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O CASO MARGARET LITTLE:

WINNICOTT E AS BORDAS DA PSICANÁLISE1

Alfredo Naffah Neto*

RESUMO

Este artigo apresenta e discute a análise de Margaret Little com Donald


Winnicott, tal qual ela a descreveu, bem como um resumo de suas duas análises
anteriores, ambas malsucedidas. A partir dos procedimentos clínicos adotados por
Winnicott, o autor reflete sobre mudanças na técnica psicanalítica clássica no
tratamento de pacientes psicóticos e borderlines.

Palavras-chave: Little. Winnicott. Técnica psicanalítica clássica. Psicoses.

1
Este artigo é uma revisão da conferência Margaret I. Little ficou conhecida inter-
realizada na Sociedade Brasileira de Psicanálise
de São Paulo, em 31 de maio de 2008, e também nacionalmente não só como eminente psicana-
no XIII Colóquio Winnicott: os casos clínicos lista da Sociedade Britânica de Psicanálise,
de Winnicott, ocorrido na PUC-SP, entre 29 e
31 de maio de 2008. Agradeço a leitura da
mas principalmente pelo livro Psychotic
primeira versão do texto e as sugestões de Luís Anxieties and Containment – A Personal
Claudio Figueiredo, Ignácio Gerber e Daniel Record of an Analysis with Winnicott (Little,
Kupermann.
*
Psicanalista. Mestre em Filosofia pela USP. 1990), que, tal qual sugere o título, relata, em
Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP. minúcias, o seu processo psicanalítico com
Professor titular da PUC-SP no programa de
estudos pós-graduados em Psicologia Clínica.
Donald Winnicott, precedido de um resumo de
Autor de vários artigos e livros sobre psicanálise suas duas malsucedidas análises anteriores: a
e música, sobretudo operística. primeira com um analista junguiano, que ela
2
Este livro teve uma péssima tradução realizada
pela Editora Imago, em 1992, a cargo de Jayme denominou de “Mister X”, e a segunda com a
Salomão, na mesma linha, aliás, das suas equi- psicanalista Ella Freeman Sharpe.2
vocadas traduções das obras de Freud. Aqui, até
o título do livro foi adulterado para Ansiedades Baseado nesse relato, irei aqui desen-
Psicóticas e Prevenção – Registro Pessoal de volver meu percurso reflexivo, examinando e
uma Análise com Winnicott, quando a tradução discutindo as características próprias que a
mais literal seria: “Ansiedades Psicóticas e
Contenção” e a mais apropriada: “Ansiedades psicanálise winnicottiana assume quando trata
Psicóticas e Sustentação”. pacientes de tipo borderline, como foi
3
Opto por não traduzir o termo borderline pelo
equivalente fronteiriço, em razão de a tradição Margaret Little.3 Ou, noutros termos, como
psiquiátrica e psicanalítica do uso da palavra funciona esse tipo de psicanálise que tem de
inglesa ter uma grande difusão, o que não
acontece com o vocábulo português correspon-
operar nas bordas do seu método – o que quer
dente. dizer, na maior parte das vezes, transgredindo

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os procedimentos da assim designada Little, “psicótica borderline”. É esse


técnica-padrão. sentido amplo do termo, utilizado pela
Começo por lembrar que a palavra autora, que manterei aqui.4
borderline é usada pela autora para se
autodenominar no livro em questão. Na Primeiros sinais de um quadro
página 48, aparece: “Isso era um retrato borderline
verdadeiro do meu estado borderline”.
Mais adiante, na página 83, ela diz que a Que Little era uma paciente tipica-
Parte I “...foi escrita do ponto de vista de mente borderline já aparecem evidênci-
uma paciente, uma psicótica borderli- as na sua primeira análise, quando Mr. X
ne”. Convém, assim, explicitar o sentido pressentia que ela “não era ela mesma” e
do termo tal qual usado pela autora e que que vivia se desculpando pela sua própria
é o mesmo que mantenho. existência, como se não tivesse direito a
A palavra inglesa borderline é um ela. Na última sessão, disse-lhe: “Pelo
vocábulo composto por dois outros: bor- amor de Deus, seja você mesma” (Little,
der, que significa borda, limite, margem, 1990, p. 27). O grande erro dele foi
e line, que significa linha. Borderline pressupor que bastava lhe dar essas su-
significa, pois, etimologicamente falando, gestões e massagear sua barriga, para
uma linha que demarca uma borda, uma acalmar sua angústia paralisante, que tudo
margem, um limite, aquele que distingue se resolveria magicamente.
os indivíduos sãos dos doentes ou, melhor É que ela possuía um falso self
dizendo, os indivíduos normais dos psicó- razoavelmente bem adaptado, capaz de
ticos. Nesse sentido, quando se diz que o enganar analistas menos experientes
indivíduo é borderline, de modo geral, como Mister X e, mesmo, analistas mais
queremos dizer que seu estado psíquico experientes como Ella Sharpe. Segundo a
se define no interior de um espaço e de descrição de Little, seu currículo não
uma dinâmica que bordejam essa linha evidenciava incapacitações de tipo psicó-
demarcatória, exibindo características de tico, já que incluía: ter freqüentado escola
ambos os lados. Traduzindo melhor: ele e passado nos exames sem problemas, e
aparenta características de uma pessoa até ganhado bolsa de estudo; ter se torna-
normal, ou, quando muito, neurótica, mas do médica e desenvolvido uma prática
isso se dá à custa de um equilíbrio bastan- bem-sucedida como clínica geral, que a
te precário que, quando rompido, faz eclo- levou, mais adiante, à formação de psica-
dir um funcionamento tipicamente psicó- nalista (p. 49). Entretanto, esse falso self
tico. Daí a segunda autodenominação de – formado por hipertrofia da função inte-

4
Assinalo isso porque vários autores utilizam o termo borderline para referir-se a uma modalidade
específica de estado-limite, e não como o termo genérico capaz de designar o conjunto dessas patologias.

