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Feminismos e justiça social: as lutas das mulheres negras não cabem

em uma única palavra - Por: Ana Claudia Pereira

No século XVIII, negras alforriadas nascidas na Costa da Mina formavam, em solo


brasileiro, domicílios compostos basicamente por mulheres. As que conseguiam acumular
alguns bens deixavam heranças para escravas, ex-escravas e filhas. Muitas delas
registraram em seus testamentos histórias de solidariedade em momentos de dificuldade
material e doença, como mostram estudos da historiadora Sheila de Castro Faria. A palavra
"feminismo", para elas, não existia.
Na cultura iorubá, "ialodê" é um título conferido a mulheres de reconhecido valor para
a comunidade, funcionárias de Estado, representantes das mulheres em instâncias de
poder e governo, além de ser atribuído às orixás Oxum e Nanã. Jurema Werneck analisou
o destaque e a liderança conquistadas por sambistas como a cantora Alcione junto às
brasileiras negras, associando-as às ialodês. Para ialodês e sambistas, "feminismo" não é
uma referência central.
"Feminismo" consolidou-se como o termo mundialmente conhecido para falar da luta
das mulheres pela emancipação a partir da mobilização de europeias e norte-americanas.
Reivindicando melhores condições de vida, imaginavam um mundo melhor a partir de suas
próprias experiências sociais: para as operárias, a prioridade era adquirir direitos, enfrentar
a exploração capitalista, melhorar as condições de trabalho nas fábricas; para as mulheres
de elite, o termo muitas vezes esteve associado à demanda de mulheres brancas e ricas
pela participação no mundo de privilégios sociais de homens também brancos e ricos.
"Feminismo" foi, desde sempre, um termo disputado por diferentes projetos de sociedade,
alguns mais igualitários, outros menos.
Viajando por muitos caminhos, conferiu ferramentas importantes para as lutas das
mulheres latino-americanas, fossem elas novas ou antigas. E, ao criar raízes na região,
ganhou a cara da nossa diversidade, moldou-se de acordo com a imensa desigualdade
racial e social que caracteriza nossos países.
O III Encontro Latino-Americano Feminista em Bertioga, ocorrido em 1985 no Brasil,
foi um dos momentos em que nossas diferenças ficaram visíveis. Um ônibus lotado de
mulheres negras, que vinham de favelas e movimentos de bairro, alegou não ter dinheiro
para pagar a inscrição e reivindicou participar do evento, enfrentando resistência da
organização, predominantemente branca. A história ficou famosa e vem sendo repetida
desde então para ilustrar nossas desigualdades.
Quase trinta anos depois, o feminismo hegemônico não é mais o mesmo. O discurso
antirracista tornou-se quase onipresente e a ideologia da democracia racial não é mais
aceita. Este novo discurso requer também práticas e, frente ao novo cenário, muitas
mulheres negras se perguntam: Qual é o conteúdo deste antirracismo? Como ele influencia
as relações entre brancas e negras dentro dos coletivos de militância e grupos acadêmicos?
Como ele se reflete na pauta de mobilização feminista?
Sem desejar falar pela totalidade das mulheres negras, levanto aqui algumas
questões que tenho debatido com outras companheiras negras no contexto de militância.
Acredito que nunca haverá uma sobreposição total entre o feminismo branco e o negro, ao
