ormai a rispettare la sua famiglía27; verrà circondato subito da
stima e d’altra parte il prestigio che lo circonda nel governare, gli proviene o dal fatto che
suoi predecessori hanno reso qualche straordinario servizio al paese o comunque per la ragione
che essi già emergevano fra i cittadini; non avrà bisogno di accaparrarsi i favori del popolo
mostrando una pericolosa indulgenza o impegnandosi in azzardate promesse, come non di
rado fa un neo-eletto. E ben conosciuto inoltre fiel suo carattere o nel suo tenore di vita sia
dai cittadini che dai pubblici officiali, mentre non puo dirsi altrettanto di un neo-eletto27;
con la sola sua presenza, essendo saldamente impiantato nella carica, stronca nei sudditi
desideri rischiosi, mosse temerarie per impadronirsi del potere; diversamente da un neo-eletto
– che ha poco tempo a disposizione, non restando a lungo in carica; travagliato da incertezze
e preoccupazioni per il suo avvenire politico, ecc. – non inclina a lasciare impuniti i reati,
specie se a commetterli sono persone potenti; infine – come si è già ricordato – la forma
monarchica sembra un governo naturale, anche per la sua larga diffusione, e come tale
quindi piu perfetta di ogni altra...”

104 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009


A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

ti, Pierre d’Auvergne et Gilles de Rome se font les apologistes


convaincus de la succession héréditaire...28
A seguir, em favor da monarquia eletiva, espécie essa que julga e
sustenta ser a melhor, apoiando-se em outros passos da Política de
Aristóteles, o Paduano passa a expor alguns argumentos que validam
sua tese, começando pelo principal deles: posto que todos os cidadãos
desejam o bem comum e a vita sufficiens, essa espécie de monarquia é
a única que pode lhes possibilitar escolher o melhor governante, o
qual irá concretizar esses objetivos. Não se tem a mesma certeza disso,
tratando-se da monarquia hereditária e, para comprovar essa asserção,
basta verificar a história de uns tantos reinos e ver se, de fato, seus reis
foram bons governantes29 .
Em segundo lugar, aqueles que têm o direito/dever de escolher o
rei, normalmente, consideram se os candidatos ao trono possuem as
virtudes da justiça e da prudência e, outras ainda, as quais farão com
que, uma vez eleito, o monarca governe bem. A monarquia hereditá-

28. La naissanece de l’esprit laïque ... p. 127. Nas notas de pé de página, o mencionado
estudioso cita as passagens dos autores citados, relativas a esse assunto.
29. DP I, XVI, § 11, p. 167-168: “... Havíamos dito, portanto, que é muito mais
razoável admitir que, para se alcançar a vida suficiente na cidade ou reino, é bem melhor
à mesma instituir cada futuro monarca por meio de uma nova escolha, do que indicá-
lo através do direito à sucessão hereditária.
O motivo de professarmos essa opinião é que, salvo raras exceções, pode-se indicar
o melhor monarca ou ao menos um satisfatoriamente bom. De fato, é mediante a
escolha do príncipe efetuada pelo legislador humano, que se obtém na maioria das
vezes, exceto ocasionalmente, o bem comum almejado pelos cidadãos... pois um
governante mais capaz é um fator indispensável para se atingir aquele objetivo, de
acordo com o que a experiência ensina e chegamos a tal dedução racional no capítulo
XIV desta parte da obra.
Por outro lado, a sucessão hereditária, condicionada não só ao nascimento, mas na
maior parte dos casos à sorte, não assegura com certeza, a indicação daquela espécie de
pessoa. Isto é um dado óbvio, se, recorrendo ao método indutivo, examinarmos a
história individual de cada reino, cujos monarcas foram indicados desta forma...”

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009 105


JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

ria não contempla essa possibilidade, posto que a linhagem não trans-
mite virtudes morais30 .
Em terceiro, o monarca reinante, ao desempenhar seu ofício de
juiz, o fará com muito mais justiça, desvelo e cuidado, seja porque seu
poder é limitado pelas leis, seja porque teme que alguém possa re-
presentar contra ele e, até mesmo vir a ser julgado, sentenciado e puni-
do em razão das falhas que tiver cometido. Além disso, pensando numa
próxima eleição real, esse monarca irá zelar para que seus filhos ve-
nham a ser educados no caminho das virtudes e, estes, por razão seme-
lhante, não só cumprirão bem com suas obrigações, mas também irão
se esmerar na pratica das mesmas, pois, no futuro, poderão vir a cogi-
tados como candidatos à realeza. Em geral, na monarquia hereditária,
não se verificam essas preocupações e comportamentos31 .

30. DP I, XVI, § 12, p. 168: “Todas as qualidades antes mencionadas como absoluta-
mente indispensáveis para um monarca hereditário exercer o poder, quase sempre
também serão consideradas por ocasião de uma nova escolha, mas o fato oposto, não
acontece na maioria das vezes...”
31. DP I, XVI, § 13, p. 168-169: “... Além disso, o monarca reinante, tendo em vista
a nova escolha do futuro rei, serámuito mais diligente ao proteger as pessoas e os bens
da sociedade civil, primeiramente devido à sua virtude, pois devemos supô-lo virtuoso
pelo fato de ter sido escolhido como tal, em segundo lugar, pelo fato de temer que se
façam representações contra ele, e em terceiro lugar, por ainda vir a ser merecedor de
uma nova indicação na pessoa de seu filho.
Ele igualmente zelará com enorme solicitude pela educação de seus herdeiros, e
eles, atentos à nova escolha futura, também se empenharão firmemente não só em
adquirir as sobreditas virtudes mas também em cumprir com suas obrigações. Logo,
com toda probabilidade, tornar-se-ão idênticos a seu pai na virtude, e tanto por causa
dos seusméritos pessoais como da obediência habitual que lhe devotam, serão condu-
zidos ao poder mediante uma nova indicação, nele permanecendo enquanto agirem
assim.
O que professamos acerca desse assunto está em perfeito acordo com os ensina-
mentos de Aristóteles externados na Política, livro I, capítulo 9o [12o], II, capítulo 2o
[11o] e 9o, VII, capítulo 12o [14o]...”

106 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009


A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

A seguir, refutando os argumentos arrolados em favor da monar-


quia hereditária, Marsílio aproveita da ocasião para aclarar e funda-
mentar ainda mais sua tese favorável à monarquia eletiva32 .
De fato, por ter sido eleito por causa de suas virtudes e qualidades
pessoais, esse monarca tem uma preocupação e um zelo muito maior
com o bem comum e, ainda como rei, quer ser respeitado, obter pres-
tígio e honra e, após a sua morte, vir a ser relembrado como um bom
governante33 . Esse argumento responde à instância apresentada por
Egídio Romano, no seu De regimine principum34 , segundo o qual, a
monarquia hereditária é preferível à eletiva, porque os herdeiros e su-
cessores duma mesma estirpe terão muito mais desvelo para com o
bem comum, porque consideram o reino como uma propriedade pes-
soal que é legada do pai ao primogênito.
Em segundo lugar, assevera Marsílio, com absoluta certeza, nin-
guém pode garantir que um monarca hereditário seja menos despota,
em razão de a sua linhagem estar acostumada a exercer o poder. Essa é
a resposta ao argumento também apresentado por Egídio Romano35 ,

32. A propósito, cf. as observações de DAMIATA OFM, M. op. cit., p. 184-187.


33. DP I, XVI, § 15, p. 169: “... Rebate-se tal tese dizendo que um monarca indicado
mediante uma nova escolha terámuito maior preocupação com o bem comum, porque
sabe-se através dum raciocínio indutivo que, na maioria das vezes, ele é prudente e bom.
Na verdade, a pessoa virtuosa que dá origem à sucessão pode, na maioria das vezes, ser
escolhida pela indicação, enquanto o inverso nem sempre acontece. Um tal príncipe,
agindo conforme sua virtude pessoal e civil, tendo em vista alcançar o melhor fim possível
de ser obtido neste mundo, quer dizer, atuando graças à virtude, e querendo ser respeitado
e adquirir uma boa reputação e ainda ser lembrado pela posteridade, se preocupará com o
bem comum ou a coisa pública tanto ou mais do que o monarca hereditário, pois este,
sabendo previamente que seus herdeiros o sucederão no governo, se não for uma pessoa
virtuosa e se não tiver medo de sofrer alguma representação da parte de alguém, caso
cometa algum delito, não daránenhuma importância àquele objetivo...”
34. Cf. III, II, 5.
35. De regimine principum, III, II, 5.

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JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

de acordo com o qual, os monarcas eleitos mais facilmente se tornam


tiranos, porque nao estão habituados a exercer o poder. Na verdade,
um rei torna-se um déspota, ou por imprudência política ou por mal-
dade ou, ainda, por ambos os motivos e, especialmente, quando pre-
sume poder agir mal, sem que, por esse motivo possa vir a ser punido.
Entretanto, um monarca eleito, por ser virtuoso, sempre evitará tor-
nar-se um déspota e, se por ventura agir mal, como foi dito, corre o
risco de vir a ser julgado, condenado e punido36 .
Para mais, podem ser considerados como argumentos inconsis-
tentes as alegações hipotéticas, segundo as quais: a) os súditos não iri-
am obedecer cada novo monarca eleito do mesmo. Na verdade, pou-
co importa quem seja o monarca, as leis estipulam os deveres que os
cidadãos têm de cumprir37 ; b) uma dinastia seria merecedora de legar
o poder real a seus descendentes, em razão dos benefícios que propor-
cionou aos seus súditos e os reis virtuosos sempre educam seus filhos
na prática das virtudes. Essas asserções não são verdades absolutas que
ocorrem sempre e em toda parte38 ; c) a monarquia hereditária é a

36. DP I, XVI, § 15, p. 170: “... O governante torna-se um déspota ou por imprudên-
cia ou malícia ou por ambos motivos, e acrescente-se ainda, principalmente quando
aspira poder agir mal impunemente.
O monarca designado por uma nova escolha é, na maior parte dos casos, mais
prudente e melhor do que o rei com direito à sucessão hereditária, porque devido à sua
virtude, evitará fazer o mal. Além disso, se o praticar, arrisca-se a não ficar impune e a
sofrer, com mais freqüência, representações contra sua pessoa. O monarca hereditário
não corre tais riscos porque um descendente o sucederáno poder...”
37. DP I, XVI, § 16, p. 171: “... Ademais, o costume da obediência, analogamente
está fixado nas leis e pelo governo, e, ao contrário, relativamente à pessoa do príncipe.
Por esse motivo, nota-se que todos sempre respeitam em pensamento e nas ações o
governo e as leis, todavia, muitas vezes em seu íntimo desprezam o governante, face à
sua incompetência. Mas, vê-se que o fato oposto não éverídico. Considerando que na
maioria das regiões a totalidade dos súditos está habituada a obedecer às leis e ao
governo, uma substituição da dinastia reinante não é mais prejudicial tanto quanto é
menos útil a sua capacidade, caso o príncipe seja eleito novamente...”
38. Cf. DP I, XVI, § 17, p. 172-174.

108 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009


A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

espécie a mais comum em quase todos os reinos, logo, é a mais perfei-


ta. Na verdade, essa asserção é um sofisma, porque, avalia-se a perfei-
ção de um ser, não pela quantidade dos mesmos, mas por suas quali-
dades e, em comparação com outros seres da própria e de espécie dife-
rentes, apesar de essa comparação também ser relativa39 .
De seguida, Marsílio passa a tratar dos principais riscos que pode-
riam prejudicar a opção dos cidadãos pela monarquia eletiva. Um de-
les, concerne ao candidato ao trono e aos eleitores e se desdobra nos
seguintes aspectos: a) pode acontecer que não haja candidatos virtuo-
sos. O Paduano refuta dizendo que se trata de algo quase impossível
de acontecer; b) pode faltar consenso entre os eleitores, quanto a esco-
lher alguém que possua as sobreditas virtudes, fatos esses que poderão,
por exemplo, gerar uma guerra civil ou se deixarem levar por seus
maus sentimentos e acabarem por escolher um mau governante. Tais
argumentos se encontram no Comentário à Política de Aristóteles40 de
Pedro de Alvérnia (falecido em 1304). Essas instâncias se redarguem,
diz o Médico Paduano, tendo-se presente que a eleição deverá sempre
ser efetuada por pessoas virtuosas e prudentes, as quais dificilmente
procederiam daquele modo e, se por ventura se comportassem daque-
le jeito, assim mesmo, ainda vale a pena apostar na monarquia eletiva,
pois, como antes já foi dito, essa modalidade é a única que possibilita

39. DP I, XVI § 23, p. 178-179: “... No entanto, qualquer ente não é mais natural e
perfeito do que outro que pertença a uma espécie diferente. Se assim não fosse, o artesão
seria mais perfeito do que o metafísico e o artesanato do que a metafísica ou do que
qualquer outra ciência especulativa. Aliás, jádissemos anteriormente que isso não é uma
verdade necessária.
A monarquia eletiva não é sempre uma privação da hereditária e tampouco reci-
procamente. Na verdade, são espécies distintas uma da outra, incompatíveis simultane-
amente a uma mesma pessoa à frente de determinada sociedade civil...”
40. P. D’AUVERGNE, op. cit.,” livre III, lect. XIV, p. 176 de l’édition Marietti ”. É
oportuno ressaltar que esse pensador, discípulo do Angélico, deu continuidade àquele
comentário, deixado incompleto por seu mestre na Universidade de Paris.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009 109


JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

escolher o melhor governante, o qual sempre está preocupado com o


bem comum41 .
Quanto ao argumento em que se afirma que a monarquia heredi-
tária tanto impede que os cidadãos venham a exercer o poder, dado
que é algo que lhes é indevido, quanto evita que tenham esse desejo, é
uma asserção verdadeira. Todavia, é preciso levar em conta, de um
lado, que os cidadãos cientes de que, por exemplo, há muito tempo
são governados por reis menos virtuosos e menos dignos do que eles e,
assim mesmo não têm a chance de ascenderem ao trono, um dia, aca-
barão por se rebelar contra a estirpe reinante42 . Por outro, quando
41. DP I, XVI, § 19, p. 174-175: “... Responde-se a tais problemas, dizendo que a
modalidade de escolha apresentada por nosso oponente, isto é‚ a escolha dum governante
com direito à sucessão hereditária incorre bem mais no primeiro dos problemas referi-
dos, do que o outro procedimento, porque à época do surgimento das sociedades civis
havia um número bem reduzido de homens prudentes. Em vista disso, poderia ter
ocorrido uma falha na designação do monarca que viesse a prejudicar muito mais a
coletividade durante um espaço de tempo bem maior.
Quanto ao outro problema... acerca da desavença entre os eleitores, se bem que
possa vir a acontecer... no entanto, ele não reforça a tese de que uma nova escolha do
monarca futuro seja menos boa do que uma designação única que conduz ao poder um
príncipe com todos os seus descendentes.
Na verdade, a escolha sempre é feita tendo-se em vista o bem comum, o qual na
maioria das vezes é frequentemente querido pelo legislador humano... Todavia, consi-
derando que [os eleitores são pessoas virtuosas]... absolutamente não é verdade que, na
maioria das vezes, elas estejam em desacordo ou se deixem levar por suas más inclina-
ções. Esta é a resposta ao terceiro dos problemas correlatos anteriormente apresentados.
42. DP I, XVI, § 21, p. 177: “... A maioria dos cidadãos vendo que freqüentemente é
governada por pessoas menos dignas do que ela quanto à virtude, e apesar disso conti-
nua à margem do poder, e que não dispõe de tempo para cultivar as virtudes, mediante
as quais se tornaria digna de governar, ou que, embora usufruindo de tempo para fazer
isso, continua alijada do governo que muitas vezes lhes compete aspirar, em face de tais
motivos justos seguramente fomentará uma revolta. Todavia, com certeza, não faria
isso, se pudesse, numa ocasião adequada, chegar ao poder, mediante uma escolha.
Ora, considerando-se que a maior parte dos cidadãos é prudente e virtuosa, não
tentará insuflar uma revolta, a menos que ocorra uma grave injustiça, pois, como disse-
mos anteriormente, um legislador ou um príncipe virtuoso, tal qual é na maioria das

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A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

alguém efetivamente virtuoso quer reinar, essa pessoa não é movida


pelo orgulho, pela presunção, pela ambição ou ainda por todos esses
defeitos juntos, mas porque tem consciência de que pode vir a fazer
um bom governo em proveito de todos. Ora, só a monarquia eletiva
possibilita essa hipótese43 .
Também carece de base o argumento, segundo o qual, receando
que seus filhos venham a sofrer perseguições dos poderosos, de seus
aliados e parentes, apesar de estes delinquirem transgredindo as leis, os
monarcas eleitos não têm coragem de julgá-los e de puni-los. Na ver-
dade, em razão do dever inerente ao seu ofício, o rei atual ou o próxi-
mo, posto que, assim determinam as leis, terá de julgar e condenar
qualquer um que venha a transgredi-las44 .

vezes, uma pessoa escolhida por meio duma nova eleição, jamais liderará seus concidadãos
com vista a alcançar aquele propósito. Na verdade, um príncipe virtuoso e um legisla-
dor, em quase todas as circunstâncias, tendem a fazer o que é justo, conforme aludimos
antes nos capítulos XIII e XIV...”
43. DP I, XVI, § 21, p. 177-178: “... No que tange àquela outra assertiva de nosso
opositor, segundo a qual, é uma atitude ambiciosa ou pretensiosa da parte dos cidadãos
querer o poder, redarguimo-la dizendo que ele não estáfalando a verdade, pois quando
isso acontece com uma pessoa virtuosa, não se trata de um gesto ambicioso, temerário
ou orgulhoso, porque esse comportamento é antes fruto da aspiração de querer fazer
uma obra magnânima plena de virtude social, de modo que por isso mesmo, o mérito
de tal pessoa em obter o principado é bem maior do que o seu próprio desejo. Daí,
Aristóteles declarar na Ética, livro IV, que não é contrário e impróprio à virtude, uma
pessoa magnânima desejar grandes honrarias...”.
44. Ibidem, § 22, pág. 178: “O que nosso oponente ainda acrescentou após ter apre-
sentado esses argumentos, isto é, que o monarca que não lega o poder a seus herdeiros
não ousará denunciar os poderosos à justiça para serem castigados, se por ventura
tiverem cometido delitos, tornando-se merecedores de castigos físicos ou até mesmo da
pena capital, porque receia que venham a fazer mal aos seus filhos, rebatemos essa
opinião afirmando que tal monarca não terá medo de cumprir com o seu dever por
causa de sua força de espírito.
Os poderosos, uma vez conduzidos à justiça, se tiverem que sofrer uma punição de
acordo com a lei, face aos seus deméritos, não sentirão muito ou quase nenhum ódio do

