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PALTI, Elias José. Temporalidade e refutabilidade dos conceitos políticos. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS,
Porto Alegre, n. 35, p. 4-23, dez. 2016.
RESUMO ABSTRACT
Nas últimas décadas, o conceito do “político” de Carl In the last decades, Carl Schmitt´s concept of the political
Schmmitt tem ressurgido nos debates sobre teoria política, has resurface in the debates on political theory, and it has
e isso também teve importante repercussão no campo da had important repercussion in the field of intellectual
história intelectual. A distinção entre politica e o político history, too. The distinction between politics and the
permitiu-nos reconsiderar a natureza de conceitos political allowed us to reconsider the nature of political
políticos, reavaliar a sua natureza controversa. Isso é visto concepts, reassess their controversial nature. It is now seen
agora como um resultado de sua indefinição. O fato de que as a result of their undefinability. The fact that concepts
conceitos como democracia, justiça, liberdade, etc. não like democracy, justice, freedom, and so on, do not accept
aceitam qualquer definição, que resistem a toda tentativa, any definition, that resist all attempt, would spring from the
nasceria da natureza intrinsecamente aporética deles, isto intrinsically aporetic nature of them, that is, that they do
é, do fato de que eles não se referem a nenhum conjunto de not refer to any given set of ideas of principles that could
ideias ou princípios que poderiam ser listados, mas sim que be listed, but rather they serve as indexes of problems. The
servem como índices de problemas. O presente artigo present article intends to trace this theoretical
pretende rastrear essa transformação teórica no campo da transformation in the field of political-intellectual history,
história política-intelectual, suas consequências para a its consequences for historical research. And also how this
pesquisa histórica. E também como isso afetou nossos affect our ways of approaching Latin American intellectual
meios de abordar a história intelectual latino-americana. history.
PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
História do Pensamento Político. História Intelectual. History of Political Thought. Intellectual History. History
História do Pensamento Político Latino-americano. of Latin American Political Thought.
SUMÁRIO
Introdução; 1. A história dos conceitos e suas aporias constitutivas. 2. A revolução historiográfica de guerra e seus limites.
3. Transcendência e imanência no pensamento liberal republicano. 4. Coda: história de ideias, história de conceitos e
história de linguagens políticas.
*
Publicação original: PALTI, Elías José. Temporalidad y refutabilidad de los conceptos políticos. Prismas: revista de
história intelectual, n. 9, p. 19-34, 2005. Tradução de Pedro Prazeres Fraga Pereira e Vicente de Azevedo Bastian Cortese.
**
Professor da Universidad Nacional de Quilmes (Argentina) e da Universidad de Buenos Aires (Argentina). Investigador
do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas – CONICET.
1
POCOCK, John Greville Agard. Virtue, commerce, and history: Essays on political thought and history, chiefly in the
eighteenth century. Cambridge: Cambridge University Press, 1976.
2 A respeito, ver CONNOLLY, William. The terms of mais eloquentes em favor de tal tese. Cf. BALL, Terence;
political discourse. Princeton: Princeton University Press, POCOCK, John Greville Agard. (orgs.). Conceptual
1983. Change and the Constitution. Lawrence: Kansas University
3 BALL, Terence. Confessions of a conceptual historian. Press, 1998, p. 1-12.
Finnish Yearbook of Political Thought, Jyväskylä, v. 6, n. 5 BALL, Terence. Confessions of a conceptual historian.
1, p. 11-31, 2002, p. 21. Finnish Yearbook of Political Thought, Jyväskylä, v. 6, n.
4 O prólogo a Conceptual Change and the Constitution, que 1, p. 11-31, 2002, p. 24.
Ball escreve junto com Pocock, é, de fato, uma das defesas 6 Ibid., p. 23.
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7 POCOCK, John Greville Agard. Introduction: the state of 10 CHIGNOLA, Sandro. Historia de los conceptos, historia
the art. In: Virtue, Commerce, and History. Essays on constitucional, filosofía política. Sobre el problema del
political thought and history, chiefly in the eighteenth léxico político moderno. Res publica, Madri, num. 11-12, p.
century. Cambridge: Cambridge University Press, 1991, p. 27-67, 2003, p. 27-67.
1-36. 11 As ideias historiográficas desta geração de autores se
8 Quem sustentou essa afirmação de um modo mais encontram condensadas em SCHIERA, Pierangelo (org.).
sistemático foi FISH, Stanley Eugene. Is there a text in this Per una nuova storia constituzionale e sociale. Nápoles:
class? The authority of interpretive communities. Vita e Pensiero, 1970.
Cambridge: Harvard University Press, 1980. 12 O livro de SCHIERA, Pierangelo. Otto Hintze. Nápoles:
9 Para um ponto de vista oposto ao de Fish, veja-se BEVIR, Tecniche Nuove, 1974 foi chave na difusão das ideias
Mark. ¿Hay problemas perennes en teoría política? Res históricas deste último autor na Itália.
publica, Madri, num. 11-12, p. 7-26, 2003, p. 7-26.
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8
13 A respeito, veja-se BIRAL, Alessandro. Per una storia Giuseppe. La logica del potere: storia concettuale come
del moderno concetto di politica: genesi e sviluppo della filosofia politica. Roma: Latterza, 2007.
separazione tra politico e sociale. Pádua: CLEUP, 1977; 14 CHIGNOLA, Sandro. Historia de los conceptos, historia
DUSO, Giuseppe (ed.). Il potere: per la storia della constitucional, filosofía política. Sobre el problema del
filosofia politica moderna. Roma: Carocci, 1999 e DUSO, léxico político moderno. Res publica, Madri, num. 11-12, p.
27-67, 2003, p. 35.
