Você está na página 1de 100

Negro e educação:

presença do negro no sistema


educacional brasileiro

Marcus Vinicius da Fonseca


Patrícia Maria de Souza Santana
Cristiana Vianna Veras e Eliane Botelho Junqueira
Júlio Costa da Silva
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e
Regina Pahim Pinto (Organizadoras)

São Paulo, 2001

anped

Apoio:

1
Ação Educativa Assessoria Pesquisa e Informação
Rua General Jardim, 660 - Vila Buarque
01223-010 - São Paulo - SP - Brasil
Fone/Fax:(11) 3151-2333
E-mail: acaoeduca@acaoeducativa.org
Home-page: www.acaoeducativa.org
Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação — ANPEd
R. São Francisco Xavier, 524 — 10º andar — sala 10 014/2 – Bloco C – Pavilhão João Lyra Filho
20 550.013 — Rio de Janeiro — RJ — Brasil
Fone: (21) 234-5700 — Fax: (21) 284-4350
E-mail: anpeduc@uol.com.br
Homepage: www.anped.org.br
I Concurso Negro e Educação
Organização
ANPEd
Ação Educativa

Apoio
Fundação Ford

Comissão Organizadora
Maria M. Malta Campos
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva
Regina Pahim Pinto
Sérgio Haddad

Comitê científico
Fúlvia Rosemberg
Luiz Alberto Oliveira Gonçalves
Luiz Claudio Barcellos
Maria Malta Campos
Marília Pinto de Carvalho
Marilia Pontes Sposito
Nilton Bueno Fischer
Regina Pahim Pinto
Sérgio Haddad

Projeto gráfico e diagramação


Capa: Samuel Ribeiro Jr
Miolo: Miro Nalles
Revisão: Orlando Joia

2
Sumário

Apresentação......................................................................................... 5

Formação de pesquisadores no contexto do I Concurso Negro e Educação


Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Regina Pahim Pinto.................. 7

As primeiras práticas educacionais com características modernas em relação


aos negros no Brasil
Marcus Vinicius da Fonseca.............................................................. 11

Rompendo as barreiras do silêncio: projetos pedagógicos discutem relações


raciais em escolas municipais de Belo Horizonte
Patrícia Maria de Souza Santana....................................................... 37

Raça e gênero na trajetória educacional de graduandas negras da Unicamp


Júlio Costa da Silva......................................................................... 53

Estudantes negros e a transformação das faculdades de direito em escolas de


justiça: a busca por uma maior igualdade
Cristiana Vianna Veras e Eliane Botelho Junqueira.............................. 73

3
4
Apresentação

É com grande satisfação que a Comissão Organizadora do I Concurso Negro e


Educação traz a público resultados de pesquisas realizadas no contexto desta iniciati-
va (1999-2000), promovida pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação - ANPEd e pela Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação, com o
apoio da Fundação Ford.
O Concurso buscou, entre outros objetivos, incentivar linhas de pesquisa na área
e, sobretudo, propiciar condições para formar pesquisadores. Nesse sentido, foi dada
prioridade a projetos de candidatos com pouca ou nenhuma experiência em pesquisa,
dando-se ênfase a questões pouco exploradas na área. Os selecionados tiveram um
ano para desenvolver suas investigações.
Os quatro trabalhos selecionados para esta coletânea são uma contribuição impor-
tante para a cada vez mais atual discussão sobre as desigualdades sociais, particular-
mente quanto à escolarização do segmento negro. Essa discussão vem colocando para
a sociedade brasileira questões que há muito tempo são debatidas no âmbito do movi-
mento negro, e que começam a ser cogitadas pelos formuladores de políticas públicas.
Cada um dos autores apresenta o resultado de seu estudo (com a precisão possí-
vel para um iniciante) de forma simples, às vezes em tom coloquial, sem entretanto
simplificar a complexidade das questões abordadas. Os leitores poderão verificar a
relevância dos resultados encontrados e a contribuição inegável de cada um dos traba-
lhos aqui apresentados para o conhecimento na área.
O primeiro trabalho, As primeiras práticas educacionais com características mo-
dernas em relação aos negros no Brasil, de Marcus Vinicius Fonseca, é um estudo de
caráter histórico sobre a educação de crianças negras, no contexto da promulgação da
Lei do Ventre Livre, de 1871. Desvenda os embates travados entre os que defendiam os
interesses dos proprietários de escravos e aqueles que lutavam para que as crianças,
filhas de escravas nascidas livres, tivessem uma educação que as preparasse para a vida
livre.
O segundo, intitulado Rompendo as barreiras do silêncio: projetos pedagógicos
discutem relações raciais em escolas da rede municipal de ensino de Belo Horizonte, de
Patrícia Maria de Souza Santana, analisa projetos pedagógicos e outras iniciativas, em
escolas públicas daquela cidade, visando à discussão das relações raciais no Brasil, bem
como o conhecimento e a valorização da cultura e da história dos negros. O estudo
mostra que tais iniciativas são mais numerosas do que se costuma pensar; revela tam-
bém a influência direta, muitas vezes solitária, de professores negros.
O terceiro estudo, Estudantes negros e a transformação das faculdades de direito
em escolas de justiça: a busca por uma maior igualdade, foi elaborado por Cristiana
Vianna Veras1 . Analisa a transformação do perfil dos estudantes de direito, em termos
raciais e sociais, num universo tradicionalmente conservador e homogêneo, levantan-
1
Em colaboração com Eliane Botelho Junqueira, sua orientadora nesta pesquisa.

5
do a hipótese de que tal transformação poderá contribuir para formar futuros operado-
res de direito mais conscientes da desigualdade social e mais próximos da realidade
brasileira.
O quarto trabalho, Raça e gênero na trajetória educacional de graduandas negras
da Unicamp, de Júlio Costa da Silva, analisa depoimentos de alunas negras da Unicamp
sobre sua trajetória educacional desde o ensino fundamental, discutindo especifica-
mente as discriminações e preconceitos que as atingiram e a maneira como reagiram
a tais situações. Seu estudo, em que se destaca a riqueza dos depoimentos, articula
raça e gênero, e indica que as mulheres, pela posição que ocupam, são mais sensíveis
ao preconceito e à discriminação.
O volume é aberto com um texto introdutório (Formação de pesquisadores no
contexto do I Concurso Negro e Educação), onde as professoras Petronilha Beatriz
Gonçalves e Silva e Regina Pahim Pinto, a quem coube coordenar o processo de desen-
volvimento do Concurso e as atividades dele decorrentes e que organizaram esta cole-
tânea, tecem considerações sobre a formação de pesquisadores e, de modo geral,
sobre os limites e possibilidades que se apresentaram no contexto desta iniciativa.

A Comissão Organizadora

6
Formação de Pesquisadores no Contexto do
I Concurso Negro e Educação

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Regina Pahim Pinto2

A iniciativa de organizar o Concurso Negro e Educação visava a suprir lacunas de


pesquisa sobre o tema, bem como incentivar a formação de pesquisadores. Mais do
financiar projetos, buscava-se estimular a criação de linhas de pesquisa e, sobretudo,
apoiar pesquisadores iniciantes.
Para dar formato ao Concurso, colher sugestões e debater a pertinência de suas
proposições iniciais, a Comissão Organizadora realizou, em 1998, um seminário para o
qual foram convidados pesquisadores da área, negros e não negros, muitos deles mi-
litantes do movimento negro. Entre as várias sugestões, foi destacada a necessidade
de o Concurso se constituir em um processo formativo, prevendo-se, para tanto, várias
atividades, bem como a presença de um orientador para acompanhar o desenvolvi-
mento de cada um dos projetos de pesquisa a serem apoiados.
A primeira edição do Concurso teve significativa acolhida, o que mostrou a valida-
de da iniciativa. Ao todo, foram recebidos 171 projetos abordando os mais diferentes
aspectos do tema. Destes, 135 foram submetidos à seleção, tendo sido escolhidos
dez, conforme previam as normas3 .
O processo seletivo contou com a participação de pareceristas ad hoc, pesquisa-
dores experientes na área das relações raciais, relacionada ou não à educação. A
seleção final foi feita pelo Comitê Científico, o qual procurou seguir critérios rigorosos
do ponto de vista científico e, ao mesmo tempo, considerar os limites de projetos de
pesquisadores iniciantes, muitos deles, até então, autodidatas em pesquisa.
Dentro ainda do espírito formativo do Concurso, o Comitê julgou conveniente que
tanto os proponentes selecionados como os não selecionados tomassem conhecimento
das sugestões e críticas constantes dos pareceres sobre os projetos, pois se entendia
que essa medida poderia colaborar para a formação dos candidatos.
Tal providência pareceu bastante acertada, a julgar pelos depoimentos de alguns
com quem tivemos contato, sobre a importância de conhecerem os pontos a reformular
ou a aprofundar nos projetos. Houve inclusive quem, com base nas sugestões, refez
seu projeto, tendo este sido selecionado para curso de mestrado. Nesse sentido, o
empenho do Comitê em dialogar e encorajar os candidatos ofereceu elementos para
que os candidatos dessem continuidade a seus esforços.
Os dez contemplados, além de contarem com a orientação de um pesquisador
experiente durante o desenvolvimento de sua investigação, tiveram a oportunidade de
2
Respectivamente, professora da Universidade Federal de São Carlos e pesquisadora da Fundação
Carlos Chagas.
3
Os demais, 36 projetos, não foram a julgamento por não preencherem as normas do Concurso.

7
debatê-la com os colegas e com o Comitê Científico, em dois seminários de formação.
Durante o período de duração da pesquisa, elaboraram um relatório parcial e um final,
os quais foram avaliados pelo Comitê Científico e, quando necessário, reformulados.
Nesse processo de acompanhamento e avaliação, instaurou-se um diálogo bas-
tante fecundo entre o Comitê Científico e os bolsistas, no que diz respeito ao encami-
nhamento do projeto, à metodologia escolhida, à maneira de abordar o tema e de
tratar os dados. A possibilidade de ouvir e de conversar com os membros do Comitê
Científico, muitos deles autores citados pelos bolsistas em seus trabalhos, encorajou-
os na complexa tarefa que tinham pela frente. Foi também estimulante ouvir os cole-
gas sobre seus próprios trabalhos bem como ter a oportunidade de opinar sobre a
pesquisa dos outros.
Confrontando-se as observações sobre os projetos feitas pelo Comitê Científico
durante o primeiro seminário de formação com o resultado expresso nos relatórios
finais, observaram-se progressos significativos por parte da maioria dos bolsistas. Isso
ficou evidente na preocupação e no empenho em precisar conceitos, delimitar o tema
estudado e encaminhar a pesquisa de modo mais pertinente, articulando as questões
enfrentadas com as referências teóricas. Em resumo, a maioria conseguiu aperfeiçoar
o trabalho do ponto de vista teórico e metodológico. Observaram-se ainda esforços de
contextualização do objeto de análise, apoiando-se em bibliografia de caráter teórico
ou histórico.
Os relatórios finais elaborados pelos participantes certamente demonstraram avan-
ço na experiência de pesquisar. No entanto, a despeito dos progressos e dos resultados
promissores, as ponderações e recomendações dos responsáveis pelo acompanhamen-
to e avaliação dos projetos demonstram que não só há aspectos a serem aperfeiçoados
em trabalhos futuros bem como dificuldades a serem superadas pelos pesquisadores
iniciantes e enfrentadas por seus formadores.
A primeira delas diz respeito à construção do corpo teórico. Nem sempre fica
claro, em todas as suas dimensões, para um pesquisador iniciante e que tem o prazo
de um ano para realizar seu trabalho, o que seja o corpo teórico de uma pesquisa.
Muitas vezes ele o confunde com revisão da literatura na área, não chegando a formu-
lar os conceitos com precisão; falta-lhe indicar a sua sustentação teórica. Na maior
parte dos casos, embora os bolsistas tenham entendido o corpo teórico como uma
referência para organização de sua pesquisa, não conseguiram fazê-lo dialogar sufici-
entemente com os dados coletados. Da mesma forma, em alguns casos, na construção
do corpo teórico e da metodologia, diferentes linhas teóricas e abordagens metodológicas
foram utilizados de modo indiscriminado.
Merece também destaque a dificuldade de os bolsistas organizarem os dados
coletados na perspectiva dos objetivos e do corpo teórico construído, para que fossem
analisados. Com isto se quer dizer que, embora os relatórios finais aprovados não
tenham apresentado falhas sérias de consistência, alguns dos dados deixaram de ser
explorados em dimensões significativas ou interessantes.
Ainda quanto à análise dos dados, um problema freqüente, nem sempre superado
totalmente, foi a não distinção entre as opiniões próprias do pesquisador e as dos
8
sujeitos da pesquisa. Da mesma forma, na discussão dos resultados em face da litera-
tura, confundiram-se, em certos momentos, julgamentos formulados com base em
vivências ou opiniões do pesquisador com aqueles que poderiam ser elaborados, como
fruto de reflexão a partir do corpo teórico da pesquisa.
Quanto à metodologia, cabe lembrar que, em alguns casos, apesar de ter sido
escolhida a metodologia adequada ao problema e à questão de pesquisa, houve algu-
ma inabilidade ou falta de compreensão de suas exigências, a fim de bem aplicá-la.
Uma outra dificuldade foi superada na primeira fase da pesquisa, mas, dada a
freqüência com que se manifestou no conjunto de projetos submetidos ao Concurso,
convém destacar: a não distinção entre projeto de pesquisa e projeto de intervenção.
Grande parte dos proponentes é composta de negros, preocupados em solucionar pro-
blemas que seu povo enfrenta e, nesse sentido, tentaram, com seus projetos, buscar
uma forma de combater o racismo, as discriminações, buscar reconhecimento e res-
peito e criar melhores condições de vida. Para tanto, propuseram intervenções sem
articulá-la com a pesquisa. Haveria uma investigação no seio da intervenção? A partir
de uma pesquisa, previa-se a realização de uma intervenção? A pesquisa se destinaria
a avaliar e ou acompanhar uma intervenção?
Cabe ressaltar que o Concurso se constituiu numa oportunidade de aprendizagem
também para o Comitê Científico. Além de tomarem ciência das inquietações dos candi-
datos e de facetas da problemática racial que merecem ser investigadas, os seus mem-
bros tiveram que definir critérios de avaliação e acompanhamento que, sem comprome-
ter a excelência científica e acadêmica do processo de pesquisa, levassem em conta
diferentes experiências e áreas de formação.
Finalmente, tudo indica que o Concurso contribuiu para a visibilidade do tema, ten-
do mobilizado um grande número de interessados, provenientes de várias partes do país
e que, quiçá, em outras circunstâncias, não teriam a oportunidade de externar suas
idéias e, tampouco, vê-las desenvolvidas e avaliadas. Com certeza muitos dos limites e
dificuldades anteriormente mencionados poderão ser superados no decorrer das ativida-
des do II Concurso Negro e Educação, já em andamento.

9
10
As Primeiras Práticas Educacionais com
Características Modernas em Relação aos
Negros no Brasil

Marcus Vinícius Fonseca*

Resumo ças nascidas de mulheres escravas pas-


savam a ser consideradas de condição
Pesquisa de caráter histórico. Focali-
livre. É em torno dessas crianças que en-
za os anos em que vigiu a Lei do Ventre
contraremos um conjunto de experiên-
Livre (1871-1888). Recorre a documen-
cias no que tange à educação dos ne-
tos oficiais, principalmente do poder gros no Brasil. Trata-se do reconheci-
legislativo do Império e do Ministério da
mento da necessidade de se estender aos
Agricultura, assim como a manifestações
negros a educação escolar, ou moderna,
de intelectuais do período. Examina as
pois, como salienta Justino Magalhães
práticas educacionais dirigidas aos
(1996), a escolarização é um dos princi-
afrodescendentes nascidos livres de mães
pais aspectos do processo de moderni-
escravas. Indica que havia uma consci- zação da educação.
ência sobre o valor da educação como ele-
Para avaliar essas experiências edu-
mento de inclusão social no processo de
cacionais utilizamos como fonte de pes-
superação do escravismo, não obstante ter
quisa os debates relativos à elaboração
predominado a tendência a não incluir os
da Lei do Ventre Livre, a documentação
filhos livres de escravas nos benefícios da
do Ministério da Agricultura no que diz
instrução.
respeito à sua execução e, finalmente,
Introdução algumas obras que consideramos impor-
tantes no cenário das discussões sobre a
Este artigo resulta de pesquisa de abolição da escravidão no Brasil.
caráter histórico1 (Fonseca, 2000), cujo
Dessa forma, o presente texto divi-
marco temporal encontra-se circunscrito
de-se em duas partes: a primeira, discu-
nas últimas décadas da escravidão (1871
te o surgimento da questão educacional
a 1888). Seu objetivo é analisar a rela-
no contexto do processo de construção e
ção entre abolição da escravidão e edu-
execução da Lei do Ventre Livre; a se-
cação dos negros, tal como foi concebida
gunda, analisa o caráter inovador desse
durante o processo de superação do
processo, demonstrando a diferença en-
escravismo no Brasil.
tre as concepções educacionais que sur-
O ponto de partida é a Lei do Ventre giram em meio à abolição e a forma como
Livre, de 1871, segundo a qual as crian- a questão era tratada anteriormente.

*
Mestre em educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.
1
Orientadora: Cynthia Greive Veiga.
11
A Lei do Ventre Livre e a educação que são livres todos que nascerem de
certa data em diante ... esta emancipa-
Os anos de 1850 a 1888 foram mar- ção do ventre, esta liberdade dos filhos,
cados por um intenso debate sobre a abo- importa a grande justiça da revogação
lição da escravidão, sendo o ano de 1871 do odioso e injustificável bárbaro prin-
um dos momentos capitais, dado que se cípio mantenedor da perpetuidade da es-
discutia a libertação das crianças nasci- cravidão, o celebre partus sequitur
das de escravas — a libertação do ventre, ventrem deve ser a pedra angular da
como se costumava dizer na época. reforma. (Malheiros, 1976 [1867], p.
156, grifos do autor).
A característica mais importante des-
sa discussão diz respeito ao fato de ata- Portanto, a pedra angular da refor-
car a única fonte legal de entrada de no- ma proposta por Perdigão Malheiros de-
vos escravos no país. Desde a proibição veria ser a quebra do princípio herdado
do tráfico de africanos, em 1850, somen- do direito romano segundo o qual o par-
te o ventre das mulheres escravas conti- to deveria seguir a sorte do ventre. Im-
nuava a introduzir trabalhadores cativos pedir o nascimento de novos escravos
em terras brasileiras. Libertar o ventre colocaria a escravidão em xeque e ga-
significava acabar com a única fonte de rantiria o seu fim em algumas gerações,
renovação da escravidão e, assim, essa permitindo aos senhores de escravos
instituição estaria com seus dias conta- uma transição gradativa para o traba-
dos. Não havendo novos escravos, o tra- lho assalariado.
balho servil passava a ser um problema
Foi também Perdigão Malheiros o pri-
geracional e seria eliminado à medida que
meiro a perceber as implicações da rela-
as gerações nascidas no cativeiro desa-
ção entre a abolição da escravidão e a
parecessem completamente2.
educação. Já em 1867, formulava a se-
Essa proposta de cunho geracional guinte pergunta: “que educação devem
foi uma manifestação clara da intenção receber essas crianças que se tornarão
de se eliminar o trabalho escravo de for- os futuros cidadãos do Império?”:
ma lenta e gradual, concepção que pode
O essencial é que além da educação
ser percebida claramente na argumenta-
moral e religiosa, tomem uma profissão,
ção do jurisconsulto e historiador Perdi-
ainda que seja lavradores ou trabalha-
gão Malheiros, um dos principais defen-
dor agrícola; ele continuará a servir aí
sores da libertação do ventre como forma se lhe convier, ou irá servir a outrem, ou
mais conveniente de se acabar com a es- se estabelecerá sobre si; em todo caso,
cravidão no Brasil: aprenda um ofício mecânico, uma pro-
Para se obter a extinção completa da fissão, de que possa tirar recursos para
escravidão, é preciso atacá-la no seu re- se manter e a família, se tiver. Alguns
duto, que entre nós não é hoje senão o poderão mesmo ser aproveitados nas
nascimento. Cumpre, portanto, declarar letras ou em outras profissões, as es-

2
Nos debates sobre a libertação do ventre encontramos uma interessante correlação entre o nasci-
mento e a morte como elementos considerados responsáveis pelo fim da escravidão no Brasil. Nesse
sentido, determinar que as crianças nascidas de escravas seriam de condição livre encontrava um
complemento na morte das gerações de trabalhadores cativos. Isso porque, depois de 1871, ninguém
mais nasceria escravo no Brasil e, à medida que as gerações anteriores fossem morrendo, a escravidão
terminaria quase que naturalmente.
12
colas lhes são francas, como livres que algumas restrições. No parecer da comis-
serão por nascimento. Obrigar os senho- são responsável pela leitura do projeto de
res a mandá-los a elas é ainda proble- lei apresentado à Assembléia Geral
ma a resolver; a instrução obrigatória Legislativa, em 1870, isso fica evidente na
ou forçada não está admitida entre nós, medida em que a intenção de se atribuir
nem mesmo para os demais cidadãos aos senhores das mães a responsabilidade
livres. Os senhores devem ter para isto por uma educação, incluía, sempre que
um prudente arbítrio, como aos pais é
possível, a instrução elementar:
dado em relação aos filhos. (idem,
ibidem, p. 162) Art. 7º — Os filhos das escravas nas-
cidos depois da publicação desta lei se-
Na perspectiva apresentada por rão considerados livres. Os libertos em
Malheiros, a libertação do ventre e a edu- virtude desta disposição ficarão em po-
cação são articuladas de forma clara, sen- der e sob a autoridade dos senhores
do que a educação chega até mesmo a de suas mães, que exercerão sobre
ser tratada como uma dimensão comple- eles o direito de patronos, e terão a
mentar do processo de abolição do traba- obrigação de criá-los e tratá-los, pro-
lho escravo. Portanto, em meio às dis- porcionando-lhes sempre que for pos-
cussões que começavam a difundir a idéia sível a instrução elementar (Câmara
e a necessidade de estabelecer a liberta- dos Deputados, 1874, p. 27).
ção das crianças nascidas de escravas, Afirmar que os senhores das mães
educação e emancipação eram vincula- sempre que possível deveriam proporcio-
das como parte do processo geral de pre- nar às crianças a instrução elementar era
paração dessas crianças para o exercício algo extremamente vago e não represen-
da liberdade. tava nenhuma garantia de que eles assu-
No entanto, a articulação entre abo- miriam a função de ampliar o conteúdo
lição e educação - tal como se deu nos da educação dessas crianças. Legislar
debates relativos à libertação do ventre - sobre o sempre que possível é muito mais
não foi colocada em destaque para prote- uma intenção do que necessariamente
ger as crianças que nasceriam livres. No uma determinação; a possibilidade, ou o
fundo, o que ela verdadeiramente expres- sempre que possível, é algo muito subje-
sa é a tentativa de minimizar o impacto tivo para ser abarcado pelos nexos cau-
que o fim do trabalho escravo poderia sais que motivam uma lei.
gerar no perfil da sociedade brasileira, que A despeito disso, pode-se conside-
receberia um número significativo indi- rar que alguns setores que atuavam no
víduos originários do cativeiro na condi- parlamento tentaram criar na lei uma bre-
ção de cidadãos livres. cha para forçar uma mudança de atitude
Ao recuperarmos os debates que ocor- dos senhores em relação às novas gera-
reram no parlamento em torno do projeto ções provenientes da prole das escravas.
de lei que pretendia acabar com a escravi- Trata-se do reconhecimento da necessi-
dão das novas gerações nascidas de escra- dade de submetê-las a uma educação
vas, esse posicionamento fica explícito. mais ampla como forma de preparação
Percebe-se a intenção de se atribuir uma para a vida livre.
obrigação aos senhores quanto à educação Mesmo os opositores do projeto de
dessas crianças, embora acompanhada de libertação do ventre reconheciam e atri-

13
buíam uma importância fundamental à é inexeqüível ... Introduzido nestes es-
educação. Porém, a responsabilidade de tabelecimentos dois sistemas, um severo
educar era vista como um problema, pois e disciplinar para os escravos e outro
é evidente que os senhores não estavam de harmonia teremos constituído para
dispostos a assumir tal compromisso em os proprietários uma posição rodeada
relação aos filhos de escravas. Os seto- de embaraços, tão cheia de obrigações
res mais afinados com os interesses dos e de ameaças, que eles jamais aceita-
rão por vontade própria (Câmara dos
proprietários de escravos estavam aten-
Deputados, 1874, p. 99 3).
tos para que essa obrigação não viesse a
recair sobre os senhores das mães. A educação tornava-se, assim, um
ponto de discordia, pois dividiria as prá-
Essa posição manifesta-se no pró-
ticas que regiam o mundo do trabalho, à
prio Parecer enviado à Câmara dos De-
medida que conferia um novo status às
putados em 1870. Ela exprime a cons-
crianças nascidas livres de escravas. Sig-
ciência dos representantes dos interes-
nificaria também, de acordo com Rodrigo
ses dos senhores de escravos de que a
A. Silva, que essas crianças poderiam ser
libertação do ventre não poderia vir as-
retiradas do trabalho produtivo para re-
sociada a uma mudança efetiva do status
ceberem instrução, o que não só afetaria
das crianças que nasceriam livres.
os lucros dos senhores, como despertaria
Um dos pareceristas, deputado o descontentamento entre os escravos que
Rodrigo A. Silva, manifesta-se contra o não possuíssem esse benefício.
artigo que deixava margem à interpreta-
As posições em relação à educação
ção da obrigatoriedade por parte dos se-
manifestas nos debates parlamentares
nhores de providenciar instrução elemen-
expressam um antagonismo: de um
tar para as crianças que nasceriam livres.
lado, era ressaltada a necessidade de
Além da defesa explícita do direito dos
educar as novas gerações que nasceri-
proprietários agrícolas o deputado argu-
am livres no cativeiro; de outro, educá-
menta que a atribuição educacional (a
las significava contrariar os interesses
instrução elementar) estabeleceria duas
imediatos dos proprietários de escravos,
formas de conduta dos proprietários no
que não estavam dispostos a aceitar uma
exercício do seu poder: uma, para os es-
mudança efetiva na condição desses in-
cravos, que poderiam ser tratados como
divíduos, tidos como os futuros traba-
de costume; outra, para as crianças nas-
lhadores do país.
cidas de escravas que, além de serem con-
sideradas livres, deveriam ser objeto de O ponto de chegada da disputa en-
novas práticas educacionais: volvendo a educação foi a forma como a
questão se materializou no texto da Lei
Se o patrono tem obrigação não só de
criar e tratar dos filhos de suas escra- 2040 — popularizada com o nome de Lei
vas, como pessoas livres, mas também do Ventre Livre — que estabeleceu uma
de dar-lhes a educação que devem ter sutil distinção entre criar e educar.
os cidadãos em tais circunstâncias o Segundo essa lei, todas as crianças
projeto nesta parte além de vexatório, nascidas após 28 de setembro de 1871

3
A publicação referente ao Projeto de Lei apresentado à Assembléia Geral Legislativa em 1870, utiliza-
da nesta pesquisa, data de 1874.