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JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

Enfim, observa Marino Damiata:


...similmente si dica riguardo alla convinzione che la monarchia
meglio esprimerebbe l’unità della civitas, corrispondendo in
certo modo al governo che Dio fa dell’universo: si fonda più
sull’apparenza che sulla realtà, poiché non tanto bisogna
preoccuparsi di una somiglianza esteriore, quanto piuttosto di
una corrispondenza che miri in profondo. L’unità di una civitas
cioè scaturisce dall’adesione dei cittadini alla sua costituzione
ed ethos, nonché dai nessi che legano fra sé le varie partes, non
dalla riproduzione artificiale di un qualche modello, replica
Marsilio con la saggezza di chi ormai è abituato a guardare in
profondità nella vita politica...45
Como fica evidente do que acabamos de expor, não basta que os
cidadãos escolham o governante mais virtuoso, optem pelo melhor
regime político possível e sua modalidade mais perfeita, a monarquia
eletiva; que os legisladores façam as melhores leis tanto em proveito
do bem comum, quanto para balizar a conduta governamental do
principantis. É preciso também não ignorar o fato de que, muitas ve-
zes, a condição humana faz com que as melhores pessoas se deixam
levar por suas inclinações sensuais ou paixões. Os governantes não es-
tão isentos desta sina e a história, inclusive a de nosso tempo, registra e
comprova sobejamente esse fato.
Por isso, resta verificar o que Marsílio de Pádua diz que os cida-
dãos podem e devem fazer, caso o princeps exerça mal o seu poder.
No entanto, convém relembrar que, antes mesmo de a Ética a
Nicômaco e a Política de Aristóteles estarem circulando nos ambientes
escolares de época, (c. 1260), outros pensadores já tinham tratado des-
monarca ou de seus filhos nem quererãose vingar, porque sabem perfeitamente que a
justiça deve ser feita por este ou por um outro príncipe qualquer.
Mas se os poderosos vierem a sentir ódio juntamente com um sentimento de
vingança, ou por causa de sua ignorância ou de sua malícia ou de ambas, não tentarão
perpetrá-las, receando o legislador e o príncipe futuros, por quem ou por seu antecessor,
certamente serão ou teriam sido castigados...”.
45. Op. cit., p. 187.

112 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009


A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

sa questão, como João de Salisbúria (c. 1115-1180) que, no seu


Polycraticus (1159)46 , propôs abertamente o tiranicídio. Igualmente,
sem professar o radicalismo do Mestre Inglês, Tomás de Aquino OP
em diversos de seus escritos47 também invectivou duramente a tirania
e o tirano. Do mesmo modo, também, se posicionou Egídio Roma-
no OSA no seu De regime principum.
Além disso, obviamente, sem querer identificar o rex inutilis com
o tirano e com o mau governante, embora haja muita coisa em co-
mum entre eles, é oportuno recordar que não muito tempo antes de
Marsílio, em muitos reinos, senão o povo, ao menos setores represen-
tativos da sociedade reclamavam ao papa da confusão em que o seu
país estava mergulhado por causa do mau rei que tinham, como ocor-
reu com D. Sancho II (1223-1245) de Portugal, afastado do poder
por Inocêncio IV (1243-54) que também depôs o imperador Frederico
II (1215-50) por causa de suas arbitrariedades contra a Igreja e, ainda,
com Eduardo II da Inglaterra (1307-27), destituído pelo Parlamento,
por considerá-lo incompetente para reinar. Entretanto, na economia
do pensamento político do Paduano, segundo a qual todos os eclesiás-
ticos têm um único e idêntico sacerdócio e não possuem nenhuma
espécie de poder48 , estava fora de cogitação que o Sumo Pontífice
pudesse ser uma instância de recurso em tal caso49 .

46. III, 5, PL CXCIX, 512.


47. Cf., por exemplo, In Sent., II, dist. 44, qu. 2, a 2; S. Th., IIa IIae, qu. 42, a. 2; Reg.,
I.VI, 7.
48. Cf. DP II, IV-V, p. 201-271.
49. G. de LAGARDE, op. cit., p. 130: “... Marsile se borne à défendre en quelques pages
le droit du peuple de corriger le prince, en l’engageant à en user avec modération, et ne
propose aucune institution permettant de concrétiser ce droit éventuel du peuple, qui n’a été
contesté par aucun écrivain politique du moyen âge. Tout le monde proclame ce droit.
Personne ne songe à le garantir par une institution précise. Marsile ne fait pas exception à
la regle. Plusieurs textes de la deuxième Dictio et du Defensor minor indiquent même à
l’évidence, que 1’on ne pose le príncipe de la correction du prince par le peuple, que pour
retirer au sacerdoce toute possibilité d’intervenir à cette occasion... ”.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009 113


JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

O Médico Patavino introduz o assunto em apreço, fazendo uma


breve comparação muito apropriada entre a ação que o governante
exerce na sociedade e a função que o coração desempenha no corpo
humano, a qual ele colhe nos escritos do Estagirita50 . Ambos atuam
como motores, não como seres movidos e, por isso, respectivamente,
não são controlados ou por ninguém ou por nenhum outro órgão51 .
Entretanto, antes dele, outros pensadores, como João de
Salisbúria ou o anônimo autor do opúsculo Rex pacificus, escrito à
época do conflito entre Bonifácio VIII (1294-1303) e Felipe IV da
França (1285-1314), já tinham feito semelhante comparação, até
mesmo mais detalhada52
Todavia, apesar disso e ainda que a(s) pessoa(s) mais virtuosa(s)
deva(m) ser escolhida(s) como governante(s), posto que ele é um ho-
mem como qualquer outro, isso faz com que, muitas vezes, o principans
também não apenas possa vir a ser enganado e ou se equivoque a res-
peito das coisas, mas até mesmo se deixe levar por suas inclinações
sensuais e, se por ventura tal fato ocorrer, estando ele a exercer o cargo
que lhe foi atribuído e vier a desrespeitar aquelas leis que regulam sua
conduta como tal, isso poderá causar graves prejuízos às pessoas e à
sociedade, de modo que, então, ele se torna passível de ser julgado e
condenado. Com efeito, se não fosse desse modo, o princeps se trans-

50. Cf. Marsílio já tinha feito essa analogia em I, XV, § 7, p. 157-158.


51. A propósito, escreve Marino Damiata: “... La sua carica e la sua funzione sono state
create, perché è scontato che nella vita civile nascano contrasti e liti, che se non fossero sopiti
e risolti tempestivamente con equità, altrettanto fatalmente in breve tempo porterebbero al
naufragio della civitas. Ecco per qual motivo Marsilio, che vantava conoscenze e pratica
medica, scrive che l’attività dei principans è paragonabile a quella del cuore, che non
conosce soste. D’altra parte, se questa persistente operosità non fosse sorretta ed illuminata dal
sentimento della giustizia, finirebbe con l’infettare tutto il corpo sociale, per cui sarebbe
praticamente inutile, che la sua struttura costituzionale di per sé fosse salda e le sue leggi
encomiabili...” (DAMIATA, OFM, M. op. cit., p. 189).
52. Cf. Polycraticus, I, V, PL CXCIX: 540-588.

114 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009


A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

formaria num déspota, os cidadãos seriam transformados em escravos


e não conseguiriam obter a vita sufficiens e o bem comum53 .
Portanto, dado que é o legislador humano que institui o governante
e ou atribui essa incumbência a outrem, é igualmente da sua alçada ou
daquelas pessoas a quem ele delegar essa competência, julgá-lo, sentenciá-
lo e puni-lo, na forma da lei. Antes, porém, tais pessoas deverão afastar
o governante do seu cargo e mantê-lo longe do mesmo enquanto du-
rar todo o processo, a fim de que, de um lado, possam livremente e
sem pressão alguma exercer aquela tarefa e, de outro, que os cidadãos
não se revoltem contra aquela situação perniciosa à sociedade civil54 .
Em seguida, Marsílio passa a tratar dos tipos de delitos que o prín-
cipe pode vir a cometer, da periodicidade dos mesmos e se estão ou
não previstos nas leis.

53. DP I, XVIII, § § 2 e 3, p. 190-191: “... É por esse motivo que ele e seus atos se
constituem na medida reguladora de toda ação civil, pouco importa quem a realize... do
mesmo modo que um coração normal regula e mensura, por meio de sua influência ou
ativiade as outras partes do organismo e nunca é controlado pelas mesmas... Mas
considerando-se que o príncipe é um ser humano, dotado de inteligência e vontade, e
como tal poderá receber outras formas, por exemplo, uma opinião falsa ou sentir um
desejo mau ou até ambos, por meio dos quais pode vir a atuar em desacordo com o que
determina a lei, torna-se, por conseguinte, passível de vir a ser igualmente julgado e
controlado de acordo com a mesma, por aquela pessoa que dispõe de autoridade para
fazer isso. Caso contrário, todo governo se transformaria num despotismo, os cidadãos
seriam reduzidos à condição de escravos e não obteriam a vida suficiente...”.
54. DP I, XVIII, § 3, p. 191: “... Portanto, cabe ao legislador ou àquela ou àquelas
pessoas indicadas por ele, segundo comprovamos nos capítulos XII e XV desta parte, o
mister de julgar o príncipe delinqüente, face aos seus deméritos ou à violação da lei, e
ordenar a execução de qualquer medida punitiva contra ele.
É oportuno ainda que a pessoa ou as pessoas incumbidas de julgar o delito come-
tido pelo príncipe, durante o tempo em que for necessário, o afastem de seu cargo, a fim
de que, na hipótese de haver muitos governantes, não sobrevenha consecutivamente
uma revolta, um cisma e uma guerra intestina causadora de grandes males à comunida-
de. Ademais, o príncipe não estásendo corrigido enquanto tal, mas na condição de
transgressor da lei.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009 115


JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA

Assim, se o governante cometer um delito grave, tal como, atentar


contra a estabilidade do regime ou contra a vida de qualquer pessoa, terá
de ser julgado, sentenciado e punido consoante o que determinam as leis
sobre esse assunto, porquanto essas ações têm uma repercussão nociva à
sociedade e até poderão levá-la à desestabilização. Caso não estejam previs-
tos em lei, deverá sê-lo conforme a sentença do legislador55 .
Embora Marsílio não arrole quais seriam os delitos leves que o
princeps possa ocasionalmente vir a cometer, continuando a seguir as
pegadas de Aristóteles acerca desse tema, ele propõe que o principans não
seja punido, muito menos afastado do poder, tanto porque ele passaria a
ser menosprezado pelos cidadãos, quanto porque poderia tomar a ameaça
de castigo como uma afronta pessoal e, ainda, os cidadãos vendo a autori-
dade fragilizada, passariam a desrespeitar as leis, fatos esses tremendamente
prejudiciais à estabilidade social e política56 .

55. DP I, XVIII, § 4, p. 192: “... Por conseguinte, se o governante cometer uma falta
grave, pouco importa se ocasional ou regularmente, por exemplo, atentar contra a
estabilidade da república ou contra a vida de uma pessoa importante ou de uma outra
qualquer, deverá ser castigado, pois se não o for devidamente, com certeza ocorrerão ao
mesmo tempo ou em seguida, uma indignação e revolta populares, a perturbação da
ordem e a destruição da sociedade civil.
Se a falta cometida estiver regulamentada pela lei, o príncipe dever ser corrigido de
conformidade com a mesma, mas se não estiver, ele o deverá sermediante a sentença do
legislador, embora seja oportuno que, na medida do possível, os delitos e os castigos
correspondentes estejam regulamentados pela lei, como já dissemos antes, no capítulo
XI desta parte...”
56. DP I, XVIII, § 5, p. 192: “... Por outro lado, o governante poderá cometer uma
falta leve, rara ou freqüentemente. Na hipótese de ocasionalmente cometer uma falta
leve, será melhor ignorá-la do que corrigi-lo, pois se o príncipe vier a ser punido nesta
circunstância, acabará por ser menosprezado, o que é duplamente um prejuízo não
desprezível, primeiramente porque os cidadãos passarão a respeitá-lo menos ainda do
que normalmente fazem e desejarão violar as leis.
Em segundo lugar, porque o governante não querendo ser castigado por causa de
algo irrelevante, tomaria a punição como um ato de descaso à sua pessoa, nesta situação
ainda poderia haver um grave escândalo na comunidade. Por tais motivos, não se deve
cogitar num castigo a ser aplicado ao governante que vier a cometer raramente uma falta
leve, pois dessa punição com certeza não resultará nada de proveitoso a ninguém, antes
pelo contrário, advirão aqueles mencionados prejuízos...”.

116 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009


A CAUSA FINAL DO PODER DO PRINCIPANS ...

Tratando-se, porém, de delitos leves, sem, no entanto, especificar


quais sejam, cometidos com certa regularidade pelo governante, o
Médico Paduano diz que devem estar previstos pela lei e ele tem de ser
julgado, sentenciado e punido, pois, com o tempo, eles acabarão por
afetar o Estado e a sociedade57
Para além dessas considerações muito gerais, não há nada mais so-
bre esse tema no Defensor da paz. A razão do silêncio de Marsílio, no
entender de Jeaninne Quillet, com quem concordamos somente em
parte, de um lado, está vinculada à lógica de seu sistema político: o
governante não pode ser nem mau nem ignorante [o grifo é nosso: será?],
nem está acima das leis e, ademais, tem por obrigação fazer com que
elas sejam cumpridas por todos. Por outro, levando-se em conta que o
princeps foi exclusivamente investido com tamanha autoridade, a ra-
zão disso é que ele deve evitar dois perigos muito maiores do que os
decorrentes das eventuais faltas que possa vir a cometer, nomeadamen-
te, a dissolução da paz e a destruição da própria cidade/Estado58 .

57. DP I, XVIII, § 7, p. 193: “... Mas se o príncipe cometer uma falta leve com certa
regularidade, a mesma dever estar regulamentada pela lei e ele deveser adequadamente
punido, pois mesmo tratando-se de uma falta leve, repetida com freqüência, acabará por
causar transtornos à comunidade, da mesma maneira que, de acordo com o que está
escrito na Política, livro IV, capítulo 4o [VIII, 8o], as despesas irrisórias repetidas com
freqüência consomem as fortunas, quer dizer, as riquezas, porque o conjunto ou o todo não é
pequeno, embora se constitua de somas pequenas...”
58. Cf. Op. cit., p. 123-124: “... Cette discrétion tient à deux raisons d’égale importance:
la première est liée à la logique du systeme de l’organisation politique. Le prince appelé au
pouvoir dans les conditions requises, au plan de la perfection, ne peut être ni méchant, ni
ignorant. En théorie, il est la pars executiva ou instrumentalis de la loi; en fait, il finit par
l’incarner. Retenons pourtant que, fidèle à la doctrine romaine, Marsile ne dit jamais que
l’Empereur est au-dessus des lois. Pourtant, l’affirmation de la supériorité du regne de la loi
sur celui des hommes ressortit davantage à l’exposé rhétorique qu’à une nécessité objective de
sa pensée.
La seconde raison est solidaire de la première: si le prince est investi d’une telle
autorité, si entière et si exclusive, c’est pour éviter un danger bien plus grand que celui
d’éventuels abus du prince, à savoir la destruction de la paix et de la cité elle-même...”

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 91-117, jul./dez. 2009 117


COMENTÁRIOS
[METÁFORAS DO SABER E DA LUZ]

[METÁFORAS DO SABER
E DA LUZ]
Hermógenes Harada*

... Existe um antigo conto chinês sobre a limitação do nosso saber


objetivo.
“És ou não és?”, a luz perguntou ao nada.
A luz não recebeu resposta e fixou os olhos no nada.
O nada era escuro e vazio. O dia todo a luz experimentou ver. Mas
não pôde ver o nada. Auscultou. Mas não o pôde ouvir. Tentou tocá-
lo. Mas não o pôde encontrar.
“Oh!”, disse a luz consigo mesma, “isto é pois o máximo! Quem
pode atingir uma tal altura?! Eu posso saber que não sei o que é o nada.
Não posso, porém, não saber que não sei o que é o nada. Se sei que
não sei o que é o nada, resta sempre ainda o saber do meu não saber.
Como pode alguém alcançar essa culminância?!” (Tschuangtse, O in-
visível, o inaudível e inconcebível).
O que Tschuangtse chama de culminância, isto é, o limite supre-
mo do saber nos parece um absurdo.
Como deveria ser essa culminância?
Tschuangtse diz: o não saber o meu não saber!
Mas isso é nada, uma absoluta não-consciência, uma total escuridão!
Exatamente.

* Extratos de textos parcialmente já publicados. O título Metáforas do saber e da luz não


pertence aos textos originais.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 121-128, jul./dez. 2009 121


HERMÓGENES HARADA

Mas como pode uma tal escuridão ser o máximo saber?