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mundo que, perdida toda ideia de transcendência, referenciais ético-políticos. Desta forma, afirma,
não pode, sem embargo, deixar de confrontar o deixa escapar, precisamente, a “coisa mesma” do
impensável para aqueles: a radical contingencia político, que é, assegura, sua essência aporética.
(“irracionalidade”) dos fundamentos de toda O argumento de Ball é uma boa mostra dos
ordem secular; enfim, a “essencial refutabilidade” impulsos normativos que subjazem as
das categorias nucleares de todo discurso ético ou perspectivas débeis da temporalidade dos
político moderno. conceitos políticos. A ideia de Rosanvallon de
Isso implica que, mesmo no caso uma “história conceitual do político” leva a
improvável – e, no longo prazo, definitivamente inverter seu argumento a respeito do assunto. Não
impossível – de que não mude o sentido de um seria realmente a impossibilidade de fixar o
conceito, este continuará sendo, de todos os sentido dos conceitos políticos o que faria a
modos, sempre refutável, por natureza. política impossível. Pelo contrário, se o
Encontramos assim uma interpretação diferente significado de conceitos tais como justiça,
da máxima de Nietzsche: não se trata de que os democracia, liberdade, etc. pudessem estabelecer-
conceitos não podem definir-se de um modo se de um modo objetivo, a política perderia ipso
determinado porque seu sentido varia facto todo sentido. Em tal caso, a resolução dos
historicamente, mas do contrário: os conceitos assuntos públicos deveria ser confiada aos
modificam-se porque não podem ser definidos de expertos. Não haveria lugar, enfim, para as
um modo determinado. Não obstante, para diferenças legítimas de opiniões a respeito; só
compreender por que toda fixação de sentido é existiriam aqueles que conhecem essa verdadeira
constitutivamente precária, devemos reconstruir definição e aqueles que a ignoram.
um inteiro campo semântico, ir além da história O ponto, nas palavras de Rosanvallon, não
dos conceitos em direção a uma história das é “buscar resolver o enigma [da política moderna]
linguagens políticas. Recriar uma linguagem impondo-lhe uma normatividade, como se uma
política envolve não apenas a tarefa de traçar ciência pura da linguagem ou do direito pudesse
como os conceitos mudaram de significado ao indicar aos homens aquela solução razoável à qual
largo do tempo, mas também, e não teriam outro remédio senão adequarem-se,
fundamentalmente, a de compreender o que os mas de “considerar seu caráter problemático” a
impedia de alcançar sua completude semântica, fim de “compreender seu funcionamento”. 15 E
descobrir aqueles pontos de fissura que lhes eram isso implica uma reformulação fundamental dos
inerentes. modos de abordar a história político-intelectual.
Isto é, mais precisamente, o que, em sua Segundo afirma: “O objetivo já não é apenas opor
conferência inaugural no Collége de France, banalmente o universo das práticas ao das normas.
Pierre Rosanvallon chamou de “uma história Trata-se de partir das antinomias constitutivas do
conceitual do político”. Segundo afirmou então, a político, antinomias cujo caráter se revela
visão formalista, típico-ideal, que vê as formações unicamente no transcurso da história”.16
conceituais como sistemas autossuficientes e Encontramos aqui, exposta em forma
logicamente estruturados, esconde um impulso condensada, uma segunda formulação da natureza
normativo que desloca o objeto histórico dos desacordos entre ambas correntes. Enquanto
particular para recoloca-lo em um sistema de a primeira delas situa a fonte do estigma da
15 ROSANVALLON, Pierre. Por una historia conceptual Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2003, p. 41-
de lo político: lección inaugural en el Collége de France. 42.
16 Ibid., p. 43.
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17 Um bom exemplo desta convergência espontânea entre neutros e atemporais do qual se pode dispor à vontade, mas
esta forma de compreender a história conceitual e a mais sim uma parte essencial da realidade humana.” Cf.
tradicional própria da história das ideiais se encontra em GUERRA, François-Xavier. Los espacios públicos en
VEIT-BRAUSE, Irmline. The Interdisciplinarity of History Iberoamérica: Ambigüedades y problemas. Siglos XVIII-
of Concepts. A Bridge Between Disciplines. History of XIX. México: Fondo de Cultura Economica, 1998, p. 8.
Concepts Newsletter, Nova Iorque, 6, p. 8-13, 2003, p. 8- 19 GUERRA, François-Xavier. Modernidad e
13. independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispânicas.
18 “A linguagem – assegura – não é uma realidade México: FCE, 1993.
separável das realidades sociais, um elenco de instrumentos
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fenômenos de modas ou influências – ainda que afetadas pelas novidades introduzidas por Cádiz –
estes também existam – mas, fundamentalmente, uma conjunção de modernidade política e
de uma mesma lógica surgida de um comum arcaísmo social que se expressa na hibridez da
nascimento à política moderna [a “modernidade linguagem política, que superpõe referências
de ruptura”]”. 20 Guerra descobre assim um culturais modernas com categorias e valores que
vínculo interno entre ambos níveis (o discursivo e remetem claramente a imaginários tradicionais.
o extra-discursivo). O “contexto” deixa de ser um Neste último ponto encontramos, sem
cenário externo para o desenvolvimento das embargo, o aspecto mais problemático de seu
“ideias”, e passa a constituir um aspecto inerente enfoque. Guerra termina ali chegando, por uma
aos discursos, determinando desde dentro a lógica via distinta a de Reinhart Koselleck, a sua própria
de sua articulação. E isso conduz ao segundo versão do que este denominou Sattelzeit (o
deslocamento produzido. período de ruptura conceitual em cujo curso se
Em segundo lugar, Guerra conecta as redefiniram todas as categorias políticas
transformações conceituais com alterações fundamentais, dando lugar à emergência de um
produzidas no nível das práticas políticas vocabulário político moderno). Sem embargo, em
associadas com a emergência de novos âmbitos de Guerra esta questão se resolve em uma
sociabilidade e sujeitos políticos. Os perspectiva dicotômica que opõe modernidade e
deslocamentos semânticos observados adquirem tradição, como se se tratasse de duas totalidades
sentido em função de seus novos meios e lugares coerentes, claramente delimitadas e homogêneas,
de articulação, os quais não preexistem à própria o que reinscreve seu modelo dentro do mesmo
crise política, mas surgem como seu resultado, e marco de aproximações formalistas que
permitem a conformação de uma incipiente Rosanvallon criticava.