14
passavam a ser consideradas de condi- tado. Qual foi o destino das crianças nas-
ção livre, porém, deveriam permanecer cidas de escravas após 1871? Foram elas
até os oito anos sob a posse dos senho- criadas, ou educadas? Permaneceram
res de suas mães. Quando atingissem sob a posse dos senhores, ou foram en-
essa idade, o senhor faria uma escolha: tregues ao Estado? Essas questões são
ficaria com o menor até a idade de 21 fundamentais para sabermos como foi
anos — podendo inclusive durante todo encaminhada a questão educacional em
esse período utilizá-lo como trabalhador meio ao processo de abolição do traba-
—, ou o entregaria ao Estado, mediante lho escravo.
uma indenização de 600$000 (seiscen-
A educação na vigência da Lei
tos mil réis)4.
do Ventre Livre - A análise do proces-
Quanto às crianças que permaneces- so de execução da Lei do Ventre Livre
sem sob a posse dos senhores, a Lei pre- revela que a educação passou a ser um
conizava que deveriam ser somente cria- dos aspectos importantes do discurso e
das. As que fossem entregues ao Estado da ação do poder público em relação às
deveriam ser encaminhadas a instituições crianças que nasciam livres e, aos ne-
que se tornariam responsáveis por sua gros, de um modo geral.
criação e educação. Portanto, a distinção
Nesse sentido, percebe-se até 1879
entre criação e educação isentava os se-
um esforço para se construir uma estru-
nhores de escravos de qualquer respon-
tura educacional que possibilitasse a edu-
sabilidade quanto a uma alteração no con-
cação das crianças entregues ao Estado.
teúdo das práticas educativas dirigidas a
Esse ano — em que as primeiras crianças
essas crianças. Por outro lado, definia
nascidas livres completariam oito anos e
que aquelas que fossem entregues ao
poderiam ser entregues ao Estado ou
Estado não poderiam ser tratadas como
retidas nas mãos dos senhores — consti-
era comum no regime de escravidão, de-
tui-se um marco para se avaliar a ação
vendo ser, portanto, educadas5.
do governo e para o próprio entendimen-
Enfim, de acordo com a Lei do Ven- to da educação dos negros no contexto
tre Livre, as que nascessem de escravas do processo de abolição do trabalho es-
poderiam ser criadas ou educadas, ou cravo no Brasil.
melhor, poderiam ser submetidas aos
mesmos padrões de educação que vigo- No relatório do Ministério da Agri-
ravam durante a escravidão, caso ficas- cultura de 1872, já aparecem referências
sem sob a posse dos senhores de suas a iniciativas que buscavam articular a
mães, ou poderiam ser expostas a uma educação e o processo de abolição da es-
outra forma de educação, mediante a qual cravidão:
seriam preparadas para a vida como se- ... pendem de decisão do governo duas
res livres, caso fossem entregues ao Es- propostas para criação de companhias

4
Nesse sentido, essas crianças se tornariam livres somente após os 21 anos, o que, como ressalta
Mattoso (1988), consiste em uma escravidão disfarçada.
5
De acordo com a concepção que estamos utilizando, tanto as crianças que permaneceram sob a
posse dos senhores como as que foram entregues ao Estado foram educadas. O que diferia era a
forma como eram educadas. Podemos considerar como principal elemento dessa distinção o fato de
que não se exigia aos senhores de suas mães submetê-las a instrução elementar.

15
destinadas à alforria de escravos e edu- nistério da Agricultura de 1876 esse pro-
cação dos menores livres, filhos de mu- pósito está explícito:
lher escrava, que senhores das mães ti-
Os dois anos e poucos meses que nos
verem abandonado, e ao aproveitamen-
separam do prazo fixado no Art. 1º da
to de seus serviços por meio de contra-
Lei de 28 de setembro (Lei do Ventre
tos e parcerias. (Ministério da Agricul-
Livre) bastam, seguramente, para a ex-
tura, 1872).
pedição das providencias necessárias ao
No ano 1873 persistia a mesma in- cumprimento das obrigações incumbi-
tenção: das ao Estado pelo Art. 2º parágrafo 4º
O movimento emancipador continua a .... Um dos alvitres que se afiguraram
manifestar-se espontaneamente, já pela mais aptos para a consecução do fim
generosidade individual, já pelos esfor- da Lei é o estabelecimento dos asilos
ços coletivos de associações organiza- agrícolas, adotados com bom êxito, em
das para esse fim em diversas cidades outras nações para a educação dos
do Império, manifestando-se tanto por menores. Num país, como o Brasil, em
alforrias, como pela instrução que pro- que a agricultura definha pela falta de
curam difundir entre os escravos. (Mi- braços e de ensino profissional esse al-
nistério da Agricultura, 1873). vitre traria o excelente resultado de au-
mentar o número dos bons lavradores
Esses relatórios indicam que ime-
(Ministério da Agricultura, 1876)
diatamente após a aprovação da Lei do
Ventre Livre as propostas para consti- Na documentação do Ministério da
tuição de associações para a educação Agricultura há referências a várias des-
das crianças nascidas livres de escra- sas associações. A partir de 1872 há in-
vas começavam a ser apresentadas e formações anuais sobre o Imperial Insti-
eram bem acolhidas pelo Ministério da tuto Fluminense de Agricultura que, se-
Agricultura. Esse órgão do governo do gundo o relatório do próprio instituto, ti-
Império via nessas associações a pos- nha sob sua responsabilidade o primeiro
sibilidade de recolher as crianças, pois asilo agrícola da América do Sul, fundado
o governo não possuía uma estrutura em 1869, ou seja, em meio ao debate para
capaz de recebê-las e, muito menos, a aprovação da Lei do Ventre Livre.
estava disposto a criá-la sob sua inteira No ano de 1873, o governo, por in-
direção e responsabilidade O caminho termédio do Ministério da Agricultura, fir-
para realização de parcerias com parti- mou contrato com o agrônomo Francisco
culares revelava-se, assim, como o mais Parentes, para que fosse fundado no Piauí
conveniente a ser tomado. um estabelecimento agrícola destinado à
Foi esse o encaminhamento que vi- educação de ingênuos6 e libertos: o Esta-
gorou até 1879, sendo que o Ministério belecimento Rural de São Pedro de
da Agricultura passou a tomar iniciativas Alcântara. Essa parceria está
com o objetivo de incentivar o surgimento estabelecida em um contrato pelo qual
de associações que pudessem arcar com o governo entregava a Francisco Paren-
a educação das crianças, filhas de escra- tes quatro fazendas para que a educa-
vas, nascidas livres. No relatório do Mi- ção dos ingênuos e libertos fosse reali-

6
Terminologia herdada do direito romano; é a denominação atribuída às crianças nascidas livres de
escravas. Para uma análise da aplicação desta terminologia neste caso, ver: Fonseca (2000)

16
zada. São os seguintes os seus termos: pois os gastos ficariam a cargo do Estado
“educará física, moral e religiosamente e poderiam comprometer o orçamento:
os libertos das ditas fazendas, que fo- Aproxima-se o termo do prazo marca-
rem menores, e os filhos das libertas do no art. 1º da Lei de 28 de Setem-
nascidos depois da promulgação da Lei bro para opção dos senhores das mães
de 28 de setembro de 1871 ... proverá, entre os serviços dos menores e a in-
outrossim, a educação moral e religiosa denização pecuniária, em títulos de
dos adultos.” (Contrato, 1874). renda. Posto seja de presumir que a
Data do mesmo período a criação da maioria dos senhores preferir concluir
Colônia Orphanologica Izabel, localizada a educação começada, a troco dos ser-
em Pernambuco, e destinada a educar viços do menor até 21 anos de idade,
cabe ao governo imperial cuidar, des-
órfãos e “filhos livres de mulher escrava”.
de já, dos meios necessários ao de-
Encontramos, ainda, no relatório do Mi-
sempenho daquela obrigação. (Minis-
nistro da Agricultura de 1876, referênci-
tério da Agricultura, 1876).
as a duas instituições na província do
Pará, o Colégio de Nossa Senhora do Am- Essa declaração do Ministro da Agri-
paro e o Instituto dos Educandos Artífi- cultura é ambígua, pois demonstra uma
ces. Essas duas instituições paraenses, certa confiança em relação ao fato de
segundo o relatório, seriam avaliadas que os senhores das mães iriam optar
quanto à possibilidade de virem a rece- pela manutenção das crianças como
ber as crianças nascidas livres de escra- mão-de-obra ou completar a educação
vas. Mas tudo indica que não lhes foi iniciada em meio ao cotidiano da escra-
alocada verba do governo do Império, pois vidão; no entanto, também manifesta
não encontramos qualquer referência a uma certa apreensão quanto à reação
respeito nos anos seguintes. Caso rece- desses senhores no que diz respeito à
bessem algum recurso público, deveriam possibilidade de acionarem o Estado
enviar, anualmente, informações ao Mi- para receber a indenização de 600$000,
nistério da Agricultura. mediante a entrega das crianças para
que este completasse a sua educação.
No período posterior a 1879, entre-
tanto, observa-se um refluxo na políti- O receio que perpassa essa posi-
ca do Ministério da Agricultura no sen- ção cercada de ambigüidades era justo,
tido de fomentar o surgimento de asso- pois se os senhores abrissem mão dos
ciações que se voltariam para a execu- menores, o governo do Império poderia
ção do que foi definido pela Lei do Ven- se ver em meio a um problema de gran-
tre Livre em relação à educação das cri- des proporções. De um lado, o Estado
anças nascidas de escravas. teria de mobilizar recursos para
Esse recuo pode ser explicado pela indenizá-los; de outro, teria que se ocu-
maneira como a questão começou a ser par da educação das crianças que esti-
tratada no âmbito do Ministério da Agri- vessem sob sua responsabilidade, o que
cultura a partir de 1876. Os anos mais exigiria não só recursos, mas também a
próximos ao momento em que a primei- fiscalização das instituições responsá-
ra geração de beneficiados pela Lei do veis pela educação dos menores.
Ventre Livre completaria oito anos são O número de crianças que se en-
acompanhados por uma certa apreensão, contravam em condições de serem liber-

17
tadas conforme a definição da Lei 2040 tro da Agricultura vem cercado de preo-
justificava essa preocupação. Segundo cupações e de incertezas quanto ao im-
estimativa contida no relatório de 1878, pacto que o elevado número de crian-
em 1879 o país teria 192.000 crianças ças poderia gerar na estrutura do go-
nascidas livres de escravas. verno imperial, tanto no nível financei-
ro — estimado em 5,184 milhões de con-
Se todas essas crianças fossem en-
tos de réis para um período de oito anos
tregues ao Estado, haveria um colapso
— quanto em termos de responsabilida-
na organização financeira e burocrática
de pelo encaminhamento e educação
do governo do Império, pois não só acar-
das crianças:
retaria a mobilização de enormes recur-
sos para a indenização dos senhores, Mais a educação daqueles do que o res-
como não haveria associações em nú- gate destes deve, quanto a mim, pre-
mero suficiente para recebê-las. ocupar os poderes públicos. Basta
atender a que, dentro de oito anos, terá
A mobilização no sentido de con-
o estado recebido 32.000 educandos,
sultar as províncias quanto à existência de sexo idade e aptidões diversas, na
de associações e recursos - como aliás sua quase totalidade analfabetos e
ocorreu, segundo o relatório de 1876 -, muitos trazendo os germens dos víci-
era uma necessidade para efetivar a pre- os e das más inclinações para que se
paração de uma infra-estrutura mínima advirta como este novo ramo do pu-
de enfrentamento da situação que pas- blico serviço requer especiais cuidados
saria a vigorar após 1879: e avultadas despesas. (Idem).
Por estimativa que fundo nos dados co- Nesse sentido, não deveriam ser
ligidos em começo de 1877, julgo po- poupadas despesas para a constituição
derem ser avaliados em 192.000 os in- desse novo ramo dos serviços públicos,
gênuos existentes ao completar a lei pois tratava-se de algo fundamental pre-
oito anos de duração, o que dá a mé- parar os futuros trabalhadores e com-
dia de 24.000 para cada ano. Ainda bater os vícios e más inclinações que
quando, pois, só a sexta parte venha
essa clientela traria das senzalas, ou da
ser entregue ao Estado terá este de
sua condição de negros “escravizados”.
receber anualmente 4.000, durante
A partir desse quadro, o ministro suge-
oito anos que começarão a correr de
re o seu plano:
28 de setembro próximo.
Convém, a meu ver, estimular por meio
Naquela hipótese, minimamente, de ter
de auxilio pecuniário, proporcional ao
o Estado de receber 4.000 ingênuos anu-
número de ingênuos que lhes hajam
almente durante o período de 8 anos,
de ser entregues, a organização de so-
seria por este lado de 5.184:000$000
ciedades que se constituam com de-
[5,184 milhões de contos de réis] o sa-
terminados requisitos, fixados em es-
crifício pecuniário, si a renda dos títulos
pecial regulamento, sejam elas mera-
houvesse de ser contada desde o co-
mente filantrópicas, sejam industriais.
meço de cada ano, e não do dia em que
Mediante contrato de locação de ser-
se efetuar a entrega do menor chegado
viços, celebrados perante os juizes de
á idade marcada pela lei (Ministério da
órfãos e sob sua inspeção executado,
Agricultura, 1878).
podem alguns menores ser confiados
O quadro apresentado pelo Minis- a empresa ou a particulares, de reco-

18
nhecida idoneidade, obrigando-se pode ser explicada pelos dados que en-
aquelas e estes a dar-lhes educação. contramos no relatório de 1885. Seis anos
Por fim, cumpre fundar, sobre plano após a primeira geração de crianças com-
modesto, asilos agrícolas e industriais, pletar a idade que possibilitaria ao senhor
onde recebam os ingênuos, ao par com fazer a escolha entre ficar com o menor
instrução elementar e religiosa, a li- ou entregá-lo ao Estado, o número total
ção pratica do trabalho. de crianças nascidas livres de escravas
existentes em todo o Brasil era de
Combinando este e vários meios que
podem ser desenvolvidos, à medida
403.827. Dessas, apenas 113 haviam
que a experiência trouxer o seu con- sido entregues ao Estado em troca da in-
selho, não é para mim duvidoso que a denização de 600$000 (seiscentos mil
despesa com a educação dos ingênu- réis). Uma quantia insignificante, 0,028%
os será compensada pelos seus resul- do número total de crianças nessa situa-
tados. (Idem). ção, o que indica que a quase totalidade
das crianças nascidas livres foram
No entanto, no relatório do ano se-
educadas nos mesmos moldes que os tra-
guinte o ministro7 muda radicalmente de
balhadores escravos. Ou seja, uma edu-
opinião, alegando que não havia necessi-
cação que transcorria no espaço privado,
dade de o Estado se antecipar, mas de
onde a atribuição dos senhores era de criar
moldar a sua ação a partir da prática dos
os menores, sem nenhuma obrigação de
senhores de escravos. Isso porque muito
prestar contas a respeito dessa criação.
provavelmente, no ano 1879, nenhuma
criança foi entregue ao Estado: A relação entre crianças nascidas
livres de escravas e a infância desva-
A este respeito já tive ocasião de mani-
lida – 1879 a 1888 - O número de cri-
festar o meu parecer, quer quanto ao
modo de colocar os mesmos menores,
anças entregues ao Estado ficou abaixo
quer quanto à escrupulosa fidelidade de qualquer expectativa, o que levou a
com que o governo entende dever cum- uma mudança de perspectiva quanto à
prir para com os proprietários o precei- ação do governo em relação às associa-
to legal. Penso agora como então, que ções que receberiam as crianças nasci-
impraticável seria estabelecer desde já das livres de escravas. No período poste-
um plano único e definitivo, antes que a rior a 1879 ainda encontramos registros
prática vá demonstrando qual a média de novas associações dessa natureza. No
dos menores entregues ao Estado, e entanto, elas não são apresentadas com
quais por tanto os meios devam ser pre- a mesma preocupação que as anteriores
feridos para assegurar-lhes convenien- e tampouco receberam os mesmos incen-
temente colocação. (Ministério da Agri- tivos financeiros, sendo que algumas, pro-
cultura, 1879). vavelmente, sequer foram contempladas
Essa mudança de posição que o Mi- com algum auxílio, pois seus nomes são
nistro Cansansão de Sinimbu demonstrou apenas citados nos relatórios.
entre o relatório de 1878 e o de 1879, Entre as instituições que surgiram

7
No período que tomamos para análise, havia uma rotatividade muito grande entre os titulares da
pasta que competia ao Ministério da Agricultura. Os ministros mudavam praticamente de um ano para
outro. Porém nos anos de 1878 e 1879 o titular permaneceu o mesmo, foi ele o Sr. José Lins Vieira
Cansanção de Sinimbu.

19
nesse período de refluxo da questão da contos de réis), quantia muito superior à
educação dos ingênuos podemos citar a das demais instituições fundadas no mes-
Colônia Orphanologica Blasiana, fundada mo período. Em parte, esse fato se expli-
no ano de 1881, no Município de Santa ca pela sua localização no Rio de Janeiro,
Luzia, Província de Goiás, que recebia dos o que lhe dava um certo grau de influên-
cofres públicos apenas a quantia de cia junto ao governo e, também, por es-
500$000 (quinhentos mil réis) anuais. tar vinculada a uma instituição que tinha
Nada que se possa comparar ao que foi um amplo projeto para o tratamento da
destinado às instituições surgidas antes questão da infância desamparada. O Asylo
de 1879, como, por exemplo, a Colônia Agrícola Isabel era apenas o primeiro de
Orphanologica Izabel, situada em uma série de cinco que seriam criados
Pernambuco que, em 1877, firmou con- pela Associação Protetora da Criança De-
trato com o governo no valor de samparada para o atendimento à infân-
36:000$000 (trinta e seis contos de réis) cia desvalida. Mas esse é só um aspecto
por um período de três anos, ou seja, desse favorecimento que a instituição re-
uma média de 12:000$000 (doze contos cebeu. Consultando documentação a seu
de réis) anuais. respeito podemos deduzir como foi enca-
minhada a questão das crianças nascidas
As demais instituições do período
livres de escravas durante esse período.
posterior a 1879 localizavam-se no Cea-
rá, Minas Gerais e Rio de Janeiro. São Não há qualquer informação nos re-
elas, respectivamente: a Colônia latórios dos ministros da Agricultura so-
Orphanologica Cristina, sobre a qual há bre a educação dos ingênuos como uma
notícias da fundação, em 1880, e das suas função prioritária do Asylo Agrícola Isa-
atribuições, a educação de crianças po- bel. Entretanto, recorrendo a outras fon-
bres, vítimas da seca; a Colônia tes, percebe-se que essa era, pelo menos
Orphanologica de Nossa Senhora do teoricamente, uma das suas finalidades.
Carmo do Itabira, sobre a qual também A circular de 1886, que informa sobre sua
encontramos pouquíssimas informações. criação, refere-se claramente às crianças
Registra-se apenas que foi fundada em nascidas livres de escravas:
12 de outubro de 1884, por João Baptista Velar pela educação da geração que
da Cachoeira na sua fazenda, sendo des- cresce e sobretudo a das crianças pri-
tinada a órfãos e menores; e, por último, vadas do sustento de seus protetores
o Asylo Agrícola Isabel. Esse asilo, fun- naturais, como foi produzido pela lei de
dado no Rio de Janeiro, oferece algumas 28 de setembro de 1871, é um objeto
pistas quanto ao destino da educação dos de importância incontestável... O núme-
ingênuos no período posterior a 1879. ro destes infelizes não é pequeno; as
medidas tomadas a este respeito pelo
Ao contrário da Colônia governo o provam, assim como o fato
Orphanologica Blasiana, da Colônia de ver as diferentes autoridades recor-
Orphanologica Nossa Senhora do Carmo rerem à generosidade dos particulares
e da Colônia Orphanologica Cristina que, para que elas os acolham. Mas estas
de acordo com os relatórios, receberam medidas não são suficientes porque,
um pequeno auxílio do governo, ao Asylo entre outras razões, não há um plano
Agrícola Isabel, criado em outubro de regular seguido com perseverança. Dar-
1886, foram destinados 10:000$000 (dez lhes hábitos de trabalho e gosto pela

20
agricultura, fonte primeira da riqueza do enviariam a instituições como o Asylo
país, inculcando-lhes ao mesmo tempo agrícola Isabel para serem educadas.
os sólidos princípios da primeira educa-
O mais provável é que a questão das
ção, parece ser a tradução fiel do senti-
crianças nascidas livres de escravas foi
mento nacional. (Apud: Almeida, [1889]
1989, p. 247). equacionada concomitantemente ao pro-
blema das crianças desamparadas e uti-
Como se observa no documento, a lizada como retórica para a ação da As-
educação das crianças nascidas livres de sociação Protetora da Criança Desampa-
escravas estava no centro das preocupa- rada. Isso porque o verdadeiro desampa-
ções e era apresentada como um proble- ro dessas crianças encontrava-se na pró-
ma que precisava ser enfrentado com uma pria Lei do Ventre Livre, que as manteve
certa urgência. A circular questionava o na condição de “escravas” ao permitir que
fato de se recorrer à “generosidade” de os senhores se servissem dos seus tra-
particulares, alegando a necessidade de balhos até os 21 anos, como de fato acon-
um plano regular seguido com perseve- teceu com a maioria absoluta delas em
rança. Ou seja, questionava ações tidas todas as regiões do Império, inclusive na
como “filantrópicas” e lembrava a respon- província do Rio de Janeiro. A criação do
sabilidade do Estado no sentido de finan- Asylo Agrícola Isabel não encontrava jus-
ciar e tratar do problema da infância, da tificativa nas estatísticas relativas às cri-
qual a questão dos ingênuos era apresen- anças nascidas livres de escravas no Rio
tada como elemento integrante. O Esta- de Janeiro. Como vimos, elas se encon-
do deveria não só financiar como apoiar travam de posse dos senhores de suas
a execução de um plano educacional des- mães sendo, portanto, “amparadas” pela
tinado a criar nessas crianças o hábito e escravidão. O que justificava a criação
o gosto pelo trabalho na agricultura, “fonte dessa instituição era o problema das cri-
primeira da riqueza do país”. anças desamparadas oriundas de vários
No entanto, pelo menos em rela- estratos sociais da população livre do Rio
ção às crianças nascidas livres de es- de Janeiro. Esse sim, um problema de pro-
cravas, não é o que se vê se levarmos porções consideráveis e que passava a
em conta os relatórios dos ministros da fazer parte dos debates da época8.
Agricultura. De 1871 a 1884, apenas 113 Nesse sentido, o posicionamento as-
crianças foram entregues ao Estado e, sumido pelos dirigentes da Associação
destas, apenas 21 encontravam-se na Protetora da Criança Desamparada, an-
província do Rio de Janeiro, onde havia gariando fundos junto ao Ministério da
um total de 82.566 crianças nascidas Agricultura, oferece alguns indícios para
livres de escravas. que se possa compreender como a edu-
Tendo sido o Rio de Janeiro um dos cação dos ingênuos, progressivamente
últimos redutos do escravismo no Brasil apresentada durante todo período dos
(Costa, 1982), é possível imaginar que anos de 1870 como uma dimensão im-
os senhores que ficaram de posse das portante do processo de superação do tra-
82.545 crianças as utilizavam nos mais balho escravo, tornou-se, a partir da op-
variados serviços e que dificilmente as ção generalizada dos senhores de retê-

8
Ver Marcílio (1998)

21
las sob sua posse, um problema da infân- significativas dos auxílios financeiros con-
cia desamparada. Ao contrapormos a for- cedidos pelos cofres públicos, fizeram com
ma como a questão aparece na circular que essas instituições entrassem em cri-
de criação do Asylo Agrícola Isabel e nas se, passando a viver tempos difíceis que
estatísticas do Ministério da Agricultura contrariavam as expectativas positivas
sobre a Província do Rio de Janeiro, per- que acompanharam o seu surgimento, no
cebe-se que ela tornou-se uma retórica início dos anos de 1870. Elas não recebe-
que objetivava chamar a atenção para os ram as crianças nascidas livres e passa-
problemas da infância e para a responsa- ram a ter na infância desamparada seu
bilidade do Estado, pois este foi um dos público alvo.
principais gestores da Lei do Ventre Livre
Após 1879, a tendência era a de
e era o responsável legal pelas crianças
igualar o problema dos ingênuos e da
que não ficassem retidas nas mãos dos
infância desamparada. É o que sugere
senhores.
uma artigo com o título “Escravos Li-
A forma pela qual foi criado o Asylo vres”, publicado em um periódico cario-
Agrícola Isabel no Rio de Janeiro, onde a ca, O Echo Social:
questão da educação dos ingênuos não ... Sabemos que a lei de 28/09/71 man-
tem uma especificidade, mas é utilizada da que se prepare casas de educação
como um elemento retórico para caracte- para os ingênuos,... se os nossos fazen-
rização dos problemas relativos à infân- deiros tornaram-se suspeitos para edu-
cia, é, de certo modo, o ponto de chegada car os ingênuos.... decerto em piores ca-
das instituições que surgiram antes de sos estão para educar aqueles que são
1879. Se, por um lado, o Asylo Agrícola entregues pelo Juízo de Órfãos, com
Isabel nasce em 1886 equacionando o pena de serem agarrados pela polícia,
problema das crianças nascidas livres de caso fujam desta escravidão forçada.
escravas com a questão da infância de- Convença-se o público que a medida
samparada, por outro, as instituições que tomada sobre estes meninos é para su-
surgiram durante os anos de 1870, tra- prir as fazendas dos ‘senhores potenta-
tando a questão dos ingênuos como um dos’ dos braços da lavoura, sendo os
menores obrigados a trabalhar junto
problema específico e relativo à escravi-
com a turma de escravos sujeitos ao
dão, tiveram também na questão da in-
vergalho dos feitores (Apud: Martinez,
fância desamparada seu ponto de chega-
1997, p. 81).
da nos anos de 1880.
O fato apontado pelo jornal do Rio
De fato, após essa data, as institui-
de Janeiro, segundo o qual os senhores
ções que surgiram antes de 1879 come-
de escravos ambicionavam mais do que
çaram a ser tratadas de forma bastante
criar as crianças nascidas livres de es-
específica nos relatórios do Ministério da
cravas, buscando crianças órfãs para se-
Agricultura. A apologia em relação às
rem “educadas” em suas fazendas, de-
mesmas cede lugar a um discurso que
monstra que esses senhores descobriram
recorrentemente apontava a crise pela
na infância uma forma promissora de re-
qual elas passavam.
solver os problemas de escassez de mão-
A opção generalizada dos senhores de-obra. Mostra também que nesse con-
de reter as crianças e, consequentemente, texto a questão dos ingênuos foi iguala-
a perda ou a diminuição em proporções da ao problema da infância desampara-
22
da, e que esta, devido a procedimentos tando-os, em suma, como um bom pai
como a tutela, ficou sujeita a um tipo de trataria os seus filhos.
dominação muito próximo ao que era Esta regra deverá prevalecer na tutoria
vivenciado pelos ingênuos. e curadoria dos ingênuos menores, ór-
Outro aspecto que confirma a fusão fãos, e por isso aqui consigno, mandan-
da questão dos ingênuos com a das cri- do que seja intimado ao tutor para seu
anças desamparadas é o próprio destino fiel cumprimento. Ytú 11 de junho de
1888. (Apud Alaniz: 1997, p. 51).
das crianças que se encontravam na con-
dição de ingênuos em 1888, quando aca- Ao caírem no campo do direito co-
bou a escravidão. A maneira como essas mum, os ingênuos passaram a ser trata-
crianças. O parecer emitido nesse ano por dos como crianças pobres que deveriam
um juiz de órfãos da Comarca de Itu mos- permanecer sob a tutela de alguém que
tra a maneira como se encaminhou essa poderia explorá-las como trabalhadores9.
questão: Esse procedimento, no âmbito do direito
Tendo sido extinta a escravidão no Bra- comum, em relação à infância pobre, evi-
sil pelo Decr. N.º 3353 de 13 de Maio dencia o fato de que se permitia também
Ultimo, é manifesto que a obrigação que a exploração do trabalho das crianças que
estavam sujeitos os ingênuos, de pres- não vinham do cativeiro. Na perspectiva
tar serviços aos senhores dos respecti- da exploração do trabalho, os dois tipos
vos pais, segundo o disposto no art. 4º de condição da infância foram igualados,
da Lei n.º 3270 de 28 de 7bro. de 1885, uma vez que as crianças de ambas as ca-
e como por semelhante circunstância os tegorias foram utilizadas para suprir a
ditos ingênuos tenham caído no domí- falta de mão-de-obra que imperava nos
nio do direito comum, recomendo ao momentos finais da escravidão.
tutor nomeado, que crie e eduque os
seus pupilos, como pessoas livres, ob- A crítica à educação do escravo
servando os preceitos da Ord. L.º 1º Tit. durante o processo de abolição
88 e mais legislação em vigor, isto é, O fato de a educação não ter atingi-
pondo-o a aprender a ler e escrever,
do de forma significativa os ingênuos não
sendo possível, mandando ensinar-lhe
retira a importância da questão educaci-
oficio mecânico, ou prendas domésticas,
onal, tal como foi formulada na época.
conforme o sexo, por cuja habilidade
Trata-se de um período em que se mani-
possam futuramente adquirir os meios
festa uma consciência acerca da impor-
de subsistência, fazendo casar as do
sexo feminino e contratando-os a ga- tância de se modificar as práticas
nhar salário com pessoas suficientes, educativas que durante séculos caracte-
mediante aprovação destes Juízo, sob rizaram o escravismo. Em outras palavras,
condição de recolher trimensalmente na o reconhecimento da necessidade de ge-
Coletoria o produto do que perceberem, neralizar as práticas educacionais com
sob titulo d’emprestimo dado ao Gover- características modernas para os negros,
no, conforme as leis em vigor, á fim de isto é, submetê-los a uma educação com
formar seu pecúlio, que lhes possa pres- características escolares: “Os processos
tar utilidade, quando se emancipem, tra- de educação anteriores à escola assen-

9
Tudo indica que o parecer emitido pelo juiz da comarca de Itu referia-se aos ingênuos que não foram
reclamados por seus familiares.