Conta-nos a fábula que o sapo do poço perguntou: “A Terra é tão
grande como o meu poço?”
A Terra não cabe no poço. Pois é o poço que está contido na Terra.
Enquanto o sapo tenta compreender a Terra a partir e dentro do
poço, isto é, na perspectiva, na ótica, no objectivo do poço, a Terra
jamais se lhe revelará como Terra. A partir e dentro do seu poço, a
linguagem do sapo só pode ser esta: a Terra é maior, menor do que ou
tão grande como o meu poço?!
Maior, menor, tão grande têm o seu ponto de referência no mundo
do sapo, a medida do saber do batráquio é o seu poço. O que não cabe
dentro dessa medida é invisível, inaudível, inconcebível.
Mas digamos que o nosso simpático batráquio é um pensador. Ele
reflete. Surge-lhe aos poucos uma vaga suspeita de que a Terra, o além-
poço é maior do que o seu mundo. A essa altura da sua reflexão ele
dirá: “Suspeito que a Terra seja muito maior do que a minha casa”.
Logo, porém, se corrige: “Maior, menor, tão grande são termos com-
parativos. A comparação só tem sentido dentro de uma medida a partir da
qual posso comparar. Essa medida no entanto só diz respeito ao meu
mundo. Pois ela nasce, vive e opera a partir e dentro do meu mundo”.
Perplexo e humilhado: “A única coisa que posso saber da Terra é
que ela é não-poço. O poço é meu mundo. Tudo. Todos os entes reais
e possíveis no meu mundo. Ser. Portanto, o não-poço significa: não-
tudo, nenhum ente real ou possível no meu mundo, nada”.
Mas de repente lhe estala uma intuição: “Donde vem a suspeita do
além-poço? Como posso falar do nada, do não-tudo, do não-Ser, se o
‘outro’ não está de alguma forma já presente ‘em mim’? Se estou real-
mente preso irremediavelmente no meu poço, nem sequer poderia
suspeitar do não-poço!”

122 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 121-128, jul./dez. 2009


[METÁFORAS DO SABER E DA LUZ]

O sapo foi atingido, tocado por “algo” que não é ele mesmo. Esse
evento no entanto, em vez de lhe facilitar o seu saber, revela-lhe preci-
samente agora o seu próprio saber como a questão fundamental da sua
vida, como o peso que lhe impede o salto para aquilo que vislumbrou
no in-stante do toque. Pois, ao tentar ver, auscultar e tocar a presença
do outro desvelado na suspeita momentânea, percebe que já o definiu
como não-ser, como não-algo, como nada, como algo sob a medida
do seu poço. Assim, surge nitidamente a questão-culminância do seu
saber: como não saber o meu não saber?
Continuemos mais um pouco a fábula.
Na terra que cercava, como paredes do poço, o sapo, vivia uma
minhoca. Sua morada é Terra. Todo o seu corpo, o seu ser é como que
a continuação da Terra. Está envolvida, situada, integrada nela. Como
o peixe vive na água, a minhoca vive, in-siste no húmus, no suco da
Terra. Por assim dizer, a minhoca é a carni-ficação da Terra, o lugar
onde a Terra se abre e se re-colhe como sensibilidade, ressonância e
concentração. A minhoca é a consciência, o tacto, o órgão-sentido, a
vida da Terra.
Por isso, em todo o seu corpo de Terra, a minhoca registrava todas
as vibrações, toda a escala de intensidade do ser-Terra.
Certa vez, a minhoca ouviu o monólogo do sapo que se pergunta-
va: “A terra é maior do que o meu poço?” A minhoca falou com seus
botões: “Creio que não há resposta para essa pergunta. Pois como pode
o envolvido perguntar pelo envolvente dessa maneira como o sapo
pergunta? O sapo mora no buraco da Terra. Quem sustenta, cerca o
espaço vazio do buraco é Terra. Todas as vibrações da Terra impregnam
e pulsam também em o espaço vazio da Terra. Quem possibilita o
espaço livre para o sapo é justamente o vácuo motivado pela ausência
da Terra, vácuo de ausência, mantido e conservado pela Terra como
fundo, como paredes, como limites do poço. O espaço da Terra, onde

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 121-128, jul./dez. 2009 123


HERMÓGENES HARADA

habita todo um mundo de espaços variegados e poliformes na sua


pujança, intensidade, impregnância, liberdade, resistência e abertura,
só é possível ser apreendido se me torno permeável, ressonante à pre-
sença envolvente da vibração-Terra. O sapo, no entanto, só tem ante-
nas para o espaço do vácuo mensurável em trechos objetivos de maior
ou menor e tenta a partir dessa medida deficiente abranger a grandeza-
Terra. E nem sequer se dá conta de que a própria abertura do poço tem
o seu espaço de jogo a partir e dentro da Terra que ele quer medir”. ...
***
... No livro Diálogos com Ionesco1 , Claude Bonnefoy pergunta a
Eugène Ionesco sobre a sua peça teatral Tusur Sans Gages que, na inter-
pretação do autor, representa a idéia da Cidade radiosa. Fala Engène
Ionesco:
A luz é o mundo transfigurado. É, por exemplo, na primavera,
a metamorfose gloriosa do caminho lamacento da minha infân-
cia. De uma só vez, o mundo adquire uma beleza inexplicável...
Lembro-me, que certo dia um pessimista chegou à minha casa.
Naquele tempo, eu morava num rés-do-chão, à Rua Claude
Terrasse. Minha filha era ainda um bebê e não dispúnhamos de
muito espaço: havíamos posto sua roupa a secar dentro de casa.
Ora bem, este amigo chegou dizendo que aquilo não era vida,
que a vida não era bela, que havia a indignidade, a tristeza, que
tudo era sórdido, que nossa casa era triste e feia etc... E eu res-
pondi: “Mas eu acho que é muito, muito linda; essas roupas
penduradas no cordel ao meio do quarto – é muito bonito isso”.
O amigo me olhou, admirado e desdenhoso. “Sim” – insistia eu
“basta saber olhar bem, é preciso ver. É admirável. Não importa
qual seja a maravilha, tudo é uma epifania gloriosa, o mais pe-
queno objeto resplandece”. Porque, repentinamente, eu tivera a

1. Rio de Janeiro: Editora Mundo Musical Ltda., 1970, p. 22-23.

124 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 121-128, jul./dez. 2009


[METÁFORAS DO SABER E DA LUZ]

impressão de que a roupa, sobre o cordel, era duma beleza insó-


lita, o mundo virgem, refulgente. Eu conseguira vê-la com olhos
de pintor para suas qualidades de luz. A partir disso, tudo pare-
cia belo, tudo se transfigurava. Do mesmo modo, veja essa casa
em frente à minha. Ela é feia, com suas janelas triangulares. Pois
bem, ela resplandece, se eu a olho com amor e boa-vontade;
quero dizer, ela se ilumina subitamente, é um fato que se mani-
festa. Todo mundo pode ter essas impressões.
Olhar com amor e boa-vontade: manifestação radiosa do coração
da realidade: a luz, a luminosidade: a jovialidade de ser.
Mãe de família, lavadeira “ignorante”, sem estudos. Pendura rou-
pas lavadas no cordel. Camisas minúsculas, calcinhas de criança. Suspen-
sas, desanimadas, sem vida, pingando gotas de água. De repente, sopra
o vento. As roupas se agitam, dançam, se enchem de vida, saltitam no
cordel, quais duendes travessos, na alegria de viver. E a mãe sorri, na
acolhida do espírito de vida (cf. G. K. Chesterton, Manalive).
A partir de onde vem essa referência do sopro da vida que alegra o
coração da mãe? Da maravilha do mistério da vida que Ionesco chama
de epifania gloriosa da luz: a luminosidade. A maravilha do mistério
da vida e da vida do mistério não é isso ou aquilo. Não é um objeto
entre outros objetos. E o medium da jovialidade, da coragem de ser, a
partir e dentro do qual, cada coisa é maravilhosa. É, portanto, uma
totalidade. Totalidade que possibilita à mãe ver e não ver tudo sob o
enfoque do maravilhoso. Na medida em que a mãe é colhida por e
acolhe essa totalidade, ela con-cresce para o olhar cordial da realidade.
Essa totalidade tem a sua lógica interna, suas leis, seu modo de cresci-
mento, seu modo próprio de aparecer: o sentido da vida. A mãe “ig-
norante” do saber, que vive na fluência nasciva do mistério da joviali-
dade, da vida, não precisa de outros enfoques para ver a maravilha das
coisas. E quem não está ainda desperto para a acolhida dessa fluência
só pode se abrir a ela, a partir da e-vocação e referência, a partir da
lógica, i. é, do recolhimento da própria totalidade do mistério.

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HERMÓGENES HARADA

O sentido da vida não é, portanto, um objetivo, para o qual a vida


deve tender. É antes o vigor da jovialidade que nos ad-vém a partir e
dentro da totalidade chamada mistério da vida. O mistério se envia
em concreções e, como a condição lógica da sua manifestação, exige a
acolhida de uma ausculta rigorosa, no próprio viver dessas concreções.
Concreções que são os afazeres da nossa existência, sem exceção de isso
ou aquilo.
Esse modo de ser da acolhida como a ausculta rigorosa do sentido
é próprio do vigor do mistério da vida, é o que os antigos chamavam
de espírito. E a cura, i. é, o cultivo cordial do espírito se chama: espiri-
tualidade.
Digamos que o próprio da formação religiosa é a espiritualidade, é
o cultivo cordial do espírito. Mas o próprio da cura, do cultivo é dei-
xar ser o sentido do mistério, é a ausculta do ad-vento da jovialidade
da Maravilha, é ser todo ouvido à referência da gratuidade do ser. E
isso é tudo. Tudo que articula e mobiliza toda uma existência, exigin-
do-lhe a dedicação radical do fazer, sentir e pensar, o engajamento total
e totalizante da liberdade. ...
***

... Fenômeno

Usualmente, entendemos por fenômeno o que aparece, o que se


apresenta, se mostra. E quase sempre de modo incomum, extraordi-
nariamente.
A palavra “fenômeno” vem do grego “phainesthai” que quer dizer
mostrar-se. É interessante observar que os verbos possuem “voz”: ati-
va, quando a ação é praticada pelo sujeito; passiva, quando a ação é por
ele recebida; e reflexa ou média, quando a ação é ao mesmo tempo
praticada e recebida pelo sujeito.

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[METÁFORAS DO SABER E DA LUZ]

A forma ativa de “phainesthai (phainein)” significa: trazer à luz,


colocar na claridade, mostrar, fazer aparecer. “Phainesthai” é voz média,
isto é, indica uma ação que não é nem ativa nem passiva. Esta maneira de
dizer, “nem ativa nem passiva”, esconde um modo de ser todo próprio
da ação medial: a dinâmica de tornar-se e ser “a si mesmo”.
As palavras “fenômeno”, “phainesthai” e “phainein” têm origem de
“phos”, que significa luz, claridade. O verbo “phainesthai” significa,
portanto: vir à luz, luzir, ser incandescência da claridade. Esse modo de
ser da claridade se chama “evideri” em latim, de onde vem a palavra
“evidência”. É neste sentido de “e-vidência”, de mostrar-se presente, de
aparecer que devemos entender a palavra “fenômeno”. Fenômeno é,
pois, o que assim se mostra a partir de si a si mesmo.
É nesse sentido de tornar-se presente, de vir à claridade, que dize-
mos “A lua cheia apareceu”. É nesse sentido de se apresentar que diz a
expressão popular: “Cresça e apareça!”
Os gregos, no entanto, em vez de “fenômeno”, diziam também
“ón”, particípio do verbo “einai” que significa ser. Ón significa, pois,
literalmente, em sendo. Em português, dizemos “ente”; substantivado,
temos então “o ente”. O ente é o ser.
Os gregos, portanto, consideravam o ente, o ser, a partir da dinâ-
mica do vir à luz, do luzir, do aparecer. Assim, fenômeno e ente dizem
o mesmo. Com a expressão “o ente” podemos, de alguma forma, in-
dicar tudo, todas as “coisas”. Tudo que podemos chamar de “ente”,
podemos chamar também de “fenômeno”. Só que, no uso corrente,
por “o ente” entendemos o ser como “coisa”, como algo estático; ao
passo que por “fenômeno” entendemos o momento dinâmico da ação
de aparecer. Daí a conotação de extraordinário, de incomum, na pala-
vra “fenômeno” na sua acepção usual.
Aqui, é necessário precaver-se contra a tendência, em uso, de en-
tender o fenômeno como “aparência”, no sentido de exterioridade,

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HERMÓGENES HARADA

isto é, “fachada externa de algo que está oculto atrás”. Por exemplo: a
cor amarela dos olhos não é o mostrar-se, o apresentar-se da inflama-
ção do fígado ela mesma. Se o fosse, deveríamos ver o próprio fígado
inflamado. Aqui, a inflamação do fígado é a causa que produz o efeito
“cor amarela dos olhos”.
O modo de ser da “e-vidência”, do fenômeno, é diferente do da
aparência. No fenômeno, é a “coisa ela mesma” que se apresenta, se
mostra, digamos, “pessoalmente”, vem à claridade no seu ser. Nesse
sentido, a claridade do luar que se intensifica cada vez mais não é o
sintoma da lua, mas a lua ela mesma no seu aparecer. A incandescência
do carvão ardente não é fachada, aparência ou sintoma do carvão, atrás
do qual o carvão ele mesmo se oculta, mas é o carvão ele mesmo em
pessoa que “manda brasa” no seu ser carvão.
Se entendemos assim o fenômeno, no seu sentido originário gre-
go, e o ente, no seu sentido originário latino, como incandescência da
claridade no ser, então poderemos dizer que cada ente, cada fenômeno
tem o seu modo próprio de mostrar-se na verdade do seu ser. Essa
observação nada tem a ver com afirmação do subjetivismo. Pelo con-
trário, tem muito a ver com o respeito e com o rigor de uma aborda-
gem real e adequada ao ente.
Quando um fenômeno não é respeitado no mostrar-se todo próprio
da verdade do seu ser, quando lhe é lançado um horizonte de abordagem
e compreensão que vem de um outro interesse, de uma posição alheia ao
próprio ente, ao próprio fenômeno, o aparecer do fenômeno, a sua
“mostração” se torna defasada, desfocada. Em vez de a “coisa ela mesma” se
apresentar pessoalmente na sua verdade, em vez de se revelar, é colocada
sob mira, sob o enfoque de uma outra causa. Então, o fenômeno como o
vir à luz do ente ele mesmo, nele mesmo no seu ser, decai para o estado
deficiente de “aparência” no sentido de “falsificação”, no sentido de um “ser
aparente”, mas não autêntico e verdadeiro. É nesse sentido que dizemos:
“Nem tudo que brilha é ouro!”

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HOMENAGEM E TRIBUTO DE UM LEIGO...

HOMENAGEM E TRIBUTO DE UM
LEIGO A HERMÓGENES HARADA
Gilvan Fogel

Conheci Hermógenes Harada mais ou menos em 1972. Eu aca-


bara o curso de graduação em filosofia na Universidade Católica de
Petrópolis e sabia da existência dele como professor de filosofia dos
franciscanos, no Convento Sagrado Coração de Jesus, em Petrópolis,
pois entre meus colegas da universidade havia alguns franciscanos, que
eram alunos dele.
No começo de 1972 propus-me fazer o mestrado em filosofia,
que ora se iniciava no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da
UFRJ. Para ingressar, eu precisava prestar um exame escrito e um oral
e, dentre os temas, havia um que eu, então, sequer conseguia articular
e pronunciar o nome: fenomenologia. Então, intermediado já não sei
mais por qual dos amigos franciscanos, corri para o Harada. Ele con-
versou um pouco comigo, expôs-me alguma coisa, deu-me alguma
dica que fosse útil para a premência da hora e, cheio de discrição, quase
se desculpando, passou-me um texto seu, intitulado Fenomenologia do
Corpo, no qual eu poderia e deveria aprender algo sobre o método
fenomenológico. Isso foi o começo.
Duas semanas depois, prestei o exame, fui bem sucedido e ingres-
sei no curso, começando realmente a estudar a tal fenomenologia – E.
Husserl e M. Ponty.
Um ano depois, 1973, fui chamado a dar aulas no próprio Ifcs,
substituindo a professora Creusa Capalbo na graduação, pois ela se

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GILVAN FOGEL

afastara temporariamente, viajando para a Europa. Era tempo, saudá-


vel eco de 1968, que os alunos queriam, exigiam, cursos monográficos
e não mais exposições manualescas. Os cursos deixavam de ser mera-
mente informativos e baseados em puros, simples e simplórios manu-
ais. Os alunos, do quarto ano (hoje diríamos: do oitavo período),
pediam que eu tomasse para leitura e comentário ou Hegel ou
Nietzsche. Eu nada sabia, quer de um, quer de outro. Mas já ouvira
um pouco mais de Nietzsche e mesmo já me aventurara um pouco
com O nascimento da tragédia. Claro, foi por Nietzsche que me deci-
di. E, mais uma vez, procurei por Harada, para orientar-me, instruir-
me. Falei com ele que pretendia iniciar com a turma uma leitura de O
nascimento da tragédia. Ele aprovou, novamente deu-me umas dicas,
mas, basicamente, me disse: “Seja lento, vá devagar!” Confesso que
isso me ficou para sempre. Até hoje sou lento, devagar.
Este contato foi ocasião e pretexto para que, a meu pedido, inici-
ássemos um estudo, uma leitura de Nietzsche, que passou a acontecer
regularmente à noite, às 19.00h, das quartas-feiras, de quinze em quinze
dias, numa das salas junto à portaria do Convento. Começou-se lendo
o Zaratustra. Inicialmente alguns tópicos do prólogo. Em seguida,
isto é, uns dois semestres depois!, leu-se o primeiro discurso da pri-
meira parte, Das três transformações do espírito. Depois, a meu pedido,
passamos para Da redenção, discurso da segunda parte do Zaratustra.
Isso estendeu-se pelos anos de 73, 74 e 75. No início de 1976 fui para
a Alemanha e meu doutorado, na Universidade de Heidelberg, foi
todo ele formulado e escrito a partir de umas dez ou doze páginas
resultantes da leitura de Da redenção. Em alguma hora, Harada, du-
rante o seminário de leitura, mandou que eu preparasse por escrito a
apresentação da próxima sessão. Nessa ocasião, participava da leitura
também frei Sebastião Kremer, então, tal com eu, um jovem estudan-
te e frei Arcângelo Buzzi, tal como Harada, professor no Convento.
Sempre um de nós era o responsável por iniciar a sessão, com um

