Você está na página 1de 21
PERSPECTIVAS FEMINISTAS EM CRIMINOLOGIA: A INTERSECCIONALIDADE ENTRE GENERO, RACA E CLASSE NA ANALISE DO ESTUPRO FEMINIST PERSPECTIVES IN CRIMINOLOGY: THE INTERSECCIONALITY OF GENDER, RACE AND CLASS IN RAPE ANALYSIS Maivd oe Menezes Vieira ANDRADE Mestre em Direitos Humanos pelo PPGD/UFPA Advogada ‘Areas 00 oineito: Penal; Direitos Humanos Resuimo: Este artigo discute a criminologia desde 2 perspectiva feminista da interseccionalidade, recorrendo ao exemplo do estupro para demons trar as complexas relagdes entre género, raga e classe nos processos de criminalizagao e vitimi- zagao que devem ser consideradas, 0 objetivo € discutir as limitagdes da criminologia critica, que costuma dar énfase as relagdes estruturadas pela classe, ante as discussbes mais recentes de géneto, as quais indicam a necessidade de n3o hierarquizar categorias de diferenciacdo. A per- gunta que quero responder é: em que medida os aportes feministas podem acrescer & crimino- logia critica? Assim, a critica aqui exposta tem como hipotese que as contribuigbes feministas acerca da interseccionalidade podem fornecer fetramentas analiticas importantes & criminolo- gia, que nao devem ser ignoradas pela disciplina, Recorrendo discussto sobre epistemologias feministas para introduzir a nogio de intersec~ cionalidade, proponho uma andlise do estupro que nao invisibilze a diversidade de experiéncias de mulheres marcadas por fatores de género, (2 € classe. A interseccionalidade acusa antigas mailoandrade@gmail.com Recebido em: 28.02.2018 Aprovado em: 1405 2018 Uttima versio do (a) autor (a): 205.2018 Assmact: This article discusses criminology from the feminist perspective of intersecciona- lity, using rape as an example to demonstrate the complex relations between gender, race and class in processes of victimization and crimina- lization, that must be considered, The objective is to discuss the limitations of critical erimino- logy, which usually emphasizes class-structu- red relationships, in the face of the most recent discussions of gender, which indicate the need not to hierarchize categories of differentiation. The question | want to answer is: to what ex- tent can feminist contributions add to critical criminology? The criticism presented here has 1 a hypothesis that feminist contributions from intersectionalty can provide importants analyti- cals tools to criminology, Referring to the discus- sion of feminist epistemologies to introduce the notion of intersectionality, | propose an analysis of rape that does not obscure the diversity of women's experiences marked by gender, race and class factors with this crime and with the crimi- nal system, intersectionality accuses old limita~ tions and, with this, presents new challenges to ‘Riiaoe, Malld de Menezes Vieira Perspectivas feministas em eviminologia: a interseccionalidade entre género, raga e classe na andlise do estupro Revista Brasifera de Céncias Criminals vol. 146, ano 26, p. 435-458. Sdo Paulo: Ed. RT, agosto 2018. 436 Revsta Brasueina de Citucixs Canamars 2018 © RBCCRa 146 lamitapbes €, com isso, apresenta novos desafios ——_criminalagical knowledge, which are observed in 20 saber criminolégice, que so observadesnes studies on rope. ‘estugos soore estupro, PALAVRAS-CHAWE: Ferminismos — Criminaiogia cri Kerwonns: Feminisms - Critical criminology tita ~ ‘Genero ~ interseccionalidade - Estupra. Gender - interseccionality - Rape. ‘Susan: 1. Introduco, 2. Meio século de género: por que a criminolagia critica ainda 0 ignora?. 3. Epistemologias feministas. 4. Interseccionatidade entre género, raca classe. 5. A experiéncia do estupro. 6. Consideragtes finais. 7. Referéncias bibliograficas, IntropucAo Embora a teorizagao sobre género' nos e para além dos feminismos ja date de meio século, cle ainda se situa na marginalidade das discussdes crimino- lgicas no Brasil, mesmo as criticas, como as promovidas pela criminologia critica’. Por conta disso, a disciplina tem sido interrogada pelas feministas’ que, des- tacando contextos de violéncia ¢ considerando o aumento do encarceramento feminino no Pais, demandam que o género seja incluido nas analises crimino- légicas, pois renuncid-lo (PIRES, 2017) implica a invisibilizagao da experién- cia tanto de criminalizagao quanto de vitimizagao das mulheres (CAMPOS, 2017; MENDES, 2014; CAMPOS e CARVALHO, 2011; ANDRADE, 2005). 