23
tam essencialmente numa transmissão di- sição, ou antes, o reconhecimento de uma
reta ... estes processos decorrem em es- educação típica do escravismo e uma ou-
paços familiares, nas oficinas e locais de tra imprescindível à constituição de uma
trabalho, nas praças e lugares públicos, sociedade livre, podemos empreender -
nas festas, nos jogos, nos atos de culto e como ponto de partida - uma análise do
sob uma ação pedagógica, ora mais, ora livro As Vítimas-algozes: quadros da es-
menos organizada e formal. Deste modo cravidão, publicado em 1869 pelo escri-
os pais, ou quem os substitui, os eclesi- tor Joaquim Manoel de Macedo. Nessa
ásticos, os órgãos de poder, não deixam obra, educação e escravidão são relacio-
de desempenhar importantes funções nados, com a intenção de compor uma
educativas ... sucedâneo da família, al- crítica visando demonstrar a necessida-
ternativa à oficina e a corporação, o mo- de se colocar fim ao trabalho escravo10 .
vimento de escolarização desenvolve-se
Para Joaquim Manoel de Macedo, os
no período moderno, sob uma constante
escravos eram vítimas de uma institui-
tensão entre a clericalização e a
ção injusta e cruel mas, à medida que
estatização da sociedade.” (Magalhães,
suas vidas transcorriam em meio à es-
1996, p. 11-12).
cravidão, tornavam-se mais cruéis e in-
Poderíamos dizer que essa perspec- justos que a instituição que os formara,
tiva apontada por Justino Magalhães opõe tornando-se assim algozes. Frente a esse
duas concepções de educação, uma, tra- dilema — do qual deduz o contraditório
dicional e, outra, moderna. A educação título da obra: As vítimas-algozes — a
tradicional se dá no âmbito do mundo pri- educação é tomada como aspecto central
vado e pela ação quase que exclusiva do da argumentação pois, uma vez educa-
grupo familiar; a educação moderna po- dos no regime da escravidão, os negros
deria ser caracterizada pela escolarização não só se tornavam criaturas extrema-
e ligação com o espaço público, pois é mente perigosas como corrompiam
desenvolvida a partir da influência cres- gradativamente toda a sociedade.
cente do Estado no espaço social.
Ao se referir ao processo por meio
Durante o processo de abolição do do qual o personagem de uma de suas
trabalho escravo no Brasil, passa-se a histórias foi educado, vai progressivamen-
reconhecer que não se poderia deixar os te construindo o perfil do escravo como
negros escravizados e seus descenden- uma ameaça à sociedade. Trata-se de uma
tes serem educados exclusivamente a criança escrava cujo nome é o título da
partir do mundo privado. Nesse sentido é própria história: Simeão – o crioulo11 . A
que a escolarização é recorrentemente educação desse escravo é descrita
colocada em destaque. detalhadamente e nessa descrição eviden-
Para captar esse movimento de tran- cia-se uma crítica aos procedimentos edu-
10
Joaquim Manoel de Macedo, além de escritor, foi professor de história do Colégio Pedro II e
autor de livros didáticos sobre a história do Brasil. Escreveu o livro As Vítimas-algozes: quadros
da escravidão com o propósito claro de defender a libertação do ventre.
11
O livro é composto por três histórias: Simeão – o crioulo; Pai-Raiol – o feiticeiro; e Lucinda – a
mucama. Dessas três histórias, somente a de Pai-Raiol não tomamos para a análise acerca da
questão educacional, pois seu personagem principal é um africano que chegou ao Brasil já em
idade adulta, enquanto que as outras histórias se referem a crianças que nasceram no Brasil na
condição de escravos.
24
cacionais realizados a partir do mundo todos os deboches, e se fez sócio ativo
privado. O primeiro local colocado em do jogo aladroado, da embriaguez
destaque é a cozinha: ignóbil e da luxúria mais torpe. Simeão
foi desde então perfeito escravo. (Idem,
A cozinha foi sempre adiantando a sua
p. 20).
obra: quando conseguiram convencer,
compenetrar o crioulinho da baixeza, Simeão atingiu a perfeita condição
da miséria da sua condição, as escra- de escravo a partir de um conjunto de
vas passaram a preparar nele o inimi- vivências e ritos que transcorriam no
go dos seus amantes protetores: [en- mundo privado, onde convivia com escra-
sinaram-no] a espiar a senhora, a vos e senhores, ambos tomando parte na
mentir-lhe, atraiçoá-la, ouvindo as sua formação. A partir disso transformou-
conversas para contar na cozinha; des- se naquilo que, para Joaquim Manoel de
moralizaram-o com as torpezas da lin- Macedo, caracterizava o escravo: vítimas
guagem mais indecente, com os qua- que se tornavam tão desmoralizadas e
dros vivos de gozos esquálidos, com o corruptas que acabavam sendo os algozes
exemplo freqüente do furto e da em-
de seus senhores.
briaguez, e com a lição (grifos meus)
insistente do ódio concentrado aos se- Foi exatamente esse o destino de
nhores (Macedo, 1988 [1869], p. 18). Simeão ao final da trama. Seus senhores
lhe dariam a liberdade como presente no
Na cozinha o pequeno Simeão tor-
dia em que completaria 21 anos, mas, por
nou-se um escravo desmoralizado. Em
ódio e rancor, o jovem escravo não espe-
contato com as escravas, aprendeu a
rou pelo presente de aniversário e, de for-
agir contra os seus senhores. Mas, a
ma atroz, assassinou todos os membros
cozinha contou com a sala na conclusão
da família.
dessa desmoralização plena do peque-
no escravo: O fato de Joaquim Manoel de Macedo
ter escolhido os 21 anos de idade para
...e a sala ajudou sem pensar, sem que-
fazer o escravo assassinar a família de
rer, a obra da cozinha. Domingos Cae-
seus senhores é uma referência explícita
tano e Angélica [os senhores] não des-
aos debates relativos à libertação do ven-
tinavam Simeão para trabalhador de en-
tre. O autor julgava com isso estar cha-
xada, e não o fizeram aprender ofício
mando a atenção para o fato de que se as
algum ... auxiliaram as depravações da
cozinha que perverteram o vadio da fa-
crianças que nascessem livres de escra-
zenda (Idem, p. 19). vas não fossem submetidas a novos pro-
cedimentos educacionais, entrariam para
Se a educação de Simeão transcorre a vida adulta como uma ameaça à socie-
no espaço da sala e da cozinha durante a dade. Nessa história, portanto, o autor
infância, na adolescência, um outro es- não se limita a criticar a educação do
paço consolidou plenamente o seu pro- escravo por ela transcorrer no domínio
cesso de formação: exclusivo do espaço privado, mas ace-
A venda rematou a obra começada pela na para a necessidade de se instituir
cozinha e auxiliada pela sala. E convi- uma nova concepção educacional, que
vendo ali com escravos mais brutais e deveria ser complementar ao processo
corruptos, e com vadios, turbulentos e de abolição do trabalho escravo. A li-
viciosos das vizinhanças entregou-se a bertação do ventre teria que ser associ-

25
ada a mecanismos de preparação para a 1985 [1889], p. 69, grifos do autor).
entrada desses novos sujeitos na esfe- Essas palavras foram escritas sob o
ra social, como seres livres. calor das expectativas trazidas pela pro-
Liberdade e educação são colocadas clamação da República e, nesse sentido,
em destaque pela crítica de Joaquim esse teórico da educação nacional tinha
Manoel de Macedo. Essa educação, po- esperanças de que o novo governo pro-
rém, deveria transcorrer fora do espaço movesse um amplo processo de interven-
privado, onde imperava um mundo mar- ção na educação. Para ele, a educação
cado pelas influências da escravidão. deveria se tornar pública e combater os
vícios oriundos de um mundo marcado
Essa idéia é reafirmada em outra
pela escravidão, aliás, como defendia
história do livro citado: trata-se da his-
Joaquim Manoel de Macedo na história
tória de Lucinda – a mucama. Ela foi
de Lucinda.
construída nos mesmos moldes da de
Simeão – o crioulo, porém, a protago- A pequena escrava foi desde cedo
nista é uma menina escravizada e é a educada para o ofício de mucama e, aos
educação das escravas que passa a ser doze anos, foi dada à filha de um rico fa-
colocada em questão. zendeiro, como presente de aniversário.

Na história de Lucinda a crítica à Sua educação é descrita em deta-


educação no espaço privado é ainda mais lhes, evidenciando-se a crítica à forma
contundente. Utilizando-se da persona- como essas criaturas eram preparadas
gem, uma mucama, o autor critica a edu- para entrarem no tipo de convívio social
cação recebida pelas escravas e também que caracterizava sua função de mucama:
as influências que essas criaturas irradi- Lucinda fôra aos sete anos mandada
avam, a partir do lar, para toda socieda- para a cidade do Rio de Janeiro, e ali
de. A história de Joaquim Manoel de entregue a uma senhora viúva que era
Macedo dá conteúdo à afirmação que, em professora particular de instrução pri-
1889 (trinta anos depois), fez o educador mária, e mestra ou preparadora de
José Veríssimo sobre as mucamas e sua mucamas.
influência na formação do caráter do povo A pobre, mas laboriosa viúva, ensinava
brasileiro: sem paga a ler e escrever mal as meni-
nas pobres, e a barato preço o mister
As meninas, as moças, as senhoras ti-
de mucama a escravas; tirava porém de
nham para os mesmos misteres as
umas e outras grande vantagem, por-
mucamas, em geral, crioulas e mulatas.
que sendo modista, as meninas e as es-
Nunca se notou bastante a depravada
cravas eram costureiras gratuitas
influência deste peculiar tipo brasileiro,
(Macedo, 1988 [1869], p. 166).
a mulata, no amolecimento de nosso ca-
ráter ... na família é a confidente da A mestra responsável pela prepara-
sinhá-moça e a amante do nhonhô. Gra- ção de Lucinda dedicava-se também ao
ças principalmente a ela, aos quatorze ensino da leitura e da escrita, porém es-
anos o amor físico não tem segredos sas habilidades eram transmitidas somen-
para o brasileiro, iniciado desde a idade te às meninas pobres. Joaquim Manoel de
mais tenra na atmosfera excitante que Macedo não deixa de desqualificar a ma-
lhe fazem em torno, dando-lhe banho, neira como esse ensino era realizado pela
vestindo-o, deitando-o. (Veríssimo, “laboriosa viúva”, pois ela, não sendo qua-

26
lificada para o exercício dessa função, não mestra e tornou-se à casa de seu se-
estava apta a substituir a escola como nhor para passar logo ao poder de Cân-
espaço adequado para o efetivo ensino dida [sua senhora], trazendo as pren-
de tais habilidades. Ele indica que a lei- das que presunçosa ostentava, e
tura e a escrita, ensinados sem “paga”, dissimuladamente escondidos os conhe-
eram na verdade mais um dos atrativos cimentos e o noviciado dos vícios e das
para que a “mestra” obtivesse mão-de- perversões da escravidão: suas irmãs, as
escravas com quem convivera, algumas
obra gratuita no seu ofício de modista.
das quais mais velhas que ela tinham-lhe
O historiador Jean Hébrard (1990, p. dado lições (grifo meu) de sua corrupção,
168) descreve o processo de estabeleci- de seus costumes licenciosos, e a
mento da leitura e da escrita como con- inoculação da imoralidade, que a fizera
teúdos centrais da educação moderna e indigna de se aproximar de uma senhora
afirma que: “Aprender a ler-escrever-con- honesta, quanto mais de uma inocente
tar supõe ao menos um tempo e um es- menina (Macedo, 1988 [1869], p. 166).
paço específico com freqüência uma pes- Depois de cinco anos de aprendiza-
soa em que se reconhece a capacidade do, Lucinda, com apenas doze anos, dois
de instruir e a quem se remunera, em fim a mais que sua senhora, estava pronta
os instrumentos sem os quais a transmis- para cumprir sua sina de vítima-algoz.
são não poderia ter lugar. Se a escola não Antes que completasse vinte e um anos,
é sempre o local dessa mediação, é por- a família que passou a contar com seus
que certos grupos sociais, introduzidos serviços foi completamente destruída,
desde muitas gerações na cultura da es- sendo sua jovem senhora a principal víti-
crita mantêm estas primeiras aprendiza- ma. Lucinda, gozando do contato íntimo
gens no domínio familiar.” (grifos meus). proporcionado pela condição de mucama,
A abordagem de Joaquim Manoel de corrompeu totalmente sua senhora, trans-
Macedo corrobora a posição de Hébrard formando-a de “anjo cândido” em moça
ao registrar que os ensinamentos da lei- dissimulada e namoradeira. Os namora-
tura e da escrita não estavam a cargo de dos de Cândida (a senhora) eram, por
um profissional capacitado para a reali- sua vez, seduzidos por Lucinda que,
zação de tais tarefas (professores) e, como diria José Veríssimo, contamina-
tampouco, eram transmitidos em um es- va a todos tendo em vista a sua condi-
paço específico (escola). ção de mulata licenciosa.
Mas voltemos a Lucinda. Em relação Nessa história, a trama atinge o pon-
aos aspectos morais, fica claro que a edu- to central da argumentação quando Joa-
cação da escrava que se tornaria mucama quim Manoel de Macedo estabelece um
é, nessa dimensão, ainda mais deficiente vinculo direto entre escravidão e educa-
e perigosa: ção. Em determinado momento em que
Exigente, rígida, principalmente com as dois personagens discutem as influênci-
escravas, quando se tratava de ensino as que os escravos levavam para dentro
e de trabalho, zelava apenas a da casa dos senhores, um deles, favorá-
moralidade das meninas, limitando-se vel à emancipação, aborda a questão da
a impedir àquelas (escravas) de sair à seguinte forma:
rua ... No fim de cinco anos Lucinda, que Escravos? Quem os educa? ... São to-
era inteligente e habilidosa, deixou a dos abandonados à perversão dos cos-

27
tumes: julga-se pai o que lhes dá pão, dão. Mas, à medida que se começava a
pano, e paciência de sobra; mas a alma vislumbrar o seu fim, essa ignorância e
e o coração desses desgraçados? Se lhes esse embrutecimento não mais seriam ad-
iluminassem as almas, adeus escravi- mitidos para aqueles que se tornariam os
dão (Idem, p. 264). futuros cidadãos do Império. Os escravos
De acordo com a fala desse perso- e seus descendentes não poderiam tra-
nagem, na sociedade dividida entre se- zer para o espaço social atributos somente
nhores e escravos havia um abismo cheio compatíveis com uma sociedade
de ódio e esse ódio era proveniente dos escravista.
costumes gerados pelo próprio Não bastava acabar com o trabalho
escravismo. Combater tal situação den- servil, fazia-se necessário constituir uma
tro da escravidão era impossível, pois não nova forma de educar esses novos sujei-
podiam os escravos receberem uma edu- tos, que adentrariam o espaço social na
cação que lhes iluminasse o coração e a condição de seres livres. O que Perdigão
alma, caso contrário, “adeus escravidão”. Malheiros e Joaquim Manoel de Macedo
Era no abandono dos costumes que se colocam em destaque era que a educa-
educava os escravos, o que os tornava ção não estivesse exclusivamente a car-
volúveis e perversos. go do mundo privado e não formasse pes-
Na perspectiva de Joaquim Manoel soas ignorantes e embrutecidas.
de Macedo, portanto, a escravidão deve- Enfatizam a necessidade de uma edu-
ria ser superada e as práticas educacio- cação dirigida pelo Estado, com vistas a
nais que caracterizavam esse sistema preparar os novos cidadãos que, com o
deveriam ser combatidas. Para tal, fazia- fim do trabalho escravo, passariam a
se necessária a constituição de um espa- existir no Império. Portanto, desenha-
ço adequado onde as crianças pudessem se uma nova concepção de educação,
ser educadas para a liberdade, enfim, compreendida como um instrumento
onde aprendessem uma profissão e re- paralelo ao próprio processo de liberta-
cebessem uma preparação moral para se ção da escravidão.
tornarem úteis a si e à nação.
Abolição: de uma educação tradi-
De forma muito semelhante pensa- cional a uma educação moderna
va Perdigão Malheiros:
Durante o processo de abolição do
Por outro lado, a educação é coisa de
trabalho escravo começa a ser desenha-
que pouco ou nada se cuida em rela-
ção ao escravo, sobretudo a educação da uma nova concepção educacional, re-
moral e religiosa ... o abatimento, a putada como indispensável no proces-
ignorância, o embrutecimento, su- so de transição para a sociedade livre.
põem-se e reputam-se dessa arte mei- Importa, pois, investigar essa novidade.
os úteis e eficazes para conter os es- O primeiro fato que chama a aten-
cravos: outro grave e fatal corolário ção é a importância que a instrução ad-
dessa perniciosa instituição. quiriu, pois apenas algumas décadas an-
(Malheiros, 1988 [1867], p. 198).
tes dos debates relativos à libertação do
Essa educação para o embruteci- ventre esse tipo de prática educativa fora
mento era tida como um pressuposto bá- categoricamente negada aos escravos e
sico para o bom andamento da escravi- considerada uma ameaça à estabilidade

28
da sociedade escravista. Isso, aliás, não senhores se propusessem a arcar com os
era uma característica da escravidão no custos, a educação com características
Brasil, mas da escravidão tal como se or- escolares era negada aos escravos. Isso
ganizou no mundo moderno, pois o mes- fica ainda mais evidente se observarmos
mo fato ocorreu em outros países como o estabelecido na reforma do ensino de
mostra a análise de Genovese (1988, p. 1837 nesta mesma província: “Eram proi-
293) sobre os Estados Unidos: “A com- bidos de freqüentar a escola: os que so-
plexidade das atitudes dos senhores é fressem de moléstias contagiosas e os
perceptível em relatos como o de Elige escravos e os pretos africanos, ainda que
Davison, um ex-escravo da Virgínia. A sin- livres e libertos.” (Idem, p. 195)
ceridade do sentimento religioso de seu A exclusão dos escravos, pretos afri-
patrão revelava-se no fato de ele ter ig- canos e portadores de doenças contagio-
norado a lei e ensinado seus escravos a sas do espaço escolar pode ser entendida
lerem a Bíblia; não o impediu, contudo, sob dois prismas: primeiro, pelo perigo
de vender negros e separar famílias.” que uma educação voltada para o desen-
Nos Estados Unidos, portanto, con- volvimento das faculdades intelectuais
teúdos como a leitura e a escrita, típicos poderia representar para a estabilidade
da educação escolar, também eram ne- da sociedade escravista; e, segundo, pela
gados aos escravos. No caso acima cita- influência negativa que os escravos po-
do, o senhor, por motivos religiosos, ig- deriam exercer nos estabelecimentos de
norou a proibição e ensinou o escravo a ensino.
ler. Muito provavelmente, a sua intenção A primeira delas baseia-se em uma
era de que ele tivesse acesso à Bíblia e concepção de dominação que entendia
participasse efetivamente dos cultos re- que os escravos não poderiam ter acesso
ligiosos para, assim, se inteirar do mun- a práticas como a leitura e a escrita e,
do da cristandade. muito menos, desenvolver suas faculda-
No Brasil, vigorava a mesma deter- des intelectuais. Tais atividades facilita-
minação legal e, mesmo quando a leitura riam sua resistência e favoreceriam a or-
e escrita começaram a ser reconhecidas ganização de rebeliões que colocariam em
como elementos que deveriam ser difun- perigo uma sociedade onde grande parte
didos na sociedade como um todo, foram da população era composta por escravos.
negadas aos escravos. É o que mostra re- Essa posição pode ser evidenciada
latório de 1836 do presidente da pro- na crítica de Malheiros (1988 [1869], p.
víncia do Rio de Janeiro, onde constam 198):
critérios para a criação de uma escola ... ele [o escravo] é, por via de regra,
voltada para o atendimento de crianças reputado ainda mero trabalhador ... em
órfãs, transcrito por Moacir (1939, p. diversos tempos, e mesmo em outros
194): “A administração seria cometida a países assim tem sido, por que receiam
um pedagogo encarregado ao mesmo tem- que a instrução, a ilustração promova
po de ensinar a ler, escrever e contar as nessa classe o desejo (aliás natural) de
quatro operações, os escravos não pode- emancipar-se e conseguintemente dê
rão ser admitidos ainda que seus senho- ocasião a desordens, ponha em perigo
res se queiram obrigar pela despesa.” a sociedade.
Portanto, em 1836, mesmo que os A prática da leitura e da escrita, como
29
se observa, era considerada perigosa e corruptores do povo brasileiro e procurou
ameaçadora, não sendo permitida sua di- minimizar sua influência na educação das
fusão entre os escravos. futuras princesas do Império.
É uma perspectiva em que a educa- O Imperador assumiu com extremo
ção é vista como fator de perturbação e zelo suas funções paternas, chegando
ameaça à ordem. Por esse motivo, man- mesmo a elaborar um regulamento com-
tinham-se as práticas educacionais vol- posto de 36 artigos, cujo objetivo era cer-
tadas para a formação dos escravos nos car suas filhas da educação que convinha
limites estritos daquilo que a função ser- à nobreza nos trópicos. Entre esses, cons-
vil exigia para a produtividade e a segu- ta no de número 14 a seguinte recomen-
rança da sociedade escravista. dação às criadas: “...não consentirão que
as Meninas conversem com pretos, ou
A segunda dimensão da exclusão dos
pretas, nem que brinquem com
escravos dos estabelecimentos educaci-
molequinhos e cuidarão muito especial-
onais, tal como foi concebida na reforma
mente que as Meninas não os vejam nus.”
do ensino de 1837, na província do Rio
(Apud: Muad, 1999, p. 164)
de Janeiro, baseia-se na noção de contá-
gio. Como vimos, os escravos e africanos Essa determinação revela que o re-
livres não poderiam freqüentar escolas, gulamento não só estava atento a ques-
assim como também os portadores de tões relativas à sexualidade, ao estabe-
doenças contagiosas. lecer que as princesas não deveriam se
misturar aos “molequinhos”, especialmen-
O que está implícito nessa forma de
te nus, como também, as proibia de con-
exclusão é a idéia de que ambos conta-
versarem com “pretos” e “pretas”. O que
minariam o corpo social: a admissão de
justifica essa determinação é a mesma
portadores de doenças contagiosas por
noção de contágio que proibia a inserção
parte dos estabelecimentos de ensino fa-
dos escravos e africanos livres no espaço
ria dessas instituições centros de prolife-
escolar. Ou seja, evitar que as influênci-
ração de moléstias que, a partir daí, se
as maléficas atribuídas à raça negra fos-
irradiariam para o espaço social com mais
sem assimiladas pela convivência cotidi-
facilidade. O contato com escravos e afri-
ana entre negros e brancos.
canos também poderia contaminar, sobre-
tudo as crianças, com aspectos de uma A não difusão de habilidades como a
cultura primitiva que, de acordo com a leitura e escrita, o combate às influênci-
mentalidade da época, remontava à Áfri- as da raça negra na sociedade e a proibi-
ca. Nesse sentido, a interação entre es- ção aos escravos de terem acesso a esta-
cravos e pessoas livres nos estabeleci- belecimentos de ensino, constituíram-se
mentos de ensino, reafirmaria, ou “lega- importantes mecanismos de controle para
lizaria”, esse contato, visto como preju- uma sociedade que contava com grande
dicial à formação da boa sociedade. número de trabalhadores escravizados.
Uma tentativa de evitar essa influ- Em apenas três décadas, porém,
ência pode ser percebida na atitude do houve uma súbita mudança de perspecti-
Imperador para com a educação de suas va. Já nos anos mais próximos a 1871, a
filhas. D. Pedro II compartilhava do pen- educação com características escolares
samento que via os negros como deixou de ser uma ameaça e passou a

30
ser considerada uma necessidade indis- como uma forma de construção da pró-
pensável para o bom andamento da soci- pria modernidade.
edade, o que representa uma inversão de
Esse processo de intervenção do Es-
posições em um curto período de tempo.
tado no espaço social é denominado por
O processo de abolição do trabalho Justino Magalhães (1996, p.12) como uma
escravo, mais especificamente as discus- estatização da sociedade: “É com a trans-
sões relativas à libertação do ventre, mar- formação histórica que põe fim ao Antigo
cam o surgimento de uma percepção acer- Regime que a escola tende a converter-
ca do fato de que a educação com carac- se não apenas num fator de estatização
terísticas modernas deveria ser estendi- da sociedade, como seu principal meio.
da aos negros. Essa inversão e esse re- Tornando-se único e verticalizante, o pro-
conhecimento da educação escolar como cesso de escolarização envolve, por ou-
um elemento útil na transição para o tra- tro lado, uma redução do processo
balho livre tinham como referência o novo educativo à dimensão instrucional.”
modelo de sociedade que se pretendia
Na perspectiva apontada por Maga-
construir.
lhães, a escolarização não é apenas uma
É uma percepção que está intima- das instâncias do mundo moderno, mas
mente associada à idéia de se preparar um dos elementos implícitos à sua pró-
esses indivíduos para a liberdade que se pria construção. Parte desta, ocorre pela
aproximava. Essa preparação deveria es- interferência do poder público na educa-
tar associada a um conjunto de mudan- ção proveniente do mundo privado. Nes-
ças na educação que, nesse contexto, as- sa perspectiva, a escola é um dos locais
sumiria as características necessárias à onde uma nova forma de sociabilidade
formação de pessoas que viveriam em começa ser veiculada e difundida por todo
uma sociedade livre. o espaço social. Essa sociabilidade impõe
Quando utilizamos o conceito de edu- determinados conteúdos e disciplinas que
cação tradicional para abordar o proces- não podem ser dissociados da moder-
so de formação dos escravos, fizemos re- nidade, como por exemplo, a racionaliza-
ferência à educação moderna e apresen- ção do social, o combate a uma tradição
tamos como sua principal característica oral, tendo em vista a generalização da
a escolarização. Mas esse tipo de educa- escrita e da leitura.
ção, que foi gradativamente sendo No que se refere à educação dos es-
construída e privilegiada pelo mundo cravos no mundo privado, tivemos a opor-
moderno, comporta ainda alguns outros tunidade de ver, nas obras de Perdigão
aspectos que evidenciam sua diferença Malheiros e Joaquim Manoel de Macedo,
em relação à educação tradicional. uma crítica à concepção de que esse tipo
A primeira diferença é que, ao con- de prática educativa constituiria uma
trário da educação centrada no espaço ameaça. A estratégia desses autores re-
privado, a educação moderna ocorre no presentou uma tentativa de convocar o
espaço público. Trata-se de um conjunto Estado a intervir na educação dos escra-
de procedimentos selecionados, ou san- vos que, com a libertação do ventre, ine-
cionados pelo Estado, que passam a ser vitavelmente entrariam para o espaço
impostos na educação das novas gerações social na condição de seres livres. Essa