“esfera pública”. Tal esquema interpretativo coloca, com
Em terceiro lugar, o que foi exposto abre a efeito, dois problemas básicos. Em primeiro
Guerra as portas para superar o dualismo entre lugar, tem implícita a pressuposição de que na
tradicionalismo espanhol e liberalismo história intelectual ocidental houve uma única
americano. Como ele mostra claramente, se trato mutação conceitual, que é a que se produziu desde
de um processo revolucionário único, que finais do séc. XVIII, e se para tradição de
abarcava em conjunto o Império, e tinha seu modernidade. E isso leva a descartar de antemão
epicentro, precisamente, na península, que é a que a possibilidade de qualquer outra ruptura
se viu, de fato, mais diretamente impactada pela subsequente (ou precedente). Tudo o que vem
crise do sistema monárquico. depois da quebra mencionada será assim
Em quarto lugar, esta perspectiva recoloca agrupado sob uma etiqueta comum: a de
as visões a respeito dos modos de inscrição das “modernidade”. Deste modo, terminam-se
guerras de independência na América Latina no confundindo formações conceituais demasiado
marco da chamada “era das revoluções heterogêneas entre si para que resultem
democráticas”, e as peculiaridades da compreensíveis dentro de uma única categoria. O
modernização hispânica (que Guerra inclui dentro segundo problema, muito mais sério, é
da categoria de “modernidade de ruptura”). Seu consequência do anterior. Na medida em que
traço característico será, de forma mais notável modernidade e tradição aparecem como blocos
nas províncias ultramarinas – menos diretamente antinômicos perfeitamente coerentes e opostos
20 Ibid., p. 370.
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entre si, as contradições na história intelectual conceitos ternos –, mas sim o verdadeiro sentido
serão vistas necessariamente como resultado de da “democracia moderna. Este é também o ponto
uma sorte de assincronia conceitual, a em que a perspectiva de Guerra se torna ilustrativa
superposição acidental de duas épocas históricas de dilemas teóricos de alcance mais vasto, que
diversas. Tudo o que se afaste do “tipo ideal” não afetam especificamente a história intelectual
liberal não pode ser interpretado como algo latino-americana, mas a disciplina enquanto tal.
diferente da persistência de visões tradicionalistas Definitivamente, por trás da falácia metodológica
que se negam obstinadamente a desaparecer antes mencionada podemos descobrir os efeitos
(gerando assim toda classe de hibridismos e da persistência nela de impulsos normativistas.
patologias conceituais). Estes não são incompatíveis com a ideia de
O marco explicativo dicotômico no qual temporalidade dos conceitos. Não obstante, a fim
Guerra faz repousar suas análises históricas (as de dar lugar a invocações ético-políticas
quais, sem embargo, excedem decididamente, e substantivas, tal ideia deve conter uma
não deixam de rebelar-se contra dito marco) ambiguidade. Por um lado, os conceitos hão de ser
esconde, na realidade, uma falácia metodológica, vistos como contingentes, no sentido de que seu
pela qual os termos invocados – modernidade e significado varia ao largo do tempo e, por tanto,
tradição – deixam de ser categorias históricas para as ideias de uma época não poderiam ser
se converterem no que Koselleck chama contra– transpostas a outra. Sem embargo, por outro lado,
conceitos assimétricos, em que um dos quais se os conceitos não seriam concebidos como
define por oposição ao outro, como sua contraface verdadeiramente contingentes no sentido de que,
negativa. 21 Considerados como designando considerados em seus próprios termos, estes
simplesmente períodos históricos determinados, apareceriam como perfeitamente autocontidos e
não excluem a presença de muitos outros. Não é autoconsistentes, isto é, como entidades
assim, por outro lado, quando se convertem em logicamente integradas, e não historicamente
contra-conceitos assimétricos, como ocorre, por articuladas.
exemplo, com democracia e autoritarismo. Neste Este último pressuposto resulta
caso, tudo o que não é moderno é necessariamente incompatível com a ideia de temporalidade dos
tradicional, e vice-versa. Ambos termos esgotam conceitos somente nos marcos de uma
o universo imaginável do político. E, deste modo, determinada interpretação desta temporalidade.
perdem seu caráter histórico para se converter Como mostra Chignola em relação ao caso
numa sorte de princípios trans-históricos que italiano, esta supõe um desenvolvimento
atravessariam inteiramente a história conceitual subsequente na trajetória contemporânea da
local e explicariam todo seu transcurso até o história conceitual; marca uma segunda fase, a
presente. qual envolve um trabalho adicional de “crítica e
Chegamos assim ao núcleo do esquema desconstrução”. Definitivamente, na medida em
interpretativo de Guerra. Para ele, o que a elite que as formações conceituais seguem sendo vistas
governante latino-americana fracassou em como horizontes auto-integrados e
compreender não é o suposto sentido eterno da autoconsistentes, a recaída no tipo de visões
ideia de democracia – ele não crê na existência de normativistas próprias da tradição da filosofia
21 KOSELLECK, Reinhart. The historical-political espanhol: Reinhart Koselleck, “Sobre a semântica histórico-
semantics of asymmetric counterconcepts. In: Futures past: política dos conceitos contrários assimétricos”, em Futuro
On the semantics of historical time. Cambridge: The MIT passado. Para una semántica de los tiempos históricos,
Press, p. 159-197, 1985, p. 159-197 [Tradução para o Barcelona, Paidós, 1993, p. 205-250].
