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L'après-midi d'un faune Baudelaire e Mallarmé

Virgílio Costa no prefácio a Poemas traduzidos de Baudelaire e Mallarmé, diz:

"Toma com cuidado este livro em tuas mãos, leitor. Nele encontrarás versos de três
grandes poetas, dois que os escreveram e um que os traduziu; três verdadeiros poetas.

Nele lerás algumas das mais belas traduções feitas em nossa língua, nossa amada
língua portuguesa. Os dois poetas traduzidos, Baudelaire e Mallarmé, foram homens
profundamente infelizes."

Acrescento um trecho em que fala especificamente de Mallarmé:

"Stéphane Mallarmé nasceu 21 anos depois de Baudelaire, em 1842. Pequeno


funcionário, professor de inglês na província, tinha como deuses Edgar Allan Poe e
Baudelaire; transferido para Paris, nas horas vagas editava uma revista 'da família e
do mundo': ser doméstico, 'homem do mundo', de um pequeno mundo que era a
'sociedade' da classe média nascente de então. Aos domingos ia aos concertos.
Delicado, enviava presentes acompanhado de pequenas quadras, pequenas obras-
primas. Defrontou-se com o Nada. E atrás daquela vida modesta e caseira empreendia
uma incrível viagem pelo interior da linguagem. Pois esta poderia explicar o mundo; e
trabalhar um verso até torná-lo diamante (o precioso e raro verso mallarméano) era
caminhar para a resposta. Ainda jovem perdera a fé, mas ainda jovem tivera um
sonho, o de escrever não um livro, mas o livro, o livro definitivo, para o qual se
prepara a vida inteira, para o qual seria necessário quase um culto (livro que não iria
nunca escrever...). Sua obra serão pequenos repousos, por assim dizer, ensaios, da
obra ambicionada. Às terças-feiras reunia em sua casa - ficava de pé, fumando, os
outros sentavam-se ao redor -, mais para ouvir que para falar, gente como Renoir,
Manet, Whistler, Heredia, ou os jovens Gide, Claudel, Valéry, Debussy, às vezes
Oscar Wilde. Enfim se aposenta, mas não tem coragem nem tempo para por a obra no
papel. Morrerá em breve. Lutou a vida toda por uma independência financeira que o
liberasse de dar aulas para se dedicar à literatura ('os miseráveis que me pagam no
colégio saquearam minhas belas horas'); não o conseguiu. A mínima obra poética que
deixa, parte improvisos, parte trabalhadíssima, é haurida em perfeição. Difícil poesia
mallarméana; delicado, difícil, doméstico Mallarmé. Todos os dias, ao voltar do Liceu
para casa, atravessava uma ponte sobre o Sena. Todos os dias, escreveu, tinha vontade
de se jogar no rio, e não se jogava.

Pobre Mallarmé. O verso o salvou."

A sesta de um fauno

(Mallarmé)

Écloga

O fauno

Estas ninfas, eu quero perpetuar.

Tão leve
O seu claro rubor que um volteio descreve
No ar dormente, denso de sono.

Amei um sonho?

À dúvida, montão de antiga noite; ponho

Fim, ao ver deste bosque a sutil ramaria


Provar-me que eu, na solidão, me oferecia

Em triunfo, ai de mim! a falta ideal de rosas.


Reflitamos...

serão mulheres fabulosas

Que à exaltação dos teus sentidos atribuis?


Fauno, a ilusão se escapa dos olhos azuis
E frios, como fonte em prantos, da mais casta:
Toda suspiros, a outra, achas que ela contrasta
Qual brisa matinal quente no teu tosão?
Mas não! no lasso espasmo e na sufocação
Do calor, que a manhã combate, não murmura
Água se não a verte a minha flauta pura
De acordes irrorando o bosque; e o único vento
Pronto a exalar pelos dois tubos seu alento
Antes que em chuva árida espalhe os sons em fuga
É, no horizonte que não frisa uma só ruga,
O visível, sereno sopro artificial
Da inspiração, que ao céu retorna.

Ó pantanal

Siciliano, cuja orla sossegada e vasta,


Rival dos sóis, a minha vaidade devasta,
Tácito, num florir de mil centelhas, CONTA:
"Que eu, um caniço aqui talhando, a flauta pronta,
Feita com arte, eis o ouro glauco dos relvedos
Distantes dedicando a fontes seus vinhedos,
Ondeia uma brancura animal em repouso:
Ao lento preludiar do caniço, o gracioso
Voo de cisnes, não! de náiades se assusta,
Foge ou mergulha..."

Tudo ferve na hora adusta


Sem que se possa ver onde se esconderá
Tanto himeneu, cobiça de quem busca o lá:
Então despertarei, nos primeiros fervores,
Hirto e só, sob uma onda antiga de esplendores,
Lírios! e a um deles igual, a mesma ingenuidade.

Não o doce nada que de seus lábios se evade,


O beijo suave que perfídias assegura,
Meu peito, antes intacto, atesta a mordedura
Misteriosa, devida a algum augusto dente;
Mas basta! arcano tal busca por confidente
O cálamo que sob o azul ressoa, quando
Da face para si a turbação desviando,
Sonha, num solo longo, ir assim distraindo
A beleza em redor, a ela e a nós confundindo
Num engano que o nosso canto dissimula;
E fazer, no tom em que o amor se modula
Desvanecer-se do habitual sonho, de lado
Ou de costas, ao meu olhar semicerrado,
Uma sonora, vã e monótona linha.

Busca, pois, instrumento das fugas, maligna


Siringe, reflorir nos lagos, me aguardando!
Fero do meu rumor, continuarei falando
Dessas deusas; e, por idólatras pinturas,
Às suas sombras hei de arrancar as cinturas:

Assim das uvas ao sorver a claridade,

Para a mágoa banir fingindo alacridade,


Rindo ergo ao céu estivo o meu cacho vazio:
Soprando as peles luminosas me inebrio,
Até o anoitecer olhando através delas.