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lectual – era cindido do restante da perso- 33). Sharpe, porém – gentil, cálida, gene-
nalidade e, de quando em quando, sofria rosa, e absolutamente incapaz de perce-
desintegrações, deixando, então, eclodir ber as necessidades primárias de Little –,
sintomas esquizofrênicos. encarnava, sem se dar conta, as próprias
O Dr. X permaneceu bastante dis- características da mãe da paciente. Little
tante desse tipo de diagnóstico, tomando- tornou-se, então, dependente e submissa
a como uma pessoa neurótica, quase a ela, como era, originalmente, da mãe. E
normal e, após dois anos de análise, com conta-nos: “Meus sonhos, nessa época,
três sessões por semana, a dispensou. de luta, confusão e fragmentação, eram
A segunda analista, Ella Sharpe, de interpretados como fantasias de coito vi-
modo similar, considerou Little uma neu- olento e desejos recalcados de ter relação
rótica histérica, deixando-se enganar pelo com meu pai e destruir a minha mãe” (p.
falso self da paciente e aferrando-se às 34). Dependente e submissa, mas consci-
interpretações de tipo edipiano. E lá se ente de não estar recebendo da analista o
foram mais sete anos de análise, pratica- que precisaria, desenvolveu nessa época
mente perdidos. Entretanto, em que pese o desejo de ela própria tornar-se analista:
a escuta deficiente de Sharpe, desenvol- era o seu falso self tentando mimetizar a
veu-se, desde o início dessa segunda aná- figura ambiental para poder substituir
lise, o que poderíamos denominar uma Sharpe como analista de si própria. Cor-
psicose de transferência.5 roboram essa interpretação alguns me-
Já no primeiro contato, Little viu a dos dessa época: “O que eu verdadeira-
analista sob a forma quase alucinada de mente temia era descobrir a mim mesma
uma aranha na sua teia (representada como uma ‘cópia barata, de segunda
pelo seu cabelo grisalho) e, na primeira mão’ de minha mãe ou dela (o que dava
sessão, seu terror de aniquilação era tão no mesmo)...” (p. 34). Sharpe, sem com-
intenso que começou a gritar. Recebeu, preender o que acontecia, encorajava
como retorno, uma interpretação de tipo Little nas suas aspirações à formação
sexual/edipiana. Ao relatar suas vivênci- psicanalítica.
as desse período, Little nos diz: “Eu não Além de mal interpretar a realida-
sabia quem era ‘eu mesma’; a sexualida- de psíquica de sua analisanda, nenhum
de (mesmo se conhecida) era totalmente dado de realidade era levado em conta
irrelevante, a não ser que a existência e a por ela, já que os eventos reais, presentes
sobrevivência pudessem ser garantidas e no relato da paciente, eram sempre con-
a identidade pessoal estabelecida” (p. siderados como refúgios das fantasias
5
Winnicott nos diz: “Enquanto que, na neurose de transferência, o passado vem para o consultório, nesse
tipo de trabalho é mais verdadeiro se dizer que é o presente que volta ao passado. Então, o analista vê-
se confrontado com os processos primários do paciente no ambiente em que foram primeiramente
validados” (Winnicott, 1992, p. 298).