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22 POCOCK, John Greville Agard. The Machiavellian existia para realizar para todos os cidadãos tudo o que o
moment: Florentine political thought and the Atlantic homem era capaz de realizar nesta vida, e particular, no
republican tradition. Princeton: Princeton University Press, sentido de que era finita e localizada no tempo e no espaço”,
1975, p. VIII. em POCOCK, John Greville Agard. The Machiavellian
23 “A república ou a polis Aristotélica, tal como reemergiu moment: Florentine political thought and the Atlantic
no pensamento humanista cívico do século XV – afirma republican tradition. Princeton: Princeton University Press,
Pocock – foi ao mesmo tempo universal, no sentido de que 1975, cit., p. 3
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vicissitudes pelas quais passou o pensamento também o reino dos valores e das normas. Estas
local do século XIX. Inversamente, a análise do deixam de aparecer como meramente dadas
caso local suscita inevitavelmente problemas e (transcendentes, universais) para converterem-se
questionamentos relativos a aspectos em produtos das próprias decisões coletivas
metodológicos mais gerais que permitem voluntariamente assumidas. Sem embargo, com a
reformular ou enriquecer dito modelo analítico. imanentização das concepções do “bem” (seu
Segundo tento demonstrar em meu estudo translado ao âmbito subjetivo-político), surgirá
intitulado A invenção de uma legitimidade 24 , a outra forma de historicidade, uma que escapa ao
história do pensamento político mexicano do âmbito do “momento maquiavélico”. Uma vez
século XIX revela perspectivas novas perdida toda instância de transcendência, a ideia
fundamentais no que denominamos o processo de liberal-republicana (que distinguiremos da
inscrição da temporalidade no discurso político de republicana clássica) revelará uma aporia
uma época dada (a inserção nesse de um elemento intrínseca ao seu próprio conceito; é dizer, dará
estranho à sua lógica imanente e que acaba por lugar a um tipo de temporalidade imanentemente
deslocá-la). Como veremos aqui sucintamente, a gerada, que não resulta dos embates de fatos
definição de Pocock do “momento maquiavélico” irracionais que ameaçam a ordem institucional
engloba e oculta diferenças cruciais quanto aos desde fora – a fortuna- senão de suas próprias
modos de conceber o caráter e a fonte da contradições inerentes. Com efeito, o crescente
contingência que ameaça a estabilidade de toda clima de antagonismo que se desencadeou no
ordem mundana. Referido momento México após a quebra do vínculo colonial
maquiavélico seria, na realidade, apenas uma das terminaria revelando aquele fundo de
formas possíveis de conceber tal contingência, contingência (irracionalidade) presente nos
marcaria unicamente um primeiro estágio no próprios fundamentos de toda ordem institucional
processo de deslocamento do vocabulário político pós-tradicional (já privada, portando, de toda
liberal-republicano. garantia transcendente). A temporalidade
Algo que Pocock não assinala é que aquela (historicidade) se transladaria então do contexto
contradição, tipicamente republicana-clássica, ao próprio conceito. Ela rompe a sua reclusão no
entre valores universais transcendentes (os únicos mundo para penetrar o reino dos valores.
que podiam, em uma sociedade do Antigo Regime, A questão crítica que desencadeia a
justificar a existência de uma comunidade) e sucessão concatenação de pronunciamentos e em
meios finitos imanentes se resolveria, em torno da qual girarão todos os debates políticos do
princípio, uma vez que se abandona, com o período será a do alcance e dos limites do direito
liberalismo, o ideal de realização de valores legítimo de insurreição ou de resistência à
universais, para vincular a legitimidade dos opressão (como assinala Alfonso Noriega, “o
sistemas políticos à própria vontade de seus tema da resistência à opressão, ou do direito de
membros; é dizer, quando se secularizam tanto insurreição, apaixonou os liberais ilustrados
meios quanto fins. Produz-se assim um [mexicanos]”).25 Em última instância, o direito de
deslocamento conceitual por meio do qual o insurreição minava a objetividade do
âmbito da política se expande para compreender ordenamento institucional, tornando a avaliação
24 PALTI, Elías José. La invención de una legitimidad: 25 NORIEGA, Alfonso. El pensamiento conservador y el
razón y retórica en el pensamiento mexicano del siglo XIX: conservadurismo mexicano. México: UNAM, 1993, t. I, p.
un estudio sobre las formas del discurso político. México: 136.
Fondo de Cultura Economica, 2005, em edição.
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de sua legitimidade uma questão subjetiva, o que Na medida em que o conceito liberal-
resultava destrutivo a dito ordenamento. A republicano conserva um momento de
necessidade de sua limitação aparecerá assim transcendência (a verdade das normas
como algo urgente, e, sem embargo, tornar-se-ia, constitucionais), ainda podemos falar de um
ao mesmo tempo, crescentemente problemático “momento maquiavélico” nele. A validade de
de se alcançar (problemática de ser atingida). Sua referidas normas (o tipo ideal) não é, todavia,
definição no sistema jurídico mexicano do século posta em questão, senão apenas a sua
XIX pela figura do “delito de opinião” revela “aplicabilidade” a contextos e circunstâncias
desde já as ambiguidades que acarretava a sua particulares, como o latino-americano. Sem
tipificação como um crime. De fato, tal direito não embargo, como assinalamos, isso apenas marcaria
só estava na base do regime republicano e um primeiro estágio na problematização de tal
distinguia esse do antigo despotismo, senão que conceito. Esse desdobrar-se-á no México em três
se encontrava na própria origem do México como fases ou períodos sucessivos. Tais períodos se
nação independente (nascida, não se pode encontram separados por três acontecimentos que
esquecer, de uma revolução). E é aqui que aparece assinalaram, respectivamente, pontos de inflexão
aquele aspecto em que a análise do caso mexicano na história política local, determinando umbrais
nos obriga a nos afastarmos da proposta original progressivos na dissolução do conceito de
de Pocock. legitimidade.
