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E os ritos são no tempo o que o lar é no espaço.

E bom que o tempo que desliza não dê a


impressão de que nos gasta e nos perde, como o punhado de areia, antes se nos afigure que
nos realiza. É bom que o tempo seja uma construção. É assim que eu ando de festa em festa, e
de aniversário em aniversário, de vindima em vindima como quando era criança e ia da sala do
conselho até à sala de repouso, na densidade do palácio do meu pai, em que todos os passos
tinham um sentido.

Impus a minha lei, que é como a forma das paredes e o arranjo da minha casa. O insensato veio
ter comigo e disse-me: «Liberta -nos do teu jugo e vais ver como crescemos.» A dar-lhe ouvidos
— ou não estivesse eu farto de o saber — começariam por perder o conhecimento de um rosto e,
por deixarem de o amar, eles próprios deixariam de se conhecer, E decidi, apesar deles,
enriquecê-los do seu amor. Porque, para poderem passear lá mais à vontade, eles me
propunham deitar abaixo as paredes do palácio do meu pai, onde todos os passos tinham um
sentido.

Era uma moradia ampla. Lá estavam a ala reservada às mulheres e o jardim secreto onde
cantava o jacto de água. (Toda a casa, seja ela qual for, deve ter um coração — eis a ordem que
eu dou. Pessoa que nela more há-de abeirar-se ou distanciar-se sempre de qualquer coisa, há-de
poder sair e entrar. Senão, deixa de se estar em parte alguma. E não há ser livre que não esteja
seja lá onde for.) Havia além disso os celeiros e os estábulos. Ora às vezes acontecia que os
celeiros se despejavam e os estábulos ficavam vazios. E meu pai não deixava servirem-se de uns
para os fins dos outros. O celeiro, dizia ele, é antes do mais ura celeiro, e tu já não moras numa
casa se deixas de saber onde diabo te encontras. Pouco importa, dizia ele ainda, um uso mais ou
menos lucrativo. O homem não ê uma cabeça de gado para engorda, e o amor, para ele, conta
mais do que o usufruto. Não penses tu que podes amar uma casa que não tem rosto, uma casa
onde os passos não têm ponta de sentido.

Havia a sala reservada só para as grandes embaixadas. Abriarn-na o sol dos grandes dias,
quando subia na aragem a poeira de areia levantada pelos cavaleiros e no horizonte ondulavam
essas auriflamas em que o vento lutava como no mar. Mas, quando se tratava de principezitos
sem importância, então ficava deserta. Havia a saia onde se administrava justiça e a sala para
onde levavam os mortos. Havia o quarto vazio, que nunca ninguém soube para que servia — e
que talvez não servisse para nada, a não ser para fazer ressaltar o sentido do segredo e para dar
a entender que nunca é possível desvendar todas as coisas. E os escravos, que percorriam os
corredores ajoujados ao peso dos fardos, levavam de um sítio para outro tapeçarias que lhes
maceravam os ombros. Eles subiam degraus, eles empurravam portas, eles voltavam a descer
novos degraus e, conforme estavam mais perto ou mais longe do jacto de água central, assim se
tornavam mais ou menos silenciosos, até se mostrarem inquietos como sombras nas estremas
do domínio das mulheres. O mais ligeiro engano ter-lhes-ia custado a vida. E as próprias
mulheres: calmas, arrogantes ou furtivas, segundo o lugar que ocupavam na vivenda.

Eu bem oiço a voz do insensato: quanto espaço delapidado, quantas riquezas inexploradas,
quantas comodidades perdidas por negligência! Urge demolir estas paredes inúteis e nivelar
estas escadarias breves, que dificultam a marcha. Então o homem será livre. E eu, cá por mim,
respondo: os homens, nessa altura, tornar-se-ão gado de praça pública. Com medo de se
aborrecerem, inventarão jogos estúpidos, que ainda serão regidos por regras, mas por regras
sem grandeza. O palácio pode ser favorável a poemas.

Mas que poema escrever sobre a parvoeira dos dados que eles lançam? É possível que ainda
por muito tempo vivam da sombra dos muros, cujos poemas lhes falarão da nostalgia, depois a
própria sombra se apagará e deixarão de os compreender.

E de ali em diante o que é que os faria rejubilar?

In A Cidadela, Antoine de Saint-Exupéry, Editorial Presença,2008

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