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ífRADVÇÃO, INTRODVÇÃO E NOTAS:


RICARDO DA CUNHA LIMA
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)V/ALEXANDRIA

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Títulos originais: De Providentia
De Constantia Sapientis
© Copyright, 2000. Editora Nova Alexandria Ltda .
Todos os direitos reservados

Capa: Antônio Kehl


Editoração: Anita Cortizas

ISBN 85-86075-57-4

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Sêneca, L. A. 4 a.C.-64

Sobre a Divina Providência e Sobre a Firmeza


do Homem Sábio / Sêneca; tradução, introdução e
notas de Ricardo da Cunha Lima - São Paulo : Nova
Alexandria, 2000.
edicão bilíngüe
136 p .
ISBN 85-86075-57-4

1. Conduta de vida 2. Ética 3. Estoicismo


CDD-188

Editora Nova Alexandria Ltda.


R. Dionísio da Costa, 141
04117-110 S. Paulo S.P.
Caixa Postal 12.994
Tel/ fax: 11 571 5637 e 575 1809
e-mail: novaalexandria@zaz.com.br
SUMÁRIO

FILOSOFIA PARA A VIDA _ _ _ _ _ _ _ _ _ 7


DE PROVIDENTIA 16
SOBRE A PROVIDÊNCIA DIVINA 17
DE CONSTANTIA SAPIENTIS 66
SOBRE A FIRMEZA DO HOMEM SÁBIO 67
OS EXEMPLA EM SÊNECA 127

DEDALUS - Acervo - FFLCH-FI L:

1 1 1~ ~i ~~li~ li~ 1 :1 ~I~ 1 ~1 1 1 1~ li~


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21000058064
SUMÁRIO

FILOSOFIA PARA A VIDA _ _ _ _ _ _ _ _ _ 7


DE PROVIDENTIA 16
SOBRE A PROVIDÊNCIA DIVINA 17
DE CONSTANTIA SAPIENTIS 66
SOBRE A FIRMEZA DO HOMEM SÁBIO 67
OS EXEMPLA EM SÊNECA 127

DEDALUS - Acervo - FFLCH-FI L:

1 1 1~ ~i ~~li~ li~ 1 :1 ~I~ 1 ~1 1 1 1~ li~


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FILOSOFIA PARA A VIDA

Ricardo da Cunha Lima

Os dois tratados reunidos neste livro são exemplares da


chamada filosofia prática, obras de aconselhamento que pre-
tendem, por meio de ponderação e sabedoria, nos ensinar a ter
uma vida melhor. O primeiro deles procura explicar-nos por
que males atingem os bons e como reagir diante dos percalços
da vida. O segundo tratado o complementa, defendendo uma
postura inabalável - firme, porém tranqüila - perante as ofen-
sas e injúrias sofridas, partam elas do destino ou de seres inve-
josos e infelizes. ·
Para isso, Sêneca não se apóia exclusivamente no
estoicismo,1corrente filosófica muito em voga no Império Roma-
no nos primeiros séculos da era cristã( mas também, com certeza,
nas lições de sua vid~loriosa e atribulada, em que não faltaram
desafios a superar. Isso, sem dúvida, confere às suas palavras um
peso e um sabor especiais.
O autor também consegue tornar o texto interessante gra-
ças ao seu estilo persuasivo e poético, recheado de figuras de lin-
guagem, exempla ("exemplos") 1 e anedotas edificantes e enfáti-
cas :---De todos os recursos, no entanto, o que se tornou sua marca
pessoal foi o uso aprimorado de sententiae ("sentenças") - frases
curtas e pungentes, de muito efeito e alta concentração
significativa, em forma de provérbio. Que sirvam de amostra:
"sem adversário a coragem definha"; só a desgraça revela o gran-
/1

de exemplo"; "o destino nada tira a não ser o que deu"; "é enor-
me a fraqueza do espírito toda vez que a razão o abandona".

1 Veja o capítulo "Os exempla em Sêneca", no final do livro .


7
FILOSOFIA PARA A VIDA

Ricardo da Cunha Lima

Os dois tratados reunidos neste livro são exemplares da


chamada filosofia prática, obras de aconselhamento que pre-
tendem, por meio de ponderação e sabedoria, nos ensinar a ter
uma vida melhor. O primeiro deles procura explicar-nos por
que males atingem os bons e como reagir diante dos percalços
da vida. O segundo tratado o complementa, defendendo uma
postura inabalável - firme, porém tranqüila - perante as ofen-
sas e injúrias sofridas, partam elas do destino ou de seres inve-
josos e infelizes. ·
Para isso, Sêneca não se apóia exclusivamente no
estoicismo,1corrente filosófica muito em voga no Império Roma-
no nos primeiros séculos da era cristã( mas também, com certeza,
nas lições de sua vid~loriosa e atribulada, em que não faltaram
desafios a superar. Isso, sem dúvida, confere às suas palavras um
peso e um sabor especiais.
O autor também consegue tornar o texto interessante gra-
ças ao seu estilo persuasivo e poético, recheado de figuras de lin-
guagem, exempla ("exemplos") 1 e anedotas edificantes e enfáti-
cas :---De todos os recursos, no entanto, o que se tornou sua marca
pessoal foi o uso aprimorado de sententiae ("sentenças") - frases
curtas e pungentes, de muito efeito e alta concentração
significativa, em forma de provérbio. Que sirvam de amostra:
"sem adversário a coragem definha"; só a desgraça revela o gran-
/1

de exemplo"; "o destino nada tira a não ser o que deu"; "é enor-
me a fraqueza do espírito toda vez que a razão o abandona".

1 Veja o capítulo "Os exempla em Sêneca", no final do livro .


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SÊNECA: UM INTELECTUAL NO PODER

A vida de Lúcio Aneu Sêneca (Lucius Annaeus Seneca) im-


pressiona por seus altos e baixos: desde o êxito como orador até
o longo e penoso exílio, desde o papel de político mais poderoso
do maior Estado da Antiguidade ocidental até o suicídio após o
abandono das atividades públicas.
Ele nasceu em Córdoba, Espanha2, em data geralmente
apontada entre 4 e 1 a.C., de urna família local rica e bem relacio-
nada . Isso lhe permitiu que, quando jovem, fosse a Roma, a capi-
tal do Império, em busca de estudo e ingresso na carreira política
(cursus honorum). Problemas de saúde, porém, interromperam
seus planos, obrigando-o a uma estada de seis anos no Egito, onde
seu tio era governador. Esse tempo não foi desperdiçado: Sêneca
aprofundou-se nos estudos e teve um contato marcante com o
pensamento do mundo helenístico e oriental.
Ele só conseguiria retornar a Roma em 31 d.C. Essa volta
foi marcada por uma tragédia: o navio em que viajava naufragou
e Sêneca, mesmo conseguindo salvar-se, juntamente com sua tia,
assistiu à morte do tio que o havia hospedado 3 . Restabelecido
em Roma, ele experimenta uma ascensão contínua e o reconheci-
mento de seu notável talento oratório e intelectual. Então, em 41,
um novo sobressai to atrapalharia mais uma vez seu percurso: no
momento em que já circulava com desenvoltura pela corte, Sêneca
é envolvido numa intriga palaciana e enviado para o exílio na
Córsega. Na carta Consolação a Minha Mãe Hélvia, ele menciona as
agruras que enfrenta: a aridez da ilha, a privação material, a de-
sonra e a distância dos seus. Embora terrível pela longa duração
(quase uma década), Sêneca soube aproveitar esse segundo afas-
tamento para novamente dedicar-se ao estudo e à redação de li-
vros, consolidando de vez sua reputação intelectual.
Passados oito anos, ocorre urna reviravolta no cenário po-
lítico: o imperador Cláudio desfaz seu primeiro casamento;
Agripina, a nova imperatriz e urna aliada de Sêneca, convence o

2 A província romana Hispnnin Bneticn.


3 Outros dramas pessoais, ocorridos nos anos seguintes, foram a morte de
seu pai e de seu filho.
8
marido não só a chamá-lo de volta, como também a fazê-lo sena-
dor e preceptor do jovem Lúcio Domício, filho do primeiro casa-
mento dela. No ano seguinte, Lúcio é adotado por Cláudio e muda
seu nome para Nero, tornando-se o herdeiro do trono imperial.
Como se vê, Séneca foi arrebatado do sofrido exílio diretamente
para o centro do poder.

Além da presença no meio político, em pouco tempo Sêneca


passou a liderar um dos mais expressivos círculos culturais de
Roma . Com uma personalidade brilhante e sedutora, reunia em
torno de si muitos dos mais dinâmicos e inovadores intelectuais.
Atraindo ao mesmo tempo os mais jovens, passou a influenciar o
gosto e as idéias de toda uma geração .
Em 54, quando Nero torna-se imperador (com apenas 16
anos!), Sêneca continua a seu lado, transformando-se numa ver-
dadeira eminência parda do governo. Conselheiro pessoal de
Nero, ele propõe leis, escreve os discursos do imperador e faz
indicações para cargos públicos, sendo uma figura de relevo nos
momentos de crise. Num mundo político fechado e feroz, em que
diversas facções lutavam pelo poder, Séneca, um negociador ha-
bilidoso e pragmático, precisou lançar mão de toda a sua destre-
za política e prestígio intelectual para acomodar interesses e man-
ter seu espaço.
De todos os conflitos, um dos mais críticos ocorria justa·
mente dentro do palácio, com o choque cada vez maior entre Nerc
e sua mãe Agripina, mulher ambiciosa e disposta a usar o filhc
para comandar de fato o Estado . O enfrentamento atingiu set:
auge em 59, quando Agripina foi assassinada a mando do pró-
prio filho, fato que abriu as portas da tirania para Nero. Mas
mesmo enfraquecido, o poder político de Sêneca sem dúvida pros-
segue, sem falar de sua considerável fortuna pessoal, tão grand(
que ele chegou a possuir pelo menos três vilas nos arredores d(
Roma. Esse enriquecimento, aliás, gerou críticas por contrasta:
com algumas recomendações encontradas em seus textos.
A grande virada na carreira senequiana ocorre em 62, corr
a morte de um grande aliado, Sexto Afrânio Burro. Diante d<
inevitável perda de influência e percebendo a postura cada vez mai:
autoritária de Nero, Séneca solicita a dispensa de suas funções

9
\pesar de o pedido não ter sido bem aceito pelo imperador, ele
.e afasta da vida pública: pouco sai de casa e evita receber visi-
as, dedicando a maior parte do tempo ao estudo filosófico. Esta-
'ª encerrada a era de poder de Sêneca. Acredita-se que foi neste
nomento de retiro que ele escreveu importantes obras, como as
:artas Morais a Lucílio e as Questões Naturais, e também, prova-
relmente, os tratados Sobre a Providência Divina e Sobre a Firmeza
lo Homem Sábio. Convém lembrar que, além dessas obras de in-
1estigação filosófica, Sêneca já havia escrito tragédias e também
1ma sátira, a Apocoloquintose.
Em 65, passados três anos de recolhimento, Sêneca tem seu
10me envolvido na conspiração pisoniana e, coagido por Nero,
tcaba por se suicidar, cortando os pulsos. Ao que tudo indica, ele
~ra inocente. A intenção de Nero era remover uma voz incômoda
~respeitada. Para Sêneca, o gesto final teve um caráter político e
ilosófico. Além de projetar-se como mártir e exaltar sua posição
>olítica, seus últimos momentos, cuidadosamente modelados
.obre os de Sócrates (e Catão), pretenderam exemplificar a morte
ligna e sábia de que ele próprio falara, por vezes, em seus livros.

ESTOICISMO: A IMPORTÂNCIA DA ÉTICA

O estoicismo é uma escola filosófica fundada por Zenão de


:ício, no século III a .C., período da história grega conhecido como
lelenístico. As doutrinas dessa época costumavam atribuir grande
mportância à ética.
Também o estoicismo, embora tenha desenvolvido larga-
nente a lógica e a física, se ocupou intensamente de questões
~ticas. Nesse campo, seu principal fundamento é viver de acordo
'.Om a natureza . Esse preceito implica a aceitação de toda sorte
le acontecimentos. Não se trata, porém, de submissão ou resig-
1ação, mas de hj mnonia com o mundo, justificada pelo princípio
le que o universo é divino, um organismo vivo, perfeitamente
irdenado e permeado por deus. Além disso, eles consideram o
miverso uno e contínuo, com todos os corpos numa mútua
nteração, interligados em amplas cadeias de causalidade. Nesse
·ontexto doutrinal, os acontecimentos não são aleatórios, mas

10
intrinsecamente lógicos e ordenados, pois são elementos desse
todo divino, conformes a uma disposição divina, a providência.
Sendo assim, o destino perde qualquer caráter trágico e se
torna algo natural, um elemento da estrutura inteiramente racio-
nal do mundo: ele é a expressão de uma disposição imutável na
rdem das coisas, sob uma lei eterna e providencial.
Nesse universo de bondade sobrepujante, a existência do
mal recebe várias explicações, das quais é interessante ressaltar
três: a) o mal é fruto de uma " desarmonia" entre o homem e seu
destino pessoal, isto é, resultante da ação equivocada do indiví-
duo; b) o mal é providencial, útil para provocar ações ainda me-
lhores; c) o mal é aparente, isto é, algo que para o homem, devido
à sua visão parcial do mundo, parece mau, mas, na verdade, den-
tro do plano de organização universal, é algo bom.
Diante dessa cosmologia, a sabedoria, fim supremo, pode
er definida como a compreensão da teia de acontecimentos, que
leva à adesão racionalmente justificada à natureza, isto é, ao bem.
Por sua vez, o bem se relaciona com a virtude de forma
imediata e automática: a virtude não é um caminho para o bem,
mas o próprio bem no indivíduo . Entre as "virtudes", uma das
mais comumente associadas ao estoicismo é a "paciência", en-
tendida como a capacidade de suportar serenamente qualquer
adversidade: é legendário (chegando ao anedótico) o desprezo
estóico pela dor e pela morte.