No que podemos chamar (retomando os O primeiro destes acontecimentos é representado
termos de Ernesto Laclau) 26 uma “lógica de pelo Motín de la acordada (1828), que quebra
contingencia” (que é uma das formas possíveis de pela primeira vez a continuidade institucional do
aludir ao que Pocock chama a “temporalização” regime republicano surgido em 1824, e culmina
do pensamento político), o “maquiavélico” em 1836 com a sanção das Sete Leis
representaria apenas um primeiro momento. Nele, Constitucionais. Esta é, mais especificamente, a
a historicidade ainda aparece como exterior às “Era de Mora”. Ela assinala “o momento
normas. A partir de seus marcos, os problemas maquiavélico” na história do pensamento político
que a república confronta (perenidade, mexicano. A quebra de ordem institucional
viabilidade, etc.) aparecem, todavia, como que produzida em 1828 e a sucessão dos levantes
remetendo a razões de ordem empírica, isto é, militares que lhe seguiu tornaria impossível
relativas ao âmbito de sua realização prática. O distinguir um governo legítimo de outro ilegítimo
“momento maquiavélico” se articula, todavia, de (e, como consequência, decidir sobre a justiça o
fato, sobre a base da oposição platônica entre não dos levantes). Segundo a conclusão de Mora
forma (morphē) e matéria (hyle) (que é a que feita ao final de sua trajetória política, a questão
subjaz à antinomia entre virtú e fortuna). O único já havia se tornado indecidível no México: neste
tipo de temporalidade concebível dentro do ponto, estava claro que, para o governo, os
conceito republicano clássico é o que deriva dessa insurrectos seriam sempre e inevitavelmente
oposição, isto é, vincula-se com a ideia da subversivos à ordem legitimamente estabelecida,
corruptibilidade da matéria criada. Em última e, inversamente, para os rebeldes, seria sempre o
instância, tal concepção é indissociável das visões governo quem teria violado a constituição, cuja
teocêntricas do mundo. vigência eles, segundo alegavam, propunham-se
restaurar, não havendo mais bases objetivas sobre
as quais resolver a questão. Ainda assim, isso não discursos a situação de completa desintegração do
lançaria, todavia, dúvidas a respeito da existência sistema político (a ruptura do consenso de debate)
de critérios objetivos em princípio válidos para produzida pela derrota militar ante os Estados
tanto. A contingência se refere aqui somente ao Unidos em 1847, e que chega a por em questão a
que na teoria jurídica se denomina adjudicatio, própria entidade do México como nação (abrindo,
isto é, a aplicabilidade de uma norma geral a um de fato, a perspectiva certa de sua completa
caso particular. desintegração territorial). Em tal contexto, o líder
O período seguinte se inicia com a revisão conservador Lucas Alamán desvendará o fundo
da carta constitucional e o fim da Primeira aporético em que se sustenta o conceito liberal-
República Federal. A partir de 1836 começaria a republicano.28
revelar-se certa impossibilidade inerente ao Segundo mostra Alamán, o direito de
conceito liberal-republicano para delimitar o insurreição é, com efeito, a negação da Lei, porém
exercício legítimo do direito de insurreição. constitui, ao mesmo tempo, seu pressuposto. Em
Como assinala o porta-voz das forças centralistas, definitivo, é o exercício desse direito, destrutivo
Francisco Manuel Sánchez de Tagle, “[a licitude de toda ordem institucional, que torna manifesto
do direito de insurreição] é o PONTO CENTRAL o caráter soberano do cidadão em que todo regime
dessa questão; o ponto que ninguém resolveu […]. republicano de governo (privado já de toda sanção
Blackstone diz: “por que me pede regras, se a transcendente) funda a sua legitimidade. Alamán
essência da revolução é não tê-las?’. Todos, enfim, aponta assim a uma contradição inerente ao
perdem-se no mundo de vaguezas e nos deixam às conceito moderno de cidadão. Para constituir uma
escuras”.27 ordem legal, e poder ser efetivamente soberano, o
O direito de insurreição aparece assim cidadão deve renunciar ao exercício do direito de
como o Outro da Lei, aquele que escapa insurreição, porque, em caso contrário, estamos
radicalmente de seu âmbito. A impossibilidade de ainda em um estado de natureza. Porém se
estabelecer critérios para limitar o direito de renuncia a esse direito, deixa ipso facto de ser
insurreição se revela como um limite interno à Lei soberano, o que não só representa uma
(de fato, nenhuma constituição pode regulamentar contradição em termos, senão que, deste modo,
a sua própria violação). Isso marca, enfim, um privaria também de bases de legitimidade um
novo estágio na inscrição da temporalidade no sistema fundado, nesse caso, em uma soberania já
conceito liberal-republicano: a indecidibilidade inexistente (com o que também voltamos ao
ultrapassa então o âmbito meramente empírico estado de natureza). Em síntese, o sistema liberal-
para alojar-se no seio do próprio conceito da Lei. republicano pressupõe o exercício permanente
Entramos no que chamaremos o “momento desse mesmo direito que o torna impossível. O
hobbeseano”. direito de insurreição se revela como a destruição
A desintegração progressiva do sistema e ao mesmo tempo o fundamento da Lei, o que a
político empurraria, sem embargo, este processo nega porém que (***) encontra, sem embargo, em
de irrupção da temporalidade um estágio adiante, sua base, seu “exterior constitutivo”.
no qual haveria de dissolver-se o conceito de Entramos aqui no que chamamos o
legitimidade. Tal fato expressa no plano dos “momento rousseauneano”. Alamán e os
27 SÁNCHEZ DE TAGLE, Francisco Manuel. Refutación Comisión de Reorganización. México: Imprenta del Águila,
de las especies vertidas en los números 21, 22, 23 del 1835, p. 21.
periódico titulado El Anteojo contra el proyecto de la 28 Conferir PALTI, Elías José. La Política Del Disenso: La
primera ley constitucional, que presentó al Congreso la Polémica en Torno Al Monarquismo México, 1848-1850.