31
posição está expressa nas palavras de um cação aprendizagem e formação fazem
dos participante do Congresso Agrícola, parte do processo de socialização que se
realizado em 1878 no Rio de Janeiro: desenvolve nos mesmos espaços e no seio
Para que tão momentosa necessidade da mesma comunidade em que se decor-
seja satisfeita, será preciso que o Esta- rerá a vida adulta, o modelo escolar in-
do se encarregue da instrução primaria troduz uma terceira instância no proces-
e secundaria, ... o Estado deve abrir so educativo. O modelo escolar não ape-
escolas primarias em todas as fregue- nas rompe com a relação direta entre o
sias, capelas, pequenos povoados, processo de informação/aprendizagem
onde ainda não existam, especialmen- (instrução) e o processo de formação, pro-
te escolas praticas especiais de agri- porcionando uma autonomização do pri-
cultura, entre estas algumas industri- meiro deles, como envolve uma diversi-
ais auxiliares da agricultura, para ór- ficação dos espaços, uma diferenciação e
fãos e para os ingênuos entregues ao uma especialização de agentes
governo, onde estes desvalidos, a par educativos, uma profunda alteração na
de um bom ensino elementar, teórico relação pedagógica, pois, que na oficina
e pratico, recebam a educação santa
e no trabalho os aprendizes se sociali-
do trabalho, e que devem ser distribu-
zam de forma hierárquica, enquanto na
ídas pelas províncias com relativa
escola se implementam estratégias de so-
igualdade, ao alcance da grande lavou-
cialização horizontal.”
ra, para lhe fornecerem braços, e em
lugares d’onde seja fácil a exportação, Portanto, à medida que a educação
para servirem de núcleo á colonização não ocorre exclusivamente no espaço pri-
estrangeira. (Congresso Agrícola, vado, a aprendizagem deixa de acontecer
[1878] 1988, p. 55; grifos do autor). por meio da convivência ou, como diria
A partir desse ponto de vista o espa- Justino Magalhães (1996), “pela impreg-
ço privado perde a sua supremacia como nação proporcionada pelo cotidiano”. Sur-
elemento responsável pela educação e o ge um espaço específico para essa ativi-
Estado é chamado a educar o povo de for- dade, a escola, onde são desenvolvidos
ma universal, ou seja, abrangendo todas alguns aportes que passam a ser vitais
as províncias e todos os grupos sociais, no processo educativo: uma especializa-
inclusive os ingênuos, com vistas a pro- ção de agentes voltados exclusivamente
duzir os trabalhadores necessários à so- para a educação e alterações na relação
ciedade livre. pedagógica.
No contexto do século XIX, admitir a Esses elementos apontam para
educação como uma necessidade a ser uma mudança significativa no processo
assumida pelo Estado era colocar em des- educativo e é exatamente esse tipo de
taque uma concepção moderna de edu- educação que passou a ser preconizada
cação que, desde o século XVII já vigora- no processo de abolição do trabalho es-
va para as camadas populares no conti- cravo. Isso tanto no que se refere às
nente europeu. Para Justino Magalhães propostas relativas à libertação do ven-
(1996, p. 12) esse tipo de educação pos- tre, como também no que se refere às
sui algumas características que a distan- práticas desenvolvidas pelo Ministério da
ciam muito da educação tradicional: “En- Agricultura que, em última instância, de-
quanto as estruturas tradicionais de edu- marcam uma intenção do Estado para

32
com a educação dos escravos e seus des- dade, escravidão e educação, tentativa
cendentes. que se expressa no que chamamos liber-
dade geracional, onde as novas gerações
No que diz respeito às propostas,
nascidas de escravas tornavam-se livres
até mesmo os adversários do projeto
e deveriam ser gradativamente
para a libertação do ventre estavam
introduzidas no espaço social. A partir
conscientes da importância de se intro-
dessa determinação tentou-se a concilia-
duzir mudanças na educação dos escra-
ção de uma série de interesses, desta-
vos. O deputado e escritor José de
cando-se o fato de que as crianças pode-
Alencar pode ser tomado como um re-
riam ser exploradas como trabalhadores.
presentante dessa postura pois, apesar
Mas, ao mesmo tempo, foi admitida a ne-
de ser um adversário do projeto para li-
cessidade de se estabelecer uma nova
bertação do ventre, reconhecia as im-
forma de educação, que as preparasse
plicações da educação no processo de
para uma sociedade organizada com base
libertação dos escravos:
no trabalho livre.
... e como libertar o cativo antes de
educá-lo? Não senhores; é preciso es- Já tivemos a oportunidade de cons-
clarecer a inteligência embotada elevar tatar que a maioria absoluta das crianças
a consciência humilhada para que um beneficiadas pela Lei do Ventre Livre fo-
dia, no momento de conceder-lhes a li- ram educadas nos mesmo padrões do
berdade, possamos dizer: - vós sois escravismo, pois um número insignifican-
homens, sois cidadãos. Nós vos remi- te foi entregue ao Estado. Mas, vimos tam-
mos não só do cativeiro, como da igno- bém que surgiram algumas instituições
rância, do vício, da miséria, da que pretendiam educá-las e é exatamen-
animalidade, em que jazeis!. (Câmara te nessas instituições que encontramos
dos Deputados, 1874, p. 27). as primeiras práticas educacionais com
Esse posicionamento, a despeito de características modernas aplicadas aos
estabelecer uma relação entre educação negros no Brasil.
e cidadania, tem uma dimensão retórica Essas instituições colocaram em
inegável: a educação é tratada como o destaque os principais elementos que
principal instrumento de emancipação dos caracterizam a educação moderna, tan-
escravos. Torna-se, assim, o motivo pelo to no que se refere à intervenção do
qual não se poderia libertá-los, pois es- Estado, pois foi ele que financiou e fo-
ses deveriam ser educados de forma con- mentou o seu surgimento, como também
veniente antes de se tornarem livres. Na no que se refere às outras característi-
verdade, trata-se de uma posição alta- cas, como o uso de agentes educativos e
mente questionável, pois se a educação de estratégias pedagógicas que conferi-
deve operar a transição da escravidão à am uma certa especificidade a estas prá-
cidadania, como poderia transcorrer essa ticas educacionais.
educação em meio à própria escravidão?
Considerações finais
A Lei do Ventre Livre deve ser consi-
derada como uma tentativa de A educação foi um dos elementos
enfrentamento da difícil questão levan- levados em conta durante o processo de
tada acima. Por meio da libertação do ven- abolição do trabalho escravo, gerando
tre tentou-se uma conciliação entre liber- debates e até mesmo a constituição do

33
que poderíamos chamar uma política pú- dação Casa de Rui Barbosa (edição fac-
blica voltada para a educação dos negros. similar), 1988.
Porém, devido aos interesses escravistas
CONTRATO entre o Ministério da Agricul-
predominantes no Império, essa política
tura, Comercio e Obras Publicas e o
não teve impacto estrutural no modelo de
Agrônomo Francisco Parentes para fun-
abolição que terminou por se consolidar
dação de um estabelecimento rural na
em 1888.
província do Piauí, compreendendo as
Nesse sentido, a análise que reali- fazendas nacionais pertencentes ao
zamos confirma o que é sabido acerca da departamento de Nazareth. In: MINIS-
abolição da escravidão no Brasil, ou seja, TÉRIO DA AGRICULTURA. Relatório
seu caráter excludente, sobretudo no que apresentado á Assembléia Geral
diz respeito ao tratamento dispensado aos Legislativa na terceira sessão da decima
negros escravizados. Mas, por outro lado, quinta legislatura pelo Ministro e Se-
a análise desse processo na perspectiva cretário de Estado dos Negócios da Agri-
da questão educacional revela que havia cultura, Comercio e Obras Publicas,
uma consciência acerca da importância José Fernandes da Costa Pereira Júnior.
da educação como elemento de inclusão Rio de Janeiro : Typographia America-
social. O que nos leva a crer que, entre na, 1874
essa consciência e a atitude de não tor-
COSTA, Emilia Viotti da. Abolição. São
nar a educação um bem acessível ao in-
Paulo : Global, 1882.
divíduos oriundos do cativeiro, o que ver-
dadeiramente se construiu foi a determi- FONSECA, Marcus V. A educação dos ne-
nação de incluir os ex-escravos e seus gros : uma nova face do processo de
descendentes de forma absolutamente abolição do trabalho escravo no Brasil.
marginal na sociedade organizada a par- Educação em Revista, Belo Horizonte,
tir do trabalho livre. set. 2000. (editada por Faculdade de
Educação da Universidade Federal de
Bibliografia
Minas Gerais, número especial: Edu-
ALANIZ, Anna Gicellece Garcia. Ingênu- cação e relações étnico-raciais).
os e libertos : estratégias de sobrevi-
FONSECA, Marcus V. As primeiras práti-
vência familiar em épocas de transi-
cas educacionais com características
ção : 1871-1895. Campinas : CMU-
modernas em relação aos negros no
Unicamp, 1997.
Brasil. São Paulo : ANPED, 2000. (Re-
ALMEIDA, José Ricardo Pires de. História latório de pesquisa).
da instrução pública no Brasil, 1500 a
FONSECA, Marcus V. Concepções e práti-
1889. São Paulo: EDUC ; Brasília :
ca em relação à educação dos negros
Inep-MEC, [1889], 1989.
no processo de abolição do trabalho
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Elemento ser- escravo no Brasil (1867-1889). Belo
vil : parecer e projeto de lei apresentado Horizonte : Dissertação de Mestrado
à Câmara dos Deputados em 1870. Rio Universidade Federal de Minas Gerais
de Janeiro : Typographia Nacional, 1874 – Faculdade de Educação, 2000.
CONGRESSO AGRÍCOLA, Rio de Janeiro, GENOVESE, Eugene D. A terra prometida
[1878]. Anais... Rio de Janeiro : Fun- : o mundo que os escravos criaram. Rio

34
de Janeiro ; Brasília : Paz e Terra ; Lins Vieira Cansanção de Sinimbu. Rio
CNPQ, 1988. de Janeiro : Imprensa Industrial de
João Ferreira Dias, 1878.
HÉBRARD, Jean. A escolarização dos sa-
beres elementares na época moderna. MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. Relató-
Revista Teoria e Educação, Porto Ale- rio apresentado á Assembléia Geral
gre, n. 2, 1990. Legislativa na terceira sessão da decima
legislatura pelo Ministro e Secretario de
MACEDO, Joaquim Manoel de. As vítimas-
Estado dos Negócios da Agricultura,
algozes : quadros da escravidão. Rio
Comercio e Obras Publicas. Rio de Ja-
de Janeiro : Fundação Casa de Rui Bar-
neiro : Typographia da Gazeta Jurídi-
bosa ; Spicione, [1869] 1988.
ca, 1876.
MAGALHÃES, Justino. Um contributo para
a história do processo de escolarização MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. Relató-
da sociedade portuguesa na transição rio apresentado á Assembléia geral
do Antigo Regime. Educação Socieda- Legislativa na segunda sessão da
des & Culturas, Porto Alegre, n. 5., decima sétima legislatura pelo Ministro
1996. (Edições Afrontamento). e Secretario de Estado dos Negócios da
Agricultura, Comercio e Obras Publicas,
MALHEIROS, Perdigão. A escravidão no
João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu.
Brasil : ensaio histórico, jurídico e so-
Rio de Janeiro : Imprensa Industrial,
cial. Petrópolis ; Brasília : Vozes ; Ins-
1879.
tituto Nacional do Livro, [1867] 1976.
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. Relató-
MARCILIO, Maria Luiza. História social
rio apresentado à Assembléia Geral
da criança abandonada. São Paulo :
Legislativa na quarta sessão da decima
Hucitec, 1998.
quarta legislatura pelo Ministro e Se-
MARTINEZ, Alessandra Frota. Educar e cretario de Estado dos Negócios da Agri-
instruir : a instrução popular na corte cultura, Comercio e Obras Publicas,
imperial – 1870 a 1889. Niteroi : UFF, Barão de Itauna. Rio de Janeiro :
Departamento de História, Dissertação Typographia Universal de E. & H.
de Mestrado, 1997. Laemmert, 1872
MATTOSO, Kátia de Queirós. O filho da MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. Relató-
escrava (em torno da Lei do Ventre Li- rio apresentado à Assembléia Geral
vre). Revista Brasileira de História, São Legislativa na terceira sessão da decima
Paulo, v. 8, n. 16, 1988. legislatura pelo Ministro e Secretario de
MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de Estado dos Negócios da Agricultura,
elite durante o Império. In: DEL PRIORE, Comercio e Obras Publicas. Rio de Ja-
Mary (Org.). Histórias das crianças no neiro : Typographia da Gazeta Jurídi-
Brasil. São Paulo : Contexto, 1999. ca, 1876.
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. Relató- MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. Relatório
rio apresentado a Assembléia Geral apresentado à Assembléa Geral
Legislativa na primeira da decima séti- Legislativa na Primeira da Decima
ma legislatura pelo Ministro e Secreta- Setima Legislatura pelo Ministro e Se-
rio de Estado dos Negócios da Agricul- cretario de Estado dos Negocios da Agri-
tura, Comercio e Obras Publicas, João cultura, Commercio e Obras Publicas,

35
João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu.
Rio de Janeiro: Imprensa Industrial de
João Ferreira Dias, 1878.
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. Relatório
apresentado à Assembléa Geral
Legislativa na Primeira Sessão da
Decima Nona Legislatura pelo Ministro
e Secretario de Estado dos Negocios da
Agricultura, Commercio e Obras publi-
cas, João Ferreira de Moura. Rio de Ja-
neiro: Imprensa Nacional, 1885.
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA. Relatório
apresentado à Assembléa Geral
Legislativa na segunda sessão da
decima quinta legislatura pelo Ministro
e Secretario de Estado dos Negócios da
Agricultura, Comercio e Obras Publicas,
José Fernandes da Costa Pereira Júnior.
Rio de Janeiro : Typographia Comerci-
al, 1873.
MOACIR, Primitivo. A instrução e as pro-
víncias : subsídios para a história da
educação no Brasil (1834-1889). São
Paulo : Companhia Editora Nacional,
1939. 3 v.
VERÍSSIMO, José. A educação nacional.
Porto Alegre : Mercado Aberto, [1889]
1985.

36
Rompendo as Barreiras do Silêncio: Projetos
Pedagógicos Discutem Relações Raciais em Escolas
da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte

Patrícia Maria de Souza Santana*

Resumo Até o momento, os impactos dessas


pesquisas na prática pedagógica foram
O presente artigo pretende apresen-
pouco estudados, analisados ou avaliados.
tar de forma sucinta alguns elementos da
Até que ponto os profissionais da educa-
pesquisa sobre os projetos pedagógicos
ção percebem a temática das relações
que discutem as relações raciais em es-
raciais como algo de suma importância
colas municipais de Belo Horizonte. Pro-
nos currículos escolares? Em que medida
curaremos demonstrar que as ambigüida-
as informações trazidas pelos estudos
des das relações raciais no Brasil refle-
acadêmicos e pelo movimento social ne-
tem na forma como estes projetos são
gro têm influenciado as ações dos educa-
desenvolvidos no espaço escolar. A pes-
dores? Quais e quantas são as ações pe-
quisa foi realizada no período de 1999/
dagógicas na perspectiva de compreen-
2000.
der essa dimensão tão complexa da soci-
Introdução edade brasileira que são relações raciais?
Quem são os atores que desencadeiam
A temática das relações raciais no essas discussões no cotidiano escolar?
campo da educação vem sendo alvo de Essas e outras perguntas ainda não estão
estudos e pesquisas em diversos pontos respondidas.
do Brasil. Longe se está de esgotar o tema,
entretanto, algumas pesquisas já demons- As relações raciais no Brasil são
traram o caráter discriminador do siste- marcadas por profundas contradições. Ao
ma escolar brasileiro. A discriminação se mesmo tempo em que parcelas significa-
manifesta em todos os setores da escola, tivas da população negra se encontram
seja nos livros didáticos, nos conteúdos em situação de desvantagem, no quadro
trabalhados ou omitidos, no silenciamento de perversa desigualdade social, fruto de
dos professores diante de situações de histórico processo de discriminação, o
preconceito e discriminação no cotidia- racismo é negado tanto oficialmente como
no escolar etc. (Hasenbalg, 1990, 1999; no senso comum. Em muitos casos, evo-
Rosemberg, 1998; Barcelos, 1992; Go- ca-se a mestiçagem do povo brasileiro como
mes, 1995; Gonçalves, 1985; Figueira, fator de unidade e ausência de conflito.
1992; Pinto, 1997, 1992, 1993, 1999 en- Este quadro refletirá também no sis-
tre outros). tema educativo. Mesmo em escolas que

* Professora da rede municipal de ensino de Belo Horizonte.

37
se propõem a discutir a questão racial, nos pares de idade (em princípio três ci-
em prol da valorização da cultura negra e clos no ensino fundamental);
contra a discriminação racial, a tarefa é • transformações radicais na forma de
difícil, se não árdua. Muitas vezes são avaliar os alunos, dando-se mais ênfase à
ações isoladas do restante da instituição avaliação qualitativa e considerando
e levadas a efeito, geralmente, por edu- parâmetros novos como a socialização, pro-
cadores negros. Esses educadores, ape- cesso de construção do conhecimento etc.,
sar de todas as dificuldades, até mesmo extinguindo-se o sistema de reprovação e
em definir sua própria identidade, são garantindo-se a continuidade de estudos;
agentes significativos no processo de re-
• flexibilização dos conteúdos ensi-
sistência e luta contra o racismo.
nados, com ênfase para aqueles conside-
O presente artigo pretende apresen- rados mais significativos para os alunos;
tar resultados da pesquisa1 realizada em
• ampliação da possibilidade de tra-
escolas municipais de Belo Horizonte, so-
balho coletivo entre os professores;
bre os projetos pedagógicos que discutem
as relações raciais (ver Santana, 2000). • valorização da cultura como eixo
Dá-se ênfase aos aspectos relativos à di- fundamental do currículo.
nâmica dos projetos estudados, chegan- Neste contexto, realizamos inicial-
do-se à conclusão de que o caráter con- mente o levantamento dos projetos que,
traditório das relações raciais no Brasil nas escolas, enfocavam as relações raci-
reflete-se em larga medida na forma como ais, com o objetivo de identificar o con-
esses projetos são encaminhados e de- junto dessas ações presentes na rede mu-
senvolvidos nas escolas. nicipal de ensino de Belo Horizonte.

O levantamento dos projetos Para realizar o levantamento, uma das


maiores dificuldades foi a inexistência de
A rede municipal de ensino de Belo um banco oficial de dados com registro dos
Horizonte compõe-se de 178 escolas, en- projetos pedagógicos da rede. Diante dis-
globando a educação infantil, ensino fun- to, adotamos os seguintes procedimentos:
damental e médio e educação de jovens e
• contato telefônico direto com dire-
adultos. São nove regiões administrati-
tores, coordenadores ou professores iden-
vas, sendo que em cada uma existe um
tificados como referência desses proje-
departamento de educação, responsável
tos nas escolas, o que demandou tempo
pelas questões pedagógicas e administra-
considerável;
tivas das escolas sob sua jurisdição.
• consulta a banco de dados da Se-
Em 1995 foi implantado o projeto
cretaria Municipal para Assuntos da Co-
Escola Plural. Ele trouxe profundas ino-
munidade Negra (Smacon), este bastan-
vações em todos os aspectos da vida es-
te limitado devido ao pouco tempo de exis-
colar, propondo basicamente:
tência da secretaria.
• o fim do sistema de seriação, com Foram contactadas 168 escolas das
a criação de ciclos de formação baseados 1782 existentes na rede municipal de en-

1
Orientadora: Ana Maria Rabelo Gomes.
2
Dado atualizado junto à Secretaria Municipal de Educação em julho de 2000. É comum a falta de
registros, na Secretaria, de eventos ocorridos nas escolas.

38
sino. Nelas foram identificados 70 proje- jeto foi desenvolvido em 1996. Na opor-
tos ou iniciativas que trabalharam de al- tunidade, discutiram-se o preconceito, o
guma forma a problemática das relações racismo, a escravidão e a cultura negra,
raciais. O levantamento ocorreu nos anos tendo sido envolvido um número signifi-
de 1999 e 2000. cativo de alunos e professores. A profes-
sora proponente transferiu-se de escola e
Para cada uma das escolas, foi pre-
não houve continuidade do projeto nos
enchida uma ficha de identificação dos
anos seguintes.
projetos, registrando, entre outros, dados
como nome da escola, título do projeto, Terceiro grupo — Conta 22 proje-
conteúdo, objetivos. Dependendo da con- tos realizados por professores de várias
sistência das atividades, as informações disciplinas, ou por professoras po-
colhidas foram mais ou menos detalha- livalentes do início do ensino fundamen-
das, tendo-se conseguido informações tal. Geralmente não abrangem o coletivo
suficientes de 45 projetos. da escola, sendo realizados muitos deles
há mais de dez anos. Em alguns casos,
O levantamento feito permitiu clas-
há registro, mais ou menos sistematiza-
sificar os projetos em quatro grupos:
do das atividades, mas, na maioria das
Primeiro grupo — Totaliza 27 pro- vezes, os dados fornecidos baseavam-se
jetos, desenvolvidos em determinados nas próprias lembranças dos professores.
períodos do ano como Maio (Abolição), Apesar de não estarem contemplados no
Agosto (Folclore), Novembro (Dia Nacio- projeto global da escola, muitos deles são
nal da Consciência Negra). Esses proje- realizados sistematicamente, todos os
tos têm prazo estipulado para início e fim anos, em geral como atividades de cul-
e em geral foram motivados por um tema minância que acabam envolvendo senão
apresentado no livro didático, por um con- toda a escola, pelo menos uma parte sig-
teúdo específico de determinada discipli- nificativa dela. Estes projetos são mais
na ou por um tema mais abrangente, como dos professores que os propõem e execu-
os 500 anos do descobrimento. tam do que das escolas.
Por exemplo, numa das escolas des- Um exemplo é de uma professora
te grupo, o trabalho foi realizado no ano negra de Língua Portuguesa e Literatura
de 1998, no segundo ciclo de formação, que trabalha com alunos do terceiro ciclo
motivado pelo conteúdo apresentado no com literatura africana e afro-brasileira,
livro didático de Estudos Sociais. As pro- e aproveita para discutir temas como cul-
fessoras abordaram o tema do racismo, tura negra, discriminação racial e situa-
quando o tema tratado no referido livro ção dos negros no Brasil hoje.
foi o da escravidão negra no Brasil.
Quarto grupo — Compõe-se de
Segundo grupo — Reúne sete pro- quatorze projetos, que abrangem grande
jetos encerrados, realizados em anos an- número de professores e alunos, bem
teriores, uma ou mais vezes. Não tive- como a comunidade, com tema específico
ram continuidade, seja porque o profes- voltado para a questão da discriminação
sor motivador transferiu-se de escola, seja racial, alguns com durabilidade e freqüên-
por dificuldades apresentadas para man- cia constantes. Em sua maioria têm do-
ter o projeto. cumentos escritos (proposta do projeto,
Numa das escolas deste grupo, o pro- esquema de atividades, registro em diá-
39
rios, textos informativos, atividades em Antes de passar à análise dos proje-
forma de exercícios etc.) e visuais (fotos, tos, cabe destacar uma síntese quantita-
filmes, trabalhos manuais, cartazes). Este tiva da ocorrência de projetos focados nas
material foi apresentado pelo professor/ relações raciais nas escolas da rede mu-
coordenador do projeto por ocasião das nicipal de Belo Horizonte:
visitas da pesquisadora às escolas. Tam-
• Um terço das escolas têm ou tive-
bém neste quarto grupo alguns projetos
ram algum tipo de atividade educativa
estão contemplados no projeto global da
dentro da temática. Consideramos um
escola, firmando-se um compromisso de
perceptual significativo, uma vez que ain-
realizá-los sistematicamente, em todos
da existe muita resistência em discutir-
os anos.
se a discriminação racial nas escolas.
Por exemplo, numa das escolas, o Veremos que esta resistência é apontada
projeto vem sendo realizado desde 1997, como um dos dificultadores para a
é interdisciplinar, abrange todos os alu- efetivação e ampliação dos projetos.
nos de terceiro e segundo ciclos. Promo-
ve atividades que agregam alunos, pro- • Desconsiderando o grupo em que o
fessores e comunidade. envolvimento com a temática é muito
tangencial, ainda assim vinte por cento
A partir deste agrupamento, foram
de escolas têm projetos em que a temática
selecionadas quinze escolas 3, das clas-
das relações sociais está colocada
sificadas nos terceiro e quarto grupos,
prioritariamente.
para estudo mais aprofundado e entre-
vistas com os professores. A escolha dos A dinâmica dos projetos
projetos foi feita a partir dos seguintes
As análises deste aspecto basea-
critérios:
ram-se principalmente nos dados levan-
• temática do projeto explicitamente tados nas entrevistas e nos materiais a
relacionada à questão da discriminação que pudemos ter acesso, a saber: pro-
racial ou relações raciais; posta do projeto, textos para atividades,
• objetivos diretamente voltados à va- fotografias, filmes dos eventos realiza-
lorização da cultura negra e à discussão dos pelas escolas, atividades desenvol-
do racismo; vidas. Neste esforço, como muito bem
expressa Santos:
• trabalhos que se estendem ao lon-
go do ano, repetindo-se em anos seguin- De dentro e fora da escola, estamos
tes e em andamento, por ocasião desta buscando reescrever uma história capaz
de oferecer um ensino crítico da diver-
pesquisa;
sidade cultural brasileira. Onde a edu-
• abrangência: número significativo cação apresente novos significados para
de professores, alunos, comunidades en- o negro, o branco e o indígena na sua
volvidas, sem prejuízo, entretanto daque- representação masculina e feminina,
les que tenham atingido pequeno número capaz de levar o aluno a repensar sua
de participantes, desde que os critéros condição humana de opressor ou opri-
anteriores tenham sido respeitados. mido. (Santos, 1998, p. 81)

3
Por limitações de tempo, não foi possível visitar ou entrevistar a totalidade dos projetos.

40
As motivações para o desenvolvi- Eu acho que é mais uma questão de afir-
mento dos projetos mação pessoal, de afirmação da identi-
dade. Não sei se é porque tem uma pre-
As propostas partem de um profes- ocupação com a questão racial no Bra-
sor em especial, geralmente negro, mas, sil. Não, eu tenho para mim, pelo me-
em alguns casos, acabam atingindo, en- nos no meu caso, que quando o profes-
volvendo, senão toda a escola, pelo me- sor pega para falar isso é mais uma ne-
nos uma parte significativa dela. cessidade dele se auto-afirmar.
Quando procuramos compreender a Ao fazer um trabalho deste tipo é como
partir das entrevistas porque aquelas/ se eu estivesse andando com aquela
aqueles professoras/professores esta- camisa “100% negro”, “Negro é lindo!”,
vam à frente dos projetos em suas es- “Eu sou negra, olhem para mim!”, “Eu
colas, vimos que a questão da identida- sou negra e conto histórias bonitas!”, “Eu
de negra estava fortemente presente nas sou negra e produzo textos!”. Os alunos
justificativas. produzem textos, eu penso que é uma
coisa mais nessa linha, tornar a cultu-
Para mim é uma questão de vida mes-
ra negra mais visível. Porque na mídia,
mo. (Professora R.)
nos livros, nas escolas de um modo
Em vários casos as professoras sen- geral o negro não existe. Ele não é vis-
tiram necessidade de fazer um breve re- to, ele não é visível, inclusive por ex-
lato sobre sua trajetória de vida enquan- periência minha mesmo esses contos
to pessoas negras. Na maioria dos rela- africanos eu vim a conhecer depois que
tos esse resgate apontou para situações eu estava dando aula há muito tempo.
em que passaram a se ver como negras e (Professora V.)
com uma visão mais crítica sobre as rela- Como eu falei por telefone, eu não te-
ções raciais. O mito da democracia racial nho um trabalho estruturado, um tra-
passa a não condizer com a realidade vi- balho organizado, um projeto. Para mim
vida por elas/eles, marcada de não ditos, a questão do negro é uma questão pes-
de situações constrangedoras, mal-enten- soal, de vida, é uma coisa que desde
didos, humilhações. cedo eu fui assumindo na minha vida
diária, no meu cotidiano, e fui passando
Essas vivências passam a represen- isso para a minha prática escolar. A mi-
tar peças fundamentais nas motivações nha avó, fui criada com ela, minha avó
para realização dos projetos: é negra, e ela tinha um preconceito ter-
No meu caso eu acho que eu sou negra, rível contra o negro. Quando ela falava,
se eu fosse branca talvez não me im- ditados negativos sobre o negro, negro
portaria com isso. Porque esta é uma quando ... ela falava isso como uma
questão que não é tocada nem pela área crença pessoal. Aquilo batia na minha
de história abraçando muito essa dis- cabeça de uma forma muito estranha.
cussão racial ou cultura africana, isso Porque eu olhava o negro falando mal
vira mais como um enfeite, uma coisa dele mesmo. Aquilo passou. Eu assimi-
exótica. E em geral com o professor de lei aquilo na minha vida como uma
educação artística, o professor de Por- militância até pessoal. Bom, comecei a
tuguês ou de alguma outra área que ve- dar aula, eu sou psicóloga, me formei,
nha trabalhar isso na escola, quase sem- trabalhei como psicóloga um tempo e
pre coincide desse professor ser negro. por vários motivos eu mudei de estado

41
e aqui eu não consegui retomar a Eu fiquei muito sensível a essa questão
profissão. quando nasceram minhas filhas e eu fui
sentindo a reprodução exata do que eu
Eu sou de Recife, morei muitos anos no
sofri, eu fui sentindo nas minhas filhas.
Rio e agora moro muitos anos aqui em
A coisa que me chama muita atenção,
BH. Quando eu comecei a dar aulas eu
que eu me lembro que quando estava
vi na sala de aula uma possibilidade de
grávida, fazia compras sempre numa
trabalhar estas questões do negro. Co-
loja em Uberaba, conhecia muito essa
mecei na escola. Lá eu tinha um traba-
vendedora, aí logo depois que tive mi-
lho mais estruturado, eu não tenho esse
nha filha, ela me disse: oh que ótimo!
material. Lá fazia discussões, debates,
Nasceu mais uma menina. Mas uma para
levava pessoas. Foi lá que eu fiz a pri-
o Sargenteli. E aquilo me deixou extre-
meira comemoração do Dia da Consci-
mamente constrangida, eu sei que eu
ência Negra. Comecei a entrar em con-
dei uma resposta para ela. E a partir
tato com grupos. Saí de lá e fui para o
daquilo fui me despertando para poder
Santos Dumont e lá também procurei
estar trabalhando, porque ela não fez,
continuar este trabalho. Aqui eu sou pro-
eu senti que ela não tinha maldade na-
fessora de História e agora também de
quilo que ela estava falando, mas era
música dentro de um projeto”. (Profes-
extremamente terrível, aquilo que ela
sora R.)
estava me colocando. E aí senti a ne-
Mesmo sendo um tema altamente cessidade de estar me instrumenta-
relevante, a questão das relações raciais lizando mais sobre a questão negra.
na escola ainda é um tema tabu, e na Comecei a estudar um pouco mais da
maioria dos casos as motivações são in- história, das questões mesmo e fui. E
dividuais. Neste caso estamos consideran- eu fui estudando bastante, o pessoal de
do as motivações individuais mesmo aque- Uberaba tinha um movimento de casais
las em que os projetos constituíram-se lá da arquidiocese, me chamou pra fa-
como coletivos. Não surgiu, em nenhum zer uma série de palestras, aí eu fui co-
caso analisado, uma situação em que a locar sobre a questão do negro. Aí o
proposta para a realização do projeto ti- colégio Marista de Uberaba me chamou
vesse surgido do grupo de professores, da pra poder estar falando da questão ne-
gra para os estudantes, eu fui. E cada
escola enquanto instituição ou de propos-
vez que a gente vai trabalhando, a gen-
tas curriculares institucionais ou até mes-
te vai estudando mais e sentindo mais
mo dos Parâmetros Curriculares Nacio-
vontade de estar conhecendo um pouco
nais 4 .
mais do assunto. E aí me apaixonei pelo
Pelo fato de a maioria quase com- assunto, e a gente vai estudando e até
pleta dos professores entrevistados ser hoje ... (Professora M.).
negros, as iniciativas confundem-se com Na fala das professoras percebemos
a trajetória de cada um, com a motivação que apesar de afirmarem por mais de uma
pessoal de cada um. O pessoal, o indivi- vez que suas motivações são pessoais,
dual poderá até tornar-se coletivo, mas elementos dessas falas demonstram que
também existe um longo caminhar para existem outros fatores que colaboram para
se chegar a este fim. que passem a atuar em suas escolas na

4
Os Parâmetros Curriculares Nacionais foram enviados às escolas a partir de 1997 e têm um volume
dedicado à pluralidade cultural.