1. Aqui, tenho como marco na icoria feminista o famoso enxaio de Gayle Rubin “The Traffic in Women: Notes on the Political Economy’ of Sex"("O trafico de mulheres: notas sobre a economia politica do sexo”) de 1975. Desde a nogio de que existe um sistema dividido entre sexo/genero, no qual sexo ¢ biologica/natural enquanto género ¢ cons- truido/cultural/modificavel trabalhada pela autora, 0 fetminismo apreendeu o termo géncro ¢ 0 adotou © como categoria fundamental para explicar/denunciar a desigual- dade entre homens ¢ mulheres ¢ desnaturalizar as relagdes de opressdo. O género foi © ainda ¢ utilizado para afirmar que as identidades sto construidas socialmente ¢ nao determinadas pela natureza, subentendendo-se dat que so mutavess ¢ podem ser transformadas com vistas 4 arranjos que mao mais subjuguem as mulheres, Utilize “criminologia critica” de forma ampla, entendendo como a produgao acade- mica realizada a partir da década de 1970 na América Latina e no Brasil, que analisa a scletividade do sistema penal desde © paradigma marxista/de classe, influenciada pelos estudos de Alessandro Baratta, na Italia. 3. Para a discussdo sobre tenses entre criminologia critica ¢ feminismos no Brasil, ver ‘Campos ¢ Carvalho, 2011. w ‘wows Maid oe Memes Vi Pepto frinstan en cinioiaga entre genera, raga © classe naandlse doestupro evista Broulera de Cerca Crimi vor tol anc’ 34 p 438 48. Sto Pau: Ee BI, agoao 2018 Doss esrecai: "Genero € Sistema Punmvo” 437 Em um contexto mais amplo de criticas feministas 4 criminologia critica, parto das discusses travadas no feminismo para introduzir a nogao de géne- ro € as consequéncias epistemoldgicas disso para, em seguida, problematizar a centralidade dada as estruturas de género pela teoria feminista ¢ defender a interseccionalidade entre género, raca ¢ classe nas anlises criminolégicas, re correndo ao exemplo do estupro’, para demonstrar como é importante pensar na imbricagao dessas categorias ¢ nao universalizar ou essencializar as diversas experiéncias das mulheres. Neste contexto, questione 0 quanto os aportes do pensamento feminista acerea da interseccionalidade podem acrescer 4 crimi- nologia critica ante suas limitagées? A imterseccionalidade impée que © género seja pensado como parte de um sistema de diferencas entre 05 quais as distingdes de feminilidade e masculini- dade se entrelagam com as diferenciagdes de raga, sexualidade, classe, nacio- nalidade, idade ete. (PISCITELLI, 2009). Desde 0 ensaic de 1989 da critica do direito feminista negra Kimberlé ‘Crenshaw denominado “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics”, no qual a autora afirma que qualquer anilise que nao le- ve em consideracao as inlersecgdes nao pode de maneira suficiente entender a particularidade das experiéncias as quais as mulheres negras sdio subordinadas, a interseccionalidade tem sido usada para apontar a nao hicrarquizacao entre as categorias de diferenciacao dentro da teoria feminista_ Diante desses aportes, defendo que as analises criminologicas brasileiras, que tradi almente enfatizam as relacées de classe em detrimento das de ge- ‘nero ¢ raga, devem passar a ver tanto a classe quanto o género ¢ a raga como sistemas opressives que so construides um em meio aos outres ¢ nic podem ser desvencilhados por meio de andlises que as hierarquizem e/ou as conside- rem variaveis da classe, Recorre ao exemple do estupro, pois.articular o recorte racial com o de ge- nero revela come as experiéncias de violacdo das mulheres negras ¢ diferente, 4. Para fins deste artigo, defino estupro de acorde com o Codigo Penal brasileiro que © estabelece em seu artigo 213 como: “Constranger alguem, mediante violencia ou grave amecaga, a ter conjungao carnal ou a praticar ou permitir que com cle se pra- fique outro ato libidinoso”. 0 recorte que fago ¢ de estupro cometido de homens contra mulheres, de mode que as analises aqui feitas ndo abarcam violagdes contra homens ¢ criancas. 5. Para o portugues, em taducdo livre: “Desmarginalizando a intersecdo entre raga e sexo: uma critica feminista negra da doutrina anuidiscrimimacao, teoria feminista € politicas antirractstas” Fronoar, Maid de Nerezes Vieira Rerspectivas feminists ew Pomeng ainterseeoonafidade entre gévero, raga © Cassena analse oo Revista Gross de Otncios Crmino’s. vol. 146. ano 26. p. 435-455. S20 Pauio: fo EL agoste 2018,

Você também pode gostar