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edipianas (pp. 34-35). Assim, a necessi- te, completamente escondida sob o cober-
dade de Little de elaborar dois lutos reais, tor, incapaz de me mover ou de falar. D. W.
um pela morte do pai, outro pela morte de ficou silencioso até o final da hora, quando
uma tia muito querida, passaram total- disse somente: “Eu não sei, mas tenho um
sentimento de que você está me trancando
mente em branco na análise, sendo redu-
para fora por alguma razão”. Isso trouxe
zidos a temas edipianos. Finalmente, logo alívio, pois ele pôde admitir que não sabia
após anunciar o fim de uma análise nun- e permitir uma contestação, se ela viesse.
ca realmente iniciada, Sharpe morreu Mais tarde, percebi que estivera me tran-
de ataque cardíaco – aliás, como fora cando por dentro, assumindo a menor
previsto por Little que, como boa clínica quantidade de espaço possível e sendo
geral, notara os sinais adiantados da do- tão reservada quanto eu podia, esconden-
ença e alertara sua analista, sem ser do-me no útero, mas sem segurança mes-
ouvida. mo aí (1990, pp. 42-43).
Bastante desesperançada, Little
chegou a Winnicott. Com ele, desenvol- A impressão é que Winnicott, em
veu uma análise que durou seis anos, na princípio, sem perceber o recolhimento de
sua primeira etapa, dedicada à saída da Little como um sintoma esquizóide, inter-
psicose, e mais um ano e meio na segun- preta-o como resistência à análise e à
da, dedicada à elaboração do complexo presença do analista – tendo a humildade
de Édipo. de dizer que, de fato, não sabe o que
acontece, e que relata apenas um senti-
Uma esquizóide, com sintomas mento. Isso traz alívio à paciente, mas não
depressivos o suficiente para aliviar seu terror.
Nas sessões seguintes, ao não se
Foi ao longo da análise com Winni- sentir novamente compreendida por
cott que o quadro borderline de Little Winnicott, Little entra em desespero: pen-
pôde revelar uma formação que classifi- sa em se jogar pela janela, mas imagina
co como uma esquizoidia com sintomas que ele vai impedi-la. Finalmente, apanha
depressivos. Mais preciso, esse diagnós- um vaso cheio de lilases brancos, atira-o
tico não foi formulado por Little, tampou- no chão e o esmaga com o pé. Winnicott,
co por Winnicott. Entretanto, os sintomas contrafeito, retira-se da sala, só retornan-
e a dinâmica psíquica descritos pela pri- do quase no final da hora. Ao ver Little
meira apontam todos nessa direção. Vou, desobstruindo o chão da sujeira, comenta:
assim, tentar corroborar esta minha hipó- “Eu poderia esperar que você fizesse
tese passo a passo. Cito Little: isso, mas mais tarde”.
A interpretação de Winnicott pode
A primeira sessão trouxe a repetição ser traduzida, em termos técnicos: “Eu
do terror. Eu permaneci curvada fortemen- poderia esperar um desejo reparatório

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vindo de você mais tarde, quando pudesse chão dos dejetos. É como se dissesse a
ter entrado no estágio do concernimen- ela: “Eu posso resistir intacto aos seus
to, mas não agora, quando ainda está impulsos destrutivos e, assim, permane-
revivendo traumas muito primitivos”.6 Isso cer sendo seu analista”.
evidencia que a atuação de Little provo- Poderíamos, no entanto, tomar a
cou então em Winnicott – após um reco- atitude de Little de limpar a sala como
lhimento necessário para se recompor do oriunda de um desejo reparatório?
ódio gerado pelo ato destrutivo da pacien- É difícil, de imediato, sustentar
te – a compreensão de que se encontrava nesse circuito total – o ato de quebrar o
diante de uma paciente borderline. vaso, seguido do desejo de limpar os
É evidente que Winnicott correu detritos e restaurar a ordem na sala – algo
riscos nessa sua saída de cena, já que o da dinâmica característica do estágio do
desejo de se jogar pela janela poderia ter concernimento, como se fosse um pri-
voltado, levando a paciente a cometer meiro exercício de instauração do círculo
suicídio. Entretanto, como agir analitica- benigno.7 Isso porque nosso pensamento
mente quando somos tomados por um seqüencial nos leva a pensar que, nesse
ódio no meio de uma sessão, pelo fato de início de análise, Little ainda se encontra-
o paciente ter destruído um objeto de que va revivendo traumas muito primários,
gostamos muito? São escolhas difíceis... ligados ao período de dependência total.
O fato é que Winnicott voltou à sessão, Pareceria mais plausível, pois, ver naque-
não retaliou o ato destrutivo de Little e, le gesto destrutivo apenas um grito para
mais do que isso, repôs na sala, nas se fazer notar e, no ato de limpar a sala,
sessões seguintes, um vaso idêntico àquele uma mera regra de boa educação incor-
quebrado, com os mesmos lilases bran- porada por seu falso self. Entretanto, as
cos. Como um bom ego-auxiliar, ele com- coisas nem sempre são tão simples quan-
pletou o ato reparatório que sua paciente to parecem ser.
por si só não teria condições de realizar, Lembro, aqui, de uma paciente
mas que havia iniciado quando limpara o minha de dinâmica borderline, um caso

6
Elsa Oliveira Dias propôs o neologismo estágio do concernimento como tradução para o conceito
winnicottiano stage of concern, embora a tradução mais literal de concern para o português seja
concernência. Outra tradução possível para o termo, esta proposta por Roberto B. Graña, é estágio da
consideração (p. 108, nota 6). De qualquer forma, concern é um termo de difícil tradução, sendo ambas
as propostas apenas aproximativas.
7
O círculo benigno, segundo Winnicott, forma-se por meio das inúmeras e repetidas vezes em que o bebê,
ao se perceber atacando vorazmente o corpo materno, passa por um sentimento de culpa (não consciente)
pelas conseqüências de sua destrutividade e realiza atos reparatórios, que são recebidos pela mãe. É esse
acolhimento materno – tanto da destrutividade, quanto dos atos reparatórios do bebê – que gera nele a
confiança na sua capacidade construtiva e lhe permite ir se apropriando, cada vez mais, de seus impulsos
destrutivos de forma produtiva à vida, num processo cíclico que Winnicott denominou círculo benigno.