42
perspectiva do anti-racismo. A participa- recebida por uma certa resistência pe-
ção em encontros e reuniões do Movimen- los alunos. Não sei porque motivo, não
to Negro, leituras, contato com militan- sei se é por causa da cor. . . acho que é
tes de movimentos sociais e a própria isso mesmo. . . e por ser uma professo-
constatação de que a discriminação está ra assim, que estava empenhada a fa-
também presente na escola, as fazem to- zer um trabalho bom com eles, não é,
mar posturas para procurar contribuir com estava apostando neles, não é, então eu
ganhei o apelido de chita. E eu olhava
ações pedagógicas visando romper com o
assim, e quando eu exigia do aluno que
quadro de discriminação e preconceitos
eu queria sacudir aquela coisa, aquela
no âmbito escolar.
falta de expressão deles, e eu exigia um
A experiência pessoal, que também pouco, e eu sentia isso. Porque eu saía
é marcada por expressões coletivas, é no corredor, era aquele som: Chita! Chi-
transportada para a escola como “um pro- ta! Chita! E aí eu passei a observar a
jeto de vida”. As professoras entrevista- população que me chamava de Chita. E
das podem até não se ter expressado des- eu vi que são negros, já me criticando e
sa forma nas entrevistas, mas este pro- apontando negro, não é? (Professora C.)
jeto de vida faz parte de projetos e pro- Sim. Eu era a única professora negra à
postas do movimento negro e outros mo- noite. Então eu era a “Chita”. E fiquei
vimentos sociais comprometidos com a com esse nome de “Chita”, não é? E aí
busca de igualdade de oportunidades para ... eu sou professora de Geografia, en-
os indivíduos da nossa sociedade. O en- tão à medida do possível, quado a gen-
contro com as diversas facetas do racis- te começava a falar de população e tal,
mo fez, dessas professoras, profissionais aí eu entrava na questão racial. E co-
comprometidas, acima de tudo, com a dig- mecei a falar com eles, falar aqui, ali.
nidade do ser humano. O resgate da auto- (Professora C.)
estima dos alunos negros passa a ser um Foi preciso um incidente, em que fi-
caminho através do qual poderá rever- cou claro o preconceito dos alunos com a
ter, para seus alunos, o que sofreu ou o professora negra, para que o assunto pas-
que sofre por ser negro. Não é nossa in- sasse a fazer parte dos conteúdos traba-
tenção apresentar uma análise de fundo lhados em sala de aula. A constatação de
psicológico, mas este é um aspecto fun- que o racismo está presente em nossa
damental nesta temática, uma vez que as sociedade não é garantia para que o tema
ações pedagógicas cruzam-se com a tra- faça parte do currículo escolar. Uma situ-
jetória pessoal das professoras. Diferen- ação provocatória mobilizou alguém, que
temente, talvez, de outras temáticas con- fez a opção por seguir um caminho não
sideradas inovadoras, como meio ambi- muito tranqüilo, que a levará de encontro
ente, sexualidade, violência, que são tra- a vários conflitos, mas também ao en-
balhados como temas contemporâneos, contro de muitas compensações. A maio-
incorporados no currículo por pressões do ria dos professores entrevistados demons-
contexto social e parecem não gerar tan- trou que, apesar de todas as dificuldades,
tas polêmicas no interior das escolas. sentem-se satisfeitos com o trabalho de-
Eu quero começar um pouco, antes do senvolvido e que este repercute positiva-
projeto que é o seguinte: quando eu mente na atitude dos alunos.
cheguei nessa escola, eu recebi, eu fui Eles ficaram entusiasmados, uma me-

43
nina chamou a diretora e me chamou e Há dificuldade de motivar os professo-
veio me agradecendo em nome da tur- res para a realizarem um trabalho inte-
ma: “é a primeira vez nessa escola que grado, nem sempre há apoio ou clima
eu consigo, que alguém tem confiança que favoreça suas iniciativas e, o que é
e confiou na gente de fazer um traba- mais problemático, não há reflexão de
lho. Então a gente quer te agradecer por fato de como integrar tal tema nas dis-
você ter acreditado na gente. Porque nós ciplinas no curso de magistério. (Pinto,
somos pobres, nós somos favelados, e 1999, p. 223)
a senhora confiou que a gente podia fa-
A semelhança com as experiências
zer um trabalho, e olha o que que a gente
encontradas na rede municipal de Belo
conseguiu fazer, pela primeira vez”. Aqui-
Horizonte é significativa. Apesar de en-
lo mexeu comigo, porque pra mim era
contrar um número considerável de ações
normal, eu já sou professora há muitos
anos, e já sou acostumada com isso há
na perspectiva de discutir a questão étni-
muito tempo. E eu fiquei chocada com co-racial nas escolas, de fato, estas não
aquilo, falei “gente, que humildade, não fazem parte ainda da agenda das institui-
é?” (Professora C.) ções educacionais, de forma definitiva e
sistemática. Depende sempre da atuação
Este outro relato também demons-
de um professor em especial, que neces-
tra como as motivações pessoais e pro-
sita percorrer um caminho longo e árduo
fissionais se cruzam com a trajetória de
para conseguir “impor” a temática para o
vida das professoras:
conjunto da escola. Quando o faz, pois
Porque na verdade é um projeto mais vimos que em alguns casos este profes-
meu do que da escola, ele é de vida. sor prefere ou entende que deve traba-
É um projeto meu porque as pessoas lhar apenas nas turmas em que dá aulas.
não têm disposição para trabalhar este As dificuldades em institucionalizar
tipo de coisa não. Quando eu estava na as ações nas escolas municipais estão
escola, as danças, tudo isso era fatalmente associadas a todo o quadro no
direcionado para a coisa mais clássica,
qual o tema racismo se inscreve. Confor-
não tinha nada que falava de mim mes-
me Guimarães,
ma e de minha raça (...) todo o traba-
lho era voltado para a elite, não tinha Assim, o grande problema para o com-
nenhum trabalho voltado para a cultura bate ao racismo, no Brasil, consiste na
popular. eminência de sua invisibilidade, posto
que é reiteradamente negado e confun-
Eu comecei a dar aulas em um bairro de
dido com formas discriminatórias de
periferia em Betim. Então começamos a
classe. (Guimarães, 1999, p. 210 )
falar a língua dos meninos. E o padre
trabalhava no bairro com Folia de Reis, Guimarães acentua que o movimen-
Festa do Divino, e nós aproveitávamos to negro teve e tem papel fundamental
isso na escola. (Professora E.) na tentativa de tornar o racismo visível
no Brasil, particularmente nas escolas.
Ao pesquisar a temática das relações
raciais nos cursos de magistério, Regina Assim, ao mesmo tempo em que
Pahim Pinto constatou que quando existe existe uma forte contribuição do movi-
alguma iniciativa voltada para a discus- mento negro organizado, colocando a
são do tema, esta acontece como uma temática das relações raciais na educa-
ação individual de algum professor: ção como meta prioritária, as ações mais
44
sistematizadas e institucionalizadas acon- as suas dimensões.
tecem não por parte dos órgãos governa-
• Acabar com o preconceito nas es-
mentais e sim por iniciativa do próprio
colas.
movimento negro, ou de professores que,
muitas vezes isoladamente, comparti- Com relação aos temas e conteúdos
lham de seus ideais. Como exemplo cita- trabalhados, além de racismo e discrimi-
mos: Escola Criativa do Olodum e o pro- nação racial, que aparecem em todos os
jeto Ilê Axé do Opô Afonjá, de Salvador, o projetos, a cultura é marcante. Busca-se
Núcleo de Estudos Negros de Santa trabalhar positivamente a auto-estima dos
Catarina, os cursos vestibulares para ne- alunos negros por meio da valorização da
gros e carentes e agentes pastorais ne- cultura afro-brasileira.
gros, presentes em diversas capitais do As conseqüências do racismo sobre
país, inclusive Belo Horizonte, bem como a auto-estima e a auto-imagem das pes-
em alguns outros pontos, espalhados por soas negras já foram alvo dos estudos de
todo o país. Não que estas experiências alguns pesquisadores brasileiros (Souza,
venham sendo realizadas sem grandes 19835; Oliveira, 1994; Silva, 1995). No
dificuldades, mas pelo menos ocupam hoje interior das escolas municipais estudadas,
espaços representativos dentro das ações a elevação da auto-estima é uma das pri-
anti-racistas, no Brasil, no campo educa- oridades dos projetos. Em diversas des-
cional. sas escolas, foram realizados desfiles dos
Objetivos, conteúdos trabalhados alunos com valorização da estética negra.
e estratégias adotadas Estes eventos foram avaliados como ex-
tremamente significativos, por colocarem
Geralmente, os conteúdos dos pro- os alunos negros em lugar de destaque:
jetos desenvolvidos na rede municipal de
A gente já tinha uma oficina de beleza,
ensino de Belo Horizonte estão ligados à
que é o cabelo, com a pele e a
construção ou colaboração para a cons-
maquiagem própria. No final do ano fe-
trução de uma imagem positiva do negro, chamos com um desfile do grupo, com
sendo que os projetos na maioria das ve- o cabelo adequado, com a maquiagem
zes trazem uma nova forma de encarar a própria, com a roupinha que a gente teve
temática na escola, dando “visibilidade” de arrumar até emprestada, para eles
à cultura negra e ao negro como sujeito. desfilarem, mas ficou uma coisa muito
Na maioria desses projetos, os objetivos bonita. (Professora C.)
podem ser assim resumidos:
Fizemos a culminância com desfile da
• Construir auto-estima positiva nos escolha da garota afro que foi excelen-
alunos negros. te, pelo que acontecia para fazer o des-
file, as meninas se organizaram, elas
• Valorizar a cultura afro-brasileira. próprias. Então elas vinham pra minha
• Tornar visível a cultura negra. sala e na hora da preparação o assunto
racial acontecia, era muito legal. O mais
• Construir valores baseados no res- bonito foi o que aconteceu durante o
peito às diferenças. processo nos bastidores, do que propri-
• Valorizar o ser humano em todas amente o que aconteceu lá na hora. En-

5
Este livro representou um marco no Brasil, em termos de análises psicológicas e relações raciais.

45
tão aquelas conversas como “meu ca- • criação de uma banda de percus-
belo é assim”, “fulano falou isso”, “eu são com 50 integrantes (alunos e ex-alu-
não importo quando falam assim” ... A nos), que tocam ritmos como samba, funk,
auto-estima dessas meninas foi a mil, maracatu, congada etc. Esta banda atual-
as mães dessas meninas babaram. (Pro- mente está se estruturando para se tor-
fessora M.)
nar independente da escola;
Aliada à questão da imagem e da
• grupo de dança afro, que se consti-
beleza, a cultura aparece não só por meio
tuiu a partir dos trabalhos desenvolvidos
de apresentações de grupos de fora da
na escola. O grupo também se desvinculou
escola, como também na organização de
da escola e faz apresentações na comu-
cursos e oficinas para os alunos: capoei-
nidade vizinha e em teatros da cidade;
ra, hip hop, rap, dança afro, maculelê,
teatro, grafite, comidas afro-brasileiras • grupo teatral, que encena peças que
etc. Ademais, existe o resgate da história tematizaram a cultura e a história dos
do negro no Brasil: escravidão, lutas e negros no Brasil;
resistência, racismo, literatura afro-bra- • oficinas semanais com temas vari-
sileira, contos brasileiros.
ados, dentre eles o hip hop.
Em alguns casos, a opção em dar
Percebe-se que, nestas escolas, a
centralidade à cultura está diretamente
adesão dos alunos à temática acaba tam-
ligada às dificuldades de se falar direta-
bém despertando os outros professores
mente do tema racismo, seja com os alu-
para a relevância do tema. Participando
nos, seja com os professores. Regina
de um evento de culminância de um dos
Pahim Pinto já havia alertado para o cons-
projetos estudados, colhemos opiniões dos
trangimento que o assunto racismo traz:
professores e estes demonstraram esta-
Falou-se mais abertamente dos cons- rem afeitos ao tema porque acabaram se
trangimentos, do temor e das reações empolgando com o trabalho realizado e
que provoca, principalmente quando há com a motivação dos alunos, que se em-
alunos negros na sala de aula, confir- penharam nas atividades de forma alegre
mando a respeito da dificuldade de tra- e participativa.
tar determinadas questões que dizem
respeito ás diferenças étnico-raciais em Dificuldades para a realização dos
abordagem formais (...) Mas sem dúvi- projetos e perspectivas apontadas
da, é também um indício da tendência pelos professores
de identificar o tema com o que é pro-
Na maioria dos projetos estudados,
blemático, sem atentar para o fato de
vários fatores são apontados como difi-
que se pode tratá-lo também apontan-
do os aspectos positivos das diferenças.
culdades, para realizá-los:
(Pinto, 1999) • falta de materialidade;
Em certas escolas, as discussões • tempo escasso para desenvolvimen-
sobre racismo e consciência negra leva- to das atividades;
ram-nas a constituírem grupos culturais
ou atividades permanentes voltadas para • ausência de, ou pouco apoio
a cultura afro-brasileira. Destacamos qua- institucional;
tro exemplos: • ausência de envolvimento por par-

46
te do conjunto de professores da escola; Em outro sentido, o professor P.
aponta as dificuldades não só com os pro-
• dificuldade em trabalhar o tema com
fessores mas consigo mesmo para tratar
o aluno negro.
os conteúdos com os alunos negros. Di-
Destas dificuldades, a mais desta- zia que sentia nos olhos dos alunos ne-
cada refere-se ao envolvimento dos pro- gros o constrangimento com o assunto e
fessores, principalmente no convenci- gostaria de encontrar outras formas de
mento de que a temática das relações trabalhar que não os chocassem tanto.
raciais é importante e deve ser traba- Vemos que também o professor engajado
lhada na escola. na discussão encontra dificuldades em
A dificuldade maior é de envolver as trabalhar o tema diretamente com os alu-
pessoas nessa discussão. Tem profes- nos, refletindo não só a falta de formação
sor que não se sente bem em falar do mas até de experiência em lidar com a
negro com o negro. Quando fazemos questão. Seria fundamental a disponibili-
cobranças dos colegas por que o proje- dade de materiais didáticos, bem como
to não está sendo trabalhado, o colega redes de trocas de experiências com ou-
responde que não tinha jeito para lidar tras escolas ou entidades que trabalham
com esse assunto. Na verdade é uma nesta direção, para que o professor pu-
falta de preparo nossa, não temos pre- desse se instrumentalizar e até mesmo
paro para estar lidando com isso. (Pro- criar formas alternativas de trabalho.
fessora C.)
A resistência ao tema também é ci-
Neste caso os professores se negam tada como um dificultador:
a trabalhar, pois não se sentem à vonta-
Quando alguém abria a boca para falar
de, parecem temer a reação do aluno ne-
de preconceito, de racismo, eles vinham
gro, prefere não “mexer na ferida”. A en-
com essa de que tem preconceito con-
trevistada aponta a falta de preparo dos
tra branco também, que ficávamos
professores como causa dessa reação.
enfatizando só o negro, o negro. Então
Segundo Gomes, a escola tem ainda gran-
a gente sentia que havia uma resistên-
des dificuldades em lidar com seus pre- cia tão grande e parecia que nós éra-
conceitos, e para falar sobre o assunto mos os mais afetados. (Professor P.)
com os alunos é necessário fazer uma
reflexão sobre o papel da escola na cons- Acusações de que ao se falar do pre-
trução e desconstrução do racismo. Em conceito racial contra os negros, estamos
muitos casos prevalece a acomodação, criando o preconceito são freqüentes. Es-
cabendo a um professor ou pequeno gru- sas dificuldades inscrevem-se no plano da
po levar esta tarefa adiante. invisibilidade da questão para amplos se-
tores da sociedade, que querem acreditar
É mais difícil ainda ao pensamento pe- que vivemos em um paraíso racial. Não
dagógico tão “igualitário” lidar com as
existem fórmulas prontas para desfazer
diferenças de raça. Esse mesmo pensa-
tantas resistências, mas os próprios pro-
mento pedagógico ensinou os professo-
fessores entrevistados buscam caminhos
res a lidar com as diferenças de ritmos
para “quebrar o gelo” entre seus colegas.
de aprendizagem, inventar recursos di-
Um trecho das entrevistas ilustra bem
dáticos. As diferenças raciais sempre
foram ignoradas na formação dos pro- essas atuações:
fessores. (Gomes, 1995, p. 167) Porque não adianta você ter um projeto

47
de identidade cultural dentro da escola centros de formação, mas por estarem
e o professor não se identificar com esse dispostos a não abandonar seus projetos
projeto também. Se ele não questionar foram construindo todo um arsenal de
a sua própria identidade. Então a pri- recursos para que seus objetivos fossem
meira coisa que tem que ser feita na cumpridos.
escola é usar estratégias para sensibili-
zar o professor. A partir do momento que À medida que os projetos vão se
ele é sensível ao tema, usando as es- consolidando, estes professores impul-
tratégias para poder instrumentalizar de sionadores vão tendo condições de ava-
forma bem amena, por ser um assunto liar os caminhos percorridos e os resul-
polêmico na escola ainda. (...) a cada tados, mesmo que parcialmente. Nes-
mês a gente fazia um café especial (...) sas análises conseguimos perceber que
Então nós fizemos o café cultural, que as perspectivas são otimistas e que, ape-
foi no dia 13 de maio, em que a gente sar dos entraves, os projetos estão se-
fez uma comida especial, chamamos um guindo em frente.
contador de histórias, fiz uma exposi-
Tenho percebido é uma diferença dos
ção de todo o material que eu tenho e
próprios meninos, os meninos negros,
que a escola tem, trago vídeo. Naquele
se colocando mais, se sentindo mais em
espaço de tempo do café, a gente con-
casa. Outro dia mesmo nós recebemos
versa sobre o assunto e traz alguma
a visita de um pai, ele tem três filhos na
coisa. (Professora M.)
escola, negros. Ele colocando que ele fi-
Em alguns casos, à medida que a cou encantado, um menino formou ago-
discussão racial foi fazendo parte do coti- ra, saiu esse ano de 99. Ele ficou en-
diano da escola, que os projetos foram cantado da forma com que nós tratáva-
repercutindo positivamente entre os alu- mos os filhos dele. No trato a gente ti-
nos e comunidade e até mesmo sendo nha com essa questão da negritude, de
matéria em jornais, os professores pas- estar valorizando as pessoas, colocan-
saram a se dar conta da importância do do as pessoas como iguais. Então a gen-
assunto e de que não poderiam ficar alhei- te sente assim que até entre professo-
os a ele. res que tinham uma determinada resis-
tência em trabalhar, lidar com o assun-
Os professores impulsionadores dos to; hoje você lida com esse projeto, com
projetos tiveram e têm papel central nes- esse assunto com facilidade. Porque,
te avanço, pois através de diversas es- basicamente, quando nós começamos,
tratégias conseguiram retirar suas ações era eu negro, a H., também professora
do isolamento, transformando as ações negra, a E., basicamente negros mes-
individuais em projetos de fato coletivos. mos de pele mais retinta, que puxavam,
que basicamente quando se falava em
Falar das dificuldades encontradas
trabalho, questão de negritude era P., E.
para a realização dos projetos é também
e H. e a própria V. E agora não, quando
procurar respostas para vencê-las. Os pro-
você propõe o projeto desse ele flui nor-
fessores entrevistados, mesmo que alguns malmente, os professores todos abra-
não tenham conseguido efetivar na práti- çam e a gente consegue fazer um tra-
ca algumas idéias, refletiram sobre a ne- balho coletivo mesmo. (Professor P.)
cessidade de reverter o quadro de resis-
tências e muitos anteciparam as ações que Conclusões
deveriam acontecer, em conjunto com os Os resultados do levantamento dos
48
projetos nos permite concluir que a apontada sobre a identidade dos indiví-
temática da discriminação racial está mais duos no mundo moderno, citando autores
presente nas escolas do que podíamos como Berger e Friege-Kelner:
imaginar. Apesar de todas as polêmicas, (...) A sociedade moderna põe o indiví-
controvérsias e dificuldades para desen- duo em confronto com um caleidoscó-
volver o tema, ele passa cada vez mais a pio sempre muito grande de experiênci-
fazer parte da agenda curricular das es- as sociais e significados, constrangen-
colas municipais de Belo Horizonte. do-os à reflexão para fazer projetos e
A figura do professor negro é peça tomar decisões. Essa reflexividade não
chave para a realização dos projetos. Em só diz respeito ao mundo externo, mas
também à subjetividade do indivíduo e,
sua maioria, esses projetos são propos-
de um modo particular, à sua identida-
tos e encaminhados por esses sujeitos
de. (Vianna,1999, p.50)
identificados com a causa anti-racista e
autoclassificados como negros. Das quin- Nesta pesquisa, não pudemos dar
ze escolas listadas para um maior conta da trajetória completa de vida dos
aprofundamento, apenas em dois casos professores, mas nos arriscamos a dizer
os professores se autoclassificaram como que a escola, para os professores negros
brancos. Em pelo menos um desses casos, que coordenam os projetos, é um espaço
pode-se dizer que a pessoa é mestiça. de militância anti-racista. Esta ação, mes-
mo que não assumida explicitamente
O contato com outras pessoas negras como tal, está expressa na forma como a
engajadas na militância contribui para a questão é colocada na escola, nos cami-
tomada de posição. Aos poucos, a percep- nhos trilhados para a concretização dos
ção de que ser negro no nosso país repre- objetivos, na persistência em manter o
senta diferenciais, principalmente no tema como relevante, se não para toda a
acesso às oportunidades e às formas de escola, pelo menos para os alunos.
tratamento, vai sendo elaborada no con-
Professores que, independentes da
tato com os outros. Estas construções vão
escola em que atuam, levam a temática à
se transformando em um engajamento
frente há anos, demonstram o quanto a
político maior, que poderá ser assim en-
questão é relevante em suas vidas. A iden-
tendido ou não pelos professores.
tidade de cada um, marcada por suas ex-
Mesmo que os entrevistados, em sua periências de vida, independentemente de
maioria, não estejam vinculados atual- uma vinculação ou não com movimentos
mente a nenhuma organização dos movi- sociais, parece inserir-se em um coletivo
mentos sociais, deixaram transparecer de homens e mulheres negros. Existe uma
que o contato com pessoas e eventos li- luta e essa luta exprime-se pela busca de
gados ao movimento negro, e mesmo sin- igualdade de oportunidades e direito à
dical, contribuíram para a sua formação diferença6 .
mais crítica diante da questão das rela- Nesse sentido, a atuação dos profes-
ções raciais. sores negros no ambiente escolar, nas
Nesse sentido tomamos emprestado escolas estudadas, representa um peda-
de Vianna uma das dimensões por ela ço do longo caminhar que os projetos no

6
Nos limites de tempo desta pesquisa, não foi possível explorar mais detalhadamente a influência dos
movimentos sociais na atuação dos professores.