Se, de um lado, temos a figura do sábio, tomado de virtude


e em feliz harmonia com o mundo, de outro temos o homem co-
mum, para o qual os estóicos desenvolveram todo um conjunto
de preceitos para a vida prática. Esse aspecto da doutrina se jus-
tifica porque, apesar de os acontecimentos externos já estarem
preestabelecidos, a atitude dos indivíduos não está. De fato, os
estóicos acreditam sobretudo na racionalidade individual. Isso
impõe uma visão moral segundo a qual cada um, tendo recebido
uma atribuição de acordo com a providência divina, deve dar o
melhor de si, tal como numa encenação teatral: não cabe ao ator
mudar de papel, mas desempenhar da melhor forma possível o
papel que lhe foi atribuído. Para isso, os sábios podem servir como
exemplos capazes de orientar as ações das pessoas comuns.

11
OS DOIS TRATADOS:
POR UMA VIDA SÁBIA E SERENA

Não são poucas as pessoas que, ainda hoje, encontram em


Sêneca um almejado direcionamento moral e espiritual, perfa-
zendo uma leitura prevista por ele há dois mil anos. Prova da
força persuasiva e do magnetismo de seu texto, causadores de
entusiasmada receptividade, são as múltiplas edições esgotadas
do tratado Sobre a Brevidade da Vida, recentemente traduzido por
William Li e publicado por esta editora, que também já lançou as
obras Sobre a Tranqüilidade da Alma e Sobre o Ócio.
Seguindo essa leitura, vamos encontrar no primeiro tra-
tado, Sobre a Providência Divina, uma exortação à coragem di-
ante das dificuldades da vida. Explica-se por que os bons so-
frem desgraças; não se trata de injustiça, ao contrário: sendo o
universo providencialmente organizado, as calamidades não
passam de desafios impostos aos homens de valor, para que
:;e fortaleçam .
11
Sêneca afirma que o homem de bem considera todas as
::idversidades corno exercícios" (Pro. 2.2) . Aliás, a idéia da
:!xercitação constante, através do enfrentarnento e superação de
Jrovações, corno forma de fortalecimento do caráter, é especial-
nente cara aos estóicos .
O destino, nesse sentido, é providencial, pois fornece ao
1omern de coragem a oportunidade para mostrar seu valor. Essa
)portunidade não pode ser outra senão alguma calamidade:
'Afirmo que deus está beneficiando os que ele deseja absoluta-
nente nobres e honrados, todas as vezes que lhes apresenta mei-
JS de agir com coragem e audácia, para o que se faz necessária
tlguma dificuldade" (Pro . 4.5). A sentença contida no parágrafo
L6 resume essa idéia: A calamidade é a ocasião da virtude" .
11

A partir daí, Sêneca investe contra a figura do mimado,


1ue se desmancha ao primeiro infortúnio, contrapondo-o ao ho-
nem calejado, capaz de suportar as mais terríveis desgraças .
\.ssirn, passa a ser honorável e até prudente que cada um aceite e
nesmo busque sua quota de sacrifício, corno exposto no pará-
;rafo 4.12: "Devemos nos oferecer aos golpes do destino, para
.os fortalecermos contra ele por ele mesmo".
12
Esse comportamento torna-se ainda mais recomendá-
vel diante da inevitabilidade do destino: se os fatos já estão
determinados, por que nos revoltarmos contra eles? Assim,
as leis irrevogáveis do destino são um motivo a mais para
•nfrentarmos de cabeça erguida e com tranqüilidade todas
< s contingências.

Perto do fim [Pro. 6.1-6], Sêneca se detém no questiona-


mento do que são, em rigor, bens e males, chegando à conclusão
de que os únicos bens verdadeiros são os interiores, permanen-
tes e invulneráveis ao destino, ao passo que a riqueza exterior é
fútil, passageira e acarreta uma felicidade frágil.

O segundo tratado, Sobre a Finneza do Homem Sábio, aborda


um tema específico e corriqueiro: como reagir às injúrias e ofen-
as. Seguindo o credo estóico, Sêneca incita o leitor a inspirar-se
na atitude do sábio, a qual se sustenta em dois fundamentos prin-
cipais: o primeiro se liga ao texto anterior, isto é, os insultos são
provações que se abatem providencialmente sobre os bons a fim
de testar-lhes a firmeza de caráter. O segundo, lembrando nossos
adágios populares "o que· vem de baixo não me atinge" e "os
cães ladram, a caravana passa", apresenta a idéia de que o sábio,
estando num estágio espiritual superior em relação ao restante
da sociedade, repousa muito acima de qualquer ataque dos seres
inferiores. Um e outro fundamento implicam a solene indiferen-
ça diante de injúrias e ofensas, comportamento exemplarmente
ilustrado por Catão, homem de suma grandeza que, certa oca-
sião, enxovalhado por uma multidão enfurecida, suportou a tudo
- cuspes, xingamentos - sem se alterar.
Não é recomendação fácil de ser seguida pelo homem co-
mum, que normalmente fica espantado ou indignado diante dessa
ausência de reação, mas Sêneca, demonstrando plena consciência
da dificuldade, havia começado o tratado com urna advertência:
"Os estóicos, tendo adotado o caminho viril, não se preocupam
em fazer com que ele pareça ameno aos que estão ingressando,
mas em quanto antes nos resgatar dos perigos" (Const. Sap. 1.1).

13
Nesse mesmo sentido, ele pergunta logo a seguir: "por caminho
plano se vai às alturas?" (Const. Sap. 1.2).
Ademais, o que o homem do povo enxerga indevidamente
como "falta de resposta" Séneca afirma ser a altivez e a magnani-
midade condizentes com o sábio, que se caracteriza por agir
sempre de modo racional e equilibrado, ciente da estrutura
providencial do mundo. Qualquer postura diferente apenas com-
prova a falta de autocontrole, a destemperança; exaltar-se, enfu-
recer-se com as ofensas de pessoas de caráter inferior (ainda que
socialmente superiores) é deixar-se dominar pelas paixões, o
oposto do comportamento maduro do sábio . Como diz o filóso-
fo, "revela que não tem nem um pouco de inteligência ou
autoconfiança quem é afetado pela ofensa" (Const. Sap. 10.3).

Há ainda outros motivos a justificar essa firme e obsti-


nada paciência . Um deles, também já apontado no tratado an-
terior, reside na idéia de que os únicos bens verdadeiros são
os interiores. Essa razão se conjuga intimamente a outra idéia,
particularmente apreciada por Séneca: se a pessoa está em paz
consigo mesma, os acontecimentos externos - como calúnias e
insultos -jamais vão perturbá-la; essa paz de espírito é sagrada,
uma fortaleza intransponível. Tudo isso nos permite entender
e admirar a impressionante firmeza do sábio, que ganha con-
tornos dramáticos quando Séneca narra dois episódios, um en-
volvendo o filósofo Estílpon de Mégara e outro retomando a
figura de Catão.
Estílpon viu sua cidade devastada. Tomaram-lhe casa, fa-
mília e a pátria; mas, interrogado, disse que nada perdera, consi-
derando como únicos bens verdadeiros os que trazia
interiormente, os quais não estão sujeitos à ambição dos outros
homens nem aos caprichos do destino.
Catão é retomado no parágrafo 14.3, um dos pontos mais
impressionantes do texto: '"Mas o que um sábio vai fazer se
for agredido com um bofetada?' O mesmo que Catão, quando
lhe bateram no rosto: não ardeu de raiva, não se vingou da
injúria, nem sequer a desculpou, porém disse que não havia
sido feita. Uma maior grandeza de espírito consistiu em igno-
rar do que perdoar".

14
Sêneca prossegue analisando as mais variadas situaçõe:
ligadas ao tema, sempre preconizando as vantagens da indife
rença, num constante treino e teste da paciência, método sugeri
do por ele para aproximar um homem comum da firmeza inaba
lável do sábio. O teor dos conselhos finais reafirma essa mesm;
idéia básica de ignorar todo tipo de provocação ou insulto.

15
SOBRE A PROVIDÊNCIA DIVINA
DE PROVIDENTIA
L. Annaeus Seneca

ad Lucilium

DE PROVIDENTIA

Quare aliqua incornrnoda bonis uiris accidant, curn


prouidentia sit.

1.1 Quaesisti a me, Lucili, quid ita, si prouidentia rnundus


ageretur, multa bonis uiris mala acciderent.
Hoc cornmodius in contextu operis redderetur, cum
praeesse uniuersis prouidentia probarernus et interesse nobis
deum; sed quoniarn a toto particulam reuelli placet et unam
contradictionem manente lite integra soluere, fadam rern non
difficilern, causam deorum agam.

1.2 Superuacuum est in praesentia ostendere non sine


aliquo custode tanturn opus stare nec hunc siderum coeturn
discursumque fortuiti impetus esse, et quae casus incitat saepe
turbari et cito arietare, hanc inoffensam uelocitatem procede-
re aeternae legis imperio tantum rerum terra marique

18
Lúcio Aneu Sêneca

a Lucílio 1

SOBRE A PROVIDÊNCIA DIVINA

Por que infortúnios atingem os homens de bem, mesmo


xistindo a providência.

1.1 Tu me perguntaste, Lucílio, por que, se a providência


rege o mundo, tantos males atingem os homens bons.
Tua dúvida seria sanada de modo mais adequado ao lon-
o de uma obra abrangente, na qual provaríamos que a provi-
dência comanda o universo e um deus se preocupa conosco;
porém, como queres que se destaque uma parte do todo e se re-
olva essa única objeção, ficando em aberto o litígio, convém que
antes eu faça algo que não é difícil: defender a causa dos deuses.

1 .2 No momento, é supérfluo mostrar que o universo, obra


tão colossal, não se manteria de pé sem algum guardião, que o
reunir e dispersar das estrelas não resulta de um movimento
fortuito, e que os objetos lançados a esmo com freqüência se
desordenam e colidem bruscamente, enquanto o veloz movi-
mento ininterrupto dos astros, sob o comando de uma lei eter-
na, transporta tantas e tantas coisas em terra e em mar, e tantas

Um amigo de longa data e mais jovem, a quem Sêneca também dedica as


124 "Cartas Morais" e a obra "Questões Naturais" . Sêneca aparenta uma
preocupação verdadeira com a educação moral de Lucílio, tentando
convertê-lo do epicurismo para o estoicismo. Lucílio, na época do tratado,
foi procurnlor da Sicília, e também cultivava pretensões literárias.
19
D E PROVJDENTIA

?;estantern, tanturn clarissimorum luminum et ex disposito


relucentium; non esse materiae errantis hunc ordinem nec quae
temere coierunt tanta arte pendere ut terrarurn grauissimum
pondus sedeat inmotum et circa se properantis caeli fugam
:;pectet, ut infusa uallibus maria molliant terras nec ullum
incrementum fluminum sentiant, ut ex minimis seminibus
11ascantur ingentia.

1.3 Ne ilia quidem quae uidentur confusa et incerta,


pluuias clico nubesque et elisorum fulrninurn iactus et incendia
ruptis rnontium uerticibus effusa, tremores labantis soli aliaque
quae tumultuosa pars rerum circa terras mouet, sine ratione,
quamuis subita sint, accidunt, sed suas et ilia causas habent
non minus quam quae alienis locis conspecta miraculo sunt,
ut in mediis fluctibus calentes aquae et noua insularurn in uasto
exilientium mari spatia.

1.4 Iam uero si quis obseruauerit nudari litora pelago in


se recedente eademque intra exiguum ternpus operiri, credet
caeca quadam uolutatione modo contrahi undas et introrsum
agi, modo erurnpere et magno cursu repetere sedem suam, curn
interim illae portionibus crescunt et ad horam ac diem subeunt
ampliares minoresque, prout ilias lunare sidus elicuit, ad cuius
arbitrium oceanus exundat. Suo ista tempori reseruentur, eo
quidem magis quod tu non dubitas de prouidentia sed quereris.

1.5 ln gratiam te reducam cum dis aduersus optirnos


optimis. Neque enim rerum natura patitur ut umquam bona
banis noceant; inter bonos uiros ac deos amicitia est conciliante
uirtute .
Amicitiam dico? immo etiam necessitudo et similitudo,
quoniam qu idem bonus tempore tantum a deo differt,

20
SOBRE A PROVJD~IA DIVINA

1uzes claríssimas que cintilam segundo uma determinada dis-


posição; que esta ordem não é própria de uma matéria errante,
que elementos reunidos ao acaso não se arranjam com tal arte
que a pesadíssima massa da Terra paire imóvel e contemple o
pressado céu girando em torno de si; que os mares, inundan-
do os vales, amoleçam as terras, mas não registrem qualquer
umento provocado pelos rios; que seres imensos nasçam a par-
tir de diminutas sementes.

1.3 Nem mesmo aqueles fenômenos que parecem confusos


incertos - falo das chuvas e nuvens, dos clarões dos relâmpa-
os destrutivos e incêndios que se espalham flamejantes das bo-
as dos vulcões em erupção, dos tremores da terra desabando, e
e outros distúrbios que a superfície tumultuosa da Terra provo-
ca - nem mesmo esses, embora repentinos, ocorrem sem razão,
mas também eles têm as suas causas, tanto quanto os que, por se
darem em situações excepcionais, são vistos como milagres, como
água quente em plena correnteza e novas ilhas que despontam
no vasto mar.