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HOMENAGEM E TRIBUTO DE UM LEIGO...

esboço do que fora a sessão anterior e uma breve antecipação do que


seria o tema do dia. Assim fiz e li, quer dizer, apresentei por escrito, na
sessão seguinte. Harada gostou, pediu o texto e na sessão seguinte de-
volveu-me com alguns comentários no fim. Os comentários eram
questões que eu, como dever de casa, tratei de responder igualmente
por escrito e, na sessão seguinte, passei para ele. Ele, de novo, leu; de
novo formulou questões e eu, de novo, respondi. Mais uma vez ele
formulou umas questões e, então, já era o finzinho de 1975. Março de
76 fui para a Alemanha, levando comigo estas notas, as quais ainda
guardo comigo até hoje. As observações/questões do Harada eram fei-
tas sempre à mão, no final do meu escrito à máquina.
Um parêntese para uma nota. Uma tarde, creio mais ou menos
pelo ano de 72, já não sei mais a propósito de quê exatamente, fui ao
Convento do Sagrado Coração pegar algum livro com Harada e com
ele brevemente conversar sobre algum tema, alguma tarefa da hora.
Comigo foi um amigo, até hoje grande amigo, Antônio Pedro, pin-
tor, e também colega de turma na filosofia da UCP. Em alguma hora
fomos convidados por Harada para ir até sua cela, justo pegar, esco-
lher, talvez o tal livro. Ao chegarmos, nos deparamos, sim, com uma
cela. Um pequeno cômodo, uns nove metros quadrados, piso de ci-
mento liso, boa janela, proporcionando um ambiente ventilado, are-
jado e muito bem iluminado; um banco baixinho (um mocho), quase
rente ao chão e uma estante com livros, não muitos. O resto vazio.
Paredes nuas. Nem mesa, nem cama. Antônio, sempre muito direto,
expansivo, meio irreverente, perguntou: “Você dorme aqui?” “Sim”,
respondeu Harada. “Mas onde?”, perguntou Antônio, já que não ha-
via cama ou algo parecido. “Ali”, disse Harada, apontando para cima,
em direção ao meio da estante de livros. “Ali, onde?”, insistiu o Antô-
nio, pois de fato não se podia ver onde e nem como. Então, Harada,
no meio da estante, ativou uma geringonça que se abriu. Era a “cama”.
Na verdade, uma tábua lisa e nada mais que uma outra prateleira da

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 129-140, jul./dez. 2009 131


GILVAN FOGEL

estante. Antônio, surpreso, meio estupefato, disse: “Pô, ali, na prate-


leira?! Você dorme na prateleira?!” Ele riu, era. O Harada dormia na
prateleira, lia, estudava e escrevia sentado ao rés do chão e tinha o piso
de cimento liso como mesa.
Pelos começos de 1981 voltei da Alemanha, retomei meu traba-
lho no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs), da UFRJ, e,
morando em Petrópolis, logo reiniciei um estudo periódico com
Harada, de novo, de quinze em quinze dias. Reuníamo-nos à tarde e
líamos textos escolhidos do livro III da Vontade de Poder, de Nietzsche.
Textos que, em geral, versavam sobre crítica ao eu, ao sujeito, à subs-
tância, à causalidade. Participavam também, com certa assiduidade,
frei Gilberto Garcia, então estudante, frei Arcângelo Buzzi e frei
Gamaliel, professores. As leituras iam sempre muito lentas, os textos,
anotações de Nietzsche, muito curtos. Certa vez, ao retomar a leitura,
no início de uma sessão, vimos que não sabíamos mais onde tínhamos
parado na vez anterior. Na dúvida, Harada propôs que se começasse de
novo. Assim fizemos. E lemos muito menos, isto é, avançamos muito
menos que na vez anterior. Ao final da sessão, quando isso foi verifica-
do, Harada comentou: “Estamos melhorando”.
Isso durou pelos anos de 81 e 82. Em 83, creio, Harada deixou
Petrópolis, indo para Rondinha, no Paraná. Ali estabelecia-se uma nova
escola franciscana à qual ele muito se dedicava, muito se empenhava e
trabalhava pela sua fundação. Daí por diante nossos contatos ficaram
mais raros, ainda que esporadicamente acontecendo. Isso, porém, ja-
mais arrefeceu a força e a presença do Harada no meu trabalho, na
minha vida de ensino e na minha lida intelectual. Pelo contrário, mui-
to pelo contrário.
Em 1986, quando do nascimento de meu primeiro filho Pedro,
Harada estava de passagem por Petrópolis, algo num centro, creio
Cefepal, onde estava hospedado. Fui procurá-lo. Primeiro para revê-
lo e, segundo, queria ver se haveria ocasião para ele batizar Pedro. Isso

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HOMENAGEM E TRIBUTO DE UM LEIGO...

não foi possível, pois estava muito em cima da hora e ele já estava de
volta marcada, talvez para ao dia seguinte. Mas tive, então, uma tarde
de longa e agradável conversa com ele. Sempre se falava de alguma
coisa de filosofia. Mas, nesse dia, ele contou-me, também entusiasma-
do, como iam as coisas no seminário de Rondinha, seus planos de
trabalho e de ensino na formação dos jovens. Sobretudo, acentuava,
atividades que não eram só de estudo, mas também de trabalho, traba-
lho duro, com braços e mãos e tudo isso bem pensado como parte do
planejamento pedagógico, para que não se “debilitassem” só com livros,
com coisas livrescas e intelectualescas. Falou-me do projeto, da neces-
sidade de restaurar esta força, esta vitalidade simples e de encaminhar
os estudantes também para estas atividades físicas e das ou com as
mãos. E ele saiu-se com esta expressão, com esta formulação: “Gilvan,
quero acabar com a viadagem no clero”... A única vez que ouvi da boca
do Harada uma palavra que poderia se dizer: um palavrão.
Voltamos a ter encontros, esporádicos, sim, em Rondinha, umas
duas vezes, e no Rio, no Convento de Santo Antônio e, uma vez, no
Ifcs. E sempre, pelo menos para manter a forma, se conversava, se
discutia – e eu ouvia, ouvia e ouvia! – algum tema, algum assunto,
alguma coisa de filosofia.
Pelo começo de 2004, escrevi a Harada pedindo-lhe um texto, algo
em torno de mito e arte, para publicar na revista Sofia, da Universidade
Federal do Espírito Santo, por solicitação de meu amigo e editor da revis-
ta, prof. Fernando M. Pessoa. Em setembro, Harada enviou-me o texto,
acompanhado de um “bilhete”, no qual fazia recomendações a propósito
do escrito: eliminar o que não prestasse (!), cortar o que estivesse muito
extenso; sequer publicar, caso sentisse que estava ruim!! E tudo isso sem
consultá-lo, sem comunicá-lo. Então, segue-se este parágrafo: “Aqui esta-
mos numa labuta um tanto missão impossível. A gente não é lá muito
filósofo, mas mesmo assim, a gente sente claramente que o clero é uma
raça, na qual filosofia não entra mesmo. Se a resistência dentro da cabeça

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GILVAN FOGEL

do clero viesse da teologia, cujo núcleo fosse mais granítico, a gente estaria
salvo. Mas acho que atrás da mitra só há algodão. O pior é que eu também
sou clérigo. Mas tudo isso não tem, penso eu, nada a ver com cristidade.”
E ele conclui este bilhete do seguinte modo: “Ênio me disse que talvez em
novembro (é por ali) vamos nos reunir para o encontro daquela coleção
dos pensadores, ali no Rio de Janeiro; e então vamos matar saudade filosó-
fica e tirar a barriga filosófica da miséria, conversando muito. Em todo
caso, se um dia vier por essas bandas, é sempre bem vindo. Embora hoje
não tenhamos mais tanto torresmo como antigamente lá no convento. É
que a turma está politicamente correta diante do colesterol e da pressão
alta.” É, desconfio que o Harada, talvez, andou abusando um pouco do
torresmo e até do amendoim torrado nestes últimos tempos...
Recentemente, em dezembro de 2008, fui homenageado no Ifcs, por
alunos e alguns professores, a propósito de uma data redonda, recém
acontecida: meus 60 anos. Houve uma sessão solene, com apresentação de
um livro em minha homenagem, O presente do filósofo, no qual muitos
escreveram. Tudo me comoveu muito e a todos muito agradeci. Mas
nada me comoveu tanto quando, ao abrir-se da sessão, recebi de novo um
“bilhete” do Harada, referindo-se à ocasião e, ao abrir o livro, constatei que
o primeiro texto era, é um escrito do Harada, intitulado Econômico e casei-
ro, o estudo da filosofia? (Uma parábola chamada paciência). À noite, em
casa, sozinho no canto, li com muita atenção e emoção o “bilhete” que me
foi por ele enviado e que começava com um “Estimado Gilvan” e que me
cumprimentava e saudava pelo “trabalho de professor universitário”. Ele
fala da natureza desse trabalho e da nobreza de seu cultivo e, sobretudo,
quando ele se faz uma vida e um destino – silencioso, discreto, muito só e
próprio. Guardo ciosamente comigo esta página pessoal, gentil, carinho-
sa, intensa.
Agora, em janeiro de 2009, mais precisamente, no dia 30, estava
eu em Curitiba por conta de um curso, o qual fui convidado a dar.
Sabia que Harada sofrera um infarto e que se encontrava internado, à

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HOMENAGEM E TRIBUTO DE UM LEIGO...

espera da cirurgia a que ia se submeter, dois ou três dias depois. Acertei


previamente a visita e, pelo final da tarde, lá fui. Ansioso, seja pelo seu
estado, principalmente, seja porque, há pelo menos três anos, não nos
víamos. Bati à porta do quarto e fiquei à espera. Para grande surpresa e
alegria minha, veio o próprio Harada abrir a porta. Um grande sorriso
irradiou e iluminou, parece que não só seu rosto, mas todo ele. Ele
estava muito bem. Vivo, aceso, lépido, sentado a uma mesinha, escre-
via num lap-top. Ali falamos, conversamos. Ele sempre muito presen-
te, irradiante, lúcido. Não sei como, quando me dei conta, falávamos,
ele falava, sobre a importância de se ser burro! Com muita disciplina,
muita aplicação, isso pode render espírito...! Eu lembrei, e junto pro-
curávamos comentar, Cézanne, que dizia de si: “Sou lento, pesado e
burro”. Ele falou-me, parece, de algum franciscano, desses medievais
estranhos, meio loucos, que era tão burro, mas tão burro, que não con-
seguia realizar seu grande desejo, seu maior desejo, que era tornar-se
padre, pois não conseguia aprender latim. E isso era condição absolu-
ta. Mas então, para satisfazer este desejo maior de sua vida, foi estudar
latim, aplicou-se muito, muito e, de tanto empenhar-se, junto com o
latim veio a espantosa aprendizagem de ler almas! Sim, ele aprendeu a
ler almas – via alma, via e sabia almas...
Ali ficamos, mais ou menos, uma hora e meia em conversa séria e
jocosa. Era hora, despedi-me, ele levou-me até à porta e, sempre sorri-
dente e irradiante, desejou-me boa sorte e eu a ele, dizendo-lhe que
fazia votos de longa e boa vida, apesar de que ele, rindo gostosamente,
me dissera que conversara com o médico e este lhe prometera pelo
menos mais dez anos. Ele disse: “Ora, pra quê?! Já estou com 80, e
com 90 não se faz mais nada, não se presta pra mais nada! Basta só
mais cinco. Só mais cinco de validade e já é demais!”
Para mim, também e sobretudo como ensinamento do mestre,
fica sempre a lembrança de seu sorriso limpo, límpido, grande, sereno
e suave. Muitas vezes, nas horas grandes sempre, uma fisionomia séria,

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GILVAN FOGEL

um rosto fechado, duro, recolhido. Mas, de repente, podia abrir-se


todo num riso, que não era só sorriso, mas até boa gargalhada, não só
de boca, de olhos, de face, mas, como ele às vezes gostava de dizer, de
barriga, do fundo da barriga, e que transbordava pela boca afora...
Nisso tudo, nada falei do ensinamento do Harada. A impressão
que tenho é que com Harada aprendi tudo que podia, tudo que devia
aprender. Tudo que tenho de essencial na filosofia (que presumo ter!) devo
a ele. Porque com ele, sobretudo com ele, aprendi a aprender. Este apren-
der a aprender fala de um processo, de um modo de ser que se ganha ou se
conquista (e ele, Harada, sempre apontou para isso, sempre insinuou isso),
no qual, pela via da experiência, se entra ou se é jogado, no qual assim
começa-se a participar do próprio fazer-se e crescer (aparecer) da própria
coisa. Nisso, nesta participação, dá-se toda uma iluminação, cresce e apare-
ce toda uma evidência. Tudo, sim, vai ganhando vida, à medida que vai
brotando, se irradiando, “fazendo-se visível”, para usar uma expressão de
Klee. Harada, tal como todo mestre, todo grande mestre, nunca ensinou
nada, nunca deu coisa nenhuma, quer dizer, nunca transmitiu doutri-
na, norma, padrão, clichê ou cacoete de algum autor ou de corrente,
de escola. Jamais alguma moda ou refrão.
Este aprender a aprender aconteceu sempre com, a partir da leitura
de algum texto – sempre um texto. Isso evita divagação, distração,
dispersão. Para mim, sempre foi um grande acontecimento e uma hora
maior e de encantamento ler um texto filosófico com Harada. Texto
sempre curto, breve. Aí, no texto, ele pegava, ele pinçava a passagem, a
frase essencial, fundamental – a geratriz e condutora. E nessa frase, o
termo, a noção, o conceito central, base. Às vezes, muitas vezes, come-
çava pelo título. Isso que acima chamei a frase ou a noção central, na
verdade, só se mostra, só se mostrava ser a central depois da leitura, do
comentário do Harada. Essa leitura, esse comentário, sempre, foi
marcado(a) e caracterizado(a) por insinuação, aceno e, então, de repen-
te, tudo começa a se abrir. Na frase, na noção eleita para comentar,

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HOMENAGEM E TRIBUTO DE UM LEIGO...

interpretar, jamais é a erudição o que decide, o que manda e comanda.


Com Harada, erudição, enquanto mera informação e, então, saber
chocho, balofo (a cultura), jamais foi argumento. Isso não quer dizer
que ele não tenha erudição, grande erudição, à medida que a entenda-
mos como saber vasto, sim, mas assentado; conhecimento sólido da
tradição filosófica, lastro, bom lastro. Mas o ponto de partida sempre
foi, sempre é o ou um fenômeno, a ou uma experiência. Ele mostra, ele
insiste em apontar e mostrar que no texto filosófico, no autor ou pen-
sador, o que realmente está em questão é um fenômeno, uma expe-
riência e não um mero diletantismo intelectual, intelectualismo. Expe-
riência sempre foi, sempre é o acontecimento-chave, o ponto de parti-
da (e também de chegada) no ensinamento, na aula, na leitura-comen-
tário do Harada. Assim, a partir do fenômeno e de sua descrição-aná-
lise genética ou genealógica, a partir da experiência, de repente, tudo
começa a se iluminar. Um texto inteiro, uma concepção inteira, come-
ça a ganhar evidência, a partir dessa análise concreta, fenomenal e feno-
menológica, que desce às raízes, à gênese do fenômeno, desconstruindo-
o para assim torná-lo visível na sua força realizadora, na sua essência ou
gênese. Sim, realmente, tudo começa a se revelar, a aparecer ou fazer-se
visível a partir da própria coisa. Genuína fenomenologia. A experiên-
cia, no sentido de toque, afeto, pathos (não o mero empírico ou impres-
são sensível), se faz evidência, critério e medida de realização de reali-
dade, critério e medida de verdade. Mais do que nunca, foi, para mim,
a partir do trabalho com Harada que experiência se revelou ser o lugar
e a hora de evidência. Na verdade, uma única e mesma coisa. Isso
sempre me encantou e seduziu. Experiência, experiência descrita, ex-
posta, comentada-interpretada in statu nascendi – é isso mesmo evi-
dência, iluminação de realidade em sua própria gênese.
Nada abstrato, no sentido do formalista, do intelectualista, do eru-
dito confuso e obscuro (profundo!) que, na verdade, usa desta via para
esconder, para escamotear o que não vê, o que não sabe, ou seja, recur-

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GILVAN FOGEL

so, evasiva para dissimular uma alienação, um desenraizamento, uma


desorientação. Com Harada jamais alguém se torna ou vira um erudi-
to, um intelectual formalista e abstrato – eunuco. Assim, desde fenô-
meno ou experiência, Harada sempre foi agudo, intenso, econômico
(principalmente econômico!), punçante nas observações, penetrante
no intelecto e no espírito. Sim, por essa via, sobretudo por essa via,
aprende-se, eu aprendi, a aprender. Nos seus textos, nos seus escritos,
vê-se, lê-se isso e assim.
Com Harada tem-se sempre só o mínimo necessário. Sempre só o
que é preciso, o que é suficiente. Jamais esbanjamento, jamais o espar-
ramado ou o derramado. Seco. Alma seca. Seu pensamento, seus ensi-
namentos, seu modo de ser é arcaico, e l e m e n t a r – no sentido de
ser o próprio elemento. Quanto a isso, que se leia seu Em comentando
I Fioretti; que se leia Coisas, velhas e novas; que se leia, p. ex., sua
apostila Verdade e liberdade, que é um comentário/interpretação de
Da essência da verdade, de Martin Heidegger – verdadeira homena-
gem à clareza, à lucidez; que se leia sua apostila De Como estudar, um
texto dirigido aos garotos, aos calouros, à meninada noviça; que se
leia, enfim, seus textos religiosos – aliás, t o d o s o são, s ó são. Nisso
tudo, e não só nisso tudo, está todo o Harada. Um espírito grande.
Uma alma grande. Simples, grande, intensa – pobre, parca, econômi-
ca. E farta, e transbordante, superabundante. Sempre só o suficiente,
sempre só o necessário. Tudo no Harada sempre foi claro, simples,
lúcido. Sobretudo isso: claro, simples, lúcido – cartesiano. Franco, di-
reto e limpo. Harada é um padre limpo. Isso é coisa rara, difícil. Eu
disse claro, direto, simples, lúcido, cartesiano – mas não nos engane-
mos. Nada de faustiano. Nada de luz derramada, nada de transparên-
cias apressadas, de evidências fáceis e falsas, do tipo dialéticas, lógico-
formais. Sempre a clareza do escuro, a lucidez do mistério, a profundeza
da superfície. Jamais a vontade, o ímpeto de iluminar o escuro. A não
ser que seja iluminá-lo, sim, mas não para extingui-lo, porém para