49
campo das ações anti-discriminatórias de- tes no Brasil, marcada por contradições,
vem trilhar em nosso país. dificuldades e conflitos constantes. Con-
Parece-nos que a atuação dos pro- flitos com os outros colegas, consigo mes-
fessores negros nas escolas, independente mo, com alunos, com instituição escolar etc.
de ser uma proposta institucional, coleti- Referências bibliográficas
va ou não, significa um encontro com o
“nós” que o ser negro ou negra represen- AVALIAÇÃO da implementação do projeto
ta para aqueles que experimentaram e político-pedagógico Escola Plural. Belo
experimentam os efeitos da discrimina- Horizonte : Game – Grupo de Avalação
ção racial no Brasil. e Medidas Educacionais ; Universidade
Federal de Minas Gerais, 2000
O silêncio vai sendo rompido e, no
lugar da omissão e do embaraço, esses BARCELOS, Luiz Cláudio. Educação e de-
professores passaram a desenvolver ati- sigualdades no Brasil. Cadernos de
vidades e projetos que pudessem contri- Pesquisa, São Paulo, n. 86, ago. 1993,
buir para alterar o quadro encontrado em p. 15-24.
suas escolas. Não será por acaso que um BARCELOS, Luiz Cláudio. Educação:um
dos eixos mais importantes dos projetos quadro de desigualdades raciais. Es-
está relacionado à auto-estima, à cons- tudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n.
trução de uma auto-estima positiva para 23, 1992, p. 37-69.
alunos negros, buscando valorizar a cul-
tura negra e a beleza negra, resgatando a BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de
história dos negros no Brasil, discutindo Educação. Escola Plural : proposta po-
sua realidade atual etc. O trabalho para a lítico-pedagógico da rede municipal de
formação de uma auto-estima positiva não ensino de Belo Horizonte. Belo Hori-
se resume nesse caso somente a conteú- zonte,1995.
dos e atividades: a postura das professo- CARDOSO, Edson Lopes. Racismo : o pa-
ras diz mais que os conteúdos. Em seus pel do professor . In: CARDOSO, Ed-
relatos, ficou demonstrado que o incenti- son Lopes. Bruxas, espíritos e outros
vo à participação, o estímulo e a “cobran- bichos. Belo Horizonte : Mazza, 1992.
ça” fazem parte constante de sua atua-
FIGUEIRA, Vera. O preconceito racial na
ção junto aos alunos.
escola. Estudos Afro–Asiáticos, Rio de
Os educadores, com isso, procuram Janeiro, n.18, 1990, p. 63-72.
atingir o ponto principal mediante o qual
GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que
o racismo se manifesta no cotidiano es-
vi de perto. Belo Horizonte : Mazza,
colar: a invisibilidade do povo negro, ali-
1995.
ado ao caráter depreciativo que lhe é dado
pela sociedade. Diante da impossibilida- GONÇALVES, Luiz Alberto O. O silêncio;
de de tratar essa questão na sua dimen- um ritual pedagógico a favor da discri-
são social e institucional, ou seja, de dar minação racial : um estudo da discrimi-
ao tema uma visibilidade pública de mai- nação racial como fator de seletividade
or alcance, os professores desenvolvem na escola pública de primeira e quarta
projetos com as marcas que trazem de série. Dissertação de mestrado em edu-
suas trajetórias de vida e do quadro geral cação. Belo Horizonte, Universidade Fe-
da situação das relações raciais existen- deral de Minas Gerais, 1985

50
GOMES, Nilma Lino. Formação de profes- MUNANGA, Kambeguele. Mestiçagem e
sores e diversidade étnico-cultural : identidade afro-brasileira. Rio de Ja-
relatório de pesquisa. Belo Horizonte : neiro : Intertexto, [s.d.]. (Cadernos
UFMG, 1997. Penesb, 1).
GONÇALVES E SILVA, Petronilha B. Di- MUNANGA, Kambeguele. Rediscutindo a
versidade étnico-cultural e currículos mestiçagem no Brasil. Petrópolis : Vo-
escolares – dilemas e possibilidade. zes, 1999.
Cadernos Cedes, São Paulo, 1993, p. MUNANGA, Kambeguele. Superando o
25-35. racismo na escola. Brasília : Ministé-
GONÇALVES E SILVA, Petronilha B. Práti- rio da Educação, 2000.
ca do racismo e formação de professo- NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto
res. In: DAYRELL, Juarez (Org.). Múl- branco : estudos de relações raciais.
tiplos olhares sobre educação e cultu- São Paulo, T. A. Queiroz, 1985.
ra. Belo Horizonte : Ed. UFMG, 1996.
OLIVEIRA, Ione Martins . Preconceito e
GONÇALVES, Luiz Alberto. Os movimen- autoconceito : identidade e interação
tos negros no Brasil construindo atores na sala de aula. São Paulo : Papirus,
sócio-políticos. Revista Brasileira de 1994.
Educação, São Paulo, n. 9, set./dez. PINTO, Regina Pahim. Diferenças étni-
1998, p. 30-50. co-raciais e formação do professor.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio P. Precon- Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n.
ceito e discriminação – queixas de ofen- 108, 1999.
sas e tratamento desigual dos negros PINTO, Regina Pahim. Movimento negro
no Brasil. Salvador : Novos Toques, e educação do negro : a ênfase na iden-
1999. tidade. Cadernos de Pesquisa, São Pau-
GUIMARÃES, Antônio Sérgio P. Racismo lo, n. 86, 1993. p. 25-38.
e anti-racismo no Brasil. São Paulo : PINTO, Regina Pahim. Multiculturalidade
Editora 34, 1999. e educação de negros. Cadernos Ce-
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós- des, Campinas, n. 32, 1993, p. 35-48.
modernidade. Rio de Janeiro : DP&A, PINTO, Regina Pahim. Raça e educação :
1999. uma articulação incipiente. Cadernos
de Pesquisa, São Paulo, n. 80, 1992, p.
HASENBALG, Carlos, SILVA, Nelson do
41-50.
Valle, LIMA, Márcia Regina Soares de.
Cor e estratificação social. Rio de Ja- ROSEMBERG, Fúlvia. Expansão da edu-
neiro : Contracapa, 1999. cação infantil e processos de exclusão.
Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n.
HASENBALG, Carlos. Raça e oportunida-
107, 1999, p. 7-40.
de educação – mais no Brasil. Cader-
nos de Pesquisa, São Paulo, n. 73, 1990, ROSEMBERG, Fúlvia. Raça e desigualdade
p. 5-12. educacional no Brasil. In: AQUINO, Ju-
lio Groppa (Org.). Diferenças e precon-
MACHADO, Vanda. Ilê Axé : vivências e
ceitos na escola, alternativas teóricas e
invenção pedagógica, as crianças do
práticas. São Paulo : Summus, 1998. p.
Opô Afonjá. Salvador : Eduffa, 1999.
73– 92.

51
SANTANA, Patrícia Maria de Souza. Rom- TURRA, Cleusa, VENTURI, Gustavo
pendo as barreiras do silêncio : os pro- (Orgs.). Racismo cordial. São Paulo :
jetos pedagógicos que discutem as re- Ática ; Datafolha, 1995.
lações raciais em escolas da rede mu-
VIANNA, Cláudia. Os nós do “nós” – crise
nicipal de ensino de Belo Horizonte. São
e perspectivas da ação coletiva docen-
Paulo : Ação Educativa ; Anped, 2000.
te em São Paulo. São Paulo : Xamã,
(Relatório de pesquisa).
1999.
SANTOS, Gevanilda Gomes. A História em
questão. In: ROMÃO, Jeruse, LIMA,
Ivan Costa, SILVEIRA, Sonia Maria
(Orgs.). Os negros, os conteúdos esco-
lares e a diversidade cultural.
Florianópolis : NEN, 1998. p. 67-84.
SCHWARCZ, Lília K. Moritz. Raça como
negociação. In: FONSECA, Maria
Nazareth Soares (Org.). Brasil afro-bra-
sileiro. Belo Horizonte : Autêntica,
2000. p. 11-40.
SILVA, Ana Célia. Esteriótipos e precon-
ceitos em relação ao negro no livro de
comunicação e expressão de 1º grau.
Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 63,
1997, p. 96-98.
SILVA, Consuelo Dores. Negro qual é o
seu nome?. Belo Horizonte : Mazza,
1995.
SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de iden-
tidade – uma introdução às teorias do
currículo. Belo Horizonte : Autêntica,
1999.
SOARES, Cláudia Caldeira. Construindo
a Escola Plural : a apropriação da Esco-
la Plural por docentes do 3o Ciclo do
Ensino Fundamental. Dissertação de
Mestrado, Faculdade de Educação da
UFMG, 2000.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro.
Rio de Janeiro : Graal, 1983.
TRINDADE, Azoilda L. Multiculturalismo
– mil e uma faces da escola. Rio de
Janeiro : DP&A, 1999.

52
Raça e Gênero na Trajetória Educacional de
Graduandas Negras da Unicamp

Júlio Costa da Silva*

Resumo As entrevistas foram realizadas de modo


a reconstruir a sua trajetória escolar, des-
A educação escolar pública no Brasil
de as séries iniciais até a universidade pro-
é de baixa qualidade, com graves conse-
curando detectar a presença de discrimi-
qüências para os alunos que necessitam
nações e preconceitos2 e a sua percepção
desse tipo de ensino. Há que se apontar
a respeito.
também a reprodução dos preconceitos e
discriminações no contexto escolar e que A reconstrução das trajetórias edu-
atingem principalmente os alunos negros. cacionais desse alunos exigiu a definição
Neste estudo, procuramos demonstrar, de técnicas de pesquisa a serem utilizadas
com base nos relatos de alunas graduandas no trabalho de investigação. Nesse senti-
negras sobre suas trajetórias escolares, do, a leitura de material bibliográfico, des-
como determinados atributos interferem de os relativos à história oral, memória e
não só na maneira mas também na inten- gênero, passando pelos que tratam da
sidade com que esses preconceitos atu- questão racial até chegar aos que dizem
am. respeito ao ensino superior público, foram
de fundamental relevância para a constru-
Introdução ção do arcabouço teórico e metodológico
Este artigo relata parte do trabalho1 desta pesquisa.
desenvolvido no contexto do I Concurso Procurou-se ainda captar em pro-
Negro e Educação, que focalizou aspec- fundidade não só a experiência vivenciada
tos da trajetória educacional de alunos pelos alunos, mas também pelas pesso-
negros da Universidade Estadual de Cam- as com as quais se relacionavam, ob-
pinas com o objetivo de verificar as difi- tendo-se desse modo relatos muito den-
culdades com que se depararam tendo sos e ricos. Como afirma Gonçalves e
em vista o seu pertencimento racial (Sil- Silva (1995, p. 94) “Buscar conhecer a
va, 2000). história particular de cada um e com ela
Para tanto, foram entrevistados seis aprender não é um gesto fora de propó-
alunos que nos anos de 1999 e 2000 es- sito, pois aquela história se inscreve na
tavam freqüentando aquela universidade. história de uma comunidade, de um gru-
*Mestrando em História Social do Trabalho, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
1
Orientadora: Célia Maria Marinho de Azevedo.
2
Cabe ressaltar as diferenças entre discriminação e preconceito. O preconceito seria mais uma atitude,
enquanto a discriminação já se configura como uma ação. Mas, de qualquer modo, como lembra Hasenbalg
(1979), no Brasil, a noção de preconceito tem sido usada para indicar tanto o preconceito como a
discriminação (Pinto, 1993).

53
po social, de um país, da humanidade, O resgate da memória foi possível por
fazendo-a, interpretando-a, refazendo-a.” meio da história oral, recurso metodológico
que permitiu reconstruir e analisar os rela-
Para efeito deste artigo, serão co-
tos das entrevistadas. De acordo com
mentados os depoimentos de três entre-
Lozano (1986, p. 16) “a história oral, ao
vistadas: Renata, Débora e Mariana, alu-
se interessar pela oralidade, procura des-
nas dos cursos de dança, enfermagem e
tacar e centrar sua análise na visão e ver-
pedagogia.
são que emanam do interior e do mais pro-
A Memória e a História Oral fundo da experiência dos atores sociais.”

Dada a proposta de resgatar aspec- A utilização de tal estratégia trouxe


tos da trajetória educacional das alunas à tona experiências que há muito tempo
pesquisadas tendo em vista o seu estavam emersas e que poderiam su-
pertencimento racial e sexual, procurou- cumbir no esquecimento. Experiências
se trazer à tona momentos presenciados importantes, na medida em que permi-
ou vivenciados por elas que envolvem tem entender dimensões relacionadas à
questões raciais e de gênero. identidade das entrevistadas, situação
socioeconômica, pertencimento sexual e
Deparar-se com o novo ou o corri-
racial.
queiro de forma esporádica e
assistemática ocorre comumente com No entanto, trabalhar com fonte oral
qualquer pessoa. Porém, utilizar tais in- não é simples, pois as recordações vêm
formações no contexto de um trabalho acompanhadas de sentimentos que ex-
acadêmico pressupõe a definição de mé- pressam alegrias, tristezas, amarguras,
todo e técnicas de pesquisa. Saber qual esperanças, etc. Lidar com essas ques-
o caminho trilhado é fundamental para tões exige que o pesquisador esteja atento
descobrir, entender e analisar os fatos a fim de evitar que os relatos sejam pre-
com que nos deparamos. judicados pela lembrança, “daquilo que se
queria esquecer.” Como nos alerta
Dessa maneira, chegou-se às ques- Berramam (1975, p. 45), o pesquisador
tões tratadas na pesquisa por meio do “surge diante de seus sujeitos como um
resgate da memória, por considerarmos intruso desconhecido, geralmente inespe-
que a memória nas suas diversas dimen- rado e freqüentemente indesejado. As
sões nos possibilitaria lidar com uma fon- impressões que estes têm determinarão
te fértil e muito rica, que retrataria as- o tempo e a validez dos dados aos quais
pectos fundamentais da história das en- será capaz de ter acesso e, portanto, o
trevistadas. Segundo D’Aléssio (1993, p. grau de sucesso de seu trabalho.”
98) “A memória é história viva e vivida e
permanece no tempo, renovando-se. A Desse modo, a análise das informa-
história é assim o lugar da permanência ções aqui expressas pelas três graduandas
e nela o desaparecimento das criações negras, em consonância com Orlandelli
grupais é apenas uma aparência. A me- (1998, p. 61) procurou respeitar as dife-
mória é a possibilidade de recolocação renças, o modo de pensar de cada uma,
das situações escondidas que residem na fator primordial para que a entrevista pu-
sociedade profunda (províncias um pou- desse transcorrer em clima de confiança e
co afastadas), na sensibilidade (expres- de respeito mútuo. Isto posto, na leitura
são dos rostos).” do artigo espera-se que o leitor possa ob-

54
servar como as diferenças são vistas na à discriminação racial de forma mais in-
sociedade e como as pessoas que as car- tensa e incisiva do que as lembranças dos
regam vêem a si próprias. Uma interação entrevistados4. Até que ponto essa dife-
nem sempre tranqüila, mas que é constan- rença se deve ao fato de os entrevistados
temente vivida e reconstruída pelas alunas estarem imersos em uma sociedade
aqui retratadas, na intenção de alcançar um machista é uma hipótese a ser conside-
lugar digno na sociedade. rada, pois as lembranças, atitudes e rea-
ções reputadas como normais nas falas
Alunas negras: uma questão de
das mulheres dificilmente aparecem na
“raça”3 e gênero
fala dos homens. Provavelmente, a pre-
Nos relatos dos/as entrevistados/as sença de tais reações entre os homens
sobre suas trajetórias escolares, pode-se seria encarada socialmente como sinal de
verificar que o preconceito e a discrimi- fraqueza. De qualquer modo, essa maior
nação racial, na maioria dos casos, foram sensibilidade das mulheres ao preconcei-
uma constante, quer seja em forma de to e à discriminação racial nos remete às
discurso ou de ações, quer pelo silêncio questões que vêm sendo colocadas pelos
da escola em relação à questão racial, estudiosos das questões de gênero. Se-
confirmando o que Cavalleiro aponta em gundo esses estudos, na sociedade brasi-
sua pesquisa: “O silêncio que atravessa leira o padrão predominante nas relações
os conflitos étnicos na sociedade é o mes- sociais foi construído tendo como base os
mo que sustenta o preconceito e a discri- homens e, consequentemente, as mulhe-
minação racial no interior da escola.” res ficaram relegadas a um segundo pla-
(Cavalleiro, 1998, 182) no 5 . Como mostram Arias e Riscarolli
No entanto, quando se comparam os (1998, p. 113) “Para discutir a questão
depoimentos dos alunos de ambos os se- de gênero na atualidade é preciso ter pre-
xos, percebe-se que as lembranças das sente que, embora em menor freqüência,
entrevistadas remetem ao preconceito e o homem ainda é considerado a norma, a
3
A utilização dos termos “raça” ou “racial” serão usados aqui, entre aspas, para se referir às caraterísticas
estéticas dos indivíduos. “Embora esse conceito [raça] cientificamente trate de características biológi-
cas dos indivíduos e por isso denote as características genéticas (genótipo), costuma-se considerar
como sendo atributos raciais, as características externas (fenótipo): cor da pele, altura; tipo de cabelos
etc. Apesar de os biólogos afirmarem que as raças não explicam as diferenças existentes entre os
homens – ou seja, que as raças são insignificantes ou irrelevantes, do ponto de vista genético, para
explicar a distinção entre grupos humanos -, as características fenotípicas são entendidas como dife-
renças raciais pelo sujeitos envolvidos nas relações que mantêm entre si.” (Valente, 1998, grifos da
autora).
4
Algumas características nas histórias de vida das alunas e dos alunos se diferenciam, quando se leva
em consideração o grau de preconceito e discriminação a que ambos foram submetidos, sendo que as
mulheres foram as que mais sofreram nesses aspectos. Esse ponto mostra-se análogo ao encontrado
na pesquisa de Teresinha Bernado (Bernardo, 1998, p. 14).
5
A valorização do masculino em detrimento do feminino é uma relação que vem sendo construída
historicamente. Para demonstrar essa dominação, Montserrat Moreno utiliza o termo “androcentrismo”.
Segundo a autora, “androcentrismo consiste em considerar o ser humano do sexo masculino como o
centro do universo, como a medida de todas as coisas, como o único observador válido de tudo o que
ocorre em nosso mundo, como o único capaz de ditar as leis, de impor a justiça, de governar o mundo.
É precisamente essa metade da humanidade que possui a força (o exército, a polícia), domina os meios
de comunicação de massas, detém o poder legislativo, governa a sociedade, tem em suas mãos os
principais meios de comunicação e é dona e senhora da técnica e da ciência.” (Moreno, 1999, p. 23).
55
mulher diversa da norma.” a escola não apenas reproduz ou reflete as
concepções de gênero e sexualidade que
As atividades profissionais exercidas
circulam na sociedade, mas ela própria as
pelas mulheres sempre foram consideradas
produz, leva ao entendimento de que a pro-
de menor importância dentro do contexto
posta objetiva e explícita da escola é a cons-
social. Nesse sentido, Rosemberg (2000, p.
tituição de sujeitos masculinos e femininos
131) reportando-se a Isquierdo lembra-nos
heterossexuais”. (Grifos da autora).
que essa autora considera que o “precon-
ceito diante das diferentes capacidades das O conteúdo escolar transmitido aos
mulheres e dos homens (que conceitua alunos/as configura-se como um dos pon-
como sendo sexismo) é acompanhado de tos fundamentais desse processo de re-
uma concepção hierárquica de dominação produção das desigualdades de gênero.
de gênero masculino sobre feminino. As ca- Além disso, a ausência da discussão de
pacidades específicas das fêmeas têm a ver questões de gênero no contexto escolar
com atividades de gênero consideradas de faz com que essa instituição transmita aos
segunda ordem para o funcionamento e de- alunos um saber único, sem levar em con-
senvolvimento da sociedade, precisamente ta as diferenças. Segundo Moreno (1999,
as relativas à produção da vida humana. As p. 69) “Com a boa intenção de oferecer o
atividades específicas dos machos, relativas melhor para seus alunos, as professoras
à produção e administração das coisas, con- e os professores mais experientes, para
sideram-se fundamentais, de primeira or- evitar discriminações, apresentam um
dem. A partir dessa valorização distinta do modelo único para alunos e alunas, que é
masculino sobre o feminino constrói-se uma o mais valorizado socialmente, ou seja, o
hierarquia de gênero.” masculino, eliminando radicalmente, ao
fazer isso, o modelo feminino. Não tra-
Enfim, o debate em torno do gênero
tam de criar um modelo novo que integre
gerou discussões e trouxe à tona aspectos
o positivo de cada um e recuse o negati-
que a sociedade considerava naturais. A
vo, mas tornam o masculino como o me-
posição subalterna ocupada pelas mulhe-
lhor e ignoram a existência do feminino.”
res, a desvalorização social a que estas fo-
ram relegadas bem como a contribuição das Por outro lado, as desigualdades ra-
diversas instituições sociais para a repro- ciais que mantêm o negro no nível de uma
dução e manutenção dessas desigualdades cidadania de segunda categoria e relega-o
foram severamente denunciadas. Nesse a posições sociais inferiores à dos bran-
contexto, a escola como uma instituição que cos, na sociedade brasileira6, tem sérias
exerce papel fundamental na formação dos conseqüências para a mulher negra, na
indivíduos acaba sendo, em determinados medida em que ela sofre dupla discrimina-
aspectos, produtora e reprodutora dessa ção, por ser mulher e por ser negra. Como
desigualdade. Como afirma Bernardes lembra Whitaker (1995, p. 43) “... meni-
(1998, p. 228) “O reconhecimento de que nas negras sofrem agressões ainda mais
6
A referência ao conceito “cidadania de segunda categoria” está baseada nas considerações de Hanchard.
“Assim, embora em alguns casos se aplique o velho ditado brasileiro de que dinheiro embranquece,
também é verdade que a negritude mancha. Isso nos leva a outro modo de entender a maneira como a
esfera pública, o espaço público são privatizados – pela forma que seus sujeitos ou cidadãos privilegiados
discriminam publicamente os menos privilegiados. Até em circunstâncias em que a cidadania é um dado,
como no Brasil contemporâneo, algumas pessoas são consideradas cidadãs de segunda classe em relação
a outras. O preconceito racial não é apenas afirmado em particular, mas também invariável e publicamen-
te articulado e, em algum nível sancionado.” (Hanchard, 1996, grifos do autor).
56
violentas à sua auto-estima, como resul- ria ir muito não, porque principalmente
tante de dois vetores de desvalia fortes menina, chamavam: “ Macaca, medusa”.
em nossa sociedade: raça e gênero.” Porque na época eu usava trança. No
(Grifos da autora). começo isso não existia, mas no meio
Além dessas duas dimensões, há que se acentuou. (...) Por causa de uma cena
que teve, eu discuti com o menino, uma
se considerar ainda a posição
coisa boba de brincadeira e aí todos os
socioeconômica da mulher negra, em ge-
meninos se rebelaram contra mim, co-
ral, desfavorável. Desse modo, a mulher
meçaram a me xingar: “Sua neguinha
negra é portadora de três atributos que
sarará”. Era muito que eles falavam.
podem ser alvos de possíveis discrimi-
“Neguinha macumbeira, sua macaca e
nações. “Na verdade, há uma situação não sei o que...” (Renata)
de marginalização da mulher negra, es-
condida por detrás do mito da democra- Nessa idade não sentia o preconceito,
cia racial que não permite que se enxer- nem sabia o que era na realidade, aí eu
gue que ser mulher, negra e pobre pode fui para outra escola, mudei, fiz a 3ª e
4ª séries, aí comecei a sentir mais, meu
significar ser muito mais discriminada em
cabelo como eu tinha cortado, eu usa-
razão de gênero, etnia e classe social.”
va ele todo armado, sabe? Ele era com-
(Jesus, 2000, p. 40)
prido e me chamavam de bruxa, de
Na análise das entrevistas procurar- neguinha, de várias coisas. (Débora)
se-á, portanto, captar como as alunas
Lembro de uma vez que um menino me
lidam com essas dimensões para que não
chamou de negrinha, a professora ti-
se tornem obstáculos que as impeçam
nha saído da sala, aí eu taquei o estojo
de alcançar os objetivos profissionais e nele. (Mariana)
pessoais pretendidos para o futuro.
Os relatos, tanto de Renata como de
Inicia-se o processo escolar Débora, mostram que ambas foram víti-
Nos primeiros anos escolares das mas de discriminação racial em razão da
entrevistadas, foram várias as novida- sua aparência física, situação já apontada
des, algumas boas e outras nem tanto. em outras pesquisas, como a de Oliveira
O estar freqüentando uma instituição (1994, p. 41): “Notamos também que al-
educacional era motivo de deslumbra- guns motivos que levavam algumas crian-
mento e descobertas, um novo mundo ças a ser violentamente discriminadas pe-
surgia em suas vidas. Novas amizades, los colegas era o fato de terem traços físi-
novas brincadeiras, novos conhecimen- cos de negritude bastante ressaltados. (...)
tos e o contato com um processo que Comentários, piadas e chacotas eram fei-
seria marcante para a sua colocação fu- tos envolvendo essas crianças e a ques-
tura na sociedade, a educação. Porém, tão da negritude.”
se a escola propiciou momentos positi- Tal fato pode ter ocorrido porque nor-
vos, observa-se também o contrário, malmente o padrão de beleza vigente se
pois a discriminação foi algo que se apre- baseia nas características físicas do bran-
sentou de forma marcante. co europeu e isso faz com que as crianças
Acho que a partir dos sete anos, você negras sejam vistas pelas demais como
começa a ver as diferenças, era bastante as diferentes, as que têm características
engraçado, tinha época que eu não que- exóticas e, por isso, podem ser alvo de
57
chacota e apelidos pejorativos7: nas en- estando atrelado às diferentes significações
trevistas, o termo “medusa”, referência ao que o contexto lhe atribui. Oliveira (1994,
cabelo de Renata, associa-o ao da perso- p. 29), comentando Vygotsky, chama a
nagem grega que assustava e transmitia atenção para o fato de que o significado é
medo; “macaca”, lembra o animal visto o resultado de uma construção social. Ao
como primitivo e selvagem; “macumbei- relacioná-lo às definições, tal como se
ra”, aquela que por meio de ritos diabóli- apresentam no dicionário, coloca-o como
cos usa de feitiço em forma de despacho um conteúdo semântico, de natureza con-
para desejar e fazer o mal aos outros, pois vencional e relativamente estável, que
tais rituais seriam derivados de seitas afri- permeia as interlocuções e possibilita a pro-
canas8; “bruxa”, apelido dado a Débora, dução de sentidos. Por outro lado, o sen-
compara-a às personagens de histórias em tido da palavra é apresentado como um
que uma mulher de aparência “feia”, nor- todo complexo, fluido, dinâmico que tem
malmente de cabelo armado, causa pâni- várias zonas de estabilidade desigual.
co e medo. Cavalleiro (1998, p. 120) cha- (Grifos da autora)
ma a atenção para as conseqüências de
Mas, voltando aos relatos, fica evi-
tais atos: “A inculcação do estereótipo
dente que as alunas tinham a noção do
inferiorizante visa reproduzir a rejeição a
caráter pejorativo, embora a reação de
si próprio, ao seu padrão estético, bem
cada uma delas tenha sido diferente. As-
como aos seus assemelhados. (...) A
sim Renata diz:
inculcação de uma imagem negativa do
negro e de uma imagem positiva do bran- (...) não queria ir para a escola por cau-
co tende a fazer com que aquele se rejei- sa disso, não queria ir de jeito nenhum.
Mas, fui me acostumando, me acomo-
te, não se estimule e procure aproximar-
dando, teve uma hora que eu já não
se em tudo deste e dos valores tidos como
ligava. Lembro que teve um período que
bons e perfeitos.”
parei de falar com todos os meninos da
É importante assinalar que nos três escola, não falava com menino nenhum.
relatos aparece o termo “neguinha” que
em situação normal não teria conotação Inicialmente, Débora brigava, depois,
pejorativa, pois não haveria problema passou a usar estratégia semelhante à de
lembrar uma característica da pessoa. Renata, isto é, não se incomodar:
Porém, nas situações relatadas, não é isso Eu era muito briguenta, só que eu ti-
o que ocorre. O termo vem carregado de nha amigas brancas e elas ficavam do
um sentido pejorativo e lembra as teorias meu lado, geralmente eles me xinga-
racistas que consideravam o negro como vam do nada, se a gente estava com
feio e inferior, numa demonstração de que alguma briga eles começavam a xingar
o sentido de uma palavra não é unívoco, e falavam alto. Mas nessa época eu não

7
Em sua pesquisa, sobre a questão da identidade em contexto escolar Oliveira (1994, p. 91) observou
que as meninas eram alvos freqüentes de discriminação racial verbalizada por parte dos meninos. “As
meninas que eram alvos freqüentes de xingamentos por parte dos meninos eram as pretas. Feia,
fedorenta, filhote de urubu, macaco eram algumas referências feitas a elas.” (Grifos da autora).
8
O uso pejorativo do termo “macumbeira” pode, de maneira análoga, mostrar a herança, provinda da
visão deturpada que se tinha dos rituais afro-brasileiros nas primeiras décadas do Séc. XX; “...esses
acontecimentos eram alvos de perseguições e discriminações: coisas de preto, macumba, era malfeito
que emergia dos atabaques, segundo a leitura oficial.” (Bernardo, 1998).
58
ligava, isso não me atingia muito, eu Posso dizer que ele era mestiço, dancei
acho, pelo menos não lembro de ter com ele, isso eu lembro. É difícil, os
chorado. (Débora) meninos sempre querem dançar com as
brancas... (Mariana)
Mariana, no episódio relatado, age de
forma mais violenta contra o menino, Esses fatos demonstram que nos
“taquei o estojo nele”. eventos em que seriam formados pares,
os meninos tinham maior predisposição
Em outros momentos, a escola, para
para escolher as meninas brancas, “nun-
criar um ambiente agradável para a apren-
ca queriam dançar com a negra”. A meni-
dizagem de seus alunos, promove festivi-
na negra nunca é o par ideal, tendo em
dades. Momentos de grande alegria e
vista a maneira preconceituosa como suas
descontração de todos, festeja-se uma
características físicas são consideradas,
data especial, um evento cultural ou, ain-
questão análoga à observada em pesqui-
da, realizam-se jogos. Porém, esses acon-
sa desenvolvida por Oliveira (1994, p. 21):
tecimentos podem não ser alegres para
“A marginalização, a exclusão e o conflito
todos os alunos, na medida em que al-
marcavam a relação entre essas crianças
guns acabam se deparando com experi-
[negras] e as outras: alguns alunos não
ências desagradáveis. Os traços físicos das
queriam se sentar nem realizar ativida-
alunas negras podem se constituir em em-
des escolares com elas.”
pecilho para que participem plenamente de
tais festividades, na medida em que são A alternativa encontrada pelas alu-
recusadas pelas demais ou, mesmo que nas era dançar com o amigo, “aquele que
isso não ocorra, receiem que possa vir a acompanhava na bagunça no fundo da
ocorrer, tendo em vista a consciência da sala”, “um mestiço”, “um negro”. Entre-
negatividade que sua aparência desperta tanto, o fato de o menino negro do fundo
nos demais alunos. da sala se constituir a alternativa para a
formação do par, além de mostrar uma
Lembro que quando tinha festa junina
eu morria de medo, sabe? De não ser certa solidariedade entre as crianças que
escolhida para dançar, naquele momento se identificavam com traços físicos co-
eu lembro que eu ficava receosa, mas muns, também demonstra a separação
sempre tinham alunos negros e eu sem- espacial a que a criança negra é submeti-
pre ia dançar com os negros. Eu era da no interior da sala, o que terá como
muito amiga deles, ficava no fundo, ba- conseqüência a sua associação à bagun-
gunçava bastante e tinham uns negros ça, aquilo que é pouco valorizado.
que também bagunçavam e eu junto Cavalleiro (1998, p. 150) refere-se a
com eles e tal. (Débora) essa separação espacial: “... a criança
Acho que em época de festa junina os negra (...) é um indivíduo diferente na
meninos nunca queriam dançar com a escola, o qual tem um espaço demarca-
negra, né? Tem uma foto lá em casa do que não é o lugar comum onde se
que eu estava dançando com esse me- encontram as demais crianças. Ela é
nino que era meu amigo, nem sei se quase sempre a mais briguenta, a mais
era bagunça que a gente fazia. levada”. (grifos da autora).
Esse menino era do tipo dessas pes- Se esses fatos negativos estão pre-
soas que falam: “Nunca passou pela mi- sentes e são responsáveis por uma série
nha cabeça a minha cor”. de humilhações e traumas, poder-se-ia