1.4 E mais, se alguém observar as praias despidas pelas


águas que se recolhem e o mesmo lugar, dentro de exíguo tempo,
er coberto de novo, acabará por crer que num movimento cego
as ondas ora são repuxadas e impelidas para dentro do mar, ora
irrompem e, com grande rapidez, exigem de volta seu lugar, quan-
do, na verdade, elas crescem por etapas e se lançam maiores ou
menores em horários certos, de acordo com a atração da lua, sob
cujo arbítrio o oceano se expande. Tais assuntos, porém, fiquem
reservados para seu tempo, tanto mais que tu não tens dúvida a
respeito da providência, mas te queixas dela .

y Vou te reconciliar com os deuses, que são muito bons


com quem é muito bom. De fato, a natureza nunca tolera que o
bem prejudique os bons; entre os homens de bem e os deuses há
uma amizade selada pela virtude.
Amizade? Eu disse amizade? É muito mais que isso, é uma
relação de necessidade e semelhança, pois na verdade o bom
apenas quanto ao tempo de vida difere de um deus, sendo seu

21
ÜE PROVTDENTIA

liscipulus eius aemulatorque et uera progenies, quam parens


lle magnificus, uirtutum non lenis exactor, sicut seueri patres,
Lurius educat.

1.6 !taque cum uideris bonos uiros acceptosq ue dis


aborare sudare, per arduum escendere, malos autem lasciuire
·t uoluptatibus fluere, cogita filiorum nos rnodestia delectari,
iernularurn licentia, illos disciplina tristiori contineri, horum
ili audaciam.
Idem tibi de deo liqueat: bonum uirum in deliciis non
tabet, experitur indurat, sibi illurn parat.

2.1 "Quare multa bonis uiris aduersa eueniunt?" Nihil


1ccidere bono uiro mali potest: non miscentur contraria.
Quernadmodum tot amnes, tantum superne deiectorum
mbriurn, tanta rnedicatorum uis fontium non mutant saporem
naris, ne remittunt quidem, ita aduersarum impetus rerum
liri fortis non uertit anirnum: rnanet in statu et quidguid euenit
n suum colorem trahit; est enim omnibus externis potentior.

2.2 Nec hoc dico, non sentit illa, sed uincit, et alioqui
1uietus placidusque contra incurrentia attollitur. Ornnia
tduersa exercitationes putat. Quis autem, uir modo et erectus
td honesta, non est laboris adpetens iusti et ad officia cum
>ericulo promptus?
Cui non industrio otium poena est?

22
SOBRE A PROVTD ~NCIA DIVINA

discípulo, imitador e verdadeiro descendente, a quem aquele


magnífico pai, exigentíssimo fiscal das virtudes, como fazem os
pais severos, educa com extremo rigor.

1.6 Portanto, quando vires que os homens bons e caros aos


deuses se sacrificam, suam e escalam trilhas íngremes e que os
maus, ao contrário, se entregam à luxúria e nadam em prazeres,
1 mbra que nós nos deleitamos com a moderação dos filhos e a
1i.cenciosidade dos jovens escravos: aqueles são contidos pela mais
penosa disciplina, e destes se estimula o atrevimento 2 •
Que o mesmo fique claro a respeito de deus: não trata o
homem de bem com m imos, ele o prova, o endurece, prepara-
para si .

2.1 "Por que ocorrem tantos reveses aos homens de bem?"


Nada de mal pode atingir o homem bom: os contrários não se
misturam.
Da mesma maneira que tantos rios, tantas chuvas quedes-
pencam do céu, tanta abundância das fontes de águas medicinais
não mudam o sabor do mar, nem mesmo o suavizam, o ataque
de calamidades não faz recuar o espírito do homem valoroso: ele
permanece imutável e, haja o que houver, molda-o ao seu pró-
prio feitio; é, de fato, mais poderoso do que tudo que está à sua
volta.

2.2 Não estou querendo dizer que ele não sente os ataques
externos, mas que os derrota e, adernais, põe-se a enfrentá-los
com calma e tranqüilidade . Ele considera todas as adversidades
corno exercícios. Mas quem, tendo um mínimo de hombridade e
mpenhando-se em ser respeitado, não almeja um justo sacrifí-
cio nem está pronto para os deveres perigosos?
A que pessoa ativa e laboriosa não é um castigo ficar sem
fazer nada?

Para animar suas festas, alguns romanos compravam escravos que exer-
ciam o papel de bufões, fazendo piadas e até provocando os presentes. O
mesmo fato é comentado por Sêneca no próximo tratado, De Constantia
Sapientis, 11.3.

23
SOBRE A PROVTD ~NCIA DIVINA

discípulo, imitador e verdadeiro descendente, a quem aquele


magnífico pai, exigentíssimo fiscal das virtudes, como fazem os
pais severos, educa com extremo rigor.

1.6 Portanto, quando vires que os homens bons e caros aos


deuses se sacrificam, suam e escalam trilhas íngremes e que os
maus, ao contrário, se entregam à luxúria e nadam em prazeres,
1 mbra que nós nos deleitamos com a moderação dos filhos e a
1i.cenciosidade dos jovens escravos: aqueles são contidos pela mais
penosa disciplina, e destes se estimula o atrevimento 2 •
Que o mesmo fique claro a respeito de deus: não trata o
homem de bem com mimos, ele o prova, o endurece, prepara-
para si .

2.1 "Por que ocorrem tantos reveses aos homens de bem?"


Nada de mal pode atingir o homem bom: os contrários não se
misturam.
Da mesma maneira que tantos rios, tantas chuvas quedes-
pencam do céu, tanta abundância das fontes de águas medicinais
não mudam o sabor do mar, nem mesmo o suavizam, o ataque
de calamidades não faz recuar o espírito do homem valoroso: ele
permanece imutável e, haja o que houver, molda-o ao seu pró-
prio feitio; é, de fato, mais poderoso do que tudo que está à sua
volta.

2.2 Não estou querendo dizer que ele não sente os ataques
externos, mas que os derrota e, ademais, põe-se a enfrentá-los
com calma e tranqüilidade . Ele considera todas as adversidades
como exercícios. Mas quem, tendo um mínimo de hombridade e
mpenhando-se em ser respeitado, não almeja um justo sacrifí-
cio nem está pronto para os deveres perigosos?
A que pessoa ativa e laboriosa não é um castigo ficar sem
fazer nada?

Para animar suas festas, alguns romanos compravam escravos que exer-
ciam o papel de bufões, fazendo piadas e até provocando os presentes. O
mesmo fato é comentado por Sêneca no próximo tratado, De Constantia
Sapientis, 11.3.
23
DE PROVJDENTIA

2.3 Athletas uidemus, quibus uirium cura est, cum


=ortissirnis quibusque confligere et exigere ab iis per quos
:ertamini praeparantur ut totis contra ipsos uiribus utantur;
:aedi se uexarique patiuntur et, si non inueniunt singulos pa-
:es, pluribus sirnul obiciuntur.

2.4 Marcet sine aduersario uirtus: tunc apparet quanta


;it quanturnque polleat, cum quid possit patientia ostendit.
Scias licet idem uiris bonis esse faciendum, ut dura ac
:iifficilia non reformident nec de fato querantur, quidquid
1ccidit boni consulant, in bonum uertant; non quid sed
1uemadrnodurn feras interest.

2.5 Non uides quanto aliter patres, aliter rnatres


ndulgeant?
Illi excitari iubent liberos ad studia obeunda mature,
:e riatis quoque diebus non patiuntur esse otiosos, et sudorem
llis et interdurn lacrimas excutiunt; at matres fouere in sinu,
:ontinere in umbra uolunt, numquam contristare, nurnquam
lere, numquam laborare.

2.6 Patrium deus habet aduersus bonos uiros anirnurn et


llos fortiter amat et "operibus" inquit "doloribus darnnis
!xagitentur, ut uerum colligant robur."
Languent per inertiam saginata nec labore tantum sed
notu et ipso sui onore deficiunt. Non fert ullurn ictum inlaesa
elicitas; at cui adsidua fuit curn incommodis suis rixa, callum
>er iniurias duxit nec ulli rnalo cedit, sed etiarn si cecidit de
;enu pugnat.

24
Sc>BRE A PROVIDÊNCIA D1VTNA

2.3 Vemos os atletas, que se preocupam com o vigor físi-


co, lutar com os mais fortes antagonistas e exigir dos que os
preparam para as competições que empreguem contra eles pró-
prios todas as suas forças; agüentam ser feridos e surrados e, se
não encontram parceiros inigualáveis, enfrentam muitos ac
mesmo tempo.

LJ Sem adversário a coragem definha: somente fica claro c


quanto ela é grande e a quanto chega seu poder quando ela mos-
tra, ao suportar o sofrimento, de que é capaz .
É bom que saibas que o mesmo devem fazer os homens de
bem: que não se apavorem diante dos fardos duros e difíceis nem
e queixem do destino; o que quer que ocorra tomem por bem,
convertam em bem; o que importa não é o que, mas o modo come
tu suportas.

e Não vês como os pais mostram sua afeição de um modo.


as mães de outro bem d iferente?
Os pais ordenam que os filhos sejam acordados logo cede
para enfrentar as obrigações, não toleram que eles fiquem ocio·
os inclusive nos dias de folga e arrancam deles suor e até mes·
mo lágrimas; mas as mães querem acalentá-los no seio, deixá-lm
à sombra, e desejam que eles nunca se entristeçam, nunca cho·
rem, nunca se esfalfem.

2.6 É com um espírito de pai que deus se volta aos homem


de bem. Ele os ama profundamente, dizendo: "Que sejam ator-
mentados por sacrifícios, dores e flagelos, para que adquiram urr
verdadeiro vigor" .
Os gordos por falta de atividade são indolentes e nem E
preciso um esforço maior, com o simples movimento, com o pró-
prio peso já .f icam derreados. A felicidade incólume não agüente
urna pancada; mas quem teve uma briga incessante com sew
infortúnios criou uma couraça pelas injúrias e não cede a nenhurr
mal: mesmo quando cai, luta de joelhos.

25
DE PROVJDENTIA

2.7 Miraris tu, si deus ille bonorum amantissimus, qui


los quam optimos esse atque excellentissimos uult, fortunam
tis cum qua exerceantur adsignat?
Ego uero non miror, si aliquando impetum capiunt
)ectandi magnos uiros conluctantis cum aliqua calamitate.

2.8 Nobis interdum uoluptati est, si adulescens constantis


1imi inruentem feram uenabulo excepit, si leonis incursum
Lterritus pertulit, tantoque hoc spectaculum est gratius quanto
l honestior fecit.
Non sunt ista quae possint deorum in se uultum
muertere, puerilia et humanae oblectamenta leuitatis.

2.9 Ecce spectaculum dignum ad quod respiciat intentus


:::>eri suo deus, ecce par deo dignum, uir fortis cum fortuna
Lala compositus, utique si et prouocauit.
Non uideo, inquam, quid habeat in terris Iuppiter
ulchrius, si <eo> conuertere animum uelit, quam ut spectet
atonem iam partibus non semel fractis stantem nihilo minus
Lter ruínas publicas rectum.

2.10 "Licet" inquit "omnia in unius dicionem


mcesserint, custodiantur legionibus terrae, classibus maria,
aesarianus portas miles obsideat, Cato qua exeat habet: una
Lanu latam libertati uiam faciet. Ferrum istud, etiam ciuili bello
urum et innoxium, honas tandem ac nobiles edet operas:
:::>ertatem quam patriae non potuit Catoni dabit. Aggredere,
time, diu meditatum opus, eripe te rebus humanis.

26
SOBRE A PROVlDÉNOA DNINA

2.7 Tu ficas espantado se esse deus, que tanto ama os bons,


que os quer ainda melhores e ao máximo excelentes, lhes atribui
um destino que os mantenha continuamente atarefados?
Eu é que não me espanto se, de vez em quando, os deuses
têm o impulso de contemplar grandes homens lutando contra
a lguma calamidade.

2.8 Nós mesmos, às vezes, sentimos uma grata satisfação


e um jovem de caráter firme enfrenta com sua lança uma fera
e lvagem, se resiste sem medo ao ataque de um leão, e este espe-
tá culo é tanto m a is agradável quanto mais nobre quem o faz' .
Não são estes, contudo, os feitos que podem atrair a aten-
ão dos deuses, e sim divertimentos de jovens a distrair a frivo-
lidade humana .

2.9 Eis, porém, um espetáculo digno de merecer a atenção


de um deus interessado em sua obra, eis um par digno de deus:
um homem valoroso duelando com uma má-sorte, especialmen-
t se ele mesmo a desafiou.
Afirmo que não vejo o que Júpiter pode ter de mais belo na
terra, se quiser desviar para cá sua atenção, que observar Catão·•,
om sua facção já completamente esfacelada, ainda firme, de pé,
numa postura não menos imponente em meio às ruínas do Estado.

2.10 Ele disse:" Ainda que todo o mundo tenha se submeti-


do ao comando de um único homem, sendo controladas as terras
por suas legiões, os mares por suas esquadras, que o exército de
César vigie as portas da cidade, Catão tem à mão por onde sair:
com um único gesto abrirá um largo caminho para a liberdade}
Esta espada, ainda pura e inocente mesmo na guerra civil, final-
mente fará uma ação boa e nobre: a liberdade que não pôde dar à
pátria, dará a Catão. Leva adiante, ó espírito, a obra longamente
meditada, afasta-te das coisas humanas.

Na época de Sêneca, alguns jovens, apesar da origem nobre, chegaram a


tomar parte nos espetáculos circenses.
A vida de Catão, homem de caráter irrepreensível, é narrada brevemen-
te no capítulo "Os exempln em Sêneca", pp. 131-133.