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bastante grave já citado em outros textos realizar essa tarefa. Assim, se nessa aná-
(Naffah Neto, 2004, 2007), que passou os lise a primeira emergência da destrutivi-
três primeiros meses de análise atacan- dade e dos “embriões” reparatórios do
do-me violentamente; nesse período, eu objeto podem ser considerados prematu-
sentia que o mais importante era susten- ros, fora de tempo, de uma perspectiva
tar seus ataques, sem tentar interpretar seqüencial de processo, sua segunda
muito e sem retaliar. É inegável que a aparição veio, sem dúvida, na hora certa,
dinâmica me remetia, o tempo todo, à no tempo correto. É inegável, entretanto,
etapa do uso do objeto, descrita por que as duas emergências cumpriram fun-
Winnicott,8 apesar de essa paciente estar ções diferentes no processo analítico.
igualmente fixada em traumas muito pri- A pergunta que me faço, desde
mitivos, da fase de dependência total. O então, é se podemos pensar no processo
curioso, também, é que, de quando em transferencial psicanalítico, ainda que se
quando, esses ataques eram seguidos de trate de uma psicose de transferência,
“embriões” de atos reparatórios do gêne- de forma tão linear e seqüencial. Não
ro: “Tenho medo de estar destruindo as podemos conjeturar que episódios como
minhas possibilidades de análise” (Naffah esses, os ataques destrutivos da minha
Neto, 2004, p. 60). Após esse período, a paciente – ou o a quebra do vaso, descrito
transferência negativa cedeu lugar a uma por Little –, ambos ocorridos em início de
positiva e esses impulsos agressivos/des- análise, possam funcionar como uma es-
trutivos desapareceram de cena quase pécie de teste do analista? Ou seja, que a
totalmente. Reapareceram somente no destrutividade, lançada assim de cara na
oitavo ano de análise, num período em que relação transferencial, tenha por função
a minha sustentação daquela destrutivi- testar a capacidade do analista de susten-
dade poderia, então, ajudar na gradativa tar, sem retaliar, os impulsos mais primi-
apropriação da mesma pelo seu self, a tivos do paciente – quer dizer, evidenciar
partir de movimentos reparatórios mais sua possibilidade real de não repetir a
responsavelmente assumidos. Isso devi- falha ambiental original? E que os “embri-
do ao fato que, em tal estágio, seu self já ões” de atos reparatórios, ainda que ima-
se encontrava mais integrado e fortaleci- turos e pouco consistentes, possam assi-
do, portanto, em melhores condições para nalar conquistas fragmentárias e incipi-

8
A etapa de uso do objeto foi descrita por Winnicott já mais tardiamente na sua obra (1968), como
antecedendo justamente a entrada no estágio do concernimento. Designa o processo por meio do qual o
bebê cria a externalidade do objeto, diferenciando objeto subjetivo (fantasia) de objeto objetivo (realidade).
Ao dirigir seus impulsos destrutivos à mãe (através de uma oralidade de tipo incorporativo), e perceber
que ela resiste à sua destruição e não retalia (ou seja, não se mistura à sua dinâmica destrutiva), o bebê vai
paulatinamente discriminando mundo interno e mundo externo.

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entes, mas, ainda assim, conquistas?9 E quietude. A partir daí, ele estendeu a du-
que, nesse sentido, frações de diferentes ração das sessões para uma hora e meia,
períodos de vida possam emergir transfe- pelo mesmo preço, até quase o final da
rencialmente de forma pouco linear e até análise (Little, 1990, p. 44).
um tanto caótica, em função das metas
inconscientes que orientam a análise, em Foi a necessidade de se proteger
cada período? A atemporalidade do in- desse ambiente caótico e imprevisível de
consciente não nos obriga a pensar dessa sua infância que produziu essa retração
forma, abrindo mão de certo preconceito esquizóide e, ao mesmo tempo, a forma-
seqüencial do processo? ção de um falso self cindido, que passou
Esta é uma questão que não tenho a funcionar como um escudo protetor do
condições de explorar melhor aqui, já que seu self verdadeiro. Corroboram essa
fugiria ao tema ao qual me propus. Volte- hipótese vários relatos no livro.
mos, pois, às cenas da análise de Little Winnicott disse-lhe, com todas as
com Winnicott. letras e de uma forma muito precisa: “Sua
Nas sessões seguintes, a dinâmica mãe é imprevisível, caótica e ela organiza
esquizóide da paciente se tornaria cada o caos ao redor dela” (p. 49). Ou seja, a
vez mais clara: mãe de Little comportava um paradoxo:
era totalmente caótica, imprevisível e, ao
Ele (Winnicott) percebeu logo que, na mesmo tempo, controladora, como forma
primeira metade de cada sessão, nada acon- de organizar o caos que disseminava.
tecia. Eu não podia falar até encontrar um Assim, quando bebê, Little era rigidamen-
estado “assentado”, não perturbado por te atada num xale, de tal forma que nenhum
qualquer impingidela do tipo: ser indaga- membro pudesse se mover; e o furo do
da sobre o que estava pensando, etc. Era bico da mamadeira era tão pequeno que o
como se eu tivesse de trazer para dentro de
ato de mamar exigia esforços exaustivos
mim o silêncio e a tranqüilidade que ele
proporcionava. Isso fazia tal contrataste
de sua parte. Qualquer gesto espontâneo
com os distúrbios da infância, com o esta- era reprimido por um controle rígido.10
do de minha mãe movido a ansiedade e a Mais tarde, de forma análoga, não permi-
hostilidade geral da qual eu sempre tive tiria que a filha escolhesse o brinquedo ou
necessidade de me retrair para buscar a brincadeira, impondo-lhe aleatoriamen-

9
É preciso lembrar que um paciente adulto, embora possa ter tido seu desenvolvimento congelado em fases
de dependência absoluta, não deixou de atravessar, ainda que de forma deficiente, o estágio de concerni-
mento e, mesmo, a triangulação edipiana, e que dessas travessias difíceis e incompletas sobram pequenas
conquistas fragmentárias, que só poderão se integrar ao restante da personalidade quando o self verdadeiro
puder conquistar desenvolvimento e integração mais completos.
10
Little viu isso se repetir com os irmãos menores, apesar de toda a orientação contrária dada à sua mãe
pelo pediatra, que lhe dissera para fazer um furo grande, de modo que o bebê pudesse mamar à vontade.