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HOMENAGEM E TRIBUTO DE UM LEIGO...

torná-lo mais escuro e mais evidente como escuro. Sim, o escuro fica
mais escuro e, então, o mistério, o divino, o sagrado, a transcendência
se iluminam com o brilho contido, fosco, “de pérola”, ele disse, uma
vez. Sempre claro, evidente, até onde pode e deve. Sempre lúcido,
porém, até e principalmente no escuro, no não saber e no não poder.
No Harada, com Harada, o limite ganha uma extraordinária força
reveladora. É o poder – poder de mostração, de revelação. O poder do
não-poder. Genuína pobreza franciscana.
Um franciscano. Um religioso. Um homem que um dia, num
determinado contexto, me disse: “Só não me matei porque sou cris-
tão”. Harada – um padre, um franciscano, um cristão. Um homem de
fé. De fé e de espírito. Alma grande – grande, aqui, está falando de
essencial, de radical. Mais uma vez: elementar. Um franciscano e um
samurai. Sua apostila De Como Estudar, e todo ele e tudo nele, mostra
uma alma brônzea e pétrea, alma de um samurai no, do Espírito.
Samurai, franciscano, descalço. Sentado, lendo, estudando e escreven-
do no chão daquela cela, nua, de cimento liso. Dormindo na pratelei-
ra. “Hermógenes – Hermógenes faz ou tem mudança a fazer?!” Foi
isso que exclamou em resposta para mim Frei Godofredo, um velho
franciscano, alemão, na portaria do Convento do Sagrado, em
Petrópolis, quando, um dia, perguntei a ele se o Harada já havia feito
sua mudança para Rondinha, se já havia levado suas coisas, em 1983.
“Hermógenes mudar, fazer mudança?! Levar o quê, carregar o quê?!
Ele joga um saco nas costas e tem tudo!” De vez em quando, para
desfazer-se de fardos e pesos, cangalhas, para desentulhar, ele dava os
livros que tinha. Era uma limpeza na mesa, na estante, na cela... na
alma. Livros, muitos livros... ?!... Certa vez, há pouco tempo atrás, sob
risco de perder a visão, por um cochilo ao cuidar de uma catarata, ele
comentou, meio irônico, meio brincalhão, mas, no fundo, bastante
sério: “Sabe, isso, para o pensamento, pode até ser bom! Olho às vezes
atrapalha!”

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GILVAN FOGEL

Harada – para mim sempre “o Harada” e não “Hermógenes” ou


“frei Hermógenes” – enfim, Harada, claro, não foi, não é santo. Harada
foi, é samurai. Um samurai franciscano. Um franciscano samurai.
Descalço. Alma seca – a maior, a mais nobre, já disseram. “César com
alma de Cristo” – também já disseram. Seco, duro – e terno, muito
terno. Meigo. Um nobre – descalço, cheio de, todo misericórdia. Ja-
ponês – um coração bambu... Alma autenticamente franciscana. Gran-
de, grande alma; mestre, grande mestre. Generoso, magnânimo. Ima-
gino, creio, que a Ordem Franciscana não pode, não poderá esquecê-
lo. Ela vive, ela precisa viver dessas almas irmãs e consanguíneas de São
Francisco de Assis, o mentecapto, o grande e perfeito mentecapto e,
por isso, santo. Harada não é, não foi santo. Claro, lúcido; demasiado
claro, demasiado lúcido para tal. Sempre uma lucidez cortante,
punçante, mortal. Simples, muito simples. Algo meridiano. Alciônico.
Um fio de navalha. Bonito, muito bonito.
Aí fica, aí vai, pois, minha gratidão, minha homenagem, meu tri-
buto. Um óbolo. E, sim, é verdade, lembrando nosso Guimarães Rosa,
Harada não morre, fica encantado. E encanta.
Petrópolis, 16 de março de 2009.

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TESTEMUNHO PESSOAL SOBRE FREI HERMÓGENES HARADA

TESTEMUNHO PESSOAL SOBRE FREI


HERMÓGENES HARADA, OFM
Dom João Mamede Filho, OFM Conv.*

Vi pela primeira vez o frei H. Harada em 1974, no Seminário dos


Frades Menores Conventuais, no bairro do Rio Comprido, na Cidade
do Rio de Janeiro (RJ). Nessa época, estudava filosofia e teologia na
escola do Mosteiro de São Bento. Convidado pelo nosso Mestre, frei
H. Harada conversou cerca de uma hora com nossa turminha de sete
frades professos simples para estudar a possibilidade de se efetuar um
encontro de reflexão mensal. Conversa vai e conversa vem, chegou-se
à conclusão de que era melhor, um sábado de manhã, por mês, subir-
mos a Petrópolis, na casa onde acontecia o curso do CEFEPAL, para
ali, das 9 às 12hs, refletirmos com o frei H. Harada, almoçarmos com
os cursistas, e retornarmos para casa.
Daqueles dias mensais de reflexão (não me lembro se isso durou mais
que um ano?!) me ficaram a experiência de que o frei Hermógenes Harada
botava cupim na cabeça da gente. Eu não conseguia negar a sua fala mas
também não conseguia aceitá-la toda. Lembro-me que eram conversas
sobre a Igreja e sua identidade. Autoridade dentro da Igreja. Vida religiosa,
vocação, fraternidade etc. Muitas vezes acordava de noite e me pegava
pensando no tema de algum encontro com o frei H. Harada.
Depois disso, voltei a encontrar o frei H. Harada em 1983 num
encontro de ex-cefepalistas de mês de julho, em Campinas, onde se

* Dom João Mamede Filho é bispo auxiliar de São Paulo na Região Lapa.

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DOM JOÃO MAMEDE FILHO

estudou a Legenda dos Três Companheiros. Aí foi que me ficou claro


que o caminho de São Francisco começou de um encontro real, pesso-
al, íntimo com o Senhor e não de uma bolação da cuca, de uma ideo-
logia, de uma explicação da vida do mundo. Ele foi tocado, atingido,
visitado por algo. O resto da sua vida foi tirar a limpo esse atingimento.
E chegou ao Cântico das criaturas. No fundo, ele concluiu que aquilo
que o atingiu aquela noite... “podia ser picado em pedacinhos que não
conseguiria me mexer...” (LTC 3). Está se dando dia e noite. E em
cada coisa: no sol, na lua, nas estrelas, na terra, na água, no vento.... na
ofensa, na dor e na morte, para quem afinar o sensorial, está se dando
o mesmo toque dia e noite. Deus é amor em todos os seus atos e em
todos os seus gestos.
Aí comecei a frequentar os encontros periódicos do mês de julho,
primeiro em Campinas, depois, no Embu, em São Paulo.
Em 1986 fui morar em Curitiba, como mestre no seminário Casa
São Francisco (OFM Conv) e frequentei reflexões mensais que o frei
H. Harada conduzia, sobre as Admoestações de São Francisco e outros
escritos, na Casa das Irmãs Franciscanas de São José, em Rondinha,
Campo Largo (PR).
Penso que este tempo cimentou bem minha compreensão das pers-
pectivas e horizontes do frei H. Hermógenes. Cheguei a pedir ao meu
superior provincial para frequentar o então curso de filosofia de três
anos que os Frades Menores implementavam para os formandos da
Província da Imaculada, exatamente na mesma Rondinha. Isso não
me foi concedido. O provincial disse que não tinha gente disponível
para poder me liberar.
Participei, esporadicamente, de alguns seminários no estudantado
de Rondinha mas não pude ir além disso.
Nunca perdia os encontros do mês de julho e sempre que podia
participava de retiro e outros encontros conduzidos pelo frei H. Harada

142 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 141-146, jul./dez. 2009


TESTEMUNHO PESSOAL SOBRE FREI HERMÓGENES HARADA

em diversos lugares. Certa vez ele deu um curso para os frades da mi-
nha província conventual, em Curitiba. Era um clima tenso. No meio
do percurso os formandos (cerca de 40 jovens junioristas) queriam a
“cabeça” do mestre, nada mais e nada menos. Frei H. Harada convoca-
va todos a controlar a emoção e permanecer na razão. Ele tentava sal-
var o salvável.
A partir de 1989 trabalhei com a revista Mensageiro de Santo An-
tônio, e bem cedo comecei a publicar temas de espiritualidade extraí-
dos de apostilas e escritos outros do frei H. Harada. Dois anos depois,
ele se propôs a re-escrever a espiritualidade e publicar, em capítulos, na
Revista. Trata-se de uma série bastante longa de artigos sempre focando
a espiritualidade. Sobre essa série de artigos, uma superiora geral de
um instituto me disse que os têm todos numa pasta e que, quando
está muita tensa com os problemas e dificuldades do seu instituto, lê
um deles, e retoma a calma e a serenidade, enfrentando com maior
sucesso os seus desafios.
Depois passei a participar de outros tipos de encontro: os de carna-
val, para formadores em Curitiba. Já depois do ano 2000 começaram
os encontros de psicólogos e formadores, dos quais já aconteceram
sete, um por ano, cada vez num lugar diferente. Quando o frei Fer-
nando Mason, OFM Conv., se tornou bispo, o frei H. Harada suge-
riu um encontro anual na sua diocese para estudarmos juntos a Bíblia.
E surgiu os “Bíbliapira” de Piracicaba e que aconteceram apenas 2 ve-
zes. Quando o frei H.Harada foi hospitalizado, com enfarto, estáva-
mos exatamente às vésperas do 3º Bibliapira. Em vez de ir para o en-
contro, em Piracicaba, fomos a Curitiba, visitá-lo no hospital.
Testemunho em estrito senso.
Um confrade, que junto comigo participava dos encontros do frei
H. Harada, costuma me dizer: “este homem nos fez de novo. Nos
recriou”. E é bem essa a sensação. Andando atrás do frei H. Harada e

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DOM JOÃO MAMEDE FILHO

ouvindo suas reflexões, nos tornamos outras pessoas. Chesterton, no


seu livro sobre São Francisco de Assis, diz que ninguém que teve al-
gum contato com São Francisco foi o mesmo depois disso. Todos que
tiveram um contato com ele, depois disso foram outras pessoas. Algo
semelhante nos aconteceu, em relação ao Frei H. Harada.
Omito aqui todas as consequências menos louváveis que advieram,
dentro dos nossos conventos e províncias religiosas, devido à nossa
aproximação ao frei H. Harada.
Muitas vezes, em horas de tensão, premido por desafios e dificul-
dades, fiz como aquela irmã, acima referida, que se tranquilizava, len-
do alguma reflexão do frei H. Harada.
Um jovem que estava para desistir da vida religiosa, participou
de um encontro com o frei H. Harada e comentou depois: “sabe
que a vida religiosa voltou a dar-me um calorzinho”. Ele não saiu e
se tornou frade.
Não tive o frei H. Harada como confessor. Mas algumas vezes me
confessei com ele. Era suave, claro, direto e firme. Limpava a área.
Tenho a mesma experiência que o frei Jaime descreveu no dia do se-
pultamento: suas correções eram doídas (de dor), mas não feriam. Se-
melhante a certa novela de cangaceiros, em que alguns vigias se distra-
em e alguém consegue entrar no acampamento e levar coisas, sem se-
rem percebidos. Um dos vigias era dos mais valentes e maior amigo do
comandante geral. Este ordena então que os vigias distraídos sejam
castigados com guasca, amarrados nus em árvores. Indicou os que de-
veriam executar os castigos, e daquele que era seu maior amigo, quis se
ocupar ele próprio. Como para dizer: é tão grave a falha. Podíamos
todos ter sido mortos. O castigo tem que ser bem dado para nunca
mais acontecer a falha. Se tivesse acontecido comigo, quereria o mes-
mo castigo. E aquilo não diminuiu em nada a amizade. Era, digamos,
questão técnica. Comparo com isso as correções do Frei H. Harada.

144 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 141-146, jul./dez. 2009


TESTEMUNHO PESSOAL SOBRE FREI HERMÓGENES HARADA

Quanto à filosofia, acho que o frei H. Harada ajudava a gente a


manter a cabeça na postura saudável, em que as coisas da fé, os misté-
rios da fé, têm chance de se mostrar como realidades vivas e atuantes.
Na medida em que fui entendendo as explicações do frei H. Harada,
vivenciava mais viva e intensamente os mistérios pascais, as liturgias da
Semana Santa e outras. Concluí, na última celebração da Vigília Pascal,
por exemplo, que a liturgia é uma massagem. Ela massageia os senso-
res da fé. Aguça a sensibilidade para os mistérios celebrados.
Alguém me disse, certa vez, que o frei H. Harada teria dito que
sua reflexão era original e originante. Se não disse, eu pessoalmente,
acho que são mesmo assim. A compreensão da gente não se fixa. O
permanecer na compreensão já nos expõe e leva a novas compreensões.
Muitas afirmações do frei H. Harada ficavam na minha cabeça
por ano inteiro sem que eu as compreendesse. De repente, um belo
dia, vinha a compreensão, a evidência, a iluminação. Houve um tem-
po em que ele me dava, aos sábados à noite, aulinhas particulares de
filosofia. Líamos alguma página de Ser e tempo, de Heidegger, e ele
comentava. Quantas vezes ele me disse, por exemplo, “você está vendo
aquela árvore lá. Pois é, você pensa que ela está lá, mas ela não está lá
do jeito que você pensa”!!! Eu fiquei com isso na cabeça por um ano
inteiro pelo menos. Certo dia, voltando com ele de Cocalzinho (GO),
onde estivemos para um encontro de reflexão, ao meio dia, ao sair do
restaurante e entrar no carro que estava estacionado debaixo de uma
árvore, eu entendi aquela afirmação. E assim quantas outras se deram
do mesmo jeito!!
O frei H. Harada faleceu perto das 18h do dia 21/05/09 e eu
soube, por telefonema, de frei Antônio Corniatti, às 19:30h. Depois
de um primeiro baque, liguei para o frei Marco Aurélio Fernandes, em
Brasília, e fui o primeiro a lhe dar a notícia. Lembro que, naquele dia
então me veio o seguinte pensamento e eu lhe disse: “Minha mãe está
velhinha, bem fraquinha. Qualquer hora vou receber a notícia fatal.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 141-146, jul./dez. 2009 145


DOM JOÃO MAMEDE FILHO

Mas se chegassem juntas, as duas notícias, minha cabeça e meu coração


se confundiriam. Eu não saberia distinguir qual a mais dura, qual doía
mais?!?”
Acho que o frei H. Harada vivia constantemente na “boa vonta-
de”. Ele não andava atrás de realizações subjetivas e gozos. Um dia ele
me disse que quando estava naturalmente alegre por dentro, fazia ques-
tão de esconder, fazia cara de sério para que ninguém percebesse. E
quando estava um pouco triste, aí então contava piada, ficava espalha-
fatoso para que ninguém percebesse também.
Terminando o sepultamente do frei H. Harada, naquela tarde se-
rena de 22 de maio de 2009, tive, num repente, a impressão de que
todos – éramos cento e tantas pessoas – acordamos de um sonho. Ele
não está mais!? Onde estávamos, afinal?!?!?
Parece que um vendaval se abateu sobre a vida do frei e ele foi
levado por isso a vida toda. E, por tabela, fomos junto. Agora ces-
sou...! Que será de nós?
No impulso do vendaval que o tomou ele nos alienou a todos...
alienou-nos da alienação do século atual...
São Paulo, 03 de setembro de 2009.

146 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 141-146, jul./dez. 2009


TRADUÇÕES
DA LUZ OU DO COMEÇO DAS FORMAS

DA LUZ OU DO COMEÇO
DAS FORMAS
Roberto Grosseteste*

Julgo que a primeira forma corporal, que alguns chamam de


corporeidade, seja luz. Com efeito, por si, a luz difunde a si mesma
por toda parte, de tal modo que de um ponto de luz gera-se de pronto
uma esfera de luz grande o tanto que for possível, a não ser que seja
impedida por algo obscuro. Mas a corporeidade é o que segue necessa-
riamente a extensão da matéria segundo três dimensões, embora am-
bas, a saber a corporeidade e a matéria, sejam em si mesmas substância
simples, carecendo de qualquer dimensão. Mas à forma, simples em si
mesma e carente de dimensão, é impossível introduzir dimensão em
toda parte na matéria, igualmente simples e carente de dimensão, a
não ser multiplicando a si mesma, difundindo-se de pronto em toda
parte e em sua difusão estendendo a matéria, visto que essa mesma
forma não pode abandonar a matéria, porque não é separável, e tam-
pouco a própria matéria pode ser esvaziada da forma. E, portanto, eu
propus que essa é a luz, cuja operação é por si, a saber, multiplicar a si
mesma e de pronto difundir-se em toda parte. O que quer que faça
essa obra, portanto, ou é a própria luz ou está fazendo essa obra en-
quanto participa da própria luz, que faz isso por si. A corporeidade
portanto ou é a própria luz ou se diz estar fazendo essa obra e introdu-
zindo as dimensões na matéria enquanto participa da própria luz e age

*
Texto extraído de http://www.grosseteste.com, acessado em 10 de setembro de 2009.
Tradução de Enio Paulo Giachini.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 149-158, jul./dez. 2009 149


ROBERTO GROSSETESTE

em virtude da própria luz. Todavia, é impossível que a primeira forma


introduza as dimensões na matéria em virtude da forma que se segue
àquela. A luz porém não é a forma que se segue da corporeidade, mas
é a própria corporeidade.
Ampliando a explicitação: os sábios julgam que a primeira forma
corporal é mais digna e de uma essência mais excelente e mais nobre,
mais aparentada com as formas separadas do que todas as outras for-
mas subsequentes. Mas a luz é de essência mais digna e mais nobre e
mais excelente do que todas as coisas corpóreas, e se assemelha às for-
mas separadas, que são as inteligências, mais do que todos os corpos. A
luz é portanto a primeira forma corporal.
A luz, portanto, que é a primeira forma criada na primeira maté-
ria, multiplicando a si mesma por si mesma onde quer, infinitamente,
e vertendo-se equanimemente em toda parte, no princípio do tempo
estendeu a matéria, a qual ela não pode abandonar, dis-tendendo-a
consigo em tanta massa quanto é a máquina do mundo. A extensão da
matéria tampouco pode devir pela multiplicação finita da luz, porque
o simples replicado finitamente não gera um quantum, como mostra
Aristóteles no De caelo et mundo1 . Mas (o simples) multiplicado infi-
nitamente gera necessariamente o quantum finito, porque o produto
da multiplicação infinita de qualquer coisa excede infinitamente aqui-
lo pelo que se produziu a multiplicação. Em todo caso, o simples não
é excedido infinitamente pelo simples, mas é só o quantum finito,
que excede o simples no infinito. Pois o quantum infinito excede o
simples infinitamente infinitas vezes. – A luz, que é em si simples,
multiplicada infinitamente, deve necessariamente estender a matéria,
igualmente simples, em dimensões de magnitude finita.