27
DE PROVJDENTIA

Iam Petreius et Juba concucurrerunt iacentque alter


1lterius manu caesi, fortis et egregia fati conuentio, sed quae
wn deceat magnitudinem nostrarn: tam turpe est Catoni
nortem ab ullu petere quam uitam."

2.11 Liquet mihi cum magno spectasse gaudiodeos dum


lle uir, acerrimus sui uindex, alienae saluti consulit et instruit
liscedentium fugam, dum studia etiam nocte ultima tractat,
lum gladium sacro pectori infigit, dum uiscera spargit et illam
.anctissimam animam indignamque quae ferro contarninaretur
nan u ed uci t.

2.12 Inde crediderim fuisse parurn. certurn. et efficax


mlnus: non fuit dis inmortalibus satis spectare Catonem semel;
etenta ac reuocata uirtus est ut in difficiliore parte se
>stenderet; non enim tam magno animo mors initur quam
epetitur. Quidni libenter spectarent alumnurn suurn. tam cla-
o ac memorabili exitu euadentem?
Mors illos consecrat quorum exiturn et qui tirnent
audant.

28
SOBRE A PROVJDÍ:NCIA DIVINA

Petreio e Juba ~ já se lançaram de frente e jazem assassina


dos um pela mão do outro, heróico e famoso pacto de morte, ma
que não é apropriado à nossa grandeza: é tão torpe, para Catãc
pedir pela morte em mãos de outrem, quanto pedir pela vida ."

2.11 Tenho certeza de que os deuses observaram con


grande alegria enquanto aquele homem notável, carrasco tã<
ferino de si mesmo, cuidava da segurança alheia e organizav<
a fuga dos que tentavam escapar, enquanto mesmo na últim<
noite se entregava ao estudo, enquanto enfiava a espada err
eu peito sagrado, enquanto espalhava as vísceras e libertav<
com a própria mão a vida santíssima e indigna de ser conta
minada pelo ferro6 .

2.12 Eis por que penso que o golpe foi pouco certeiro e efi
caz: não foi suficiente aos deuses imortais contemplar Catão umé
vez; toda a sua valentia foi preservada e chamada novamentt
para que se apresentasse numa tarefa mais difícil; com efeito, é
coragem com que se dá o primeiro passo em direção à morte nãc
' tão grande quanto a que se deve ter numa segunda tentativa
Por que não teriam observado com prazer um aluno seu se esva·
indo num fim tão ilustre e memorável?
A morte consagra aqueles cujo fim é louvado até pelos qm
o temem.

Juba I, rei da Numídia e inimigo de Júlio César, aliou-se a Pompeu. Petreic


(Marcus Petreius), general de grande experiência, também esteve sem·
pre ao lado de Pompeu e Catão, na oposição a César. Após a derrota dot
pompeanos em Thapsus, Juba e Petreio firmaram um pacto de mortt
mútua . Trata-se de um modo de suicídio viril em voga entre os militare~
daquela época: travava-se um duelo mortal, em que os parceiros assu-
miam o compromisso de ferir-se reciprocamente de maneira fatal. Cons·
ta que, no referido caso, Petreio acabou matando Juba primeiro, o que e
forçou a matar-se em seguida .
Sêneca se serve de mitos que cercam a morte de Catão: como narrou e
historiador Plutarco, na véspera de cometer suicídio, Catão ajudou mui·
tos companheiros a fugir e, à noite, ficou lendo Platão (justamente o di·
álogo "Fédon", que descreve a morte de Sócrates) e estudando filosofia .
finalmente, em sua primeira tentativa, o ferimento não foi fatal, obrigan·
do-o a golpear-se violentamente uma segunda vez .
29
1

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DE PROVTDENTIA

3.1 Sediam procedente oratione os tendam quam non sint


quae uidentur mala: nunc illud clico, ista quae tu uocas aspera,
quae aduersa et abominanda, prirnurn pro ipsis esse quibus
accidunt, deinde pro uniuersis, quorum maior dis cura quarn
singulorum est, post hoc uolentibus accidere ac dignos malo
esse si nolint.
His adiciam fato ista sic ire et eadem lege bonis euenire
qua sunt boni.
Persuadebo deinde tibi ne umquam bani uiri miserearis;
potest enim miser dici, non potest esse.

3.2 Difficillimum ex omnibus quae proposui uidetur


quod primum dixi, pro ipsis esse quibus eueniunt ista quae
horremus ac trernirnus .
"Pro ipsis est" inquis "in exilium proici, in egestatem
deduci, liberas coniugem ecferre, ignomínia adfici, debilitari?"
Si rniraris haec pro aliquo esse, miraberis quosdam ferro
et igne curari, nec minus fame ac siti. Sed si cogitaueris tecum
rernedii causa quibusdam et radi ossa et legi et extrahi uenas
et quaedam amputari membra quae sine totius pernicie
corporis haerere non poterant, hoc quoque patieris probari tibi,
quaedarn incomrnoda pro iis esse quibus accidunt, tam
rnehercules quam quaedam quae laudantur atque adpetuntur
contra eos esse quos delectauerunt, simillima cruditatibus
ebrietatibusque et ceteris quae necant per uoluptatem.

30
SoBRE A PROVJD~CIA DNINA

3.1 Mas com o discurso que vem logo a seguir vou demons
trar que não são males o que parece ser: por ora afirmo que esse
fatos que tu chamas de espinhosos, de funestos e abomináveis
ocorrem, primeiro, para o bem das próprias pessoas; segunda
para o bem de toda a humanidade, pois os deuses devotam mai
or atenção ao conjunto dos homens do que aos indivíduos en
particular. Além disso, que eles ocorrem aos que os desejam e, si
não os desejam, fazem por merecer o mal.
Tenho a acrescentar que esses fatos se devem ao destino •
surgem aos bons pela mesma lei que os faz bons.
Enfim, vou te persuadir a nunca ter pena de um homem dt
bem, pois ele pode ser chamado de infeliz, mas não pode ser infeliz

3 .2 O mais problemático de tudo que propus parece ser e


que primeiro afirmei, que é para o bem das próprias pessoas qm
ocorrem esses fatos que nos horrorizam e fazem tremer.
" É para o próprio bem", tu indagas, "ser lançado em exí·
lio, ser reduzido à miséria, ter filhos e esposa arrancados, sofrei
afrontas, tornar-se um inválido?"
Se te espantas de que esses fatos existam a favor de alguém.
te espantarás de que alguns homens sejam curados com uso de
ferro e fogo, e até mesmo de fome e sede . Porém, se tiveres pen-
sado contigo mesmo que para alguns serve como medicação a
raspagem ou a retirada de ossos, a extração de veias ou a ampu-
tação de membros que não podiam permanecer unidos sem
lesionar o corpo inteiro, também o seguinte vais aceitar como
sendo a mais pura verdade: alguns infortúnios existem ara o
bem daqueles a quem ocorrem, an o quan o, por Hércules, algu-
mas coisas que são louvadas e desejadas existem ·para o mal da-
queles que se deliciaram com elas, exatamente como a indiges-
tão, a embriaguez e quejandos, que matam pelo prazer.

31
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DE PROVIDENTIA

3.3 Inter multa magnifica Demetri nostri et haec uox est,


a qua recens sum n sonat adhuc et uibrat in auribus meis:
"nihil" inquit "mihi uidetur infelicius eo cui nihil urnquam
euenit aduersi."
Non licuit enim illi se experiri. Vt ex uoto illi fluxerint
omnia, ut ante uotum, male tamen de illo di iudicauerunt:
indignus uisus est a quo uinceretur aliquando fortuna, quae
ignauissimum quernque refugit, quasi dicat: "quid ergo? istum
mihi aduersarium adsumarn? Statim arma surnmittet; non opus
est in illum tota potentia mea, leui comminatione pelletur, non
potest sustinere uultum meum. Alius circumspiciatur curn quo
conferre possimus manum: pudet congredi cum homine uinci
parato."

3.4 Ignominiam iudicat gladiator cum inferiore componi


et scit eum sine gloria uinci qui sine periculo uincitur.
Idem facit fortuna : fortíss imos sibi pares quaerit,
quosdam fastidio transit.
Contumacissirnum quemque et rectissimum adgreditur,
aduersus quem uirn suam intendat: ignem experitur in Mucio,
paupertatem in Fabrício, exilium inRutilio, tormenta in Regu-
lo, uenenum in Socrate, mortem in Catone .
Magnum exemplurn nisi mala fortuna non inuenit.

32
SoBRE A PRovrornc1A D1vINA

3.3 Entre os muitos pensamentos magistrais do nosso


emétrio 7 também há este, que trago fresco na memória - ressoa
• inda e vibra em meus ouvidos: "Nada me parece mais triste do
que um sujeito a quem nunca aconteceu nenhuma desgraça".
De fato, não Lhe foi permitido pôr-se à prova. Ainda que
l dos os benefícios tenham manado para ele graças às suas pre-
s votivas, ainda que antes das preces, os deuses, apesar disso,
julgaram-no mal: ele pareceu indigno de algum dia vencer odes-
tino, o qual evita todos os homens por demais covardes, como se
dissesse: "O quê? ... Esse aí eu vou tomar por adversário? Num
instante ele estará depondo as armas, e nem é preciso usar contra
le toda a minha potência: com urna leve ameaça será enxotado.
le nem é capaz de encarar-me nos olhos. Outro é que será pro-
curado, com o qual possamos combater: é vergonhoso se bater
m duelo com um homem pronto a ser derrotado."

3.4 Um gladiador considera urna ignomínia ser posto para


lutar com alguém inferior e sabe que é vencer sem glória vencer
m perigo.
O mesmo faz o destino: procura para si os mais valorosos
dversários, outros supera com fastio.
O destino ataca os homens mais obstinados, os mais hirtos
arrojados, contra os quais desfere toda a sua violência: experi-
menta o fogo em Múcio, a pobreza em Fabrício, o exfüo em Rutílio,
a tortura em Régulo, o veneno em Sócrates, a morte em Catão.11
Só a desgraça revela o grande exemplo.

Demétrio, dito o Cínico, viveu em Roma na época dos imperadores


Calígula, Nero e Vespasiano, e foi amigo de Sêneca . O cinismo é uma
corrente filosófica afim ao estoicismo, desenvolvida por Diógenes; seu
princípio fundamental é " viver de acordo com a natureza". Zenão, o
fundador do estoicismo, foi discípulo do cínico Crates. Em certo sentido,
o estoicismo é um desenvolvimento do cinismo. Ao escrever Demetri nostri
("do nosso Demétrio"), Sêneca o está incluindo entre os adeptos do
estoicismo.
Uma compreensão perfeita dos próximos parágrafos depende do conhe-
cimento dos fatos v ividos pelas personagens citadas . Vide "Os exempla
em Sêneca", pp. 131-133.

33
DE PROVIDENTIA

3.5 Infelix est Mucius quod dextra ignes hostium premit


et ipse a se exigit erroris sui poenas, quod regem quem arma ta
manu non potuit exusta fugat? Quid ergo? felicior esset, si in
sinu amicae foueret manum?

3.6 Infelix est Fabricius quod rus suum, quantum a re


publica uacauit, fodit? quod bellum tam cum Pyrrho quam
cum diuitiis gerit? quod ad focum cenat ilias ipsas radices et
herbas quas in repurgando agro triumphalis senex uulsit? Quid
ergo? felicior esset, si in uentrem suum longinqui litoris pisces
et peregrina aucupia congereret, si conchyliis superi atque in-
feri maris pigritiam stomachi nausiantis erigeret, si ingenti
pomorum strue cingeret primae formae feras, captas multa
caede uenantium?

3.7 Infelix est Rutilius quod qui illum damnauerunt cau-


sam dicent omnibus saeculis? quod aequiore animo passus est
se patriae eripi quam sibi exilium? quod Sullae dictatori solus
aliquid negauit et reuocatus tantum non retro cessit et longius
fugit? "Viderint" inquit "isti quos Romae deprehendit felici-
tas tua: uideant largum in foro sanguinem et supra Seruilianum

34
SOBRE A PROVJDt:NCJA DNINA

3.5 Infeliz? É Múcio infeliz porque segura com a mão direi


ta o fogo dos inimigos e a si mesmo se castiga por seu erro? Por
que põe em fuga, com a mão em brasas, o mesmo rei que nãc
onseguira afugentar com a mão armada? O quê? ... Então teric
ido mais feliz se acalentasse sua mão no seio da amante?

3.6 Infeliz? É Fabrício infeliz porque lavra a terra que lhE


pertence, toda vez que se afasta das atividades públicas? Porqm
combate contra Pirro e também contra as riquezas? Porque janté
ao lar aquelas mesmas raízes e ervas que ele, um idoso genera:
triunfante, arrancou ao limpar o terreno? O quê? ... Então teri<:
ido mais feliz se abarrotasse seu ventre com peixes de um litoral
longínquo e aves do estrangeiro, se aumentasse a flacidez de urr
stômago nauseado com mariscos dos mares Adriático e Tirreno,
e com uma gigantesca montanha de frutas enfeitasse feras pri·
morosas, capturadas às custas da morte de muitos caçadores?

3.7 Infeliz? É Rutílio infeliz porque os que o condenaram de-


verão se justificar como réus por todos os séculos? Porque suportou
com espírito mais sereno ser arrebatado da pátria que livrado do
xílio? Porque foi o único a negar algo ao ditador Sula9 e, chamado
de volta, não só não retomou, como ainda fugiu para mais longe?