México: Fondo de Cultura Economica, 1998.
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conservadores forçariam então a elite mexicana a uma forma de historicidade imanente aos
confrontar aquele impensável dentro dos marcos discursos – que faz deles entidades plenamente
do pensamento liberal-republicano: a radical históricas, formações simbólicas totalmente
contingencia (indecidibilidade) dos fundamentos contingentes -, e não meramente um subproduto
de toda ordem institucional pós-tradicional. A acidental da “história social”, para falar nos
noção de legitimidade já não seria somente termos de Koselleck, reorienta nosso olhar a uma
inviável no México – uma anomalia explicável segunda ordem da realidade simbólica, que é o
somente como expressão de alguma que designamos com o nome de linguagens
“peculiaridade local” -; esta revelar-se-ia como políticas: as condições de produção-
uma categoria carente de sentido, algo ilusório.29 desarticulação dos discursos.
Podemos voltar agora ao argumento de A questão da temporalidade dos discursos
Ball. É certo que, como ele assinala, não basta contém, em definitivo, outra ainda mais
observar mudanças históricas nos conceitos, fundamental, porém sintomaticamente ignorada
demostrar o fato de que eles sempre foram nos presentes debates metodológicos: o que é uma
refutados, para deduzir disso a sua essencial linguagem política, como identificá-la, em que
refutabilidade. Porém isso apenas destaca as difere de um “sistema de ideias”. Ainda que não
limitações próprias da história dos conceitos. A possamos, nesse trabalho, esgotar todos os
pergunta que aqui se propõe não é sobre as aspectos aqui contidos, gostaria de assinalar
mudanças históricas de sentido. A questão da brevemente os traços cruciais que identificam as
refutabilidade não pode ser resolvida meramente linguagens políticas e as distinguem dos sistemas
mediante a comprovação das transformações de ideias.
históricas contingentemente produzidas no
sentido dos conceitos (procedimento intelectual 4 CODA: HISTÓRIA DE IDEIAS,
que, como assinala Ball, contém uma falácia HISTÓRIA DE CONCEITOS E HISTÓRIA
metodológica, uma espécie de salto ilegítimo do DE LINGUAGENS POLÍTICAS
plano fático ao plano normativo ou ontológico).
Tal questão suscita a interrogação a respeito de 1. Em primeiro lugar, as linguagens políticas não
por que estas transformações se produzem, como são meros conjuntos de ideias. Daí a avaliação
elas são possíveis. Deste modo, desloca o nosso repetida pelos historiadores de que tais linguagens
enfoque a um plano mais primitivo da realidade resistem obstinadamente a toda definição, que o
conceitual. A busca do que Chignola denomina seu conteúdo não pode ser estabelecido de um
29 A expressão zombeteira de Alamán é eloquente quanto a nem impediu a Cicero burlar os adivinhos em seu tratado
isso: “Um escritor filósofo – referia – de demasiada sobre a Adivinhação; porém entre nós os mesmos que
celebridade por desgraça no século passado [Voltaire], dizia atropelaram toda a eleição constitucional, os que tudo
tratando do colegiado dos Oráculos da Roma antiga, transformaram por meio da força de revoluções, são os que
composto pelos primeiros homens da república, que não gritam mais intensamente em favor da legitimidade e os que
compreendia como quando se reuniam para realizar a qualificam tudo de ilegítimo, com exceção, não obstante, de
adivinhação e os presságios, que para tudo se consultavam, si mesmos e de seus amigos. Na última época, sobretudo,
podiam olhar-se uns aos outros cara a cara sem rirem-se. nada tem subsistido do modo conforme fora estabelecido
Entre nós, pode-se dizer o mesmo com respeito à palavra em razão da constituição”. Cf. ALAMÁN, Lucas; INCLÁN,
legitimidade, a qual já não é fácil de ser pronunciada Luis Gonzaga. Defensa del ex-Ministro de Relaciones d.
seriamente neste país, depois de tudo o que ocorreu no pós Lucas Alaman, en la causa formada contra él y contra los
1828. A farsa que os Oráculos romanos representavam, não ex-Ministros de Guerra y Justicia del Vice-Presidente d.
era a seus próprios olhos, porém, outra coisa além de uma Anastasio Bustamante: con unas noticias preliminares que
medida política com a qual se dava sanção do céu aos atos dan idea del orígen de esta. Documentos Diversos.
da autoridade, o que não enganava nenhum homem de juízo, (Inéditos e muito raros). México: Jus, 1945. Tomo III, p. 118
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modo inequívoco. Ela é assim simplesmente que importe não seja simplesmente entender o que
porque uma linguagem política não consiste em um autor disse, senão penetrar a instância de suas
nenhuma série de enunciados (conteúdos de afirmações explícitas e acessar a estrutura
discurso) que possam ser listados, senão em um argumentativa que lhe é subjacente). E ele nos
modo característico de produzi-los. As linguagens conduz a nosso segundo plano. As linguagens
políticas são, pois, indeterminadas políticas cruzam o espectro ideológico. Esse é o
semanticamente; nelas se pode sempre afirmar significado da afirmação segundo a qual as
algo, e também o contrário. Em definitivo, estes linguagens políticas são entidades objetivas.