1. ARISTÓTELES, De caelo et mundo, I, 5-7.

150 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 149-158, jul./dez. 2009


DA LUZ OU DO COMEÇO DAS FORMAS

Todavia, é possível que a agregação infinita de números seja pro-


porcional à congregação infinita em todos os numéricos e também em
todos os não numéricos. E há infinitos que são mais múltiplos que
outros infinitos e outros que são menos múltiplos que outros. A soma
de todos os números tanto pares quanto impares é infinita, e assim é
maior que a soma de todos os números pares, mesmo essa sendo infi-
nita; ela a excede, com efeito, pela soma de todos os números ímpares.
Também a soma dos números a partir da unidade contínua das duplas
é infinita; e semelhantemente a soma de todas as subduplas correspon-
dentes daquelas duplas é infinita. E a soma dessas subduplas deve ne-
cessariamente ser a metade menor do que a soma das suas duplas. Igual-
mente, a soma de todos os números a partir da unidade dos subtriplos
é três vezes maior que a soma de todos os seus subtriplos em relação a
esses triplos. – E o mesmo se mostra de todas as espécies de propor-
ções numéricas, visto que de acordo com cada uma delas o finito pode
ser proporcional ao infinito.
Mas se supormos a soma infinita de todos os duplos continua-
mente a partir da unidade e a soma infinita de todos os subduplos,
correspondentes a esses duplos, se for tomado da soma dos subduplos
a unidade ou qualquer número finito, uma vez tendo sido feita a sub-
tração não permanecerá dupla proporção entre a soma da primeira e o
resíduo da soma da segunda; mas tampouco [restará] qualquer pro-
porção numérica, visto que, se da proporção numérica, pela subtração
da menor extremidade, restasse ainda outra proporção numérica, sig-
nifica que isso que foi subtraído é alguma parte ou certo número de
partes daquilo de que é subtraído. Mas o número finito não pode ser
uma parte ou alguma parte de alguma parte do número infinito. Sub-
traído portanto o número da soma subdupla infinita não resta pro-
porção numérica entre a soma da dupla infinita e o resíduo da soma da
subdupla infinita.
Uma vez que isso seja assim, é manifesto que a luz, por sua infinita
multiplicação, estende a matéria em dimensões finitas menores e em

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 149-158, jul./dez. 2009 151


ROBERTO GROSSETESTE

dimensões finitas maiores, de acordo com quais forem as proporções


que essas têm entre si, a saber, numéricas ou não numéricas. Com
efeito, se a luz, por sua multiplicação infinita, estende a matéria em
dimensões bicúbicas, a mesma multiplicação infinita duplicada esten-
de-a numa dimensão tetracúbica, e a mesma dividida pela metade es-
tende-a na dimensão monocúbica; e assim se dá com as outras propor-
ções numéricas e não numéricas.
Segundo calculo, essa foi a compreensão dos filósofos que supu-
nham que tudo é composto de átomos e afirmavam que os corpos são
compostos de superfícies e as superfícies de linhas e as linhas de pon-
tos. – tampouco contradiz isso a sua sentença que supõe que a magni-
tude só se compõe de magnitudes, porque o todo é dito de tantos
modos quanto são ditas as partes. Por um lado, diz-se pois que meia
parte do todo, tomada duas vezes resulta no todo, e por outro o lado
é parte do diâmetro, o qual somado diversas vezes não resulta no diâ-
metro, mas somado por diversas vezes é superado pelo diâmetro. Por
outro lado, se diz que o ângulo de contingência é parte do retângulo,
no qual há infinitos, e embora subtraindo-se finitamente dele diminui
a este; e por outro lado, o ponto é parte da linha, na qual há infinitos,
e a subtração finita dela não diminui a esta.
Retornando portanto ao meu tema, digo que a luz, por sua multi-
plicação infinita, que se efetua equanimemente em toda parte, estende
a matéria por toda parte equitativamente em forma esférica. Segue-se
necessariamente dessa extensão que as partes extremas da matéria mais
se estendem e mais se rarefazem do que as partes internas, próximas ao
centro. E visto que as partes extremas são sumamente rarefeitas, as
partes interiores ainda são suscetíveis a uma maior rarefação.
A luz, portanto, segundo esse modo predito, estendendo a maté-
ria primeira em forma esférica, e rarefazendo sumamente as partes ex-
tremas, atualiza completamente a possibilidade da matéria na esfera
extrema, esgotando sua suscetibilidade de uma impressão ulterior. E

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DA LUZ OU DO COMEÇO DAS FORMAS

assim o corpo primeiro na extremidade da esfera, chamado de


firmamento, é perfeito, nada tendo em sua composição a não ser ma-
téria primeira e forma primeira. E por isso é corpo simplíssimo, no
que diz respeito às partes que constituem a essência e a quantidade
máxima, não diferindo do gênero de corpo a não ser pelo fato de nele
a matéria estar completa apenas pela forma primeira. Mas o gênero de
corpo, que é e está nesse e em outros corpos, possuindo em sua essên-
cia matéria primeira e forma primeira, abstrai da atualização completa
da matéria pela forma primeira e abstrai igualmente da diminuição da
matéria pela forma primeira.
Assim, pois, completamente atualizado o primeiro corpo, que é o
firmamento, ele expande seu lume a partir de todas as suas partes no
centro do todo. Visto que a luz é a perfeição do primeiro corpo, que se
multiplica naturalmente a partir do corpo primeiro, é necessário que a
luz se difunda no centro do todo. E visto que é forma totalmente
inseparável da matéria, em sua difusão a partir do corpo primeiro,
estende consigo a espiritualidade da matéria do corpo primeiro. E as-
sim, do corpo primeiro, provém o lume, que é corpo espiritual, ou
melhor dizendo, espírito corpóreo. Em seu trânsito, esse lume não
divide o corpo pelo qual passa, e é por isso que de pronto, partindo do
corpo do primeiro céu atravessa até chegar ao centro. Tampouco seu
trânsito é tal como se compreendêssemos que alguma coisa una em
seu número atravessasse de pronto do céu ao centro – o que talvez seja
impossível – mas seu trânsito se dá pela sua multiplicação e pela gera-
ção infinita do lume. Esse lume, portanto, que provém do corpo pri-
meiro e se expande e se reúne no centro congregou a massa existente
sob o corpo primeiro; e visto que o corpo primeiro não pode dimi-
nuir, visto ser completamente atualizado e invariável, nem o lugar pode
tornar-se vazio, foi necessário que na congregação da massa, as partes
extremas se estendessem e fossem expandidas. E assim, nas partes inte-
riores dessa predita massa provém maior densidade, e nos extremos

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ROBERTO GROSSETESTE

aumenta a raridade; a potência do lume congregante foi tanta e em


congregando segregava, de tal modo que as próprias partes extremas
da massa contidas sob o corpo primeiro são sumamente subtilizadas e
rarefeitas. E assim, nas próprias partes extremas da predita massa, deveio
a esfera segunda, completamente atualizada, impossibilitada de rece-
ber qualquer impressão ulterior. E assim é a atualização completa e a
perfeição da segunda esfera: o lume é gerado da primeira esfera, e a luz,
que na primeira esfera é simples, é duplicada na segunda.
Mas como o lume gerado pelo primeiro corpo atualiza completa-
mente a segunda esfera, deixando a massa mais densa dentro da segun-
da esfera, assim o lume gerado da segunda esfera perfaz também a
terceira esfera e abaixo dessa terceira esfera, pela congregação, deixa
uma massa ainda mais densa. E dentro dessa ordem procede a essa
congregação desagregante até completar nove esferas celestes e sob a
nona, a mais baixa, congrega a massa densificada, que é a matéria dos
quatro elementos. Mas a esfera ínfima, que é esfera da lua, que gera
por si também um lume, por seu lume congrega a massa contida sob
si e congregando suas partes mais extremas as torna sutis e desagregadas.
Todavia, seu lume não é tão potente a ponto de, congregando, desa-
gregar sumamente suas partes extremas. Por isso, em todas as partes
dessa massa resta imperfeição e a possibilidade de receber congregação
e desagregação. E a parte suprema dessa massa é desagregada, não em
sumo grau, e embora por sua desagregação resulte o fogo, resta ainda a
matéria dos elementos. E esse elemento gerando de si um lume e con-
gregando a massa contida sob si, desagrega suas partes extremas, em-
bora sendo uma desagregação menor do que a do próprio fogo; e as-
sim produz o ar. – Também o ar, em gerando de si um corpo espiritual
ou um espírito corporal, e em congregando o que contém sob si, e
congregando o que lhe é exterior e desagregando produz água e terra.
Mas porque na água resta mais da força congregante do que desagregante,
também permaneceu dotada de peso, como a terra.

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DA LUZ OU DO COMEÇO DAS FORMAS

Desse modo, portanto, foram produzidas no ser treze esferas desse


mundo sensível: a saber, nove celestes, inalteráveis, que não podem
aumentar, ingeneráveis e incorruptíveis, visto serem completamente
atualizadas, e quatro que existem de modo contrário, alteráveis, que
podem aumentar, geráveis e corruptíveis, a saber, não completamente
atualizadas. – e é evidente, porque todo corpo superior, segundo o
lume que gera de si, é a forma (species) e a perfeição do corpo seguinte.
A terra é todos os corpos superiores por agregar em si os lumes
superiores. É por isso que é chamada de Pan pelos poetas, isto é, todo;
e é chamada igualmente Cibele, como se fosse cubile, derivado de cubo,
isto é, solidez, porque é maximamente compactada de todos os cor-
pos, ou seja, Cibele, mãe de todos os deuses, pois visto que nela estão
reunidos os lumes superiores, e embora não sejam originados a partir
dela por sua operação, é possível extrair dela a luz de qualquer das
esferas que queiras em ato e operação; e assim, a partir dela, como de
uma certa mãe, podes criar qualquer dos deuses. – Ademais, os corpos
intermediários se atém a duas disposições (habitudines). Em relação
aos inferiores, se atém pois como o primeiro céu em relação a todo o
resto; e em relação aos superiores, como a terra em relação a todo o
mais. E assim de algum modo em qualquer deles está todo o resto.
E a forma (specie) e a perfeição de todos os corpos é a luz: dos
corpos superiores é mais espiritual e simples, mas dos corpos inferiores
é mais corpórea e multiplacada. Tampouco todos os corpos são da
mesma forma (specie), embora provenientes da luz simples ou multi-
plicada, assim como nem todos os números são da mesma forma
(specie), embora sua reunião provenha da unidade pela multiplicação
maior ou menor.
E nessa fala talvez esteja expressa a intenção dos que afirmam “tudo
é um a partir da perfeição da luz una”, e a intenção dos que dizem “as
coisas que são muitas, são muitas pela multiplicação diversificada que
parte da mesma luz”.

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ROBERTO GROSSETESTE

E visto que os corpos inferiores participam da forma dos corpos


superiores, pela participação da mesma forma, o corpo inferior, junta-
mente com o corpo superior, recebe o movimento da mesma força
motiva incorporal, por cuja força motiva é movido o corpo superior.
Por causa disso, a força incorpórea da inteligência ou da alma, que
move a primeira e suprema esfera por um movimento diurno, move
todas as esferas celestes inferiores com o mesmo movimento diurno.
Mas quanto mais inferiores, tanto mais debilmente recebem esse mo-
vimento, pois quanto mais inferior a esfera, tanto menos pura e mais
débil é nela a luz corpórea primeira.
Mas, embora os elementos participem da forma do primeiro céu,
não são movidos pelo motor celeste de um movimento diurno. Mes-
mo que participando dessa luz primeira, não obedecem à força motiva
primeira, visto possuírem essa luz impura, débil, distanciada da pureza
que possui no corpo primeiro, e visto terem também densidade da
matéria, que é princípio de resistência e inobediência. Alguns porém
julgam que a esfera do fogo circula com um movimento diurno e
como significação disso colocam a rotação dos cometas, e dizem ade-
mais que esse movimento alcança até nas águas dos mares, de tal modo
que disso proviria o fluxo dos mares. Todavia, todos os que filosofam
retamente dizem que a terra é imune desse movimento.
Do mesmo modo, também as esferas que vêm depois da segunda
esfera, que contada de baixo para cima geralmente é chamada de oitava,
porque participam de sua forma, se comunicam todas com seu movi-
mento, o qual possuem como próprio, além de movimento diurno.
As próprias esferas celestes, porque são completamente atualizadas
e não podem receber rarefação ou condensação, nelas a luz não inclina
as partes da matéria a partir do centro, a fim de rarefazê-las, ou para o
centro, para condensá-las. E por causa disso, essas mesmas esferas ce-
lestes não podem receber movimento para cima ou para baixo, mas
somente o movimento circular a partir da força motiva intelectiva,

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DA LUZ OU DO COMEÇO DAS FORMAS

que reverberando corporeamente em si o aspecto faz com que essas


esferas circulem com uma rotação corpórea. Mas os elementos, visto
serem incompletos, passíveis de rarefação e condensação, o lume que
está neles os inclina do centro para que se rarefaçam ou ao centro para
que se condensem. E por causa disso são naturalmente móveis para
cima ou para baixo.
Mas no corpo supremo, que é o mais simples dos corpos, podem
ser encontrados quatro constituintes, a saber, forma, matéria, compo-
sição e composto. – A forma, porém, enquanto simplíssima, obtém o
lugar da unidade. – A matéria, por causa de sua dupla potência, a saber,
suscetibilidade a impressões e receptibilidade das mesmas, e também
por causa da densidade que é radicalmente própria à matéria, pela qual
provém por primeiro e de princípio a dualidade, libera com razão a
natureza da dualidade. – Mas a composição é ternária, visto que nela se
mostra a matéria formada e a forma materializada e a propriedade
dessa composição, que é descoberta em todo e qualquer composto
como um terceiro diferente da matéria e da forma. E o que é o com-
posto como próprio, além desses três, vem compreendido como o
quarto número. No primeiro corpo, portanto, no qual estão virtual-
mente os outros corpos, estão quatro constituintes, e por isso, radical-
mente, o número dos outros corpos não vem encontrado além de dez.
com efeito, a unidade da forma, a dualidade da matéria, a trindade da
composição e a quaternidade do composto, quando agregados for-
mam dez. Por isso, o dez é o número dos corpos das esferas do mun-
do, porque a esfera dos elementos, embora dividida em quatro, é una
pela participação da natureza corruptível da terra.
A partir disso, fica evidente que o dez é o número perfeito do
universo, porque qualquer todo e perfeito possui em si algo de acordo
com forma e unidade, e algo de acordo com a matéria da dualidade, e
algo de acordo com a composição e a trindade, e algo de acordo com
o composto e a quaternidade. Não se consegue adicionar um quinto a
esses quatro. Por causa disso, qualquer todo e perfeito é dez.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 149-158, jul./dez. 2009 157


ROBERTO GROSSETESTE

Isso porém é manifesto que só as cinco proporções descobertas


nesses quatro números, um, dois, três, quatro, são aptas para a com-
posição e para a concórdia, que dão estabilidade a qualquer composto.
Por causa disso, só essas cinco proporções são harmônicas nas modula-
ções, nas gesticulações e nos ritmos temporais da música.
Finda o tratado Da luz, do Linconiense.