59
perguntar o que os professores, a escola era como se eu fosse igual aos outros,
e os pais fazem para lutar contra isso: só que por outro lado, ela sabia que ha-
via o preconceito e não tocava no as-
[Quanto ao enfrentamento desses pro-
sunto, era como se não houvesse: É coisa
blemas] Olha! Os professores não lida-
de criança e não sei o que, diziam eles.
vam com essas questões, pelo menos
(Débora)
que eu lembre, nunca tive um profes-
sor que falasse: “Oh, Renata, não liga, Na lembrança de Débora, os proble-
tenha orgulho”. mas que enfrentava na escola não eram
Nunca tive isso, pelo menos da 1ª à 4ª discutidos. A sua professora, Eleonor, ape-
série. Quanto aos meus pais, sim! E mi- sar de tratar “todo mundo igual”, acabava
nha irmã mais velha, eles sempre pedi- não reconhecendo as especificidades de
ram calma e para não me importar com seus alunos, tanto é que sabia da exis-
isso: “Você é negra, isso não tem pro- tência de preconceito, mas “não tocava
blema nenhum, tenha orgulho por isso”. no assunto”. Esse fato é semelhante ao
observado por Gonçalves (1987, p. 27),
Quando me chamavam de feia, eles fa-
que, por sua vez, chama atenção para o
lavam que eu era bonita e assim iam
contornando a situação. (Renata) paradoxo implícito nessa maneira de agir
“...esses mesmos professores defendiam
As palavras de Renata demonstram um discurso sobre um tratamento igual a
que os problemas “raciais” que enfrenta- todos os alunos. Esse discurso, porém,
va na escola não eram debatidos. Os pro- introduzia, no quotidiano escolar, um pa-
fessores não comentavam e não lhe da- radoxo, pois, em lugar de superar os pro-
vam nenhum apoio. Tampouco, procura- cessos discriminatórios frente à popula-
vam auxiliá-la na formação e manuten- ção negra, preconizando o tratamento
ção de sua auto-estima, mostrando que igual a todos os alunos, acaba revelando
as diferenças estéticas dos alunos eram uma das formas pelas quais a discrimina-
normais e que cada um deveria ter orgu- ção racial se manifesta na escola”. (Grifos
lho de si próprio. Porém, o pai e a irmã da do autor).
entrevistada agiam de forma contrária à
escola apoiando-a, aconselhando-a a en- Por outro lado, tanto para a profes-
frentar as discriminações e estimulando- sora como para o pai de Débora, os pro-
a a não se deixar desvalorizar por esses blemas que ela enfrentava não eram con-
acontecimentos, enfim, a ter orgulho de siderados como algo sério, seriam ape-
ser negra e a aceitar essa condição como nas “coisa de criança”. A atitude de am-
algo normal e positivo: bos desconsiderava a capacidade de as
crianças reconhecerem os diferentes e
[Quanto à reação dos professores] não reproduzirem contra eles os preconceitos
lembro muito, lembro de uma profes-
adquiridos nas relações mantidas no meio
sora que eu amava, Dona Eleonor, que
em que vivem. Elas talvez não tenham
conhecia meu pai desde criança, era uma
noção da gravidade de seus atos, mas
mulher idosa, mas eles nunca tocavam
sabem o que vem a ser uma ofensa a ou-
nesse assunto. Para eles era como se
tra criança.
não existisse o problema. Lembro que
ela tratava a gente como iguais. Tanto Estudiosos argumentam que mesmo
é que ela gostava muito de mim, sem- antes de freqüentar a escola, as crianças
pre estava me elogiando e tal. Para ela já sabem que as pessoas são discrimina-

60
das conforme a sua cor e, nesse sentido, os meninos ficavam interessados por
propõem que o racismo seja discutido des- mim e quando ficavam, não eram aque-
de os primeiros anos de escolaridade9. les meninos cobiçados que eu queria
que ficassem, entendeu?
Passados cinco anos, o processo
(...) Estava no SESI na 5ª e 6ª séries,
escolar continua
tinha colegas, não tinha amigos, amigos
Ao nos reportarmos à fase posterior assim mais próximos. Acho que isso, um
da trajetória educacional das entrevista- pouco, era por causa da cor. (Débora)
das, 5ª à 8ª séries, percebe-se que os As meninas da escola, lembro que elas
problemas ligados à questão racial conti- passavam em casa para gente ir para
nuam presentes. Embora em algumas oca- escola juntas e nós voltávamos juntas.
siões eles não sejam tão evidentes, em Mas a gente percebe - todas elas eram
outras, as entrevistadas sentiram o peso brancas - que entre elas tinha preferên-
que representa ser mulher e negra em cia de amizades. Você sempre fica na
margem, é amiga, mas não é tão ami-
uma sociedade que não sabe trabalhar
ga, era só para a escola mesmo. Ir à
com as diferenças de “raça” e gênero.
casa, acho que eu ia à casa delas algu-
Assim, tanto na maneira como as mas vezes, muito difícil elas irem em
entrevistadas se relacionam com os de- casa. Para fazer trabalho eu ia à casa
mais alunos, como nos seus relaciona- delas, na escola era assim.
mentos afetivos, pode-se perceber a for- (...) Dessa fase lembro que as meninas
ma sutil do preconceito racial em relação começavam a namorar e eu não. Na
à sua aparência física: escola tinham as paquerinhas e eu não,
Nessa época era engraçado, eu só me isso me lembro, é a época que as meni-
relacionava com negros. Na 1ª série a nas estão começando a paquerar e eu
minha amiguinha era branca, morava per- não, é isso mesmo. (Mariana)
to da minha casa. Já quando eu estava As amizades das entrevistadas se di-
na 5ª até a 8ª série as minhas melhores ferenciavam. Renata, apesar de ter tido
amizades eram entre negros, acho que uma amiguinha branca na primeira série,
começou a pintar esse lance de identida- passou a ter colegas negros/as como os
de, essa coisa da formação da identida- seus melhores amigos/as. A identidade
de, uma coisa da adolescência. Eu procu- “racial” estava se constituindo e, conse-
rava um grupo de iguais, então, era sem- qüentemente, a afinidade e uma certa
pre entre os negros e negras. Os namo- solidariedade “racial” entre os iguais.
radinhos eram sempre os negros, né? As Débora, por sua vez, estava num momento
amizades eram nesse grupo. (Renata) em que não parava para pensar em as-
Eu cheguei na 5ª série, já tinha come- suntos relacionados à sua aparência físi-
çado a adolescência, aí você começa a ca, “queria brincar”, mas sentia que a
paquerar, ver os meninos e não sei o ausência de amigos mais próximos “era
que. Comecei a perceber que as meni- por causa da cor”. Mariana tinha como
nas loiras, as branquinhas, tinham muito companheiras no trajeto de ida e volta da
mais possibilidades que eu e raramente escola amigas brancas, mas se sentia à

9
Ver a respeito o trabalho “Rosas e pintinhos ensinam tolerância”, desenvolvido pela professora Ana
Lúcia Sena nas turmas de educação infantil da Escola Oliva Ensino, em Campo Grande (MS) (Regina,
1999).

61
margem. Era apenas uma amizade super- ticularidades sociais de quem olha e de
ficial, pois as outras meninas preferiam quem é visto.” (grifos do autor).
interagir entre elas.
Peter Fry, ao argumentar que a apa-
Essas situações mostram como o fa- rência foge de qualquer apriorismo racial,
tor “racial” está presente nas amizades, chama atenção para um discurso ambígüo,
pois o melhor amigo das crianças bran- pois mostra que a percepção da aparência
cas, normalmente, não está fora do seu se baseia em juízos de valor que podem
grupo “racial”, o “amigo” negro será con- ser influenciados pela “raça”. Assim, as en-
siderado em poucos momentos e de for- trevistadas, ao serem preteridas nos mei-
ma superficial10. os que freqüentavam, de uma forma ou
Observando-se os primeiros de outra, são submetidas à preferência que
envolvimentos afetivos das entrevista- possivelmente não recai em pessoas com
das, nota-se que Renata, devido à pro- fenótipo do grupo ao qual elas pertencem,
cura por um “grupo de iguais”, teve na- ou seja, o grupo negro.
moradinhos negros; Débora começa a Tendo em vista tal fato, poder-se-ia
paquerar, mas percebe que “as meninas perguntar: Gosto é gosto? A resposta mais
loiras, as branquinhas” eram mais pro- provável seria não. Os gostos não surgem
curadas e ela não despertava o interes- simplesmente do nada, são baseados em
se dos meninos que cobiçava. Os que se determinados padrões vigentes e as pes-
interessavam por ela não eram os seus soas que não correspondem a esses pa-
preferidos. Já Mariana lembra que nessa drões podem ser excluídas ou ter pouca
fase enquanto as outras meninas co- aceitação. Nesse sentido, pode-se dizer
meçavam a “paquerar”, ela não se en- que os gostos também são direcionados
volvia nesse tipo de relacionamento. e mediados pela cultura e pela “raça”.
Esses fatos mostram que os relacio-
Pelos relatos, observa-se que a es-
namentos afetivos são permeados por di-
cola se assemelha à sociedade, ao ofere-
versos fatores e um deles é a aparência
cer condições desiguais para os indivíduos
física que deve estar de acordo com de-
que a freqüentam, inclusive no aspecto
terminado padrão de beleza. O termo apa-
afetivo, na medida em que as oportunida-
rência, segundo Fry (1995/1996, p. 126),
des de amizades e de relacionamentos
“é apropriado porque é muito usado no
afetivos oferecidas às entrevistadas são
Brasil e porque foge de qualquer apriorismo
mais escassas ou nulas, quando compa-
racial. Como a beleza está no olhar de
radas às pessoas de grupo “racial” que di-
quem vê, a aparência não é nunca objeti-
fere do delas.
va. É sempre um juízo de valor, possibili-
tado pelas categorias culturais e pelas par- No entanto, poder-se-ia questionar que

10
Contar com um círculo forte de amigos é importante para quebrar barreiras no mercado de trabalho,
que se apresenta extremamente excludente e que seleciona parte de seus integrantes por critérios
que não se ligam diretamente à capacidade profissional. “Como muitos observadores notaram, a vida
brasileira baseia-se em relacionamentos, trocas e favores pessoais, em um grau maior que nos Esta-
dos Unidos (onde é claro essas interações, muitas delas também ocorrendo em clubes sociais e orga-
nizações cívicas, não são de modo algum insignificantes). Os antropólogos descreveram as redes
sociais mais amplas através das quais os membros da classe média brasileira mantêm e cultivam as
relações pessoais que são indispensáveis para abrir o seu caminho em um ambiente difícil e intensa-
mente competitivo.” (Andrews, 1998, p. 267).
62
a aparência física é um aspecto importante bem passada, né? Talvez eu me sentis-
das relações sociais, independentemente do se melhor que as outras crianças por
sexo e da “raça” das pessoas, não afetan- causa disso e as outras se sentissem
do exclusivamente a menina negra. Essa in- inferiores, aí tive muita briga. Não era
terrogação pode ser parcialmente verdadei- em torno da questão racial, era social,
ra, pois muitos indivíduos, independentemen- é até engraçado a gente entender, mas
te de sua “raça” ou sexo, passaram por si- isso lá faz muita diferença. (Renata)
tuações análogas. Porém, quando se ob- No caso citado, pode-se observar que
serva como a sociedade cria expectativas a mãe procurava manter Renata bonita,
permeadas pela condição racial e pelo sexo, valorizando assim sua auto-estima. No en-
percebe-se que esses fatores podem exer- tanto, se isso ajudava em determinados
cer influência. Segundo Whitaker (1995, p. aspectos, atrapalhava em outros, pois, pelo
42), “Aspirações também se fundamentam fato de estudar em uma escola da perife-
em expectativas. Meninas são treinadas des- ria favorecia o atrito com outras crianças.
de muito cedo para o exercício da beleza. O exemplo, por sua vez, mostra a pressão
Nada de errado, se o conceito de beleza social que recai sobre a mulher, ou seja, o
fosse mais natural. O que se observa, po- cultivo constante da beleza, como se fosse
rém, é que os maiores elogios à beleza das uma atitude natural que se espera dela
meninas se prendem ao fato de estarem como mulher e, não, uma construção so-
limpinhas, perfumadas ou artificialmente en- cial, questão também observada por Oli-
feitadas (o que implica ausência de movi- veira (1994, p. 67) “Os enunciados dos alu-
mento). (...) Quanto aos meninos, serão nos sugerem que enquanto o domínio do
elogiados e admirados pela sua esperteza, feminino, por um lado, é marcado por va-
o que significa usar roupas práticas, andar lores e atitudes em que predominam a be-
sujos e desgrenhados, se necessário. Há um leza, a obediência, a quietude, as demons-
prazer indisfarçável no discurso de pais e trações afetivas, o fato de ser exibida e,
mães quando contam travessuras dos me- raramente, a bagunça; o domínio do mas-
ninos. A um observador atento não esca- culino, por outro lado, é caracterizado pelo
pará a sutileza com que estimulam tais fa- cumprimento e transgressão às regras, é o
çanhas nem o enlevo com o qual apontam domínio da quietude e da bagunça, simul-
a suavidade das meninas.” taneamente, e, principalmente, do ser ma-
Algumas situações descritas pelas cho.” (Grifos da autora)11.
entrevistadas remetem a essa questão: No relato de Débora, a questão da
Minha mãe é cabeleireira e eu sempre beleza aparece com mais força e cons-
ia bem bonitinha para a escola, com as tantemente é relacionada à sua adscrição
trancinhas, fitinhas no cabelo e roupinha racial, o que trará problemas para sua

11
Comentando o trabalho de Silva e Justo, a autora ainda irá mostrar que “... ao discorrer sobre a
situação atual da mulher na sociedade brasileira, Silva e Justo (1989) também chamam a atenção para
estas diferenças (que não são por acaso) e que historicamente têm perpassado o domínio do mascu-
lino e do feminino. Centrando-se na educação familiar de meninos e meninas, apontam para a forma
como a menina é levada a se resguardar, a ser disciplinada e bem-comportada e a preocupar-se mais
com a sua aparência física (a beleza) do que com o desempenho acadêmico. Em outra direção, desta-
cam-se a educação dos meninos, afirmando que eles são incentivados a ir para a rua e enfrentar
desafios – por intermédio de valores e atitudes associados à coragem e determinação, e a desenvolver
uma identidade autônoma.” (Idem, ibidem, p.67-68 Grifos da autora).
63
auto-estima e identificação como negra: tros como de si mesma.
[Sobre a questão racial] não tinha co- Os fatores que impulsionaram Débo-
nhecimento nenhum, só sabia que era ra a construir uma imagem negativa de si
negra, isso eu sabia, meu pai nunca fa- mesma não são de natureza individual e,
lou que eu era morena, às vezes eu fi- sim, social. Certamente eles tem sua ori-
cava assim: gem no preconceito racial que durante
- Por que eu não nasci branca? muitos anos foi sendo introjetado por ela
e, nesse momento, vêm à tona desven-
Eu ficava me questionando, achava que
dando sua face cruel.
tudo ia ser mais fácil, paquerar seria
mais fácil, as pessoas iriam gostar de O estudo de Gomes (1996, p. 77),
mim mais fácil, achava que tudo ia ser mostra como o padrão de beleza branco é
mais fácil. o que vigora na escola. “... desde o início
(...) era horrível, sentia-me muito feia da trajetória escolar, a criança [negra] se
nessa época, nossa! Sentia-me horrível, depara com um determinado tipo de au-
puxa! Minha irmã também passou por sência, que a acompanhará até o curso
isso, eu me sentia gorda, usava apare- superior (isto é, para aquelas que conse-
lho nos dentes, não gostava do meu guirem romper com a estrutura racista da
cabelo. Foi uma época muito ruim para sociedade e chegar até a universidade):
mim, foi uma época que eu não gostava a quase inexistência de professoras e pro-
da minha cor, não gostava, não gostava fessores negros. A criança negra se de-
de jeito nenhum. para com uma cultura baseada em padrões
Na 8ª série consegui a medalha de me- brancos. Ela não se vê inserida em livros,
lhor aluna. Foi uma vitória para mim, nos cartazes espalhados pela escola ou
meu pai foi lá, eu posei com a medalha ainda na escolha dos temas e alunos para
e me achava o máximo. Então, era essa encenar números nas festinhas. Onde quer
forma de me sobressair, porque eu me que seja, a referência da criança e da fa-
achava horrível, achava-me um lixo. Eu mília feliz é branca. Os estereótipos com
era inteligente, as pessoas me achavam os quais ela teve contato no seu círculo
inteligente, o que acontecia? Os profes- de amizades e na vizinhança são mais
sores me elogiavam, todos os professo- acentuados na escola, e são muitos mais
res falavam que a Débora era isso, a cruéis.”
Débora era aquilo, eu adorava, isso para
Débora, por ter uma baixa aceitação
mim era meu sentido de vida. (Débora)
de si mesma, se satisfazia em ser elogia-
A rejeição de Débora à sua cor, ao da por sua capacidade intelectual e, nes-
seu porte físico, ao seu cabelo, mostra que se aspecto, sentia-se aceita pelos amigos
a beleza física para ela não correspondia e professores. No entanto, a imagem físi-
às suas características físicas e, sim, ao ca que desejava para si ultrapassava o
padrão do grupo “racial” diferente do seu, campo das suas possibilidades, o que a
pois o modo como se refere à sua cor e deixava bastante inconformada pois a sua
ao seu cabelo demonstram isso. Para ela, noção de beleza se pautava pelo padrão
ser branca e ter cabelo diferente do seu, estético aceito pela maioria, ou seja, o
provavelmente liso, lhe possibilitaria re- padrão predominante no segmento que
alizar seus desejos e lhe propiciaria uma ocupa lugar de destaque na sociedade.
maior aceitação, tanto por parte dos ou- Assim, a noção de que o Brasil apresenta

64
um padrão de beleza feminino que tam- No 2° e 3° colegial foi uma época que
bém valorizaria a mulher negra, na figu- me descobri e comecei a me arrumar
ra da mulata, é muito frágil e paradoxal, mais, ficar mais bonita e me cuidar. Co-
como observa Inocêncio (1995, p. 29) mecei a namorar muito, tinha muitos
“Todavia, ainda que se queira reforçar os namorados, muita gente que me
atributos de uma estética ocidental, ela paquerava, no cursinho também tinha
acaba tendo, no Brasil, aspectos contra- vários meninos que me paqueravam. Era
uma classe média, mas era de gente
ditórios. Senão vejamos. No imaginário
mais velha, diferente de quando você é
masculino brasileiro a mulher ideal pos-
adolescente. Tinha professores que me
sui uma aparência européia, muito em-
paqueravam, mas tipo assim, não sen-
bora o seu arquétipo seja o da mulher
tia muito preconceito porque era muito
africana. Em outros termos, não basta
paquerada e muito elogiada, muito tudo.
que a mulher seja branca, é preciso sê- (Débora)
la, possuindo uma estrutura corporal e
gestual de mulher negra. Não nos iluda- Enfim, as situações discriminatórias
mos, porém, acreditando que isto seja vividas por Renata, Débora e Mariana por
fruto de uma consciência masculina de- serem negras e mulheres evidenciam o
mocrática. O que ocorre é uma interfe- duplo peso social que recai naqueles que
rência não prevista no percurso da cul- carregam atributos pouco valorizados na
tura hegemônica, e mostra que a nossa sociedade.
africanidade também habita, de certa for- Cursos universitários e profissões
ma, a construção da identidade nacio- femininas?
nal, embora falsa, dissimuladora e racis-
ta. Este é um paradoxo do qual poucos Outra questão a ser investigada na
se dão conta.” trajetória das entrevistadas é como o cur-
so escolhido foi se configurando como
Certamente todo esse contexto de
opção, dado que freqüentam cursos con-
valorização da estética branca contribuiu
siderados femininos, não só pelo grande
para que Débora desenvolvesse uma bai-
contigente de mulheres mas porque as
xa estima da sua adscrição racial. Ela so-
carreiras a que habilitam exigiriam de
mente irá mudar quando passa a freqüen-
suas profissionais atributos relacionados
tar uma escola particular que procurava
ao sexo feminino.
estimular os alunos à crítica e à valoriza-
ção das diferentes culturas e “raças”. Ou- Os relatos abaixo reportam-se às pre-
tro ponto que também contribuiu para essa tensões profissionais das entrevistadas nos
mudança foi a valorização pessoal que ela anos iniciais de sua escolaridade:
sentiu após ser aceita por um grande nú- Nossa! Eu já quis ser de tudo, eu sem-
mero de pessoas. O relato de Débora pre gostei muito de dançar e sabia que
mostra, por sua vez, como a identidade é ia fazer isso por muito tempo. Mas, não
influenciada pelo meio social e está em sabia que existia faculdade de dança
constante mudança12. naquela época. Então, já pensei assim,

12
Segundo Guareschi, (1999, p. 12) “A política de identidade é, em si mesma, uma entidade que está
constantemente se movendo e mudando e sendo continuamente reconstruída. Tudo isso significa que
a política de identidade não deve ser somente branca ou feminina, mas que raça, gênero e sexualidade
têm uma variedade de relações maiores e que estão subjetivamente em interseção.”

65
de astronauta a veterinária, coisas lou- são recompensadas (amadas) quanto
cas. Detesto cachorro e gatos, mas mais feminino for seu comportamento.
queria fazer Veterinária, não gostava de Suas brincadeiras agressivas ou ousadas
jogar bola, mas queria fazer Educação são interceptadas por adultos repressores
Física. Sempre gostei de dançar, acho que, por outro lado, estimulam meninos à
que não decidi fazer logo faculdade de agressividade e à ação. Enquanto meni-
dança, porque não conhecia, não sabia nos chutam bolas, soltam pipas ou sim-
que existia. (Renata)
plesmente inventam artes, as meninas são
Eu sempre queria ser médica, eu lem- presenteadas com adoráveis bonequi-
bro que cogitei de ser enfermeira por nhas.” (grifos da autora)
causa do chapeuzinho, achava bonitinho,
Após os cincos primeiros anos de
mas queria ser médica, desde criança
estudo, embora as pretensões sejam ou-
queria ser médica obstreta, meus pais
sempre incentivaram. (Débora)
tras, a visão profissional das entrevista-
das está em consonância com a represen-
Acho que me lembro da profissão gos- tação que vigora na sociedade sobre o
taria de ser nessa época, lembro que em
lugar profissional da mulher. São campos
casa eu brincava de escolinha com mi-
de atuação possíveis para a mulher e que
nha irmã mais nova do que eu. Não sei
representam um prolongamento das ati-
se era porque queria ser professora, sin-
vidades domésticas. Mesmo estando no
ceramente não sei. (Mariana)
início da adolescência e livres para suas
Percebe-se que as pretensões pro- escolhas profissionais, não deixam de ser
fissionais na infância estavam relacionadas
influenciadas pelos papéis que a socieda-
ao mundo feminino e, por sua vez, se
de espera das mulheres:
espelhavam em profissionais femininas. Os
casos de Débora e de Mariana são exem- Tinha idéia de ser professora, só não
plares nesse sentido: “cogitei de ser en- sabia do que, mas queria trabalhar com
educação, queria dar aula. Achava bo-
fermeira por causa do chapeuzinho, acha-
nito estar lá na frente ensinando. Essa
va bonitinho”, “lembro que em casa eu
foi uma época de bastante indecisão,
brincava de escolinha com minha irmã
não tinha nada definido. (Renata)
mais nova do que eu. Não sei se era por-
que queria ser professora”. Em relação ao que gostaria de ser, acho
que não pensava. Acho que queria fazer
Segundo Felipe et al (1988, p. 66),
química, não sei por quê. Como a gente
“Desde a mais tenra infância, meninos e
sempre teve bicho pensei em ser veteri-
meninas são estimulados nos seus com-
nária, isso porque a gente sempre teve
portamentos até mesmo nas brincadeiras
gato, cachorro, até hoje a gente tem.
onde são imitadas as funções adultas.” No (Mariana)
entanto, as brincadeiras não são isentas
de valores sociais, pois os meninos e Em uma fase posterior da vida esco-
meninas reproduzem os diferentes papéis lar, correspondente ao antigo 2º Grau, as
desempenhados por homens e mulheres entrevistadas já mostram maior
na sociedade, conforme observa Whitaker discernimento sobre o curso universitá-
(1995, p. 40): “Julgo ter demonstrado que rio que pretendem cursar:
as meninas são mais protegidas, além de Comecei a pensar em faculdade a partir
orientadas para brincadeiras que anunci- do 1º colegial, eu comecei a fazer dan-
am a domesticidade. Observei, ainda que ça afro por intermédio dessas minhas
66
amigas que conheci na escola. Até en- sado mais profundamente. Comecei a ler
tão, eu fazia ginástica, gostava de tra- mais sobre enfermagem e passei a gos-
balhar com o corpo, mas não tinha con- tar, desencanei da medicina e prestei
tato com a dança. Antes era muito difí- tudo enfermagem. Quer dizer, no meio
cil fazer ballet ou fazer dança, era mui- do ano prestei Direito, passei e não fui
to caro, não tinha no meu bairro e nun- fazer, prestei na UEL (Universidade Es-
ca tive condições para isso. Foi no pri- tadual de Londrina), só que não fui fa-
meiro colegial que comecei a dançar e zer. Depois passei em enfermagem na
aí já tinha tomado conhecimento que Unicamp e na USFCar, optei pela
existia o curso. Foi na minha 7ª série Unicamp. Gosto muito do curso, real-
que comecei a ficar sabendo. Depois mente é isso que quero fazer, tenho
entrei em contato com essa menina, ela certeza disso. (Débora)
me falava como era o curso e eu decidi.
Depois que terminei o colegial em 92,
(Renata)
prestei o vestibular aqui em Lingüística
(...) Eu só queria medicina, no 3° cole- e não passei. Fiquei um ano sem estu-
gial foi uma loucura, meu pai sempre dar e minha mãe passou a cobrar mais.
me apoiou para eu fazer medicina, mas (...) Aí que ela começou a falar mais da
no 3° colegial ele queria que eu fizesse Ana Paula. Queria que eu fosse igual à
Academia, porque em Pirassununga tem Ana Paula, ela já tinha entrado na fa-
Escola de Cadetes da Aeronáutica e abri- culdade. Sei que em 94 prestei a PUC e
ram para mulher. Meu irmão mais velho entrei em Letras, mas não tinha condi-
fez essa escola e segundo meu pai é ções de pagar e saí.
bom, você estuda com um ensino muito
(...). Comecei a dar aula para adultos,
bom, você ganha para estudar, arrumar
foi aí que pensei em fazer Pedagogia.
um emprego bom e ganhar bastante di-
Antes, quando estava no colegial nunca
nheiro. Era o que meu pai queria e eu
tinha pensado. (Mariana)
iria morar perto de casa. Só que não
tinha nada a ver comigo, odeio o milita- Como se observa, embora nessa fase
rismo, tinha pavor de horas, de regras, as entrevistadas já tivessem uma deci-
não tinha a ver comigo, meu pai sabia. são em relação ao curso pretendido não
Só que ele insistia que eu fizesse, ele deixaram de enfrentar problemas, o que
estava com medo que eu fosse morar fez que tanto Débora como Mariana mu-
fora. Teve uma rixa muito grande em dassem de opção.
casa, fiquei muito perturbada nos últi- Débora já estava decidida a cursar
mos anos, tanto pela pressão dos meus
Medicina, decisão que sempre contou com
pais e tudo mais. Só que eu bati o pé e
o apoio do pai, mas este mudou de idéia
prestei tudo medicina, tudo medicina. Eu
ao sugerir a Escola de Cadetes da Aero-
não passei, só passei na primeira fase
náutica, que tinha aberto vagas para mu-
da Unicamp, mas não consegui passar
lheres. Essa mudança de postura deu-se
na segunda fase. Aí fui fazer cursinho,
fiz cursinho, só que quando estava no
tanto prevendo a segurança financeira que
cursinho comecei a pensar mais se era a profissão traria para a filha, como por
mesmo o que queria fazer, comecei a possibilitar a sua permanência na cidade,
pesquisar mais sobre medicina e tal, ficando assim próxima da família. Esse pro-
tudo bem. Então, comecei a pensar mais tecionismo deixa transparecer o medo que
sobre enfermagem, tinha pensado quan- normalmente os pais têm de deixar as fi-
do era bem pequena, nunca tinha pen- lhas soltas no mundo, longe de seus olha-
67
res protetores que “sabem o que é me- que a entrevistada enfrentou diversas difi-
lhor para elas”. Por outro lado, mostra que culdades até chegar ao curso em que se
o espaço percorrido pela mulher está su- encontra atualmente, dificuldades essas
bordinado às determinações familiares e, na presentes até nas opções que se apresen-
maioria dos casos, é mais restrito que o taram “viáveis”.
espaço percorrido por um membro mascu-
A decisão final de Renata ocorre no
lino nas mesmas condições.
primeiro ano do antigo 2º Grau, após o
Entretanto, mesmo na ausência de contato com a dança afro e com o curso
apoio direto do pai, e até criando “rixa” de Dança. Antes desse momento, o máxi-
com ele, Débora não mudou de idéia e mo que Renata fazia era ginástica, pois
prestou vestibular para o curso que dese- um curso de dança ou ballet estava longe
java, ou seja, Medicina. Não tendo sido de suas possibilidades financeiras.
bem sucedida foi fazer cursinho, ocasião
Considerações finais
em que passou a pesquisar mais sobre
medicina, concluindo que não era de fato A análise mostrou que as trajetórias
o que pretendia. Voltou-se então para a educacionais das entrevistadas não foram
enfermagem. Antes disso, tinha entrado tranqüilas, pois muitas vezes, além dos
em Direito na Universidade de Londrina, problemas corriqueiros, tiveram que en-
mas não freqüentou o curso, dando a im- frentar o preconceito e a discriminação
pressão de que apenas prestara o vesti- racial. Algumas, de forma mais branda,
bular para testar seus conhecimentos. outras, de forma extremamente forte e
Já, Mariana, ao terminar o antigo 2º cruel, evidenciando, assim, como são tra-
Grau, prestou Lingüística na Unicamp tadas as diferenças “raciais” em uma so-
mas, sem sucesso, permanecendo um ano ciedade que muitas vezes considera a di-
sem estudar. Devido à cobrança da mãe e ferença como sinônimo de desigualdade.
às comparações com a irmã, que já havia Pode-se observar também que quan-
entrado no curso de Música na Unicamp, to mais evidentes os traços físicos que
começou Letras em uma universidade marcam a negritude, mais intensas e mais
particular, porém, dificuldades financeiras constantes foram as situações de discri-
levaram-na a desistir do curso. A opção minações “raciais”. As alunas negras, já
pelo curso de Pedagogia veio após passar nas primeiras séries de escola, foram alvo
pela experiência de lecionar para jovens de discriminações raciais, seja em forma
e adultos, mesmo sem ter qualquer expe- de apelidos ou de xingamentos. Normal-
riência ou preparo específico. Embora essa mente tais termos pejorativos se referiam
atividade tenha contribuído para a esco- às características físicas, ou seja, o cabe-
lha, na verdade, foi uma das poucas op- lo, a cor da pele, os traços faciais etc. Por
ções profissionais a que teve acesso, o outro lado, quando se associa “raça”, sexo
que mostra, de certa maneira, como o e situação sócio-econômica, há evidênci-
mercado de trabalho limita a atuação da as de que as mulheres podem sofrer mais.
mulher e que certas profissões considera- Nesse sentido, pode-se dizer que um dos
das femininas não demandam experiência pontos que marcam socialmente as dife-
profissional, dado que a mulher teria ca- renças de “raça” e gênero é a aparência
racterísticas “inatas” para o seu exercício. física mas, no caso, uma aparência em
De qualquer modo, é importante ressaltar consonância com o padrão branco, fato