remetem a um plano de realidade simbólica de Diferentemente das “ideias”, não são atributos
segunda ordem, ao modo de produção dos subjetivos; ditas linguagens articulam redes
conceitos. Nos termos elaborados por Jesús discursivas que tornam possível a mútua
Mosterín, uma linguagem política é composta de confrontação de ideais. E ele contém uma
conceitores (conceitos de conceitos).30 Para fazer reformulação ainda mais radical dos enfoques
uma história das linguagens políticas é necessário,tradicionais na história intelectual.
pois, ultrapassar o plano textual, os conteúdos Os historiadores de ideias buscam
semânticos dos discursos (o plano das “ideias”) e estabelecer os conceitos fundamentais que
penetrar o dispositivo argumentativo que lhes definem cada corrente de pensamento e traçar
subjaz e identifica, os modos ou princípios horizontalmente a sua evolução ao longo do
formais particulares da sua articulação. período considerado (como se se tratassem de
entidades geradas independentemente e apenas a
2. O ponto precedente nos permite discernir os posteriori justapostas). As linguagens políticas,
conteúdos de discurso das linguagens políticas por outro lado, apenas podem ser descobertas
subjacentes. O primeiro remete ao plano atravessando verticalmente as distintas correntes
semântico; o segundo, à ordem sintática, aos de pensamento. Estas se tornam relevantes
dispositivos formais ou modos de produção dos unicamente na medida em que nos revelam, em
discursos. Dessa perspectiva, falar, por exemplo, sua interação, o conjunto de premissas
de uma linguagem liberal não tem sentido, se compartilhadas sobre as quais se articula o
entendermos essa em termos estritamente discurso público de uma época, e como estas
ideológicos: pode-se ser liberal (ou conservador) premissas se vão alternando no curso do tempo.
de muitas maneiras diferentes. De fato, os Em síntese, para fazer uma história das linguagens
mesmos postulados políticos podem responder a políticas não basta, como dissemos, transcender a
muitas diversas matrizes conceituais; e, superfície textual dos discursos e acessar o
inversamente, programas políticos muito diversos, aparato argumentativo que subjaz a cada forma de
e ainda contraditórios entre si, podem responder a discursividade política; para fazê-lo, devemos
uma mesma matriz conceitual. As continuidades reconstruir contextos de debate. O que importa
no nível da superfície de ideias podem assim aqui não é observar como mudaram as ideias,
muito bem esconder descontinuidades senão como se reconfigura o sistema de suas
fundamentais em relação às linguagens políticas posições relativas, os deslocamentos nas
subjacentes, e vice-versa (daí que, como vimos, o coordenadas que determinam os modos de sua
30 Conferir MOSTERÍN, Jesús. Conceptos y teorías en la científicas”, a qual reformulará de modo crucial a noção de
ciencia. Alianza, 1984. Esse epistemólogo alemão é Kuhn de paradigma, dando assim um novo impulso aos
membro do assim denominado “círculo de Berlin”, liderado estudos em filosofia da ciência. A perspectiva que aqui se
por Wolfgang Stegmüller. Referido grupo elaborou a expõe é, em boa parte, devedora dos aportes realizados por
chamada “concepção não enunciativa das teorias essa escola.
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articulação púbica. E esses não podem ser próprios discursos dentro de seu contexto de
descobertos senão na mútua oposição entre enunciação.
perspectivas antagônicas. Basicamente, esses três pontos assinalados
orientam a superação das limitações da história de
3. A reconstrução dos contextos de debate não ideias, revelando-as como resultantes de uma
implica, sem embargo, sair do plano dos discursos. visão crua da linguagem, que a reduz a sua
As linguagens políticas, de fato, transcendem a instância meramente referencial. A nova história
oposição entre texto e contexto em que a história intelectual buscaria, por outro lado, abordar
de ideais se encontrava inevitavelmente presa.31 simultaneamente as três dimensões inerentes a
Uma linguagem política assim se torna apenas na todo uso público da linguagem: a semântica, a
medida em que contém dentro de si as suas sintática e a pragmática. Podemos dizer,
próprias condições de enunciação. Isso nos esquematicamente, que um ponto de vista
conduz, novamente, mais além do plano radicalmente novo da história intelectual (o giro
semântico da linguagem, que é o único objeto das ideias e das linguagens) surge das elaborações
concebível para a história de ideias; nos leva, convergentes das três grandes correntes que
desta vez, a penetrar na dimensão pragmática dos atualmente dominam o campo, cada uma das
discursos (quem fala, a quem se fala, como o faz, quais enfatizaria, e renovaria nossas perspectivas,
em que contexto social – relações de poder -, a respeito de cada uma dessas dimensões (a escola
etc.) 32 , é dizer, nos propõe a necessidade de alemã de Begriffsgeschichte, para la semântica; a
analisar como as condições de anunciação se escola de Cambridge, para a gramática; e a nova
inscrevem no interior do âmbito simbólico e escola francesa de história conceitual da política,
passam a formar uma dimensão constitutiva dele. para a sintática). Na medida em que combinamos
Para resumir o visto até aqui, fazer uma história seus respectivos aportes, obtemos o aspecto
das linguagens políticas supõe, não só transcender crucial que distingue as linguagens políticas dos
a superfície textual dos discursos e acessar o sistemas de ideias, e que constitui o tópico
aparato argumentativo que subjaz a cada forma de específico do presente trabalho: os primeiros,
discursividade política, buscando reconstruir diferentemente dos segundos, são entidades
contextos de debate. Para isso, precisamos plenamente históricas, formações conceituais
recuperar os rastros linguísticos presentes nos
31 Como assinala Pocock, a oposição entre “texto” e que faz a respeito da posição social de dito pensador com as
“contexto”, própria da história de ideias, conduz suposições que faz da significação social de suas ideias, e
necessariamente a um círculo argumentativo. “O slogan – logo a repetir o procedimento na direção contraria
ele diz – de que as ideias deveriam ser estudadas em seu produzindo uma definitivamente deplorável perversão
contexto social e político corre, para mim, o risco de metodológica”, em POCOCK, John Greville Agard.