Sula (Lucius Comelius Sulla Felix), após ocupar vários cargos políticos e
militares, inicialmente como aliado d e Mário, foi preterido d iante deste
no comando do exército romano contra Mitridates, em 88 a .C. Fingindo
aceitar o fato, buscou o apoio de suas tropas e deu um golpe militar,
invadindo Roma e instalando-se no poder. Seus métodos violentos cho-
caram inclusive seus aliados, forçando-o a deixar Roma após um ano.
Então, instalou-se na Grécia e, mesmo em situação irregular, comandou
tropas romanas naquela região, obtendo conquistas e acordos que lhe
deram muito prestígio. Em 84, voltou a rebelar-se e invadir a Itália,
auferindo apoio de muitos aristocratas e derrotando, em 83, os legalistas.
Reinstalado no poder, recebeu o título de ditador e promoveu uma gran-
de revolução, implantando reformas na estrutura política (consideradas
por vezes moralizantes) e fazendo perseguições e massacres cruéis. Acre-
ditando-se um predestinado, atribuiu a si mesmo o cognome Felix ("Fe-
liz" ). Embora seja uma figura polêmica e contraditória, Sêneca se utiliza
daquela imagem mais difundida, a de um tirano sanguinário e atroz.

35
1

- -- - - - - - ~ -

DE PROVIDENTIA

lacum (id enim proscriptionis Sullanae spoliarium est)


senatorum capita et passim uagantis per urbem percussorum
greges et multa milia ciuium Romanorum uno loco post fidem,
immo per ipsam fidem trucida ta; uideant ista qui exulare non
possunt."

3.8 Quid ergo? felix est L. Sulla quod illi descendenti ad


forum gladio summouetur, quod capita sibi consularium
uirorum patitur ostendi et pretium caedis per quaestorem ac
tabulas publicas numerat? Et haec omnia facit ille, ille qui legem
Cometiam tulit.

3.9 Veniarnus ad Regulurn: quid illi fortuna nocuit quod


illum documentum fidei, docurnentum patientiae fecit? Figunt
cu tem claui et quocumque fatiga tum corpus reclinauit, uulneri
incumbit; in perpetuam uigiliarn suspensa sunt lumina: quanto
plus tormenti tanto plus erit gloriae.

36
SOBRE A PROVJDÊNClA DIVNA

Ele disse: "Que possam ver tais coisas os que a tua felicidade 10 pc
gou de surpresa em Roma: que vejam o sangue abundante no fórum
e as cabeças dos senadores acima do lago de Servílio - lá é, n
verdade, o espoliário 12 da proscrição sulana - e turbas de assass
nos vagando dispersas por toda a cidade, e muitos milhares de c
dadãos romanos trucidados num único lugar, depois da palavt
empenhada, ou melhor, por causa da própria palavra empenhad;
que vejam isso os que não podem estar exilados."

3.8 O quê? ... Então é Lúcio Sula feliz 13 porque, quando desce a
fórum, seu caminho é aberto a golpes de espada? Porque admite que<
cabeças de homens de d ignidade consular lhe sejam mostradas,
contabiliza o valor de cada assassinato através do questor14 e de regi:
tros públicos? E tudo isso faz ele, ele que propôs a Lei Cornélia15 •

3.9 Passemos a Régulo: em que o destino o prejudicou, po1


que o fez um modelo da lealdade à palavra empenhada, um me
delo da resistência à dor? Pregos dilaceram-lhe a pele e onde qm
que repouse o corpo extenuado, deita-se sobre uma ferida. Seu
olhos estão abertos numa vigília perpétua 1<i: quanto maior o mai
tírio, tanto maior será a glória.

10
Trocadilho composto a partir do fato de que Sula se atribuiu o cognorn
Feliz (Felix).
11
Forum : praça central de Roma . Cf. nota ~6 .
12
Spoliarium, derivado de spolio, spoliare ("despir, despojar, privar, espol
ar"), era o lugar contiguo aos anfiteatros onde os gladiadores morte
tinham as roupas e armas arrancadas. Sêneca, aqui, cria uma for1
metáfora.
13
Outro trocadilho com o nome completo adotado por Sula, justament
Lúcio Sula Feliz.
14
Funcionário público do alto escalão, encarregado da contabilidade oficia
15
Referência à lex Comei ia de sicariis et ueneficiis (Lei Cornélia sobre assass
nos e envenenamentos), uma das leis estabelecidas em 81, durante a
reformas empreendidas por Sula, e que se destinava a reprimir essE
crimes.
16
Sêneca se refere à ortura que lendariamente Régulo sofreu: ele foi amai
rado numa cama de pregos e suas pálpebras foram cortadas, impedir
do-o de fechar os olhos.
37
.. -- --- -

DE PROVIDENTIA

Vis scire quam non paeniteat hoc pretio aestimasse


uirtutem? refige illum et mitte in sena tum: eandem sententiam
dicet.

3.10 Feliciorem ergo tu Maecenatem putas, cui amoribus


anxio et morosae uxoris cotidiana repudia deflenti somnus per
symphoniarum cantum ex longínquo Iene resonantium
quaeritur?
Mero se licet sopiat et aquarum fragoribus auocet et mille
uoluptatibus mentem anxiam fallat, tam uigilabit in pluma
quam ille in cruce; sed illi solacium est pro honesto dura
tolerare et ad causam a patientia respicit, hunc uoluptatibus
marcidum et felicita te nimia laborantem magis üs quae patitur
uexat causa patiendi.

3.11 Non usque eo in possessionem generis humani uitia


uenerunt ut dubium sit an electione fati data plures nasci Reguli
:iuarn Maecenates uelint; aut si quis fuerit qui audeat dicere
\1aecenatem se quam Regulum nasci maluisse, idem iste, taceat
licet, nasci se Terentiam maluit.

3 .12 Male tractatum Socratem iudicas quod illam


:::iotionem publice mixtam non aliter quam medicamentum
.nmortalitatis obduxit et de morte disputauit usque ad ipsam?
Male cum illo actum est quod gelatus est sanguis ac
::>aulatim frigore inducto uenarum uigor constitit?

38
SoBRE A PROVIDÊNCIA ÜNINA

Queres saber a que ponto ele não se arrepende de ter pagc


te preço por sua virtude? Desprega-o e envia-o ao senado: elt
mitirá a mesma opinião.

3.10 Mais feliz? Então tu achas Mecenas17 mais feliz, ele


que, se angustiando por carinhos e sofrendo com os repúdio~
cotidianos de uma esposa implicante, procura conciliar o sane
através do canto de melodias que ressoam suavemente de longe?
Ainda que se entorpeça com vinho, que distraia sua mente
angustiada com o rumorejo da água ou a engane com mil delei-
l s, ficará tão acordado numa almofada de plumas quanto Régulc
na cruz; mas para este há o consolo de suportar agruras em prol
do que é justo e honrado: ele deixa de notar seu sofrimento ao
lhar para sua causa, enquanto Mecenas, debilitado pelos praze-
res e fatigado com a excessiva felicidade, é mais atormentado
pela causa do sofrimento do que por aquilo que sofre .

3.11 Os vícios não chegaram a tal ponto no controle do gênero


humano para que haja dúvida de que, dada aos homens a possibilida-
d de escolher o destino, a maioria preferiria nascer Régulo a Mecenas;
ou, se houver alguém que ouse dizer que teria preferido nascer Mecenas
a Régulo, este mesmo, ainda que se cale, teria preferido nascer Terência.

3 .12 Maltratado? Julgas Sócrates maltratado, porque inge-


riu aquela famosa poção, preparada por ordem do Estado, como
se outra coisa não fosse que um elixir da imortalidade, e argumen-
tou a respeito da morte até a chegada dela?
Mal lhe foi feito, porque se lhe gelou o sangue e pouco a
pouco a força das veias e artérias foi sendo toda tomada por um
frio paralisante?

17
Mecenas (Gaius Maecenas) foi dos primeiros a prestar apoio às aspira-
ções de Otávio Augusto. Essa firme amizade transformou Mecenas numa
figura política de grande importância . Homem riquíssimo e dado ao luxo
e à suntuosidade, seu nome tornou-se sinônimo de patrono de poetas e
artistas. Para o círculo de Sêneca, no entanto, Mecenas era uma figura
muito depreciada. Seu casamento com Terência (irmã de Aulus Terentius
Varro Murena) acabou em divórcio.

39
DE P ROVIDENTIA

3.13 Quanto magis huic inuidendum est quam illis


quibus gemma ministratur, quibus exoletus omnia pati doctus
exsectae uirilitatis aut dubiae suspensam auro niuem diluit!
Hi quidquid biberunt uomitu remetientur tristes et bilem
suam regustantes, at ille uenenum laetus et libens hauriet.

3.14 Quod ad Catonern pertinet, satis dictum est,


summamque illi felicitatem contigisse consensus hominum
fatebitur, quem sibi rerum natura delegit cum quo metuenda
conlideret.
"Inimicitiae potentium graues sunt: opponatur simul
Pompeio, Caesari, Crasso. Graue est a deterioribus honore
anteiri: Vatinio postferatur. Graue est ciuilibus bellis interesse:
toto terrarum orbe pro causa hona tam infeliciter quam
pertinaciter militet. Graue est manus sibi adferre : faciat. Quid
per haec consequar? ut omnes sciant non esse haec mala quibus
ego dignum Catonem putaui."

4.1 Prosperae res et in plebem ac uilia ingenia deueniunt;


at calamitates terroresque mortalium sub iugum mittere
proprium magni uiri est. Semper uero esse felicem et sine
morsu animi transire uitam ignorare est rerum naturae alte-
ram partem.

4.2 Magnus uir es: sed unde seio, si tibi fortuna non dat
facultatem exhibendae uirtutis?

40
SOBRE A PROYJD~NCIA DIVINA

3.13 Ah, como se deve invejar muito mais este homem do


que aqueles que são servidos em ricas gemas, aqueles a quem
um transviado entregue a todo tipo de devassidão por dinheiro,
de virilidade duvidosa ou mesmo inexistente, lhes dilui neve em
uma taça de ouro!
Estes, seja lá o que tenham bebido, devolverão tudo pelo
vômito, tristes degustadores da própria bile, mas aquele, é feliz e
desejoso que tomará o veneno .

3.14 Quanto a Catão, já foi dito o suficiente, e a humanida-


de em peso confessará que coube a ele uma suprema felicidade,
pois foi a ele que a natureza temível escolheu para combater.
"A inimizade dos poderosos é grave: que ele se oponha ao
mesmo tempo a Pompeu, César e Crasso 18 . Grave é ser preterido
pelos piores na carreira política: que esteja abaixo de Vatínio19 _
Grave é estar em meio a guerras civis: que ele lute na Terra intei-
ra por uma boa causa tão infelizmente quanto pertinazmente.
Grave é atentar contra a própria vida : que ele o faça! O que al-
cançarei por meio disso? Que todos saibam que não são males os
acontecimentos de que eu julguei Catão digno ."

4.1 A prosperidade recai até mesmo sobre a plebe e os ta-


lentos medíocres; mas subjugar as calamidades e os pavores dos
mortais é próprio do grande homem. Estar sempre feliz e passar
pela vida sem um tormento de alma é desconhecer metade do
mundo real. (

4.2 És um grande homem: mas como sei, se o destino nã~


te dá oportunidade de exibir a tua coragem?

18
Referência ao episódio hoje conhecido por Primeiro Triunvirato, acordo
de partilha de poder e territórios entre Crasso, Júlio César e Pompeu.
19
Vatínio (Gaius Vatinius), homem ambicioso, conseguiu ascensão políti-
ca ao se tomar uma peça dentro do projeto de conquista do poder de,
Júlio César, que precisava de apoio no senado. Graças a isso-e ao subor-
no - Vatínio bateu Catão na eleição para pretor, em 55 a.C. Vatínio pas-
sou para a História como um protó ·podo bajulador interesseiro e sub-
serviente. Cf. o segundo tratado, De Constantia Sapientio, 1.3; 2.1; 17.3.
41
DE PROVJDE'ITJA

Descendisti ad Olympia, sed nemo praeter te: coronam


habes, uictoriam non habes; non gratulor tamquam uiro forti,
sed tamquam consulatum praeturamue adepto: honore
auctus es.

4.3 Idem dicere et bono uiro possum, si illi nullam


occasionem difficilior casus dedit in qua [una] uim animi sui
ostenderet: "miserum te iudico, quod numquam fuisti miser.
Transisti sine aduersario uitam; nemo sciet quid potueris, ne
tu quidem ipse."
Opus est enim ad notitiam sui experimento; quid quisque
posset nisi temptando non didicit.
!taque quidam ipsi ultro se cessantibus malis optulerunt
et uirtuti iturae in obscurum occasionern per quam enitesceret
quaesierunt.

4.4 Gaudent, inquam, magni uiri aliquando rebus


aduersis, non aliter quarn fortes milites bello; Triumphum ego
murmillonern sub Ti. Caesare de raritate rnunerurn audiui
querentem: "quam bella" inquit "aetas perit!"
Auida est periculi uirtus et quo tendat, non quid passura
sit cogitat, quoniam etiam quod passura est gloriae pars est.
Militares uiri gloriantur uulneribus, laeti fluentem meliori casu
sanguinem ostentant: idem licet fecerint qui integri reuertuntur
ex acie, magis spectatur qui saucius redit.

4.5 lpsis, inquam, deus consulit quos esse quam


honestíssimos cupit, quotiens illis rnateriam praebet aliquid
anirnose fortiterque faciendi, ad quarn rem opus est aliqua
rerum difficultate: gubematorem in tempestate, in acie mili-
tem intellegas. Vnde possum scire quantum aduersus

42
SOBRE A PROVJD~CIA DIVINA

Tu competiste nos jogos olímpicos, mas sozinho: tens a co-


roa, não tens a vitória; não te congratulo como um homem valo-
roso, mas como alguém que alcançou uma pretura ou um consu-
lado: é em prestígio apenas que cresceste.