Ninfas, ressoprarei outras LEMBRANÇAS belas:


"Meu olhar dardejava, entre os juncos, um bando
De colos imortais seu ardor mergulhando
N'água, com gritos de ira até o céu da floresta;
No banho imergem-se as cabeleiras em festa
Entre frêmitos e brilhos, Ó pedrarias!
Corro e duas surpreendo enlaça das (pungia-as
O lânguido sabor do mal de serem duas),
Sonolentas, os braços soltos... e assim nuas
Eu as rapto, sem as desenlaçar, e em meio
A um maciço, da fútil sombra odiado, cheio
De rosas cujo aroma o sol ardendo inala,
A nossa festa ao dia incendido se iguala. "

Adoro a cólera das virgens, ó delícia


Feroz do sacro fardo nu que com malícia
Foge ao meu lábio em fogo ao absorver-lhe, tal
Um relâmpago, o íntimo frêmito carnal:
Dos pés da desumana ao coração da tímida
Entregando de vez sua inocência, úmida
De lágrimas e de menos tristes vapores.
"Meu crime foi, feliz de vencer os temores
Fingidos, apartar o tufo desgrenhado
De beijos, que os deuses guardavam bem trançado:
Pois apenas fui ocultar um riso ardente
Entre as pregas sutis de uma delas (somente
Com um dedo a outro retendo, em seu candor de pluma,
Tingida do fervor que acende a irmã, nenhuma
Vergonha enrubescendo a ingênua, ao ver agrados)
De meus braços, por vagas mortes extenuados,
Aquela presa, eterna ingrata, se livrava,
Sem pena do soluço em que eu ébrio ofegava"

Tanto faz! que ao prazer outras me arrastem pelos


Chifres atados às pontas dos seus cabelos:
Sabes, minha paixão, que purpúrea e madura
Cada romã explode e de abelhas murmura;
E o nosso sangue, a quem o atrai, se dá sem pejo
E flui com todo o enxame eterno do desejo.

Na hora em que o bosque de ouro e de cinzas se esmalta


Na folhagem extinta uma festa se exalta:
Etna! é sobre o teu chão, visitado por Vênus
Pousando em tua lava os brancos pés ingênuos,
Quando ronca um som triste ou a chama se acalma.
Agarro a deusa!

Ah, certo é o castigo...

Oh, não! a alma

De palavras vacante e este corpo indolente


Sucumbem ao torpor do meio-dia ardente:
Quero agora dormir, a blasfêmia olvidar,
E na areia jazendo, abrir a boca ao ar,
Do astro do vinho haurindo os raios eficazes!

Ninfas, adeus; vou ver vossas sombras fugazes.

Tenho particular afeição ao poema que agora trago. Contribuiu não apenas para
mudar a História, diretamente, da Poesia e da Música e, indiretamente, da dança. Sua
própria criação marca definitivamente a Poesia. O convívio com seus versos e com
Mallarmé leva Debussy a escrever L'après-midi d'un faune/ A tarde (ou, como o
prefere Dante Milano, a sesta ) de um fauno, que influenciaria Nijinsky a criar o balé
do mesmo nome, revolucionando definitivamente a dança, no começo do nosso
século.

Aprendi muito sobre isso com uma amiga, bailarina, coreógrafa e professora-mestra
no Instituto de Arte da UERJ, Maria Lúcia Galvão. O trabalho de orientação de sua
dissertação, na UFF, foi um processo de aprendizado talvez maior para mim que para
ela. Agradeço-lhe citando alguns trechos de O Gesto e a Vitalidade da Expressão ,
que espero ver em livro, para dar uma ideia das mudanças que este poema significou e
propiciou:

"O mosaico criado por Nijinski, principalmente em: L'Après-midi d'un Faune - A
Tarde de um Fauno - com música de Claude Debussy e cenários e figurinos de Leon
Bakst - e Le Sacre du Printemps - A Sagração da Primavera - com música de
Stravinsky e cenários e figurinos de Nicolas Roerich - foi de importância
incontestável à criação de uma nova era da Arte do Movimento. Nijinski, como
Stravinsky na música, Picasso nas artes plásticas e Mallarmé na Literatura, rompe
com princípios que aprisionam o ato criador. Suas coreografias revelam o inusitado e
um novo rumo na construção técnica e cênica da Dança. Se antecipava a formulação
da Incerteza, corporificava buscas e tendências revolucionárias das artes de seu
tempo."

(...)

"O pintor Odilon Redon, em carta dirigida a Diaghilev e publicada no LE FIGARO,


lembra Mallarmé, para melhor aplaudir Nijinski:
Muitas vezes, uma grande alegria é acompanhada de uma grande dor; ao prazer que
ontem me foi oferecido, eu acrescento a pena de não ter visto ontem, conosco, o meu
ilustre amigo Stéphane Mallarmé. Melhor do que qualquer outro teria apreciado a
admirável evocação do seu espírito. Não creio que no campo da arte irreal se possa
dar com mais requinte uma das características de sua arte (REDON apud
SASPORTES: 1983, 51)."

Em seu artigo, Redon recorda antiga conversa com o poeta Mallarmé, que sempre
levantava críticas às coreografias e às mímicas dos balés da sua época. Segundo ele,
teria sido muito grande a alegria do poeta ao ver aparecer, sobre o friso vivo, o
verdadeiro sonho do seu Fauno e suas quimeras levadas sobre as ondas ligeiras da
música de Debussy, tornadas sensíveis graças à plástica de um Nijinski e à ardente cor
de um Bakst.

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