menos enquanto houver racismo na sociedade, e nem acho que seja necessário. O
problema maior, acredito, é universalizar o que é particularidade das brancas, falar em
nome de todas as mulheres, carregar o antirracismo como bandeira e sempre adiar
decisões substantivas para um futuro que nunca chega.
Não acredito em feminismo "Pollyana" e acho que os conflitos também são bem-
vindos, mas eu e algumas amigas negras sentimos que, ainda nos dias de hoje, é
particularmente difícil levantar questões sobre raça, que os conflitos se tornam muito mais
acirrados do que em outros temas, ou em momentos em que pessoas brancas colocam as
mesmas questões. Talvez, por haver um certo medo de se identificar com uma posição de
opressora ou, porque as pessoas adotam uma definição de racismo que é limitada a
indivíduos, da qual não compartilho. Talvez seja simplesmente a reprodução invisível de
privilégios ou, ainda, o velho racismo mostrando sua cara. Em todo caso, a branquitude
confere a qualquer portadora um lugar que cabe somente ao grupo privilegiado e precisa
ser enfrentado com muito mais vigor.
Em muitos espaços, surge entre militantes brancas um discurso de que o racismo é
um problema "da sociedade" e não "nosso". Uma crença de que o reconhecimento do
racismo é suficiente para eliminá-lo das nossas relações. O resultado é que o privilégio
racial é mantido no mesmo lugar em que sempre esteve: a favor das mulheres brancas. E
qualquer questionamento é visto como ataque pessoal, postura antifeminista, falta de
solidariedade. Felizmente, não por todas as companheiras brancas.
Um feminismo antirracista precisa estar atento a composição dos espaços de
decisão e poder de que cristalizamos, precisamos pensar como aqueles espaços se
constituem e entender suas limitações. Precisamos pensar sempre como a cor da nossa
pele nos confere privilégios ou nos subordina às dinâmicas de opressão.
Nossa vivência e experiência racial, enquanto negras, nos torna sensíveis a formas
muito explícitas de racismo, e também às mais sutis. A formas de racismo que não têm a
ver com o que se diz, e sim como as prioridades, as pautas, os lugares de fala e de
legitimação de fala são construídos. Para muitas de nós, ter nossas histórias e prioridades
apagadas é uma situação recorrente, desagradável demais.
Outro ponto sensível é visibilizar a produção política e intelectual das mulheres
negras. É natural e bom que as ideias circulem. Mas, na boca de quem as ideias parecem
coerentes, objetivas e bonitas? Na boca de quem ela vira "conhecimento" ou na boca de
quem ela vira "vitimização"? Embora isso não seja culpa apenas das militantes brancas,
requer uma atenção especial.
O feminismo que não combate privilégios raciais é o feminismo que tem como pauta
de mobilização questões que invisibilizam as mulheres negras e reproduzem todas as
formas de violência que o racismo gera. Ao priorizar teorias construídas em linguagem
erudita e elitista, sem preocupação em criar formas de tradução para um conjunto maior de
pessoas, setores do feminismo acadêmico muitas vezes têm estabelecido um debate em
que só quem pode participar são homens e mulheres brancas e ricos, excluindo a imensa
população negra que têm seus direitos à educação negados, para não dizer de parte
considerável dos brancos.