4.3 O mesmo posso dizer quanto ao homem de bem, se


nenhuma dificuldade mais embaraçosa lhe deu ocasião de mos-
trar a força de sua alma: "Infeliz te julgo porque nunca foste infe-
liz. Atravessaste a vida sem adversário; ninguém saberá do que
terias sido capaz, nem sequer tu mesmo."
É preciso, de fato, chegar ao conhecimento de si através de
t stes; nenhum homem soube do que era capaz a não ser pondo-
e à prova .
Por isso, alguns se ofereceram voluntariamente a males que
ta rdavam e procuraram uma ocasião através da qual resplande-
cesse sua virtude, que andava apagada .

4.4 Afirmo que os grandes homens se alegram por vezes


com as situações adversas, não de outro modo que os soldados
corajosos com a guerra; eu mesmo ouvi Triunfo, um gladiador
dos tempos de Tibério César, queixar-se assim da raridade dos
espetáculos: "Que belos dias se vão!" 2º
A coragem é ávida de perigo e fica pensando em seu alvo e
não no que vai sofrer, pois também o que vier a sofrer constituirá
sua glória. Os homens do exército se orgulham de seus ferimentos
e contentes exibem o sangue que escorre graças a um acaso feliz:
podem ostentar feitos semelhantes os que retomam ilesos da ba-
talha, que é mais notado quem volta ferido.

4.5 Afirmo que deus está beneficiando os que ele deseja


absolutamente nobres e honrados, todas as vezes que lhes apre-
senta meios de agir com coragem e audácia, para o que se faz
necessária alguma dificuldade: que tu reconheças o timoneiro
na tempestade, na batalha o soldado. Como posso saber quanta
disposição de espírito tu terias contra a pobreza, se nadas em

20
O imperador Tibério não apreciava os jogos, restringindo-os.
43
1

~--- --- -

DE PROVJDENTJA

paupertatem tibi animi sit, si diuitiis diffluis? Vnde possum


5cire quantum aduersus ignominiam et infamiam odiumque
populare constantiae habeas, si inter plausus senescis, si te
inexpugnabilis et inclinatione quadam mentium pronus fauor
sequitur? Vnde seio quam aequo animo laturus sis orbita tem,
si quoscumque sustulisti uides?
Audiui te, curn alios consolareris: tunc conspexissem, si
te ipse consolatus esses, si te ipse dolere uetuisses .

4.6 Nolite, obsecro uos, expauescere ista quae di


inmortales uelut stirnulos admouent animis: calamitas uirtutis
occasio est. Illos merito quis dixerit miseras qui nimia felicita te
torpescunt, quos uelut in mari lento tranquillitas iners detinet:
quidquid illis inciderit, nouum ueniet.

4.7 Magis urgent saeua inexpertos, graue est tenerae


ceruici iugum; ad suspicionem uulneris tiro pallescit, audacter
ueteranus cruorem suum spectat, qui scit se saepe uicisse post
sanguinem.
Hos itaque deus quos probat, quos amat, indurat
recognoscit exercet; eos autem quibus indulgere uidetur,
quibus parcere, molles uenturis malis seruat. Erratis enim si
quem iudicatis excepturn: ueniet <et> ad illurn diu felicem sua
portio; quisquis uidetur dirnissus.esse dilatus est.

4.8 Quare deus optimum quemque aut mala ualetudine


aut luctu aut aliis incommodis adficit?
Quia in castris quoque periculosa fortissimis imperantur:
dux lectissimos mittit qui nocturnis hostes adgrediantur
insidiis aut explorent iter aut praesidium loco deiciant.
Nemo eorum qui exeunt dicit "male de me irnperator
merui t", sed "bene iudica ui t" .
SOBRE A PROVIDÊNCIA DIVINA

riquezas? Como posso saber quanta firmeza terias contra a ig-


nomínia, a infâmia e o ódio popular, se envelheces entre aplau-
s, se te persegue uma popularidade inexpugnável, uma ten-
d ~ ncia favorável das mentes? Como sei com quanta serenidade
uportarias a perda de um filho, se tens diante dos olhos todos
que geraste?
Eu te ouvi quando consolavas outros: mas só teria tido uma
visão completa de ti se a ti mesmo tivesses consolado, se a times-
mo tivesses proibido de sofrer.

4.6 Eu vos imploro, não tenhais tamanho pavor disso que os


d uses imortais lançam aos espíritos como estímulos: a calamidade
a ocasião da vir~. A outros se poderia chamar com razão infeli-
z s, aos que se tomam malemolentes sob uma excessiva felicidade,
aos que, como num mar em calmaria, a tranqüilidade modorrenta
paralisa: o que quer que os atinja, os pegará de surpresa.

4.7 Os fatos cruéis atribulam mais aos inexperientes, grave


' o jugo para um pescoço delicado. À suspeita de um ferimento
um recruta empalidece, mas é com ousadia que um veterano
observa seu sangue escorrendo, pois sabe que muitas vezes ven-
ceu após se ferir.
Sendo assim, quem deus aprova, quem deus ama é fortaleci-
do, testado e exercitado; outros, ao contrário, para com os quais pa-
rece mostrar uma afeição indulgente, aos quais poupa, deus os con-
serva moleirões para as más venturas. Estais errados, com efeito, se
julgais que há alguma exceção; chegará ao longamente feliz a sua
vez: quem quer que pareça indultado, teve apenas sua hora adiada.

4.8 Por que o deus impõe aos melhores homens ou uma


doença, ou o luto, ou outras desgraças?
Porque também num acampamento militar as missões pe-
rigosas são confiadas aos homens mais corajosos: o comandante
envia os mais seletos para atacar os inimigos em emboscadas
noturnas, ou para explorar o caminho, ou para desalojar uma
guarnição.
Nenhum dos que partem diz: "O general me considerou
ruim", mas: "Ele me julgou dos melhores".

45
DE PROVlDENTIA

Idem dicant quicurnque iubentur pati timidis ignauisque


flebilia : "digni uisi surnus deo in quibus experiretur quantum
humana natura posset pati."

4.9 Fugite delicias, fugite eneruantem felicitatem qua


animi perrnadescunt et, nisi aliquid interuenit quod humanae
sortis admoneat, <marcent> uelut perpetua ebrietate sopiti.
Quem specularia sernper ab adflatu uindicauerunt, cuius
pedes inter fomenta subinde mutata tepuerunt, cuius
cenationes subditus et parietibus circumfusus calor ternperauit,
hunc leuis aura non sine periculo stringet.

4 .10 Cum omnia quae excesserunt modum noceant,


periculosissima felicitatis intemperantia est: mouet cerebrurn,
in uanas mentem imagines euocat, multum inter falsum ac
uerum mediae caliginis fundit.
Quidni satius sit perpetuam infelicitatem aduocata
uirtute sustinere quam infinitis atque inmodicis bonis rumpi?
lenior ieiunio mors est, cruditate dissiliunt.

4.11 Hanc itaque rationem di sequuntur in bonis uiris


quam in discipulis suis praeceptores, qui plus laboris ab iis
exigunt in quibus certior spes est.
Numquid tu inuisos esse Lacedaemoniis liberas suos
credis, quorum experiuntur indolem publice uerberibus
admotis? Ipsi illos patres adhortantur ut ictus flagellorum
fortiter perferant, et laceras ac semianirnes rogant, perseuerent
uulnera praebere uulneribus.

46
SoBRE A PROVJOt NCIA ÜIVll\A

Que digam o mesmo aqueles que são condenados a sofrer


infortúnios que fazem chorar os covardes e sem-caráter: "Deus
nos achou dignos de servir como provas de quanto pode supor-
tar a natureza humana".

4.9 Foge dos mimos, foge da enervante felicidade com que


os espíritos vão se tornando flácidos e, a não ser que algo inter-
venha para lembrá-los da sorte humana, definham como que
ntorpecidos numa perpétua embriaguez.
O homem a quem os vidros sempre protegeram do vento,
cujos pés foram amornados por fomentas constantemente reno-
vados, cujos jantares o calor sob o piso e espalhado pelas pare-
des21 aqueceu, este apanhará uma leve brisa não sem perigo.

4.10 Embora todos os excessos prejudiquem, o mais peri-


goso de tudo é a felicidade desmedida: ela perturba o cérebro,
voca à mente imagens vãs, confunde o fa lso e o verdadeiro em
meio a uma espessa bruma.
Por que não seria melhor suster uma perpétua infelicidade ~
com o apoio da virtude do que ser estraçalhado por infinitos e
imoderados bens? A morte por jejum é mais suave, na indigestão
os órgãos ar rebentam. -

4.11 E assim, os deuses usam com os homens de bem do


mesmo método que os preceptores com seus discípulos: exigem
mais esforços dos que vêem com maior esperança.
Porventura tu crês que os espartanos odeiam seus filhos,
porque lhes submetem a índole à prova através da aplicação de
chibatadas na frente de todos? 22 Os próprios pais exortam seus
filhos a agüentar até o fim, de modo brioso, as lanhadas dos
flagelos e pedem a eles, já lacerados e semimortos, que continu-
em a expor os ferimentos a novas feridas.

21
Sêneca faz alusão ao sistema de calefação das casas dos romanos endi-
nheirados, composto de canos embutidos por onde circulava água quente.
22 Cerimônia pública de flagelação (em grego, dim1111stígosis), que ocorria em
Esparta uma vez por ano, a fim de testar o caráter e a resistência dos jovens.
47
DE PROVIDENTIA

4.12 Quid mirum, si dure generosos spiritus deus


ternptat? numquam uirtutis molle documentum est.
Verberat nos et lacerat fortuna: patiamur.
Non est saeuitia, certamen est, quod <quo> saepius
adierimus, fortiores erimus: solidissima corporis pars est quam
frequens usus agitauit. Praebendi fortunae sumus, ut contra
illam ab ipsa duremur: paulatim nos sibi pares faciet,
contemptum periculorum adsiduitas periclitandi dabit.

4.13 Sic sunt nauticis corpora ferendo rnari dura, agricolis


manus tritae, ad excutienda tela militares lacerti ualent, agilia
sunt membra cursoribus: id in quoque solidissimum est quod
exercuit.
Ad contemnendam patientiam malorum animus
patientia peruenit; quae quid in nobis efficere possit scies, si
aspexeris quantum nationibus nudis et inopia fortioribus la-
bor praestet.

4 .14 Omnes considera gentes in quibus Romana pax


desinit, Germanos dico et quidquid circa Histrum uagarum
gentium occursat: perpetua illos hiemps, triste caelum premit,
maligne solum sterile sustentat; imbrem culmo aut fronde
defendunt, super dura ta glacie stagna persultant, in alimentum
feras captant.

48
5oBRE A PROVIDÊNCIA DIVINA

4.12 O que há de espantoso se um deus experimenta dura-


m nte os espíritos mais nobres? Não há nem nunca houve um
modelo de virtude que fosse fraco .
O destino nos chicoteia e lacera: agüentemos!
ão é uma crueldade, é um combate, e quanto mais lutar-
mos, mais fortes seremos: a parte mais robusta do corpo é aquela
qu o uso freqüente exercitou. Devemos nos oferecer aos golpes
do destino, para nos fortalecermos contra ele por ele mesmo: aos
poucos ele nos fará iguais a si; a constante exposição ao perigo
provocará o desprezo do perigo.

4.13 Assim os corpos dos marinheiros são rijos por enfren-


tarem o mar, as mãos dos agricultores calejadas, os bíceps dos
!dados têm força para brandir os dardos, são ágeis as pernas
dos corredores: em cada um é mais robusto o que foi exercitado.
Sofrendo males o espírito alcança o desprezo do sofrimen-
t . Saberás o que isso pode fazer por nós, se observares como o
árduo esforço ajuda naç6es sem recursos e, por causa da penúria,
mais fortes.

4.14 Põe-te a considerar todos os povos que delimitam a


"pax" romana 23 - falo dos germanos e de todos os povos nôma-
des que se encontram ao longo do lstro:?4 : um inverno permanen-
te, um céu sombrio os esmaga, um maligno solo estéril os susten-
ta, defendem-se dos temporais com colmos e folhagens, pulam e
se debatem sobre os lagos endurecidos pelo gelo e caçam ani-
mais selvagens para alimento.

23
Pax Romana ("Paz romana") indica uma situação não-beligerante, de
ordem e segurança, obtida nas províncias romanas, através de acordos
de paz, que na prática representavam a sujeição de outros povos à civili-
zação romana . Símbolo do imperialismo de Roma, a expressão, nesse
trecho, indica justamente a extensão territorial do Estado romano.
lstro (ou Histro) é a denominação que recebe o curso inferior do rio
Danúbio . Esse nome foi cunhado pelos gregos (que, aliás, desconheciam
a completa extensão do rio): daí o emprego possível do agá na grafia,
um helenismo . Entre os escritores, Ister (ou Hister) tornou-se uma forma
alternativa poética para Dan1111i11s ("Danúbio"), rio que marcava o limite
das conquistas territoriais romanas .
49
DE PROVIDENTIA

4.15 Miseri tibi uidentur? nihil miserum est quod in


naturam consuetudo perduxit; paulatim enim uoluptati sunt
quae necessitate coeperunt.
Nulla illis domicilia nullaeque sedes sunt nisi quas
lassitudo in diem posuit; uilis et hic quaerendus manu uictus,
horrenda iniquitas caeli, intecta corpora: hoc quod tibi
calamitas uidetur tot gentium uita est.

4.16 Quid miraris honas uiros, ut confirmentur, concuti?


non est arhor solida nec fortis nisi in quam frequens uentus
incursat; ipsa enim uexatione constringitur et radices certius
figit: fragiles sunt quae in aprica ualle creuerunt. Pro ipsis ergo
bonis uiris est, ut esse interriti possint, multum inter
formidolosa uersari et aequo animo ferre quae non sunt mala
nisi male sustinenti.