converter-se em puro palavrório. A maioria dos que o Politics, language, and time: Essays on political thought
pronunciam supõem, geralmente inconscientemente, que and history. Chicago: University of Chicago Press, 1989, p.
eles já sabem qual é a relação entre as ideias e a realidade 105.
social. Comumente toma a forma de uma teoria crua da 32 Estas eram, precisamente, as perguntas
correspondência: supõe-se que as ideias estudadas são quintessencialmente retóricas que definem a possibilidade
características daquela facção, classe ou grupo ao qual seu dos discursos: as chamadas circunstâncias. A
autor pertencia, e explica-se como tais ideias expressam os sistematização das circunstâncias foi um dos principais
interesses, esperanças, medos ou racionalizações típicas de feitos da tratadística retórica medieval. Partindo de Cícero e
dito grupo. O perigo aqui é o de argumentar em círculos. De os clássicos, definiram-se então um conjunto de relações
fato, é sumamente difícil identificar sem ambiguidade a entre os fatores de discurso – circunstâncias – aos quais se
adstrição social de um indivíduo, e ainda muito mais a de referiam mediante perguntas específicas: quis (quem), quid
uma ideia – sendo a consciência algo sempre tão (o que), cur (por que), ubi (onde), quando (quando),
contraditório – e o sujeito tende a sustentar as suposições quemadmodum (como) e quibus adminiculs (de que forma).
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estritamente contingentes. E isso deve ser impossível toda projeção tanto prospectiva como
interpretado em um duplo sentido. retrospectiva.
4. Em primeiro lugar, as linguagens políticas 5. Finalmente, o segundo aspecto que faz das
determinam um princípio de irreversibilidade linguagens políticas formações históricas
temporal que lhes é intrínseco (e não meramente contingentes, e as distingue assim dos “sistemas
algo que lhes vem de fora, de seu contexto de ideias”, remete ao que podemos denominar o
exterior), o qual se desdobra simultaneamente em princípio de incompletude constitutiva das
uma direção dupla, é dizer, tanto linguagens políticas modernas. Estas,
prospectivamente como retrospectivamente. diferentemente dos “tipos ideais”, nunca são
Àquilo que Skinner batizou como “mitologia da entidades logicamente integradas e
prolepse” (a busca pela significação retrospectiva autoconscientes. Como vimos, no seu centro
de uma obra, o que pressupõe a presença de um encontra-se um núcleo vazio deixado pela quebra
certo telos significativo nela implícito e que das antigas cosmologias. Daí por que nenhuma
somente no futuro se revela) devemos assim categoria política moderna possa fixar seu sentido,
adicionar uma forma de mitologia inversa, que que elas possam, eventualmente, “ser refutadas”,
podemos denominar “mitologia da retroprolepse”, e não apenas ter o seu sentido modificado. De fato,
isto é, a ideia de que se pode trazer ao presente nenhuma mudança semântica, nenhuma nova
linguagens do passado uma vez que a série de definição põe em crise uma determinada forma de
premissas e supostos em que se fundavam (que discursividade política senão na medida em que
incluem visões da natureza, ideias da torna manifestos os seus pontos cegos inerentes.33
temporalidade, etc.) quebraram-se Em suma, para fazer a história das
definitivamente. Para fazer a história das linguagens não só devemos ultrapassar o plano
linguagens é necessário, pois, não só ultrapassar a semântico dos discursos, a fim de acessar o
instância textual, o plano semântico dos discursos, dispositivo formal que lhes subjaz, tratando de
e tentar acessar os modos de sua produção, reconstruir contextos de debate, rastreando nos
tratando de reconstruir contextos de debate próprios discursos as pegadas linguísticas de suas
através do reconhecimento dos rastros deixados condições de anunciação; inclusive não basta
no discurso por meio de suas condições de indagar os umbrais que determinam a sua
anunciação. Devemos, ademais, indagar os historicidade e conferem a eles um princípio de
umbrais que determinam a sua historicidade, irreversibilidade temporal imanente. É necessário
aquilo que lhes confere um princípio de – e é este o ponto crucial – compreender como é
irreversibilidade temporal imanente, tornando que a temporalidade irrompe eventualmente no
pensamento político, como, ocasionalmente
33 Isso, não obstante, não é um fenômeno usual, senão ordem política tem vigência empírica do ponto de vista da
que geralmente expressa situações de profunda crise praxis social”, em José Villacañas, “Histórica, historia
política ou social. Como assinala José Luis Villacañas, o social e historia dos conceitos políticos”, Res publica, VI:
pressuposto da consistência da norma encontra-se na base 11-12, 2003, P. 91. Acrescentemos que esse é também o
da própria noção de legitimidade: “A legitimidade, como pressuposto que o historiador não pode compartilhar, ou
conjunto de crenças tidas como válidas, reclama uma deve, ao menos, por provisoriamente entre parênteses, caso
representação consciente dos padrões normativos aceitos e pretenda escrever uma história política que seja algo mais
vigentes em uma sociedade ou grupo determinado. A tese do que o relato que a própria comunidade pode oferecer de
diria que a legitimidade deve ter uma dimensão reflexiva, si, isto é, simplesmente replicar a série de idealizações que
autoconsciente, aceita tanto pelos que mandam como pelos constituem tal comunidade.
que obedecem, e que, justamente por essa crença comum, a
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REFERÊNCIAS
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