Ao falar do estereótipo da mulher frágil, casta dócil e confinada aos espaços


domésticos, o feminismo hegemônico impõe a todas uma história que é de um grupo restrito
de mulheres brancas, já que as negras, desde a escravidão, nunca foram afastas do
mercado de trabalho na mesma medida e foram muito mais exploradas. No discurso da
democracia racial, somos vistas como brutas, agressivas, feias, excessivamente
sexualizadas, portadoras da "cor do pecado".
Considerando as maneiras como o racismo molda nossas histórias, considerando
que a nossa luta pela emancipação das mulheres é também uma luta contra todas as
formas de opressão, como poderíamos, nós, mulheres negras, concordar com a exploração
capitalista que faz com que tenhamos a renda mais baixa do país, seguidas de homens
negros e só então por mulheres brancas?
Como poderíamos concordar que os avanços das mulheres brancas no mercado de
trabalho continue a ocorrer com a exploração do trabalho doméstico das mulheres negras?
Como poderíamos basear nossas solidariedades apenas em alianças de gênero se
sabemos que a política de segurança pública tem feito cair o homicídio de brancos e
aumentar o homicídio de homens negros, especialmente jovens, nossos irmãos, pais,
amigos, vizinhos? Como poderíamos ignorar a cumplicidade histórica de homens e
mulheres brancas com a exploração sexual de negras?
Não podemos e não queremos e, ao nos posicionarmos, enfrentamos muitas
resistências. Algumas de nós deixam de comparecer às reuniões e aí somos acusadas de
não ajudar a construir o movimento. Muitas preferem militar em espaços de mulheres
negras porque sentem suas falas mais contempladas, porque sentem que há um acúmulo
na discussão. Não é justo que, todas as vezes que vamos nos colocar, tenhamos que
conhecer e analisar o discurso feminista branco, mostrar que ele é branco, questionar suas
bases e só então ter direito a apresentar propostas. Isso nos faz perder tempo precioso de
redescobrir nossa própria história, apagada pela violência dos discursos historiográficos e
sociológicos. Outras companheiras negras negras ficam nos espaços mistos e encaram
muitos desafios, às vezes apoiadas por pessoas brancas comprometidas com a igualdade.
Existem muitas formas de repensar o privilégio racial e é muito comum que as
militantes brancas perguntem às militantes negras como isso deve ser feito. Acredito que
apenas as mulheres brancas podem descobrir a melhor forma de se responsabilizar por
sua atuação política, mas, pensando nos desafios que encontramos, faço algumas
sugestões:
1) Primeiro, precisa haver um certo consenso entre as pessoas brancas dos coletivos
sobre a necessidade de descontruir o racismo e o privilégio racial. O termo "feminismo" não
é suficiente para demonstrar compromisso com o fim de todas as opressões e é preciso
que o grupo defina até que ponto está disposto a se aprofundar na luta contra o racismo. O
antirracismo parece ter se tornado palavreado fácil, mas agir contra opressões requer
esforços mais duradouros, constantes e intensos;
2) O racismo perpassa a nossa sociedade e todas as estruturas de poder. Fazer as
coisas "normalmente" é perpetuar um poder já consolidado. Falo em racismo e privilégio
nesse sentido amplo, social e coletivo e as mulheres brancas têm que refletir e se
responsabilizar por isso (e não falo de culpa cristã). Pensando o racismo como um eixo
organizador de hierarquias sociais, temos menos direitos e, muitas vezes, servirmos de
trampolim para a conquista de direitos/privilégios das brancas, como é o caso das
domésticas, ou o genocídio da juventude negra. Por isso, as militantes brancas precisam
tomar a iniciativa de debater o seu lugar na sociedade e no movimento, fazer oficinas e
rodas de conversa e adotar novas práticas no dia-a-dia;
3) Visitem os blogs e sites de mulheres negras, conheçam o histórico e as pautas,
definam alinhamentos, dialoguem com coletivos negros. Isso mostra compromisso e torna
o espaço mais convidativo. E nos desonera do peso de ficar ensinando tudo às brancas,
como se apenas as negras tivessem um problema racial.
Seguir estas sugestões é algo ainda bastante inicial. Muitas outras coisas podem ser
feitas e não tenho a pretensão de esgotar o tema ou de ter feito a melhor sugestão possível.
O compromisso com o fim de todas as formas de opressão não cabe em uma lista. Nós,
negras, somos plurais, diferenciadas por nossa classe social, religião, orientação sexual,
disposições pessoais; aproximadas pelas experiência do racismo e da resistência. Estamos
em movimentos feministas, negros, de bairro, sindicatos, de trabalhadoras domésticas,
LGBTT, pela moradia, pela terra, contra a intolerância religiosa e nos relacionamos de
diferentes formas com o feminismo.
Ao celebrarmos juntas o dia da Mulher Afro-Latina e do Caribe, recordamos que
somos feministas somente se e enquanto o feminismo nos representar, lembramos de
nossas ancestrais que inventaram tantos outros nomes e formatos para nossas lutas, nos
unimos às companheiras negras de todos os movimentos pela justiça social. E convidamos
as companheiras feministas a conhecer nossa história de resistência, nossos muitos nomes
e idiomas e as solidariedades que temos inventado no contexto da diáspora africana.

Ana Claudia Pereira é doutoranda em Ciência Política pelo IESP/UERJ.


Fonte: Blogueiras Negras

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