5 .1 Adice nunc quod pro omnihus est optimum


quemque, ut ita clicam, rnilitare et edere operas. Hoc est
propositum deo quod sapienti uiro, ostendere haec quae
uulgus adpetit, quae reformidat, nec hona esse nec mala;
apparehit autem hona esse, si ilia non nisi honis uiris trihuerit,
et mala esse, si tantum malis inrogauerit.

50
SOBRE A PROVJDÊNClA DIVINA

4.15 Desgraçados te parecem ser eles? Nem um pouco des-


raçado é o que o hábito levou para junto da natureza, pois len-
tamente torna-se um prazer o que sur iu como necessidade.
Eles não têm nenhum dÓii1kÍlio nem residência fixa, a não
ser as que o cansaço determina a cada dia; seu alimento é gros-
iro e tem de ser procurado por eles mesmos, a instabilidade do
clima horrenda, os corpos nus: tudo isso que a ti parece urna ca-
la midade é a vida de muitos e muitos povos.

4.16 Por que te espantas que os homens de bem, para que


se fortifiquem, sofram golpes? Não existe árvore robusta nem
vigorosa a não ser aquela que o vento castiga sem trégua, pois é
para reagir à agressão que ela se torna compacta e finca as raízes
mais firmemente: são frágeis as que cresceram num vale abriga-
do . Portanto, é a favor dos próprios homens de bem, para que
possam ser intrépidos, estar sempre às voltas com perigos pavo-
rosos e agüentar com tranqüilidade os fatos que não são maus, a
não ser para quem os suporta mal.

5.1 Acrescenta agora que é para o bem de todos que os


melhores homens sirvam, pode-se dizer, corno soldados ou tra-
balhadores. O propósito do deus é o mesmo do homem sábio:
mostrar que as coisas que o povo cobiça e as que ele tanto teme
não são bens nem ma les; porém, ficará evidente que são bens se
não forem concedidas senão aos homens bons, e que são males se
tiverem sido impingidas apenas aos maus .

51
DE PROVlDENllA

5.2 Detestabilis erit caecitas, si nemo oculos perdiderit


nisi cui eruendi sunt; itaque careant luce Appius et Metellus.
Non sunt diuitiae bonum; itaque habeat illas et Elius leno, ut
homines pecuniam, cum in templis consecrauerint, uideant et
in fornice.
Nullo modo magis potest deus concupita traducere quarn
si ilia ad turpissimos defert, ab optimis abigit.

5 .3 "At iniquum est uirum bonum debilitari aut


configi aut alligari, malas integris corporibus solutos ac
delicatos incedere ."
Quid porra? non est iniquum fortes uiros arma sumere
et in castris pernoctare et pro uallo obligatis stare uulneribus,
interim in urbe securas esse praecisos et professos
inpudicitiam? Quid porro? non est iniquum nobilíssimas
uirgines ad sacra facienda noctibus excitari, altissimo somno
inquinatas frui?

52
SOBRE A PROVJDÊNCIA DIVJNA

5.2 Detestável será a cegueira se ninguém tiver perdido a


vi ta exceto aqueles que mereciam ter os olhos arrancados; por
i so, que careçam de luz Ápio e Metelo 25 . As riquezas não são
um bem; por isso, que as tenha o cafetão Elia, para que os ho-
mens vejam o dinheiro, embora consagrado nos templos 26 , lá
no prostíbulo.
Não há modo melhor para um deus degradar as coisas
d sejadas do que se as concede aos homens mais torpes e as ar-
ranca dos melhores.

5.3 "Mas é injusto que um homem bom fique aleijado, seja


crivado de pregos ou acorrentado, e que os maus caminhem por
aí Livres e regalados, com os corpos ilesos!"
Mas como? Então não é injusto que os homens corajosos
peguem em armas, pernoitem em acampamentos e montem guar-
da à frente das trincheiras, com os corpos cheios de ataduras,
enquanto na cidade estejam em segurança pederastas efeminados,
inteiramente entregues à imoralidade? Mas como? Então n ão é
injusto que jovens virgens da mais alta linhagem sejam sempre
acordadas no meio da noite para cumprir os rituais sagrados 27, e
que cadelas promíscuas gozem do mais profundo sono?

Ápio, o Cego (Appius Claudius Caecus), poeta e político romano, cen-


sor em 312 a.C., foi o responsável pela construção da v ia Ápia. Metelo
(Lucius Caecilius Metellus) cônsul (em 251e247 a .C.) e general romano,
comandou uma importante vitória sobre os cartagineses na Sicília. Se-
gundo a lenda, ficou cego quando, num ato de bravura e pietas, entrou
no templo vestal em chamas para sa lvar o Paládio, estátua de Atenas
que garantia, na fé dos romanos, a continuidade da existência de Roma.
(Obs: pietas é um sentimento de respeito e veneração aos pais, à religião
e à pátria .)
26
Os romanos detinham uma atitude de respeito religioso pelo dinheiro, a
ponto de consagrar um templo à deusa Pecúnia .
27
Referência às vestais, sacerdotisas da maior importância, responsáveis
pelo culto à deusa Vesta . Geralmente escolhidas entre jovens das mais
nobres e influentes famílias, eram obrigadas a se manter virgens duran-
te os trinta anos de servíço religioso . A principal tarefa das vestais era
manter aceso o fogo do altar dedicado à deusa, considerado sagrado e
relacionado à própria existência de Roma .

53
D E PROVlDENTIA

5.4 Labor optimos citat: senatus per totum diem saepe


consulitur, cum illo tempore uilissimus quisque aut in campo
otium suum oblectet aut in popina lateat aut tempus in aliquo,
circulo terat.
Idem in hac magna re publica fit: boni uiri laborant,
inpendunt, inpenduntur, et uolentes quidem; non trahuntur a
fortuna, sequuntur illarn et aequant gradus; si scissent,
antecessissent.

5.5 Hanc quoque animosam Demetri fortissimi uiri


uocem audisse me rnemini:
"Hoc unum" inquit "de uobis, di inmortales, queri
possum, quod non ante mihi notam uoluntatem uestram
fecistis; prior enim ad ista uenissem ad quae nunc uocatus
adsum. Vultis liberas sumere? uobis illos sustuli. Vultis aliquam
partem corporis? sumite: non magnam rem promitto, cito
toturn relinquam . Vultis spiritum? quidni nullam moram
fadam quominus recipiatis quod dedistis? A uolente feretis
quidquid petieritis . Quid ergo est? maluissem offerre quam
tradere. Quid opus fuit auferre? accipere potuistis; sed ne nunc
quiddern auferetis, quia nihil eripitur nisi retinenti."

5.6 Nihil cogor, nihil patior inuitus, nec seruio deo sed
assentior, eo quidem magis quod seio omnia certa et in
aeternum dieta lege decurrere.

5.7 Fata nos ducunt et quantum cuique temporis restat


prima nascentium hora disposuit.

54
SOBRE A PROVlDÊNCIA Drv1NA

5.4 O sacrifício mobiliza os melhores: o senado


freqüentemente delibera durante o dia inteiro e, enquanto isso,
a pessoas mais vis ou se divertem ociosamente no parque18 ou
e enfurnam na taberna ou passam o tempo em alguma reunião
festiva .
O mesmo se dá nesta grande república: os homens de bem
trabalham, se sacrificam, são sacrificados, tudo por vontade pró-
pria; não são arrastados pelo destino, seguem-no e acompanham-
no passo a passo; se o tivessem conhecido antes, teriam se anteci-
pado a ele.

5.5 Também estas inspiradas palavras de Demétrio, homem


da maior valentia, me lembro de ter ouvido:
"Esta é a única coisa de que posso me queixar a vosso res-
peito, ó deuses imortais: não fizestes vossa vontade conhecida
antes por mim, pois antes eu teria chegado à situação em que,
tendo sido convocado, agora me encontro. Quereis tomar os meus
filhos? Eu os criei para vós . Quereis alguma parte do meu corpo?
Tomai: não prometo grande coisa, rapidamente o deixarei por
inteiro. Quereis minha vida? Por que vou impedir que recebais o
que destes? Por minha vontade levareis o que pedirdes. De que
m queixo, então? É que eu teria preferido oferecer a entregar.
Que necessidade houve de arrebatar? Vós pudestes receber. Mas
nem sequer agora estareis arrebatando, porque nada se tira de
quem não está segurando."

5.6 Não sou forçado a nada, não sofro nada contra a vonta-
de, e não sou servil a deus mas sim aquiescente, tanto mais que
sei que tudo é determinado e se passa segundo uma lei fixa e de
valor eterno.

15.7 Os fados nos conduzem e o tempo que resta a cada um


já está definido à primeira hora do nascimento.

28
Campus no original, provável referência ao Campo de Marte, local que, à
época imperial, era utilizado para recreação. Cf. nota 54.

55
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DE PROVIDENTIA

Causa pendet ex causa, priuata ac publica longus ordo


rerum trahit: ideo fortiter omne patiendum est quia non, ut
putamus, incidunt cuncta sed ueniunt.
Olim constitutum est quid gaudeas, quid fleas, et
quamuis magna uideatur uarietate singulorum ui ta distingui,
:;umma in unum uenit: accipimus peritura perituri.

5.8 Quid itaque indignamur? quid querimur? ad hoc


parati sumus. Vtatur ut uult suis natura corporibus: nos laeti
ad omnia et fortes cogitemus nihil perire de nostro.
Quid est boni uiri? praebere se fato. Grande solacium
est cum uniuerso rapi; quidquid est quod nos sic uiuere, sic
mori iussit, eadem necessitate et deos alligat.
Inreuocabilis humana pariter ac diuina cursus uehit: ille
ipse omnium conditor et rector scripsit quidem fata, sed
sequitur; semper paret, semel iussit.

5.9 "Quare tamen deus tam iniquus in distributione fati


fuit ut banis uiris paupertatem et uulnera et acerba funera
adscriberet?" Non potest artifex mutare materiam: hoc passa
est. Quaedam separari a quibusdam non possunt, cohaerent,
indiuidua sunt.
Languida ingenia et in somnum itura aut in uigiliam
somno simillimam inertibus nectuntur elementis: ut efficiatur
uir cum cura dicendus, fortiore fato opus est. Non erit illi
planum iter: sursum oportet ac deorsum eat, fluctuetur ac
nauigium in turbido regat. Contra fortunam illi tenendus est
cursus; multa accident dura, aspera, sed quae molliat et
conplanet ipse.
Ignis aurum probat, miseria fortes uiros.

56
SOBRE A PROVJDÊNO A DIVINA

Uma causa se liga a outra, um longo encadeamento de


coisas arrasta consigo os acontecimentos gerais e particulares:
por isso, tudo se deve suportar com bravura, pois, ao contrá-
rio do que pensamos, os acontecimentos não são acasos, mas
resu 1ta dos .
Há tempos foi estabelecido com que te alegrarias, com que
chorarias e, embora a vida dos indivíduos pareça se distinguir
d e modo tão variado, tudo se resume a um único ponto: a nós,
perecíveis, nos tocam coisas perecíveis.

5.8 Sendo assim, por que nos ind ºgnamos? Por que nos
queixamos? Para isso é que fomos feitos! Que a natureza use como
quiser os corpos, são seus: nós, alegres diante de tudo, e valentes,
pensemos que nada que perece é nosso.
O que é próprio d~ m-tromem de-bem? Oferecer-se ao des-
tino. É um grande consolo ser arrastado junto com todo o univer-
o. Seja o que for que nos ordenou a viver assim, a morrer assim,
sob a mesma imperiosa necessidade, ata também os deuses.
Um fluxo irrevogável transporta de modo igual as coisas
humanas e divinas: o próprio criador e condutor de todas as coi-
sas escreveu, sem dúvida, os fados, mas os segue. Para sempre
obedece, uma vez ordenou.

5.9 "Mas por que o deus foi tão injusto na distribuição do


destino, que prescrevesse aos homens de bem pobreza,
ferimentos, mortes prematuras?" O artesão não pode transfor-
mar a matéria: ela é seu suporte. Algumas coisas não podem ser
separadas de outras, estão coligadas, são indivisíveis.
Pessoas de natureza lânguida, propensas ao sono ou que,
acordadas, semelham dormir, são urdidas por elementos
torporosos; para que um homem seja mencionado com respeito,
mais ríspido deve ser o destino . Ele não terá um caminho plano:
é necessário ir para cima e para baixo, se debater em meio às
ondas e comandar o navio na tempestade. Ele precisa manter o
curso contra o destino; muitas fatalidades duras e ásperas vão
surpreendê-lo, mas que ele as amoleça e aplaine.
O fogo comprova o ouro; a desgraça, os homens valorosos .

57
DE PROVIDENTIA

5.10 Vide quam alte escendere debeat uirtus: scies illi


1.0n per secura uadendurn.

Ardua prima uia est et quam uix mane recentes


enituntur equi; medio est altissirna caelo,
unde mare et terras ipsi mihi saepe uidere
sit timor et pauida trepidet formidine pectus.
ultima prona uia est et eget moderamine certo;
tunc etiam quae me subiectis excipit undis,
ne ferar in praeceps, Tethys solet irna uereri.

Haec cum audisset ille generosus adulescens, "placet"


.nquit "uia, escendo; est tanti per ista ire casuro."
Non desinit acrem animum metu territare:

utque uiam teneas nulloque errore traharis,


per tamen aduersi gradieris cornua tauri
Haemoniosque arcus uiolentique ora leonis.