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te o que ela, mãe, achasse “adequado”. esse caos interno, seu controle já incidia
Sempre que encontrava um dos filhos de sobre seu próprio corpo grávido, que era
boca aberta, fechava-a imediatamente e acolchoado, para que ninguém notasse
removia o dedo que estava sendo sugado; seu estado e, além disso, já próxima do
se o encontrava deitado de costas ou do parto, procurava evitar contato com as
lado esquerdo, fazia-o virar do lado direi- dores, “não pensando nelas” até que isso
to, dizendo que era “para prevenir pres- fosse inevitável (p. 50). Como uma mu-
são no coração” (p. 97). Os orifícios dos lher com essas condições emocionais
corpos eram constantemente investiga- poderia ter alguma identificação primária
dos e lavagens intestinais noturnas minis- com seu bebê?
tradas, bem como sessões de espremer Entretanto, essa mesma mãe inva-
cravos e espinhas, na época da adoles- siva e controladora cantava para a filha,
cência. Suas interferências, de forma na hora do banho, com uma bela voz de
geral, alternavam-se entre descaso e aten- soprano. Tinha também bom humor e um
ção excessiva, chegando à total omissão. gosto saudável pela jardinagem; essas
“O que importava num minuto era total- características, aliadas à estabilidade do
mente sem importância no outro, e o que pai, foram os fatores que, segundo Little,
era importante para mim, tinha de ser impediram que ela se tornasse totalmente
posto de lado”, nos conta Little. Tudo leva insana.
a crer que a mãe de Little via a filha como Sintomas depressivos, bastante
um prolongamento seu, e que o controle sérios e sem motivo aparente, aparece-
exercido sobre a mesma era uma tentati- ram três vezes, durante a análise com
va de controlar o caos de seu mundo Winnicott. Duraram cerca de dez dias,
interno, projetado nela. Diz Little: “...eu com intervalos aproximados de três me-
somente conseguia me defender disso, ses. Além disso, houve duas depressões
retraindo-me, sustentando a mim mesma “incapacitantes” (Little, 1990, p. 52), que
(...) ou me identificando e partilhando se seguiram a perdas. Houve, ainda, uma
essa ilusão de formar uma só unidade outra crise depressiva maior, que durou
com ela” (1990, p. 97-98). cerca de três meses, associada a uma
Além do mais, temos de considerar gastroenterite, durante a qual ela perma-
o fato de que essa mãe via o ato sexual neceu acamada, levando Winnicott a
como “um dever desagradável da esposa atendê-la em casa, cinco, seis ou até sete
para com o marido” (p. 50) e tinha horror vezes por semana, em sessões de 90
à gravidez e ao parto; portanto, é possível minutos, durante todo esse período. Esses
imaginar que, já durante a gravidez de sintomas depressivos, ao que tudo indica,
Little, o feto fosse objeto de afetos bas- formaram-se devido à quase total impos-
tante ambivalentes, nos quais o ódio pode- sibilidade de Little integrar e se apropriar
ria facilmente predominar. Para controlar dos seus impulsos eróticos/agressivos,

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dado que seu self verdadeiro, retraído e ção entre o seu espaço potencial e o do
desintegrado, característico do estado paciente.
esquizóide, não tinha qualquer capacida- O processo de Little seguiu o mes-
de para realizar tal tarefa. Esses impulsos mo padrão: no primeiro período de análi-
viviam, em grande parte, cindidos de sua se, dedicado à saída da psicose, o holding
personalidade, mantidos à parte pelo falso e a regressão foram os principais recur-
self, só a tomando de quando em quando, sos utilizados. No segundo período, dedi-
de forma impulsiva e desordenada. Isso cado à elaboração do complexo de Édipo,
gerava, na maior parte do tempo, um a interpretação da transferência foi a
baixo tônus vital de colorido depressivo, ferramenta-mor.
que se agravava cada vez que Little sofria Aqui, interessa-me, sobretudo, ana-
alguma perda e, pelas mesmas condições lisar os recursos do primeiro período,
precárias, a impedia de elaborar os lutos aqueles que se situam, por assim dizer,
necessários. O que era um colorido de- nas bordas da técnica-padrão; manejos
pressivo transformava-se, então, numa nos quais Winnicott se revelou ousado,
crise depressiva. criativo e de grande competência tera-
pêutica, ampliando os recursos psicanalí-
Winnicott e as ticos por territórios até então pouco ex-
bordas da psicanálise plorados.
Em primeiro lugar, é preciso consi-
Winnicott disse em vários dos seus derar que Little estabeleceu com Winni-
escritos que, sempre que possível, utiliza- cott – tal como com Ella Sharpe, antes
va-se da técnica psicanalítica padrão, de dele – uma psicose de transferência,
interpretação da transferência. Com pa- assim descrita por ela:
cientes não neuróticos, com os quais isso
era impossível, usava outros recursos: Para mim, D. W. não representava mi-
com a ampla gama dos depressivos, com- nha mãe. Na minha ilusão transferencial,
binava a interpretação com o manejo ele era minha mãe (...) e, como há uma
transferencial dos ataques destrutivos do continuidade real entre mãe e feto, genéti-
ca e corporalmente (por meio das membra-
paciente – quando estes emergiam em
nas e da placenta), assim, para mim, suas
análise –, sustentando-os sem retaliar e mãos eram o cordão umbilical, seu divã a
sem desaparecer de cena; com os bor- placenta, os cobertores as membranas,
derlines e psicóticos, preconizava a re- muito aquém de qualquer nível conscien-
gressão transferencial a estados de de- te, até um estágio bem posterior (Little,
pendência. Em todos os casos, o holding 1990,p. 98).
sempre foi a sua ferramenta maior, aliada
ao espírito lúdico: sempre que possível, Por essa razão, o holding psicana-
procurava realizar a análise na sobreposi- lítico, nesse caso, teve necessariamente