158 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 149-158, jul./dez. 2009


[GRAVAÇÃO DA LUZ]

[GRADAÇÕES DA LUZ]
Nicolau de Cusa*

Todavia, voltando-nos de modo mais amplo à segunda parte da


questão, vejamos de que modo podemos ser conduzidos a subir os
degraus da dita teoria, uma vez que não somos movidos a buscar o que
é totalmente ignorado. E para indagarmos isso, voltemo-nos nova-
mente à visão.
Em primeiro lugar, para que a visão compreenda com discerni-
mento o visível, concorrem duas luzes. Isso porque o que impõe o nome
às cores não é o espírito da visão mas o espírito de seu gerador, que está
nela. Mas o espírito que desce do cérebro ao olho pelas veias óticas é pres-
sionado pelo impedimento da imagem do objeto e surge uma sensação
confusa. O espírito do vivente animado se admira dessa sensação e esforça-
se a fim de poder discernir. Não é o espírito que está no olho que discerne,
portanto, mas o que opera o discernimento nele é o espírito mais elevado.
Podemos descobrir isso como verdadeiro em nós, pois, pelos experimen-
tos cotidianos. Muitas vezes acontece de não apreendermos coisas que
passam diante de nossos olhos, embora suas imagens se multipliquem no
olho, uma vez que delas não nos advertimos por estarmos prestando
atenção em outras coisas; e de muitas coisas que nos são ditas só com-
preendemos aquilo em que está nossa atenção.
O que nos mostra que isso é verdadeiro, porque a luz mais eleva-
da, a saber, a luz da razão, do espírito, que está no sentido, toca a

* Textos extraídos de NICOLAU DE CUSA, De quaerendo Deum. In: Philosophisch-


theologische Schriften, vol. II. Ed. por Leo Gabriel. Wien: Herder, 1966, p. 584-590;
id. De filiatione dei,p. 666-670. Tradução de Enio Paulo Giachini.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 159-164, jul./dez. 2009 159


NICOLAU DE CUSA

operação de sua atividade. Quando o olho portanto afirma que isso é


vermelho, isso é azul, não é o olho que fala mas nele fala o espírito de
seu pai, a saber, o espírito animado, de quem é o olho aqui.
Mas mesmo que haja ali a atenção daquele que quer ver, nem por
isso a cor ainda é visível. É preciso que o próprio visível se torne visível
através de um outro lume do iluminante. Na sombra e nas trevas, o
visível não tem aptidão para ser visto. Sua adaptação é feita pelo lume,
que ilumina o mesmo. Assim como o visível não está apto a ser visto
a não ser no lume, uma vez que por si não pode ingerir-se no olho,
assim tem necessidade de ser iluminado, uma vez que seu lume é pró-
prio da natureza, que por si se ingere no olho. Assim, portanto, o
visível pode ingerir-se no olho quando está no lume, que tem a força
de ingerir-se. Mas, no lume, a cor não está como se estivesse em alheio,
mas como em seu princípio, uma vez que a cor nada mais é que a
delimitação da luz no diáfano, como vemos no arcoíris. Assim, con-
forme o raio do sol é delimitado a cada vez de modo diverso na nu-
vem de água, surge cada vez uma cor diferente.
Sendo que é manifesto que a cor é visível em seu princípio, a saber,
na luz, visto que a luz extrínseca e o espírito visivo se comunicam na
claridade. Por isso, aquela luz que ilumina o visível se ingere na luz
comparsa e aduz à visão a imagem da cor que lhe vem ao encontro.
Com base nisso, irmão, prepara para ti um caminho de investiga-
ção dos modos como o Deus desconhecido está postado previamente
disponibilizando tudo aquilo pelo qual somos movidos na direção
dele. Pois, mesmo que constates claramente que é o espírito animado
que discerne no espírito do olho e que é o lume que torna o visível
apto a ser visto, a visão não compreende o que seja o próprio espírito
ou o lume. O lume não pertence à região das cores uma vez que não é
colorido. Em toda a região, portanto, em que o olho rege, ele não é
encontrado. O lume é pois desconhecido ao olho e mesmo assim é
deleitável à visão.
Assim como a ratio, que discerne as coisas visíveis no olho, é pois
discretiva, assim é o espírito intelectual que intelige na razão, e é o

160 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 159-164, jul./dez. 2009


[GRAVAÇÃO DA LUZ]

espírito divino que ilumina o intelecto. Mas o lume discretivo animal


presente no olho, no ouvido, na língua, no nariz e no nervo onde
vigora o tato, é o lume uno recebido de modo variado em vários ór-
gãos, a fim de que segundo a variedade dos órgãos discirna variadamente
as coisas do mundo sensível. E esse mesmo lume é o princípio, o meio
e o fim dos sentidos, uma vez que a finalidade dos sentidos nada mais
é que discernir as coisas sensíveis; nem são os sentidos a partir de outra
coisa a não ser a partir daquele espírito e tampouco se movem em
outra coisa. Nele vivem todos os sentidos. A vida da visão é ver, e a
vida do ouvido é ouvir, e quanto mais perfeita é essa vida tanto mais
discretiva. A visão que distingue de modo mais perfeito o visível é
mais perfeita, e assim do ouvido.
A vida, portanto, e a perfeição, a alegria e a quietude e o que quer
que todo sentido deseje estão no espírito discretivo, e dele têm tudo
quanto têm, e mesmo quando os órgãos perdem força e a vida ativa
neles diminui, não diminui no espírito discretivo, do qual recebem a
mesma vida, uma vez tendo sido removida a falta ou a enfermidade.
Concebe do mesmo modo a respeito do intelecto, que é o lume
da razão discretiva, e dele eleva-te para Deus, que é o lume do intelec-
to. E quando percorres passando por aquilo que foi descoberto na
visão, descobres como nosso Deus, bendito nos séculos, é assim tudo
aquilo que é em qualquer coisa, assim como o lume discretivo nos
sentidos e o intelectual nas coisas da razão, e que ele próprio é aquilo
através de que a criatura tem o que é, sua vida e seu movimento, e em
seu lume está todo nosso conhecimento, de modo que não somos nós
que conhecemos mas antes é ele [que conhece] em nós. Assim, do
mesmo modo que o ser da cor depende da luz corpórea, também o
conhecimento da cor depende da mesma luz, como dissemos acima.
É preciso, pois, ficarmos atentos ao fato de que, em suas obras, o
Deus admirável criou a luz, que por sua simplicidade ultrapassa em
excelência os demais corpos, de modo a constituir-se num intermédio
entre a natureza espiritual e a natureza corpórea, através do qual esse
mundo corpóreo ascende como que por seu elemento simples para o

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 159-164, jul./dez. 2009 161


NICOLAU DE CUSA

mundo espiritual. Transfere pois as figuras para a visão, de tal modo


que a forma do mundo sensível ascenda para a razão e para o intelecto,
e pelo intelecto atinja seu fim em deus. Assim, pois, também o pró-
prio mundo avança no ser, a fim de que, pela participação da luz, esse
mundo corpóreo seja o que é; e as coisas corpóreas são consideradas
tanto mais perfeitas no gênero corpóreo quanto mais participam da
luz, como podemos constatar gradativamente nos elementos. Assim
pois a criatura que possui o espírito vital tanto mais perfeita é quanto
mais participa do lume da vida. E assim a criatura de vida intelectual é
tanto mais perfeita quanto mais participa da vida do lume intelectual.
Mas Deus é imparticipável e luz infinita, luzindo em todos, como
a luz descritiva nos sentidos. Mas conforme a diferente determinação
da luz que não pode ser participada nem misturada mostra-se também
a variação da criatura, como a variação da determinação da luz corpó-
rea no diáfano mostra cores diversas, embora a própria luz permaneça
não misturável. ...
***
... Resta agora que ponderemos aquele dito apostólico que afirma
que Deus é o pai das luzes. Não diz que ele é luz, mas pai das luzes,
nem afirma que ele é trevas, aquele que afirma ser pai das luzes. Ele é
porém fonte das luzes. Nós afirmamos existir aquilo de que temos
notícia. Aquilo que de modo algum nos aparece não apreendemos
como existindo. Todas as coisas, portanto, são aparições ou certos lu-
mes. Mas, visto que um é o pai e a fonte das luzes, todas as coisas são
aparições do Deus uno, que mesmo sendo uno não pode aparecer a
não ser em variedade. Como pois pode aparecer a virtude infinita em
outro modo que na variedade?
Quando um intelectual possui um intelecto adquirido, potente e
prático não poderá mostrar-se a não ser na variedade de muitas razões.
Assim, portanto, diversas luzes racionais, silogísticas de tal intelecto,
que é o pai das luzes, descendem para que assim se manifeste. A unida-
de, princípio simples do número, é de uma forma máxima e incom-

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[GRAVAÇÃO DA LUZ]

preensível, e a manifestação dessa força não se mostra a não ser na


variedade dos números que descendem dessa força. A força desse pon-
to simplíssimo é incompreensível, e é percebida apenas nas quantida-
des que descendem desse ponto simplíssimo como que em luzes di-
versas. A presencialidade simplíssima é uma força incompreensível,
que só pode ser compreendida na sucessão temporal.
Tudo portanto que é segundo o número é na unidade, tudo que é
segundo a quantidade é no ponto, tudo que é segundo a sucessão tem-
poral é no agora da presença, e tudo que é segundo aquelas coisas que
são, eram ou poderão ser é na força infinita da onipotência. Nosso
Deus é de modo absoluto a força infinita, totalmente em ato; ele quer
se manifestar a partir da natureza de sua bondade e de si faz descender
diversas luzes, chamadas de teofanias. Nessas luzes todas torna mani-
festas as riquezas da luz de sua glória.
Mas essa geração que ele faz voluntariamente, não tendo nenhuma
causa a não ser sua bondade, é feita pelo verbo da verdade. O verbo da
verdade é a razão ou a arte absoluta, ou o que se pode chamar de razão
de toda razão. Nesse lume, que é também verbo e filho primogênito e
aparição suprema do pai, o pai das luzes gera voluntariamente todas as
aparições descendentes, a fim de coimplicar todas as luzes aparentadas
na força suma e na fortaleza da união das manifestações; como que
numa filiação separada de toda filiação como quer que seja ex-plicada,
e na arte universalíssima tudo que pode ser ex-plicado pela arte o tanto
possível, e na razão ou discreção absoluta toda luz, como quer que seja
discernente.
Ele nos gerou portanto naquele verbo de arte e aparição eterna, a
fim de que, ao recebermos em descenço a luz de sua manifestação, que
é o verbo infinito, modo pelo qual pode ser recebida por nós em
descenço, sejamos certo início de sua criatura. A recepção do mostrar-
se do pai, portanto, no verbo em descenço, possibilita o início da cri-
atura. Através disso, pois, somos certo início de sua criatura, porque
recebemos, ao nosso modo, o verbo da verdade no qual ele nos gerou.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 159-164, jul./dez. 2009 163


NICOLAU DE CUSA

Acima foi mostrado de maneira satisfatória que a recepção se faz


em descenço, a fim de que o lume eterno e universal dê início à criatu-
ra particular, para que desse modo surja uma criatura tendo seu início
primigênio no verbo da verdade. Nós somos portanto geração de Deus,
pois ele nos gerou. Mas nos gerou num filho um, que é o verbo da
verdade, ele fez com que tivéssemos certo início de sua criatura.
E assim como no verbo ou na razão ou na arte da humanidade todos
os homens foram assim gerados a fim de, pela geração da humanidade,
receberem o fato de serem certo início de ser homens particulares, assim na
geração da verdade universal, tudo aquilo que é de um modo verdadeiro,
é gerado de tal modo a ser certo início da criatura gerante.
Sendo que, todas as coisas que de algum modo são, são enquanto
são verdadeiras. Isso porque o falso não é. Motivo por que na geração
eterna da verdade, são eternamente geradas e enquanto tais são a pró-
pria virtude (virtus força) eterna da verdade. E quando aparecem na
sucessão temporal, dela recebem serem certo início da criatura gerante
do pai. Como o ramo da árvore, que vejo agora ter início na árvore,
anteriormente foi gerado na semente não como ramo mas como se-
mente. A verdade do ramo estava pois na verdade da razão da semente.
A verdade da semente é portanto a verdade do ramo. A verdade da
força, portanto, toma certo início de ser, como ramo, por exemplo,
que é como que uma criatura da semente, de cuja força brota. A verda-
de do ramo, portanto, que na verdade da semente sempre foi gerada
junto com a semente, por sua aparição aparece agora mostrando a for-
ça da semente de seu pai.
Assim vemos claramente como, no divino, o filho é a mostração
verdadeira do pai segundo a onipotência absoluta e a luz infinita. Mas
toda criatura é mostração do pai, participando de modo variado e
contracto da mostração do filho; e umas criaturas mostram-no de modo
mais obscuro, outras de modo mais claro, segundo a variedade das
teofanias ou aparições de Deus.

164 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 159-164, jul./dez. 2009


ENSAIO DE UMA TEORIA DAS CORES

ENSAIO DE UMA TEORIA DAS CORES


[EXTRATOS]*
J. W. Goethe

Parte didática

Si vera nostra sunt aut falsa, erunt


talia, licet nostra per vitam defendimus.
Post fata nostra pueri qui nunc ludunt
nostri judices erunt.

Introdução

O prazer de saber é provocado no homem primeiramente pelo


fato de ele dar-se conta de fenômenos significativos que chamam sua
atenção. Mas para que esse permaneça de modo duradouro, será preci-
so encontrar uma participação mais íntima que nos torne cada vez
mais conhecidos com os objetos. Só então percebemos uma grande
multiplicidade que se precipita ao nosso encontro como uma multi-
dão. Nos vemos obrigados a discernir, distinguir e recompor, através
do que, finalmente, surge uma ordem que mostra ser mais ou menos
satisfatória.
Conseguir isso nalgum âmbito, mesmo que apenas em certa me-
dida, exige um empenho rigoroso e persistente. É por isso que vemos

*
Extrato de textos tirado de J. W. GOETHE, Farbentheorie, em http://www.textlog.de/
goethe_farben.html, consultado em 05 de setembro de 2009. Tradução de Enio Paulo
Giachini.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 165-172, jul./dez. 2009 165


J.W. GOETHE

que, em geral, as pessoas preferem livrar-se dos fenômenos através de


uma visão teórica geral, através de algum modo de esclarecimento, ao
invés de dar-se ao esforço de aprender a conhecer o singular e construir
uma totalidade.
A proposição e composição das manifestações das cores só foi pro-
posta duas vezes, a primeira vez por Teofrasto e, depois dele, Boyle. À
atual tentativa não se contestará o terceiro intento.
Uma relação mais detalhada nos é narrada pela história. Aqui diga-
mos apenas o tanto que no século passado não se pôde pensar em tal
composição, uma vez que Newton impôs como fundamento de sua
hipótese um intento intrincado e secundário, sobre o qual se referiam
artificialmente as demais manifestações advenientes, quando não se
podia emudecê-las e eliminá-las, circundando-as com relações temero-
sas, como deveria proceder um astrônomo que por ilusão ou mania
quer colocar a lua no centro de nosso sistema. Seria preciso mover e
fazer circular a terra, o sol com todos os demais planetas ao redor dos
corpos subalternos e através de cálculos artificiais e modos de represen-
tação para poder maquiar e embelezar o erro de sua primeira hipótese.
Mas passemos adiante, recordando o que apresentamos acima no
prefácio. Ali pressupomos que a luz seria conhecida, aqui fazemos o
mesmo com o olho. Dissemos: Toda a natureza se revela ao sentido do
olho através da cor. Agora, mesmo que pareça um tanto estranho,
afirmamos que o olho não vê nenhuma forma, na medida em que
apenas o claro, o escuro e a cor juntos perfazem aquilo que distingue
para o olho o objeto do objeto, as partes do objeto entre si. E assim, a
partir desses três, construímos o mundo visível e através disso também
possibilitamos a pintura, a qual pode trazer à tona no quadro um
mundo visível bem mais perfeito do que pode ser o real.
O olho deve sua existência à luz. De órgãos auxiliares neutros, a
luz chama ao surgimento um órgão que se torna igual a ela própria; e
assim se forma o olho na luz para a luz, a fim de que a luz interior vá
ao encontro da exterior.

166 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 165-172, jul./dez. 2009


ENSAIO DE UMA TEORIA DAS CORES

Aqui relembramos a velha escola jônica, que repetia sempre de


novo com grande significação: só se conhece o igual pelo igual, assim
como das palavras de um velho místico, que podemos expressar nas
rimas vernáculas do seguinte modo:
Se o olho não fosse aparentado com o sol (sonnenhaft),
Como poderíamos a luz olhar?
Se a própria força de Deus não habitasse em nós
Como o divino poderia nos encantar
Ninguém irá negar aquele imediato parentesco da luz com o olho,
mas pensar que os dois são simultaneamente um e o mesmo, isso
torna-se mais difícil. Entrementes, torna-se mais compreensível se afir-
mamos que no olho habita uma luz em repouso (ruhendes) que já se vê
acionada pela mínima motivação interior ou exterior. Na escuridão, acio-
nando a imaginação, podemos produzir as mais claras imagens. No so-
nho, os objetos se nos aparecem como em pleno dia. Em estados de vigília
torna-se perceptível para nós o mais tênue influxo de luz exterior, e
quando o órgão sofre um toque mecânico, brotam luz e cores.
Mas, talvez, aqui, aqueles que costumam proceder de acordo com
certa ordem observem que nem sequer explicitamos decididamente o
que seja cor. Novamente fazemos questão de evitar aqui essa pergunta,
remetendo-nos à nossa exposição onde mostramos
pormenorizadamente como ela se mostra. Pois, também aqui nada
nos resta a não ser repetir que a cor é a natureza regular em relação com
o sentido do olho. Também aqui devemos supor que alguém tenha
esse sentido, que alguém conheça o influxo da natureza sobre esse sen-
tido: pois não se pode falar de cores com os cegos.
Mas a fim de não evitarmos angustiadamente uma explicação,
queremos descrever o que foi dito antes do seguinte modo. A cor seria
um fenômeno elementar da natureza para o sentido do olho, que se
manifesta, como todos os demais, através de separação e contraposi-
ção, através de mistura e unificação, através de elevação e neutraliza-

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 165-172, jul./dez. 2009 167