Post haec ait: "iunge datos currus: his quibus deterreri


ne putas incitor; libet illic stare ubi ipse Sol trepidat."
Humilis et inertis est tuta sectari: per alta uirtus it.

6.1 "Quare tamen bonis uiris patitur aliquid mali deus fieri?"
Ille uero non patitur. Ornnia mala ab illis rernouit, scelera
~t flagitia et cogitationes inprobas et auida consilia et libidinem

58
SoBRE A PROVIDt NCIA DIVINA

5 .10 Vê como é alto aonde a virtude tem de subir: saberá;


qu ele precisa ir por trilhas nada seguras .
"E íngreme a primeira parte do caminho e os cavalos jo
vens, conquanto descansados pela manhã, fazem enormes esfor
ços para vencê-la. No meio do céu fica a parte mais alta, de ond<
eu mesmo quase sempre tenho pavor de ver o mar e as terras e
assustado, treme de medo meu peito.
A última parte do caminho é em declive e exige um con
trole seguro; então, até a profunda Tétis, que me acolhe corr
suas ondas subjacentes, costuma temer que eu despenque nc
abismo . " 2 ~

5.11 Tendo ouvido isso, aquele nobre adolescente disse: "C


caminho me agrada, vou subir. Ir por ele compensa uma possíve
queda ."
O pai não cessa de pôr medo naquele espírito aguerrido:
"E mesmo que mantenhas o caminho e não se desvie pm
nenhum erro, ainda assim, passarás pelos chifres do Touro hos·
til, pelo arco do Centauro e pela boca do violento Leão."30
Em resposta, ele diz: "Atrela o coche que me deste: tu pen·
sas que essas palavras me aterrorizam, mas elas me estimulam
agrada-me ficar de pé onde o próprio Sol estremece."
IÉ próprio da pessoa rasteira e indolente ir atrás de coisa~
seguras: a virtude vai por caminhos elevados.\

~1 "Mas por que o deus permite que algo de mal aconteça


aos homens de bem?"
Ele, com certeza, não permite. Ele afasta dos bons todos OE
males: crimes e torpezas, pensamentos desonestos e planos

29
Citação de Ovídio, M etamorfoses, 2 .63-9. Neste trecho, o deus Sol tenta
demover seu filho Faetonte (Phaéthon) da ambição de guiar a carruagem
pa terna .
30
Ovídi o, M etamorfoses, 2.79-81. Continuam as palavras do Sol. As respos-
tas de Faetonte são criação de Sêneca; todavia, a frase "Atrela o coche
que me deste" (iunge datos curros) ecoa o verso 2.74 da obra ovidiana,
finge datos curros ("finge que te dei o coche" ).

59
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DE PROVIDENTIA

::aecam et alieno imminentem auaritiam; ipsos tuetur ac


uindicat: numquid hoc quoque aliquis a deo exigit, ut bonorum
uirorum etiam sarcinas seruet? Remittunt ipsi hanc deo cu-
ram: externa contemnunt.

6.2 Democritus diuitias proiecit, onus illas bonae mentis


~xistimans: quid ergo miraris, si id deus bono uiro accidere
:Jatitur quod uir bonus aliquando uult sibi accidere?
Filios amittunt uiri boni: quidni, cum aliquando et
)Ccidant? ln exilium mittuntur: quidni, cum aliquando ipsi
::>atriam non repetituri relinquant? Occiduntur: quidni, cum
üiquando ipsi sibi manus adferant?

6.3 Quare quaedam dura patiuntur? ut alios patidoceant;


1ati sunt in exemplar.
Puta itaque deum dicere: "quid habetis quod de me queri
)OSsitis, uos quibus recta placuerunt?
Aliis bona falsa circumdedi et animos inanes uelut lon-
;o fallacique somnio lusi: auro illos et argento et ebore
Ldornaui, intus boni nihil est.

60
SOBRE A PROVIDÊNOA DIVINA

gananciosos, a luxúria cega e a avareza cobiçosa do que é alheio


deus os guarda e os protege: será que também se vai exigir de
deus que cuide até dos pertences dos homens bons? Eles mes·
mos dispensam o deus dessa incumbência, desdenhando as coi·
sas exteriores.

6.2 Demócrito31 jogou fora suas riquezas, julgando-as, e!I'


sã consciência, um ônus: então, por que te espantas se o deu~
permite que ocorra a um homem de bem o que em certas ocasiõe~
um homem de bem quer que lhe ocorra?
Os homens de bem perdem filhos: por que não, se há oca·
siões em que até os matam?32 São lançados em exílio: por quE
não, se há ocasiões em que eles mesmos abandonam a pátria para
não mais voltar? São mortos: por que não, se há ocasiões em que
eles mesmos se matam?

~ Por que padecem alguns duros revezes? Para que ensi-


nem outros a padecer; eles nasceram para servir de exemplo.
Imagina, então, que um deus está dizendo: "Que motivo
tendes para que podeis vos queixar de mim, se fostes vós que
preferistes a retidão?
Quanto aos outros, eu os cerquei com falsos bens e iludi
seus espíritos fúte is com um longo e enganoso sonho: adornei-os
com ouro, com prata e marfim, dentro não há nada de bom.

31 Demócrito, importantíssimo filósofo grego do século V a.C., criador, ao


lado de Leucipo, da teoria dos átomos .
32 Há, na história de Roma, casos muito conhecidos e extremamente sim-
bólicos, como o de Mânlio (Titus Manlius Torquatus) e o de Bruto (Lucius
Iunius Brutus), este último um dos mais celebrados heróis romanos, que
comandou a expulsão do tirânico rei Tarquínio e ajudou a fundar o siste-
ma republicano, sendo eleito seu primeiro cônsul. Mais tarde, desbara-
tou uma conspiração que planejava o retorno do rei deposto e, ao desco-
brir que dois de seus filhos haviam tomado o partido dos conspiradores,
não titubeou: para mostrar sua firmeza de princípios e seu caráter reso-
luto, presidiu o julgamento que condenou à morte seus próprios filhos.

61
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DE PROVIDENTIA

6.4 Isti quos pro felicibus aspicis, si non qua occurrunt


;ed qua latent uideris, miseri sunt, sordidi turpes, ad
;imilitudinem parietum suorum extrinsecus culti; non est ista
;olida et sincera felicitas: crusta est et quidem tenuis.
Itaque dum illis licet stare et ad arbitrium suum ostendi,
nitent et inponunt; cum aliquid incidit quod disturbet ac
detegat, tunc apparet quantum altae ac uerae foeditatis alienus
:;plendor absconderit.

6.5 Vobis dedi bona certa mansura, quanto magis


uersauerit aliquis et undique inspexerit, meliora maioraque;
permisi uobis metuenda contemnere, cupiditates fastidire; non
fulgetis extrinsecus, hona uestra introrsus obuersa sunt. Sic
mundus exteriora contempsit spectaculo sui laetus. Intus omne.
posui bonum; non egere felicitate felicitas uestra est.

6.6 "At multa incidunt tristia horrenda, dura toleratu."


Quia non poteram uos istis subducere, animos uestros
aduersus omnia armaui: ferte fortiter. Hoc est quo deum
antecedatis: ille extra patientiam malorum est, uos supra
patientiam.
Contemnite paupertatem: nemo tam pauper uiuit quam
natus est . Contemnite dolorem : aut soluetur aut soluet.
Contemnite mortem: quae uos aut finit aut transfert. Contemnite
fortunam : nullum illi telum quo feriret animum dedi.

6.7 Ante omnia caui ne quis uos teneret inuitos; patet


exitus: si pugnare non uultis, licet fugere. Ideo ex omnibus rebus
quas esse uobis necessarias uolui nihil feci facilius quam mori.

62
SOBRE A PROVID~NCIA DIVNA

6.4 Esses que tu enxergas como felizes, se pudesses ver não


o que vem à tona, mas o que está oculto, concluirias que são uns
desgraçados, sórdidos, torpes, à semelhança das paredes de suas
casas, enfeitadas apenas por fora; não se trata de uma felicidade
sólida e sincera: é uma casca, e bem minguada.
Sendo assim, enquanto lhes é permitido estar de pé e se
exibir à vontade, brilham e enganam; quando sobrevém algo que
os perturba e os desmascara, então salta aos olhos quanto da mais
profunda e verdadeira monstruosidade um esplendor falso ha-
via escondido.

6.5 Quanto a vós, eu vos dei bens seguros e permanentes, e


que, quanto mais inspecionados e examinados de todos os lados,
maiores e melhores se afirmarão; eu vos concedi desprezar os
temores, enjeitar os desejos; vós não brilhais por fora, os vossos
bens se apresentam por dentro. Do mesmo modo, a esfera celeste
desprezou as coisas exteriores, contente com seu próprio espetá-
culo. Dentro é que coloquei todo bem; não carecer de felicidade é
a vossa felicidade."

6.6 "Mas acontecem muitos sobressaltos tristes, horríveis,


duros de agüentar."
"Como não podia afastar-vos deles, armei vossos espíritos
contra todos: suportai bravamente. Nisto vós estejais à frente de
um deus: ele está à margem do sofrimento dos males, vós, acima
do sofrimento.
i Desprezai a pobreza: ninguém vive tão pobre quanto nas-
ceu. Desprezai a dor: ou ela terá um fim ou vos dará um. Desprezai
a morte: a qual ou vos finda ou vos transfere. Desprezai o desti-
no: não dei a ele nenhuma lança com que ferisse o espírito. \

6.7 Antes de tudo: tomei precauções para que ninguém vos


retivesse contra a vontade; a porta está aberta: se não quiserdes
lutar, é lícito fugir. Por isso, de todas as coisas que desejei que fos-
sem inevitáveis para vós, nenhuma fiz mais fácil do que morrer.

63
DE PROVJDENTIA

Prono animam loco posui: HtrahiturH adtendite modo


et uidebitis quam breuis ad libertatem et quam expedita
ducat uia.
Non tam longas in exitu uobis quam intrantibus moras
posui; alioqui rnagnum in uos regnum fortuna tenuisset, si
homo tam tarde moreretur quam nascitur.

6.8 Omne ternpus, ornnis uos locus doceat quam facile


sit renuntiare naturae et munus illi suum inpingere; inter ipsa
altaria et sollemnes sacrificantium ritus, dum optatur uita,
rnortem condiscite.
Corpora opirna taurorum exiguo concidunt uulnere et
rnagnarum uiriurn animalia hurnanae rnanus ictus inpellit;
tenui ferro cornmissura ceruicis abrurnpitur, et cum articulus
ille qui caput collurnque committit incisus est, tanta illa mo-
les corruit.

6.9 Non in alto latet spiritus nec utique ferro eruendus


est; non sunt uulnere penitus inpresso scrutanda praecordia:
in proxirno mors est .
Non certum ad hos ictus destinaui locum: quacumque
uis peruium est.
Ipsurn illud quod uocatur mori, quo anima discedit a
corpore, breuius est quarn ut sentiri tanta uelocitas possit: siue

64
SOBRE A PROVIDÊNOA DlvINA

Coloquei a vida num declive: basta um empurrãozinho.


Prestai um pouco de atenção e vereis como é breve e ligeiro o
caminho que leva à liberdade33 •
Não pus delongas tão morosas na vossa saída quanto as
que existem para os que estão entrando; não fosse assim, o desti-
no teria um grande domínio sobre vós, caso o homem morresse
tão lentamente quanto nasce.

6.8 Cada tempo, cada lugar vos ensine como é fácil renun-
ciar à natureza e atirar-lhe de volta sua dádiva; entre os próprios
altares e ritos solenes dos sacrifícios, enquanto se pede pela vida,
aprendei sobre a morte.
Touros descomunais, de porte impecável, tombam com um
minúsculo ferimento e animais de grandes forças são abatidos
ao golpe da mão de um homem; com uma delgada lâmina de
ferro se rompe o ligamento cervical e, depois que se corta a arti-
culação que une cabeça e pescoço, toda aquela massa extraordi-
nária desmorona.

6 .9 O espírito vital não se esconde num recanto profundo


nem é preciso arrancá-lo sempre a ferro; não é preciso perscrutar
as entranhas com um ferimento penetrante: a morte está bem
perto .
Não des tinei um lugar exato para tais golpes: onde quise-
res se abre um caminho .
1A isso que se chama morrer, esse instante em que a alma se
separa do corpo é breve demais para que se possa perceber tão

33 Neste trecho Sêneca faz a defesa do suicídio em certas situações extre-


mas, conforme a crença estóica . Segundo o estoicismo ortodoxo, havia
três situações que justificavam tal atitude (denominada êulogos exagogé):
a) quando as circunstâncias impediam a pessoa de viver em conformi-
dade com a natureza; b) quando representava um sacrifício em cumpri-
mento de deveres cívicos; c) quando a pessoa se via compelida a praticar
atos incorretos, inevitáveis de outra forma. Quanto a Sêneca, o debate
acerca desse tema sempre o interessou e, embora nunca tenha feito wna
apologia da morte, ele se refere eIJl suas obras a diversas circunstâncias
que legitimariam o suicídio.
65
DE PROVIDENTIA

fauces nodus elisit, siue spiramentum aqua praeclusit, siue in


caput lapsos subiacentis soli duritia comminuit, siue haustus
ignis cursum animae remeantis interscidit, quidquid est,
properat. Ecquid erubescitis?
Quod tam cito fit timetis diu!"

66
SoBRE A PROVJDÉ CI A ÜJV JNA

grande velocidade: ou o nó apertou a garganta, ou a água impe-


diu a respiração, ou a dureza do chão arrebentou os que caíram
de cabeça, ou a sucção de fogo interrompeu o respirar; seja o que
for, voa . Por acaso enrubesceis?
Passa rápido o que temestes tanto tempo!" l

67

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