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de incluir contatos corporais indispen- Ele também costumava responder


sáveis, em períodos de grande terror. diretamente às perguntas de Little, so-
Little nos conta: mente depois pesquisando os motivos in-
conscientes das mesmas. Durante todo
Literalmente, ao longo de muitas lon- esse processo, deu muito poucas inter-
gas horas, ele segurava minhas duas mãos pretações a ela, e somente aquelas rela-
crispadas entre as dele, quase como um cionadas a assuntos que já poderiam se
cordão umbilical, enquanto eu permanecia tornar conscientes. Também as formula-
– sempre escondida embaixo do cobertor
va sempre de forma aproximativa, do tipo:
– silenciosa, inerte, recolhida, em pânico,
raivosa, em lágrimas, adormecida, por ve-
“Penso talvez que...”, ou “Me pergunto
zes sonhando. Algumas vezes, ele ficava se...”, ou “Parece que...”. E nunca inter-
sonolento, caia no sono e acordava em pretava algo fora do alcance de sua fun-
sobressalto, ao qual eu reagia com raiva, ção simbólica (Little, 1990, p. 48). Uma
aterrorizada e sentindo-me como se tives- das interpretações mais importantes, lem-
se sido golpeada (p. 44). bradas por Little, foi quando ele lhe disse
que o medo de aniquilação que ela sentia
Entretanto, saber usar os recursos pertencia ao passado, ou seja, já tinha
necessários na hora certa não significava, acontecido. Eu a cito: “Ele me disse (...)
em nenhum momento, condescendência que eu tinha sido psiquicamente aniqui-
para com a analisanda. Little nos diz que lada, mas tinha sobrevivido corporalmen-
“...ele era compassivo, mas consistente- te e estava agora revivendo a experiência
mente firme, a ponto de se tornar impie- passada” (p. 62).
doso, quando sentisse que era necessário Durante o transcorrer das sessões,
à segurança do paciente” (p. 45). Ele mantinha o silêncio e a quietude impres-
poderia, nessa direção – como fez com cindíveis ao recolhimento esquizóide da
Little –, esconder as chaves do carro, se paciente, criando assim condições para
sentisse que o paciente estava à mercê que o falso self dela fosse se tornando
dos seus impulsos destrutivos, devolven- desnecessário como defesa e pudesse ir
do-as somente quando a dinâmica emoci- baixando suas guardas, para que pudesse
onal tivesse mudado. emergir, gradativamente, o seu gesto es-
O holding incluía, ainda, a busca de pontâneo.
egos-auxiliares que pudessem substituí-lo Um momento importante da análi-
em férias e períodos de descanso. Aí, con- se foi quando Little, pela primeira vez,
tatava amigos de Little, sem ela saber e, pôde enfrentar sua mãe diretamente, di-
quando isso não era possível, utilizava-se da zendo-lhe tudo o que tivera vontade du-
internação hospitalar, em condições especi- rante toda a vida e nunca tivera coragem.
ais, determinadas por ele que, nesse caso, Mas, logo em seguida, sentindo-se in-
mantinha-se em contato o tempo todo. conscientemente culpada, quebrou o tor-

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O caso Margaret Little: Winnicott e as bordas da psicanálise