J.W. GOETHE

ção, através de comunicação e distribuição e assim por diante, e que o


melhor modo em que pode ser visto e concebido é sob essas fórmulas
gerais da natureza.
Não podemos impingir a ninguém esse modo de representar as
coisas. Quem as encontra sossegadamente como nós as encontramos
irá assumi-las em si com gosto. Tampouco sentimos prazer em defendê-
las de ora em diante a ferro e fogo. Isso porque, desde antigamente, há
um certo risco em tratar de cores, de tal modo que um de nossos
predecessores ocasionalmente ousava expressar: Quando mantemos um
pano vermelho em frente a um touro, ele fica furioso, mas se simples-
mente falamos de cores a um filósofo ele começa a enfurecer-se.
Todavia, se agora quisermos prestar alguma explicação de nossa
exposição, a que nos referimos, devemos antes de mais nada mostrar
como discernimos os diversos condicionamentos sob os quais a cor
pode se mostrar. Encontramos três modos de manifestação, três tipos
de cores, ou se quisermos, três visões do mesmo, cuja diferença pode
ser expressa.
Consideramos então, primeiramente, as cores na medida em que per-
tencem ao olho e na medida em que repousam numa ação (Wirkung) e
reação (Gegenwirkung) do mesmo; depois, chamam nossa atenção na
medida em que as divisamos em meios incolores ou através de sua ajuda;
mas por fim tornam-se perceptíveis a nós na medida em que podemos
pensá-las como pertencendo aos objetos. Chamamos às primeiras de fi-
siológicas, às segundas chamamos de físicas, e às terceiras, cores químicas.
Aquelas são incontidamente fugidias, as segundas são passageiras, mas em
todo caso como que se demorando, morosas (verweilend), e as últimas
devem ser firmadas até sua duração ulterior.
Ora, na medida em que nós as distinguimos e as mantemos o
máximo possível separadas umas das outras nessa ordem natural, para
fins de uma exposição didática, nos ocorreu ao mesmo tempo a idéia

168 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 165-172, jul./dez. 2009


ENSAIO DE UMA TEORIA DAS CORES

de apresentá-las numa série seguida, acoplando as fugidias com as


morosas e essas novamente com as duradouras, suspendendo assim a
cuidadosa divisão feita em princípio para uma visão mais elevada.
Aqui, numa quarta partição de nosso trabalho – o que até ali foi
percebido das cores sob diversas condições específicas – planejamos o
esboço de uma futura teoria das cores, expressa em termos gerais e
assim de modo próprio. E assim, por ora, adiantamos apenas que para
poder se produzir cor exige-se haver luz e escuridão, claro e escuro, ou,
se quisermos nos servir de uma fórmula genérica, luz e não-luz. Ime-
diatamente junto à luz surge-nos uma cor que chamamos de amarelo,
uma outra imediatamente junto à escuridão, que designamos com a
palavra azul. Se misturarmos essas duas, em seu estado o mais puro, de
tal modo que mantenham plenamente o equilíbrio equitativo, acaba-
se gerando uma terceira que chamamos de verde. Mas aquelas duas
primeiras cores podem também gerar, cada uma em si mesma, uma
nova mostração, na medida em que se adensam ou se escurecem. Ad-
quirem um aspecto vermelho, que pode se intensificar num grau tão
elevado a ponto de quase já não mais se poder reconhecer nelas o azul
e o amarelo originários. No entanto, o vermelho puro e o mais eleva-
do pode ser gerado preferentemente em termos físicos pelo fato de
unificarmos os dois extremos do amarelo-vermelho e do azul-verme-
lho. Essa é a visão viva da mostração e da geração das cores. Mas tam-
bém é possível admitir acrescentar ao azul um vermelho feito ou um
amarelo feito especificado, e assim retrospectivametne produzir pela
mistura o que foi operado antes pela intensificação. A doutrina ele-
mentar das cores tem a ver apenas com essas três ou seis cores, que
podem tranquilamente ser inseridas num círculo. Todas as demais
modificações, que podem ser infinitas, pertencem mais ao aparenta-
do, pertencem à técnica do pintor, do colorista, e sobremodo à vida.
Mas se tivermos que expressar ainda uma propriedade geral, então
podemos perfeitamente considerar as cores como meio-luzes, como

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 165-172, jul./dez. 2009 169


J.W. GOETHE

meio-sombras, uma vez que também quando misturadas suspendem


mutuamente suas propriedades específicas, gerando um sombreado,
um cinzento....
758. ... Influência sensorial-ética da cor
E uma vez que a cor ocupa um posto tão elevado na série das
manifestações proto-originárias da natureza, preenchendo com uma
multiplicidade decisiva o círculo simples a ela destinado, não nos de-
vemos admirar se experimentarmos que, por si só, ela produz um efei-
to específico sobre o sentido do olho; quando composta produz nele
um efeito em parte harmônico, em parte característico, e muitas vezes
também um efeito desarmônico, mas em todo caso sempre um efeito
decisivo e significativo que vem imediatamente ligado com o ético. A
cor se adapta primorosamente ao sentido do olho e através dessa me-
diação, por suas manifestações elementares mais genéricas, exerce tais
efeitos no humor, sem qualquer relação com a compleição ou com a
forma de um material no qual nós as percebemos. É por isso, então,
que a cor, considerada como um elemento da arte, pode ser usado
como um elemento que influi nos fins mais elevados da estética.
759. Via de regra, os homens sentem uma grande alegria na cor. O
olho precisa dela como precisa da luz. Basta recordar-nos da sensação
de leveza que sentimos quando, num dia cinzento, se abre o sol mes-
mo que iluminando apenas um determinado espaço e as cores o tor-
nam visível. O fato de atribuirmos forças curativas às pedras preciosas
coloridas pode provir do sentimento profundo desse gosto agradável
inexprimível.
760. As cores que vemos nos corpos não são, por exemplo, algo
totalmente estranho ao olho, através de que, só então, ele como que
seria cunhado nessa sensação; não. Esse órgão está sempre na disposi-
ção de produzir ele próprio cores, e goza de uma sensação agradável
quando algo concorde com sua própria natureza lhe vem ao encontro

170 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 165-172, jul./dez. 2009


ENSAIO DE UMA TEORIA DAS CORES

de fora, quando sua determinibilidade é definida, significativamente,


segundo um certo aspecto.
761. Da idéia dos contrapostos da manifestação, do conhecimen-
to que adquirimos das determinações específicas dos mesmos, pode-
mos concluir que as impressões singulares das cores não podem ser
confundidas e que atuam de modo específico, devendo provocar esta-
dos específicos decisivos no órgão vital.
762. Precisamente assim, também no humor. A experiência nos
ensina que as cores singulares geram estados de humor específicos.
Conta-se de um espirituoso francês: il prétendoit que son ton de
conversation avec Madame étoit changé depuis qu’elle avoit changé en
cramoisi le meuble de son cabinet que étoit bleu.
763. Para sentir perfeitamente esses efeitos significativos singula-
res será preciso entornar o olho completamente com uma só cor, por
exemplo encontrar-se num quarto pintado onde haja só uma cor, ver
através de um vidro colorido. Então identificamo-nos com essa cor;
ela coloca em sintonia uníssona olho e espírito....

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 165-172, jul./dez. 2009 171


RESENHAS
AL-FARABI: DE SCIENTIIS

AL-FARABI: DE SCIENTIIS
Prof. Dr. Jakob Hans Josef Schneider
Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, Brasil

Al-Farabi (875-950) De scientiis secundum versionem Dominici Gundisalvi.


Über die Wissenschaften. Die Version des Dominicus Gundissalinus, Latei-
nisch-Deutsch, übersetzt und eingeleitet v. Jakob Hans Josef Schneider,
in: Herders Bibliothek der Philosophie des Mittelalters (HBPhMA), ed.
Matthias Lutz-Bachmann/Alexander Fidora/Andreas Niederberger, Vol.
9: Al-Farabi, De scientiis. Über die Wissenschaften, Freiburg i. Br./Basel/
Wien 2006 (ISBN: 10:3-451-28685-8)

Este livro é a tradução latina do Kitab Ihsa’ al ‘Ulum de Al-Farabi feita


por Dominicus Gundissalinus. Há mais uma tradução latina desse livro
feita por Gerhard de Cremona; mas a tradução de Gundissalinus foi mais
influente na Idade Média, elaborada no seu De divisione philosophiae, ape-
sar da tradução de Gerhard estar muito mais perto do original árabe. Além
disso, a tradução de Gundissalinus é mais filosófica e por isso muito mais
efetiva na Idade Média; ao passo que a de Gerhard é uma tradução escrava
de palavra por palavra sem o sentido geral do conteúdo do texto. Gerhard
não entende de filosofia quase nada; enquanto Gundissalinus é um filóso-
fo e tradutor que entende o sentido, o intuito e os objetivos dos textos
filosóficos árabes que ele traduz.
Al-Farabi é o “primeiro filósofo” do mundo árabe, chamado por
seus companheiros o “mestre segundo”, depois Aristóteles: o “mestre
primeiro”. Ele comentou todas as obras de Platão e de Aristóteles,
queria reunir as duas filosofias; comparável com A. M. S. Boécio, que
tentou fazer a mesma interpretação da harmonização de Platão e
Aristóteles.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 175-179, jul./dez. 2009 175


PROF. DR. JAKOB HANS JOSEF SCHNEIDER

O livro de Al-Farabi é um livro do futuro medieval abrindo a


formação escolar fechada nas septem artes liberales1 . Põe ordem nas
disciplinas filosóficas com base nos princípios das várias ciências: o
trivium: gramática, lógica ou dialética e retórica; e o quadrivium: arit-
mética, geometria, música e astronomia ou astrologia (como a nossa
época está falando erradamente por causa da “logia” no termo de astro-
logia). Novas ciências acrescentam, por exemplo, a perspectiva2 , a ótica
e a medicina. O ponto de vista da ordem das ciências é o de teórica e
prática. Cada ciência tem um aspecto prático e teórico; por exemplo, a
música, trata das harmonias em si (teórica) e está referida a um instru-
mento ou a uma voz (prática). Ou a aritmética, que se ocupa dos
números em si ou dos números em relação à prática, que chama-se
economia ou contabilidades das feiras. Todas as ciências têm este dois
aspectos: teórico e prático! Isso é uma novidade nas divisões das ciên-
cias na Idade Media, que tem uma grande tradição. Nós temos uma
literatura ampla das divisões das ciências na Idade Media (cf. Martin
GRABMANN3 e Jakob Hans Josef SCHNEIDER4 ), que se pode

1. SCHNEIDER, Jakob Hans Josef. „artes liberales”, em: Der Neue Pauly. Enzyklopädie
der Antike, ed. M. Landfester, Bd. 13: Rezeptions- und Wissenschaftsgeschichte, Stuttgart/
Weimar, 1999, pp. 273-278. SCHNEIDER, Jakob Hans Josef. „Trivium”, em:
Historisches Wörterbuch der Philosophie. ed. por. RITTER, Joachim (†); GRÜNDER,
Karlfried. Vol. 10, Basel/Darmstadt, 1998, pp. 1517-1520.
2. BAEUMKER, Clemens. Witelo. Ein Philosoph und Naturforscher des XIII. Jahrhunderts
(Beiträge zur Geschichte der Philosophie und Theologie des Mittelalters, 3/2), Münster,
1908, 21991.
3. GRABMANN, Martin. Die Geschichte der scholastischen Methode. Nach den gedruckten
und ungedruckten Quellen bearbeitet, 2 Bde., Berlin 1988, p. 28. Cf. PANNENBERG,
Wolfgang. Wissenschaftstheorie und Theologie. Frankfurt a. M. 1987.
4. SCHNEIDER, Jakob Hans Josef.Wissenschaftseinteilung und institutionelle Folgen,
Philosophy and Learning. Universities in the Middle Ages, ed. by HOENEN, Maarten
J. F. M.; SCHNEIDER, Jakob Hans Josef; WIELAND, Georg. Leiden/New York/
Köln, 1995, 63-121 (Education and Society in the Middle Ages and Renaissance, ed.
by MIETHKE, Jürgen; COURTENAY, William J.; CATTO, Jeremy. Bd. 6).

176 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 175-179, jul./dez. 2009


AL-FARABI: DE SCIENTIIS

entender como uma introdução à filosofia e às ciências, inclusivemente


com as tarefas do currículo escolar nas novas universidades medievais
nascidas no fim do século XII e difundidas no século XIII na Europa
Latina. A idéia da universidade altera totalmente a formação escolar
medieval nas escolas monásticas, que têm agora só uma importância
preparatória para a entrada na universidade, representada pela faculda-
de de artes, equivalente à filosofia, da faculdade de teologia e da facul-
dade de direito e de medicina, sendo que essas últimas duas não exis-
tem em todas as universidades: o direito, sobretudo em Bologna (Itá-
lia) e a medicina em Palermo (Itália) e Montpelliers (França).
Este desenvolvimento significa uma grande mudança na cultura
cristã medieval; primeiramente a separação rigorosa da filosofia e da
teologia e depois a abertura da intelectualidade cristã para a filosofia
pagã. Fé e razão se diferenciam; quer dizer, a razão está se abrindo para
todas as ciências. Igualmente o cientificismo e a profissionalização do
entendimento da realidade e do mundo são os caracteres dessa época.
Tem a ver com a autonomia da ciência sem relacionamento com a
religião. Além disso, temos a grande recepção das ciências do mundo
árabe, sobretudo pelas traduções dos textos árabes em Toledo, Espa-
nha, de Aristóteles e de Platão e suas escolas: o aristotelismo e o
platonismo Medieval.5
Nesse âmbito o De scientiis de Al-Farabi alcança sua maior impor-
tância. Aquele é um verdadeiro filósofo, um “verdadeiro companheiro

SCHNEIDER, Jakob Hans Josef.Al-Farabi e o aristotelismo na Idade Média Latina –


O De scientiis de Al-Farabi, em: A cidade de Deus e A cidade dos homens. De Agostinho a
Vico. Festschrift para Luis Alberto De Boni, Vol. I, ed. por STEIN, Ernildo. Porto
Alegre, Brasil, 2004, pp. 391-408.
5. SCHNEIDER, Jakob Hans Josef. Al-Farabi: De scientiis. On the Division of Sciences.
Arabic Philosophy in the Latin Middle Ages, em: DE BONI, Luis Alberto; PICH,
Roberto Hofmeister (eds.). A recepção do pensamento greco-romano, árabe e judaico pelo
Ocidente Medieval. Porto Alegre, 2004, pp. 113-138.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 175-179, jul./dez. 2009 177


PROF. DR. JAKOB HANS JOSEF SCHNEIDER

do ser humano” (Platão, Sofistes, 216a–d), que compreende com um


conhecimento certo a ciência de todas as coisas. A ciência, quer dizer, a
filosofia é – segundo Aristóteles, Metafísica II, 1. 993 b 19-20 e 993 b
23-24 – uma pesquisa e investigação dos princípios e das causas de
todas as coisas, sejam humanas ou divinas: Marcus Túlio Cícero (De
officiis II, 5), o “studium sapientiae”, o saber, respectivamente a ciência,
é a “rerum divinarum et humanarum causarumque […] scientia”.6
Por causa disso, a intenção do De scientiis de Al-Farabi é simplesmente
a seguinte: explicar e esclarecer os princípios e os métodos de todas as
ciências conhecidas para facilitar o estudo delas. Para instruir aqueles
que querem se orientar nas ciências antes do estudo delas; para desco-
brir as preferências do estudo; quer dizer, para ajudar aqueles que que-
rem estudar uma das ciências propostas que deveriam existir na cidade;
ou para um convite de uma meio-formação nas ciências, uma forma-
ção superficial, para conseguir acompanhar o discurso científico e filo-
sófico na cidade. Porque, alguém que está consultando um médico
tem que saber algo sobre a medicina para não correr risco quanto à
saúde; ou alguém que está construindo uma casa tem que saber algo
sobre a geometria e a estática dos muros; ou alguém que está falando e
se comunicando com seu próximo tem que saber as regras do idioma
falado; ou alguém que está pesquisando e filosofando tera que saber
algo sobre objeto das questões. O De scientiis de Al-Farabi é uma in-
trodução nas ciências, orientada nos princípios e nos métodos das ciên-
cias conhecidas e necessárias numa sociedade humana7 .

6. SCHNEIDER, Jakob Hans Josef. Philosophie II. Christliche Spätantike, Mittelalter,


em: Historisches Wörterbuch der Rhetorik, Vol. VI, Tübingen: Max Niemeyer Verlag,
2003, pp. 986–1001.
7. MCKEON, Richard. The Organisation of Sciences and the Relations of Cultures in
the Twelfth and Thirteenth Centuries, The Cultural Context of Medieval Learning.
Proceedings of the First International Colloquium on Philosophy, Science, and Theology
in the Middle Ages – September 1973 (Boston Studies in the Philosophy of Science, 26),
eds. MURDOCH, J. E.; SYLLA, E. D. Dordrecht/Boston, 1975, pp. 151-184.

178 Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 175-179, jul./dez. 2009


AL-FARABI: DE SCIENTIIS

O De scientiis de Al-Farabi tem mais uma novidade: A filosofia


política é a primeira filosofia e não a metafísica; quer dizer, como René
Descartes na sua Les Principes de la Philosophie está falando: a filosofia
prática ou a ética é a finalidade e o fim de todos os esforços espirituais
humanos que quiserem chegar na sabedoria.8 O De scientiis de Al-
Farabi está fazendo, aqui, uma realização das palavras de Platão na sua
República: Os filósofos são os reis; porque eles tem o conhecimento
da idéia do bem. Isso significa para Al-Farabi o seguinte: Na medida
em que o Islamismo é uma religião das leis divinas como também o
Cristianismo e o Judaísmo, a teologia tem que se subordinar à ciência
política, que se ocupa com as leis da sociedade e da comunidade hu-
mana. Quanto a isso, a religião exerce somente uma parte. O governa-
dor de uma cidade ou de um estado tem que ser sábio; o filósofo
reúne as leis públicas e religiosas em sua única pessoa. O filósofo é o
verdadeiro companheiro dos homens.
Prof. Dr. Jakob Hans Josef Schneider
Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, Brasil
Dr. Jakob Hans Josef Schneider
Bloco 1U sala 1U122
Av. João Naves de Ávila, 2121 – Cx. Postal 593
38400-902 – Uberlândia MG
jakobschneider@defil.ufu.br

8. Algumas obras de Al-Farabi, com um título errado, foram publicadas no ano 1638
em Paris: Alpharabii Vetustissimi Aristotelis Interpretis, Opera Omnia, ed.
CAMERARIUS, Guilielmus. Paris, 1638 (Reinpr. Frankfurt a. M. 1969). Les principes
de la philosophie de René Descartes quase 15 anos depois. Em minha opinião Descartes
conheceu as obras de Al-Farabi.

Scintilla, Curitiba, vol. 6, n. 2, p. 175-179, jul./dez. 2009 179


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