nozelo, durante uma viagem de férias. hospital. A situação rendeu uma grande
Eram seus impulsos agressivos/destruti- confusão: entraram oito pessoas em seu
vos, que faziam a sua aparição de forma quarto; ela ficou furiosa e bateu no trasei-
descontrolada, já que, até então, tinham ro de uma empregada. Foi, então, amea-
tido uma existência marginal na sua vida. çada pelo superintendente do hospital,
O período mais demorado de re- que lhe disse que havia “...outras formas
gressão a estados de dependência foi se de tratamento das doenças mentais, para-
anunciando durante um período determi- lelas à psicanálise, que eram às vezes
nado do processo psicanalítico. Little nos necessárias” (Little, 1990, p. 58). Ela teve
conta: “Meu estado mental era tal que eu de lhe lembrar do acordo firmado de que
permanecia profundamente regredida em não tomaria eletrochoques; mas, logo
cada sessão e somente voltava a estar depois, entrou num estado de fúria e
junto posteriormente, de forma muito va- quebrou tudo o que encontrou pela frente.
garosa” (Little, 1990, p. 101). Então, dada Levada para outro quarto, passou toda a
a proximidade das férias, Winnicott pro- noite em total paranóia, vendo enfermei-
pôs a ela uma internação voluntária num ras que lhe pareciam “diabos”. No interi-
hospital, sob sua supervisão – sugestão or dessa confusão, contou com a ajuda de
que ela aceitou, tendo antes estabelecido dois objetos transicionais: um lenço, que
que não levaria eletrochoques, que pode- Winnicott havia lhe dado, e um cachecol
ria se desinternar se e quando resolvesse, de lã azul, de que gostava muito.
e que ele a levaria e a traria de volta. E, No dia seguinte, recebeu um banho
obviamente, que eles manteriam contato e voltou ao seu quarto, tendo permaneci-
o tempo todo. Foi nesse ambiente hospi- do nele durante todo o restante do perío-
talar protegido, no qual permaneceu inter- do. Muito provavelmente, por exigência
nada por cinco semanas, que Little pôde de Winnicott, que controlava tudo à dis-
viver a sua regressão mais profunda. tância, o hospital, a partir daí, passou a
De início, sentiu-se esquecida e interferir minimamente; proporcionava
abandonada por Winnicott, mas após dez todo o necessário à sua permanência,
dias, para sua surpresa, começou a escre- sem nenhuma exigência. Ela passava os
ver poesia. Entretanto, uma internação dias dormindo, lendo e pintando, às vezes
hospitalar, por mais especial e controlada, até nas paredes do seu quarto. Passeava
dificilmente transcorre sem problemas. pelos jardins do hospital e, ocasionalmen-
Como no dia em que pediu para ser te, andava pelas ruas mais próximas.
deixada absolutamente sozinha: pedido Quando chovia, uma das Irmãs mandava
fundamental para poder baixar as defe- alguém buscá-la com um guarda-chuva.
sas esquizóides e deixar emergir seu ges- Na pintura, sentia-se utilizando for-
to espontâneo, mas muito dificilmente ças destrutivas e construtivas no ato cri-
compreendido e atendido na rotina de um ativo. Diz ela: “Não se pode pintar um

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Alfredo Naffah Neto

quadro sem destruir uma tela branca e ções não a afetavam de forma contun-
tubos de tinta...” (Little, 1990, p. 61). Essa dente: “Eu percebi que ele não gostar de
foi uma das atividades importantes que um quadro não significava que eu deveria
auxiliaram no processo de apropriação destruí-lo. Ele tinha um valor simples-
gradativa, pelo seu self, dos impulsos mente como uma criação, tanto para ele
erótico-destrutivos, antes cindidos. Nes- quanto para mim” (p. 62).
se contexto, o quarto hospitalar funciona- A última fase desse primeiro perí-
va como uma extensão da sala de análise odo de análise envolveu uma outra dinâ-
de Winnicott e, via transferência, tornara- mica: “O caráter das sessões era diferen-
se seu “quarto de criança” (p. 61). O bom te; elas agora lidavam verbalmente com
humor logo tomou conta de suas ativida- ansiedades depressivas e, posteriormen-
des lúdicas. Conta-nos o episódio de um te, edipianas” (p. 102). Já mais perto do
quadro que pintou – uma paisagem marí- final, a duração e a freqüência das ses-
tima, na qual adicionara um monstro ma- sões foram sendo diminuídas, até o pro-
rinho –, que o terapeuta ocupacional ficou cesso finalmente se encerrar.
fitando longamente. Jocosamente, ela lhe Assim Little descreve o seu pro-
disse: “Uma bela peça de arte esquizofrê- cesso de cura analítica, e a importância
nica, não é?” Desorientado ou, talvez, crucial da internação hospitalar no pro-
chocado, ele saiu da sala e, logo em cesso regressivo:
seguida, a Irmã entrou perguntando: “O
que você fez para o pobre Mr. Y? Ele Foi-me permitido viver uma infância e
parecia ter o diabo atrás dele?” (p. 61). E uma meninice próprias, o que era distinto
ambas riram muito. de viver e reviver as da minha mãe, para ela.
Entretanto, após algum tempo de Tendo podido atingir os níveis mais primi-
internação, começou a se sentir deprimi- tivos da, assim algumas vezes denomina-
da; certo dia, vendo uma corda no jardim, da, ‘posição esquizo-paranóide’, num
pensou em suicídio, tendo afastado imedi- ambiente consistentemente controlado,
seguro, não retaliatório e razoável, pude
atamente a idéia, como um ato louco.
chegar a um novo ponto de começo, do
Nunca mais, após esse episódio, pensou
qual pude me desenvolver para o ‘estágio
em se matar e, pouco a pouco, foi emer- do concernimento’ e, posteriormente, para
gindo da regressão rumo à desinternação a situação edipiana – eventualmente para
e à vida normal. a minha maturidade cronológica. Minhas
Próxima agora do fim, sua análise áreas psicóticas e não psicóticas foram
recomeçou a partir de conversas sobre os firmemente unidas conjuntamente (Little,
poemas e pinturas que realizara no perío- 1990, p. 102).
do regressivo. Nessa época, ela já conse-
guira certa autonomia de Winnicott, posto O segundo período de análise de
que os comentários dele sobre suas cria- Little com Winnicott, iniciado dois anos

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O caso Margaret Little: Winnicott e as bordas da psicanálise

após o término do primeiro, durou cerca terpretação da transferência). Foi pre-


de dezoito meses, com a freqüência de ciso ousadia e determinação para des-
uma sessão por semana. Foi inteiramente montar a técnica clássica e colocá-la em
dedicado à análise dos conflitos edipia- experimentação, buscando novas solu-
nos, que ainda dificultavam as suas rela- ções para o tratamento de borderlines e
ções amorosas. Não é que no primeiro psicóticos: implicou a coragem de trilhar
período de análise não tivessem apareci- caminhos desconhecidos, sabendo que a
do angústias edipianas: Little nos conta própria vida dos pacientes estaria em jogo.
que, por ocasião da separação de Winni- E nunca é demais lembrar isso
cott da primeira esposa, sentiu-se “...mui- nesses tempos atuais, em que a psicaná-
to enciumada, e algum material edipiano lise perde cada vez mais terreno para as
pôde ser trabalhado, embora tenha per- terapias cognitivo/comportamentais, sen-
manecido como um pedaço isolado, que do injustamente acusada de charlatanis-
somente pôde ser juntado ao resto mais mo. Depoimentos, como o de Margaret
tarde” (p. 55). Ou seja, nessa primeira Little, servem como testemunho eloqüen-
etapa, seu self, dado seu estado de desin- te de que sua eficácia terapêutica conti-
tegração, não tinha condições de se apro- nua mais viva do que nunca e que, dentre
priar desse tipo de material, sob a forma os mestres que nos podem ensinar essa
de uma elaboração consistente.11 arte curativa, Donald Winnicott ocupa um
Segundo sua avaliação, esse se- lugar realmente privilegiado.
gundo período de análise também foi uma
experiência bastante bem-sucedida. REFERÊNCIAS
Como comentário final deste per-
curso, gostaria apenas de dizer que sem Graña, R. B. (2007). Origens de Winni-
esses primeiros psicanalistas desbrava- cott: Ascendentes psicanalíticos e
dores – nos quais, além de Winnicott, filosóficos de um pensamento ori-
incluo Ferenczi, como uma espécie de ginal. São Paulo: Casa do Psicólo-
pioneiro –, a psicanálise até hoje estaria go.
restrita a pacientes neuróticos ou, no
máximo, tentando tratar psicóticos com a Little, M. I. (1990). Psychotic anxieties
técnica clássica calcada no modelo das and containment: A personal
neuroses (já que os kleinianos, embora record of an analysis with Winni-
precursores nesse terreno das psicoses, cott [Ansiedades psicóticas e pre-
permaneceram – pelo menos, nos primei- venção: Registro pessoal de uma
ros tempos – bastante presos ao modelo análise com Winnicott]. Northvale,
psicanalítico tradicional, fundado na in- N. J.: Jason Aronson.

11
O que corrobora minhas observações na nota 8 deste texto.

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Alfredo Naffah Neto

Naffah Neto, A. (2004). A escuta musi-


cal como paradigma possível para a
escuta psicanalítica. Percurso,
17(33), 53-60.

Naffah Neto, A. (2007). A problemática


do falso self em pacientes de tipo
borderline: Revisitando Winnicott.
Revista Brasileira de Psicanálise,
41(4), 77-88.

Winnicott, D. (1992). Clinical varieties of


transference. In D. W. Winnicott,
Through paediatrics to psycho-
analysis (pp. 295-299). London:
Karnac.

120 Jornal de Psicanálise, São Paulo, 41(75): 107-121, dez. 2008.


O caso Margaret Little: Winnicott e as bordas da psicanálise

SUMMARY

The case of Margaret Little: Winnicott and the borders of psychoanalysis

This article presents and discusses the analysis of Margaret Little with D.
Winnicott, as she describes it. It also presents a resume of Little’s two previous
analysis, both of them unsuccessful. Then, based on the clinical procedures adopted
by Winnicott, it reflects on the changes of psychoanalytical classic technic in the
treatment of psychotic and borderline patients.

Keywords: Little. Winnicott. Psychoanalytical classic technic. Psychosis.

RESUMEN

El caso de Margaret Little: Winnicott y los bordes del psicoanálisis

Este artículo presenta y discute el análisis de Margaret Little con D. Winnicott,


tal cual ella la describe. También presenta un resumen de las sus dos análisis
anteriores, una y otra sin suceso. Entonces, basado en los procedimientos clínicos
adoptados por Winnicott, refleja sobre las mudanzas de la técnica psicoanalítica
clásica en el tratamiento de pacientes psicóticos y borderlines.

Palabras-clave: Little. Winnicott. Técnica psicoanalítica clásica. Psicosis.

Alfredo Naffah Neto


R. Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 309/7 – Vila Olímpia
04544-000 São Paulo, SP
Fone: (11) 3045-3082
E-mail: naffahneto@gmail.com

Recebido em: 20/06/2008


Aceito em: 12/09/2008

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