68
que em alguns momentos levou as alunas dança não deve vir de maneira separada,
a construírem uma imagem negativa de si ou seja, não se pode considerar que pri-
mesma e de sua “raça”. meiramente é necessário mudar a educa-
ção de forma geral e só depois pensar nos
Todavia, se os problemas intra-esco-
demais assuntos ligados ou contidos nela.
lares atingiram freqüentemente as alunas
A melhoria da educação deve vir acompa-
pesquisadas, felizmente também havia
nhada de mudanças no tratamento da
condições que impediam que o preconcei-
questão racial, sendo necessário que o
to e a discriminação atuassem como um
ambiente educacional, em todos os níveis,
estigma inferiorizante. Nesse ponto, a atu-
saiba lidar, combater e transmitir de for-
ação da família se mostrou fundamental
ma adequada a multiplicidade “racial” e
pois, mesmo não tendo a solução e não
todos os temas correlatos. Tais pontos são
estando preparada para enfrentar todos os
imprescindíveis para que a formação edu-
problemas encontrados no ambiente es-
cacional forneça condições e contribua, de
colar, e em muitos momentos até mesmo
forma efetiva, para a construção de uma
sem condições financeira suficientes, o seu
verdadeira democracia racial.
estímulo e apoio foram primordiais na for-
mação educacional da alunas. Bibliografia
No ambiente universitário as alunas ANDREWS, George Reid. Negros e bran-
perceberam que os problemas ligados à cos em São Paulo (1888-1988). Bauru
questão racial estavam longe de serem : Edusc, 1998. Tradução: Magda Lopes.
solucionados. Nesse espaço, os fatores
negativos ligados à “raça” não deixaram ARIAS, José Orestes C., RISCAROLLI,
de estar presentes, apenas mudaram a Eliseu. O trabalhador, a educação e a
forma como se apresentavam, num indí- questão de gênero : algumas reflexões.
cio de que a universidade, tida como o Revista de Educação Pública, Cuiabá,
carro chefe das mudanças, está defasa- v. 7, n. 11, jan./jun. 1998, p. 107-118.
da, no que diz respeito ao enfrentamento AZEVEDO, Célia Maria Marinho.
das questões raciais. Pelos relatos, evi- Abolicionismo Transatlântico e a Memó-
dencia-se que o tema é pouco discutido e ria do Paraíso Racial Brasileiro. Estu-
não é visto como fundamental para a pre- dos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n.
paração profissional de seus alunos mes- 30, set. 1996.
mo nos cursos que formarão os futuros
BARCELOS, Luiz Claúdio. Educação: um
professores. Um dos maiores exemplos é
quadro de desigualdade raciais. Estu-
o caso do curso de Pedagogia, que prati-
dos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n.
camente não aborda a questão racial. A
23, set. 1991.
universidade simplesmente se omite dian-
te da questão, agindo de forma semelhante BERNADES, Nara. Gênero e educação :
às instâncias educacionais que a antece- construção, debate e polêmica (rese-
dem. Assim, a discussão racial é vista como nha crítica). Educação & Debate, v. 22,
preocupação menor, não estando entre os n. 1, jan./jul. 1997, p. 225-231.
temas a serem discutidos. BERNARDO, Teresinha. Memória em branco
e negro : olhares sobre São Paulo. São
Embora os problemas da educação
Paulo : Educ ; Editora da Unesp, 1998.
pública sejam variados, a questão racial
está contida neles. Dessa forma, a mu- BERRAMAM, Gerald. Por trás das másca-

69
ras. In: Alba Z. Guimarães. Desvendan- GONÇALVES E SILVA, Petronilha Beatriz.
do Máscaras Sociais. Rio de Janeiro : Quebrando o silêncio : resistência de
Francisco Alves, 1975. professores negros ao racismo. In:
CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silên- SERBINO, Raquel Volpato (Org.). A
cio do lar ao silêncio escolar. São Paulo, escola e seus alunos : o problema da
1998. Dissertação (Mestrado em Edu- diversidade cultural. São Paulo : Ed.
cação) - Universidade de São Paulo, Fa- Unesp, 1995. p. 91-105.
culdade de Educação. GONÇALVES, Luiz Alberto de O. Reflexão
CARDOSO, Fernando H. Capitalismo e Es- sobre a particularidade cultural na edu-
cravidão no Brasil Meridional. 2 ed. Rio cação das crianças negras. Cadernos
de Janeiro : Paz e Terra, 1977. de Pesquisa, São Paulo, n. 63, ago.
1987, p. 27-29.
D’ALÉSSIO, Marcia Mansor. Memória: lei-
turas de M. Halbwachs e Pierre Nora. GUARESCHI, Neuza. Política de identida-
Revista Brasileira de História, São Pau- de : uma breve concepção. Cadernos
lo, v. 13, n. 25/26, set. 1992/ago. de Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 39,
1993, p. 97-103. set. 1999, p. 7-26.
DEMARTINI, Zeila de Brito F. Magistério HALBWACHS, M. A memória coletiva. São
primário: profissão feminina, carreira Paulo : Vértice ; Revista dos Tribunais,
masculina. Cadernos de Pesquisa, São 1990.
Paulo, n. 86, ago. 1993, p.5-14.
HANCHARD, Michael. Cinderela negra :
FELIPE, Cristiane Berto et al. Mitos, mons- raça e esfera pública no Brasil. Estudos
tros ou anjos : um estudo sobre Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 30,
heterogeneidade : gênero, raça e tem- dez. 1996, p. 41-59.
po de escolaridade. Porto Alegre, 1998. HASENBALG, C. A.; BURGLIN, Patrick
FERNANDES. A integração do Negro na (trad.). Discriminação e desigualdade
Sociedade de Classes. 3 ed. São Paulo raciais no Brasil. Rio de Janeiro : Graal,
: Ática, 1978. 1979.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. HUNOLD, Lara Silvia. Trabalhadores Escra-
16 ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1973. vos. In: Trabalhadores, São Paulo,
1990.
FRY, Peter. O que a cinderela negra tem a
dizer sobre a “política racial” no Brasil. IANNI, Octávio. As Metamorfose do Escra-
Revista USP, São Paulo, n. 28, dez./jan. vo : Apogeu e Crise da Escravatura no
1995/1996, p.122-135. Brasil Meridional. São Paulo : Difel, 1962.
GOMES, Nilma Lino. Educação, raça e INOCENCIO, Nelson. Relações raciais e
gênero : relações imersas na alteridade. implicações estéticas. In: OLIVEIRA,
Cadernos Pagu, Campinas, n. 6-7, Dijaci David de (Org.). 50 anos depois :
1996, p. 67-82. relações raciais e grupos socialmente se-
GONÇALVES E SILVA, Petronilha Beatriz. gregados. Brasília : Movimento Nacio-
Chegou a hora de darmos a luz a nós nal de Direitos Humanos, 1999. p. 21-
mesmas : situando-nos enquanto mu- 35.
lheres e negras. Cadernos Cedes, Cam- JESUS, Ilma Fátima de. Educação, gênero
pinas, v. 19, n. 45, jul. 1998. e etnia em território negro. Núcleo de
70
Estudos Negros/NEN, Florianópolis, n. 7, mo, plural. São Paulo : Mulheres, 1998.
2000, p. 29-48. p. 21-41.
LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e REGINA, Tânia. O silêncio vai acabar. Nova
estilo de pesquisa na história oral con- Escola, São Paulo, mar. 1999.
temporânea. In: MORAES, Marieta
ROSEMBERG, Fúlvia. Raça e educação ini-
Ferreira de, AMADO, Janaína (Orgs.).
cial. Cadernos de Pesquisa, São Paulo,
Usos e Abusos da história oral. Rio de
São Paulo, n. 77, maio 1991, p. 25-34.
Janeiro : FGV, 1986.
MORAES FERREIRA, M., AMADO, J. ROSEMBERG, Fúlvia. Educação infantil, gê-
(Orgs.). Usos e abusos da história oral. nero e raça. In: HUNTLEY, Lynn, GUIMA-
Rio de Janeiro : Fundação Getúlio RÃES, A. S. A. (Orgs.) Tirando a más-
Vargas, 1986. cara: ensaios sobre o racismo no Brasil.
São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 127-
MORENO, Montserrat. Como se ensina a 164.
ser menina : o sexismo na escola. São
Paulo : Moderna ; Campinas : Editora SANTOS, Cássio Miranda dos. O perfil
da Universidade Estadual de Campinas, socioeconômico dos candidatos pelos
1999. Tradução Ana Venite Fuzatto. vestibulares da UNESP em 1993 : o grau
de elitização dos cursos de Marília e
ORLANDELLI, Silvia Helena. A represen-
Araçatuba. Marília, 1996. Dissertação
tação identitária no professor de Histó-
(Mestrado) - Faculdade de Filosofia e
ria: um estudo com depoimentos orais.
Ciências da UNESP.
Campinas, 1998. Dissertação
(Mestrado). SILVA, Júlio Costa. O problema da exclu-
são do negro no ensino superior público
OLIVEIRA, Ivone Martins de. Preconceito
: uma história oral dos alunos afro-bra-
e autoconceito : identidade e interação
sileiros dos cursos de graduação da
na sala de aula. Campinas : Papirus,
Unicamp. São Paulo : Ação Educativa ;
1994.
Anped, 2000. (Relatório de pesquisa).
OLIVEN, Arabela Campos. Multicultura-
SOLIGO, Ângela Fátima. Crianças negras
lismo e a política de ingresso nas uni-
e professoras brancas : um estudo de
versidades dos EUA. Educação & Soci-
atitudes. Campinas, 1996. Dissertação
edade, Porto Alegre, v. 21, n. 2, jul./
(Mestrado) - Pontifícia Universidade Ca-
dez. 1996, p. 75-87.
tólica de Campinas.
PINTO, Regina Pahim. Movimento negro
e educação do negro : a ênfase na iden- THOMPSON, P. A voz do passado : história
tidade. Cadernos de Pesquisa, São Pau- oral. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1992.
lo, n. 86, ago. 1993, p. 25-38. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira.

QUEIROZ, Delcele M. Desigualdades ra- VALENTE, Ana Lúcia E. F. Estado, educa-


ciais no ensino superior da UFBA : edu- ção e etnicidade : a experiência belga.
cação, racismo e anti-racismo. Novos Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n.
Toques, Salvador, n. 4, 2000. 105, nov. 1998, p.135-159.

RAGO, Margareth. Epistemologia feminis- WARREN, Jonathan. O fardo de não ser


ta, gênero e história. In: PEDRO, Joana negro. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de
Maria et al (Orgs.). Masculino, feminis- Janeiro, n. 31, 1997.
71
WHITAKER, Dulce Consuelo A. Menino –
menina : sexo ou gênero? : alguns as-
pectos cruciais. In: SERBINO, Raquel
Volpato (Org.). A escola e seus alunos
: o problema da diversidade cultural.
São Paulo : Editora Unesp, 1995. p. 31-
51.
WHITAKER, Dulce Consuelo A. Mulher &
homem : o mito da desigualdade. São
Paulo : Moderna, 1998.

72
Estudantes Negros e a Transformação das
Faculdades de Direito em Escolas de Justiça:
a Busca por uma Maior Igualdade

Cristiana Vianna Veras1


Eliane Botelho Junqueira2

Resumo sendo também numerosos os estudos so-


bre questões raciais e educação superior
Com base em entrevistas com estu-
no Brasil4 . As pesquisas sobre acesso à
dantes, professores e profissionais do di-
justiça sempre enfocaram o lado da de-
reito, este artigo problematiza as seguin-
manda e da oferta de serviços jurídicos;
tes questões: a) a transformação, ainda
nenhuma delas analisou especificamente
embrionária, do perfil racial dos estudan-
o estudante negro de direito.
tes de direito em razão da expansão do
ensino superior; b) a diversificação social De outro lado, não se pode pensar
e racial das profissões jurídicas, um uni- apenas na eficiência dos serviços presta-
verso tradicionalmente conservador e ho- dos pelo Poder Judiciário. Não se pode
mogêneo; c) a relação entre esta diversi- pensar nesses serviços só a partir da sua
dade social e racial e o desenvolvimento, infra-estrutura material, ou seja, apare-
na formação dos futuros operadores do lhamento dos cartórios, salas, computa-
direito, de uma consciência sobre as desi- dores, juízes, defensores públicos e es-
gualdades raciais; e, d) o papel dessas creventes. É necessário começar a pen-
mudanças na redefinição da concepção de sar o profissional de direito – advogados,
justiça, de forma a quebrar a cultura jurí- promotores, juízes - que irá prestar esse
dica dominante no Brasil, uma cultura ju- serviço jurídico.
rídica branca de elite inserida em uma Este artigo objetiva analisar5 o ope-
sociedade que se imagina como uma de- rador negro do direito e as contribuições
mocracia racial. que pode trazer para a democratização do
acesso à justiça, enfatizando:
Introdução
• A percepção da discriminação raci-
Muitos estudos já foram realizados no al entre os estudantes de direito, pressu-
campo jurídico sobre o acesso à justiça3 , pondo que, por estudarem o ordenamento
1
Pesquisadora no Instituto Direito e Sociedade
2
Professora na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; diretora do Instituto Direito e
Sociedade.
3
Sobre acesso à justiça ler Cappelletti e Garth (1988) e Junqueira (1996).
4
Ver, por exemplo, Barcelos (1999), entre outros.
5
Este artigo resume o relatório final da pesquisa (Veras, 2000) desenvolvida em 1999-2000, pela
primeira autora, com orientação da segunda, a partir de entrevistas realizadas com professores, estu-
dantes (especialmente da PUC-Rio) e profissionais do direito negros e da aplicação de questionários a
vestibulandos inscritos nos cursos para pessoas negras e carentes.
73
jurídico brasileiro, estes estudantes deve- Primeiramente, verifica-se a preocupação
riam, mais do que os de outros cursos (com em garantir a gratuidade dos serviços ju-
exceção, talvez, de sociologia), ter um ele- rídicos para a população de baixa renda,
vado grau de conscientização em relação a ou seja, para aqueles que enfrentam obs-
problemas de discriminação racial6 . táculos econômicos para acionar o Poder
Judiciário. Experiências como defensoria
• A trajetória educacional e as pers-
pública, judicare e advocacia pro bono têm
pectivas profissionais dos estudantes de
sido implantadas em diferentes países
direito negros, principalmente a percep-
neste esforço de reduzir os custos da
ção que estes estudantes têm sobre a con-
contratação de profissionais do direito. A
tribuição que podem dar, depois de for-
segunda onda de acesso à justiça
mados, enquanto operadores de direito,
identificada por esses autores relaciona-
para a democratização das instituições
se à implementação de mecanismos de
jurídicas e, principalmente, do acesso à
proteção de direitos coletivos. Com a
justiça.
transformação do padrão de conflituali-
• A percepção dos estudantes negros dade na sociedade contemporânea, os
em relação a discriminações no momento mecanismos de proteção dos direitos in-
da profissionalização, já que, conforme dividuais tornaram-se insuficientes para
Michel Turner (1992) demonstra, muitas garantir direitos que cada vez mais se
vezes a tentativa de “embranquecimento” tornam difusos. A terceira onda estaria
por meio da educação e do esforço inte- relacionada com o processo de
lectual não funciona. informalização dos mecanismos judici-
Esta análise inclui-se na tradição, ais de resolução de conflitos, quer atra-
que começou a ser desenvolvida nos anos vés do incentivo a agências societais,
70, com a pesquisa internacional realiza- quer através da criação de juizados de
da por Mauro Cappelletti e Bryant Garth pequenas causas.
(1988) sobre acesso à justiça. Na ocasião, O Brasil, como os demais países,
países de todos os continentes foram es- conheceu estas três etapas do movimen-
tudados com o objetivo de identificar os to de acesso à justiça. No entanto, atual-
diferentes mecanismos acionados para mente, o tema do acesso à justiça não
assegurar o acesso à justiça. pode mais ficar restrito à existência de
Com base nos dados coletados, mecanismos formais. É preciso ir além
Cappelletti e Garth elaboraram a tese de desses mecanismos e analisar a forma-
que o movimento de acesso à justiça ção e as características dos profissionais
implementa-se a partir de ondas sucessi- de direito que estarão encarregados de
vas que ocorreram em todos os países. fazer e de dizer essa justiça. Nesta pers-
6
Michel Turner (1992) mostra que, em pesquisas realizadas no início dos anos 70, estudantes univer-
sitários tinham pouca percepção dos problemas raciais, atribuindo o menor acesso dos não-brancos ao
ensino universitário à diferenças sociais: “Os universitários afro-brasileiros identificavam seus interes-
ses com os dos negros pobres, e declaravam que seu acesso a educação universitária - muitas vezes
acarretando grande sacrifício financeiro às suas famílias - deveria ser usado para melhorar as condi-
ções gerais da comunidade mais ampla. A forma de realizar este intento permanecia muito vaga, mas
a filosofia e os padrões ideológicos dos grupos eram bem claros; isto representava uma mudança que
se passara no início da década pelos estudantes, que o processo da educação universitária deveria
servir para branquear o indivíduo, tornando-o menos preto e, portanto, mais aceitável do ponto-de-
vista social, dentro da mentalidade coletiva da sociedade brasileira”.
74
pectiva, Kim Economides (1997, analisan- mover positivamente o acesso à profis-
do o tema do acesso à justiça e da cida- são legal de mulheres, minorias em des-
dania, acrescenta uma quarta onda às três vantagem e outros grupos que sejam
identificadas por Cappelletti e Garth nos social ou historicamente excluídos? A
anos 70. Não se trata mais, apenas, de partir dessa perspectiva, o acesso dos
garantir assistência judiciária, ampliar os cidadãos brasileiros à carreira jurídica
direitos coletivos e difusos ou informalizar deveria ser olhado como uma importante
dimensão, até mesmo uma pré-condi-
a Justiça. A quarta onda volta-se para o
ção, para a questão do acesso dos ci-
acesso dos operadores do direito à justi-
dadãos à justiça. (Economides (1997)
ça, ou seja, para a diversificação dos pro-
fissionais do direito em termos de raça e A democratização da justiça depen-
gênero, principalmente, e para a constru- de, portanto, da democratização do ingres-
ção de um novo sentido de justiça a par- so nas faculdades de direito, a partir do
tir dessas variáveis. pressuposto de que outros grupos – mu-
lheres, negros, classes mais baixas – po-
A que tipo de justiça devem os cidadãos
deriam ter um potencial transformador
aspirar?
para o próprio sentido de justiça. Defen-
Em vez de nos concentrarmos no lado dendo a mesma posição, Richard Abel
da demanda, devemos considerar mais (1989) afirma: “the profession should
cuidadosamente o lado do acesso dos begin by opening its doors to all those
cidadãos ao ensino do direito e ao in- desiring to become lawyers, both to allow
gresso nas profissões jurídicas, segun-
them to pursue their personal dreams and
do, uma vez qualificados, o acesso dos
to increase access to legal services” 7 . Para
operadores do acesso à justiça. Tendo
Abel, uma maior diversidade dos estu-
vencido as barreiras para admissão aos
dantes de direito, em termos de gêne-
tribunais e às carreiras jurídicas, como
ro, raça e idade, contribui para tornar a
pode o cidadão se assegurar de que,
tanto juízes, quanto advogados estejam cultura da faculdade de direito menos
equiparados para fazer justiça? monolítica e, conseqüentemente, para
democratizar a justiça.
O primeiro tema, portanto, é relativo ao
No entanto, uma democratização do
acesso à educação jurídica, quem pode
se qualificar como advogado ou juiz: acesso às escolas de direito a partir da
Quem tem acesso às faculdades de di- diversificação dos estudantes em termos
reito? Uma vez que as faculdades de di- raciais e sociais pode não garantir uma
reito são, invariavelmente, as guardiães democratização do acesso à justiça nem
dos portões de acesso à carreira jurídi- significar necessariamente uma diversi-
ca, torna-se preciso entender quem tem ficação dos profissionais do direito. Se,
acesso a elas e em que bases. É a ad- por um lado, apenas o estudante de direi-
missão governada, primariamente, se- to pode ingressar na carreira jurídica, por
gundo princípios de nepotismo ou de outro, esta inserção no mercado de tra-
mérito? Precisam os governos, os orga- balho não ocorre de forma automática.
nismos profissionais e os advogados in- Para advogar, é preciso passar no Exame
dividualmente esforçarem-se para pro- de Ordem. Para se tornar um promotor,
7
A profissão deveria começar a abrir portas para todos aqueles que desejam tornar-se advogados,
tanto para permitir que essas pessoas persigam seus sonhos, como para aumentar o acesso aos
serviços legais.
75
juiz ou defensor é preciso passar nos con- appear successful by conventional
corridos concursos públicos. Além do mais, measures. In particular, the survey
o próprio processo de democratização do indicates that minority graduates
acesso aos cursos jurídicos contribui para (defined so as to include graduates with
a constituição de um mercado de traba- African American, Latino, and Native
lho saturado e, por isto, extremamente American backgrounds) are no less
competitivo. Desta forma, a diversifica- successful than white graduates,
whether success is measured by the log
ção das profissões jurídicas defendida por
of current income, self-reported
Kim Economides (1997) e Richard Abel
satisfaction, or an index of service
(1989) pode não decorrer de um proces-
contributions.8
so de democratização do ensino do direi-
to, se outras medidas não forem adotadas É, pois, necessário que seja assegu-
para evitar os mecanismos de exclusão rado aos diferentes grupos sociais – e,
do mercado do trabalho. principalmente, à população negra, no
caso brasileiro – um maior acesso não
Por outro lado, o simples crescimen- apenas ao ensino superior de maneira
to do número de faculdades de direito e, geral, mas às boas faculdades de direito.
conseqüentemente, de estudantes negros, Um passo futuro, mas que dependeria
não parece ser suficiente para uma trans- dessa maior presença de alunos negros
formação substantiva na mobilidade so- nas faculdades de direito e nas profissões
cial do negro, no perfil das profissões ju- jurídicas seria, a exemplo do que aconte-
rídicas e no acesso à justiça. Outras me- ceu nos anos 80 nos Estados Unidos, o
didas são necessárias com vistas a se desenvolvimento de uma critical race
garantir que o negro ingresse não apenas theory9 , a partir da qual o direito possa
em uma faculdade de direito, mas, prin- ser interpretado epistemologicamente em
cipalmente, que ingresse em boas facul- função da experiência, da história e da
dades de direito. Neste sentido, Richard cultura das pessoas de cor.
Lempert (2000) participou de uma pes-
Aqui necessitamos abrir um parên-
quisa, realizada em 1997/1998, sobre as
teses. Ao tomarmos como marco teórico
carreiras jurídicas de minorias na Univer-
os estudos desenvolvidos nos países
sidade de Michigan, uma universidade de
anglo-saxões sobre a importância da di-
elite dos Estados Unidos, com um
versificação dos operadores de direito para
prestigiado ensino de direito, cujos alu-
uma democratização do acesso à justiça,
nos costumam conseguir uma boa colo-
estamos, em verdade, trabalhando no
cação no mercado de trabalho. Os resul-
marco do desconstrucionismo que se se-
tados da pesquisa
guiu ao movimento norte-americano do
... reveal that almost all of Michigan Law critical legal studies quando este foi criti-
School’s minority graduates pass a bar cado porque, ao concentrar seus esforços
exam and go on to have careers that em deslegitimar a ideologia jurídica - in-
8
... revelam que quase todos os graduados em direito pela Universidade de Michigan pertencentes a
uma minoria passaram no Exame de Ordem e exercem as suas carreiras com sucesso, segundo as
medidas convencionais. Particularmente, a pesquisa indica que os graduados da minoria (estudantes
afro-americanos, latinos e nativos americanos) não são menos bem sucedidos que os graduados bran-
cos, ainda que sucesso seja medido pelo salário, satisfação pessoal ou por um índice de contribuição
dos serviços prestados.
9
Alguns termos, como este, serão mantidos em inglês neste trabalho, por não existir similares no Brasil.
76
cluindo-se aqui a desconstrução dos "di- to, a opressão não é uma construção men-
reitos" conquistados pelas "minorias" nos tal, mas sim uma dura realidade. Se a falsa
últimos trinta anos -, não se preocupava consciência existe, por que ela afeta ape-
em oferecer "uma receita para resolver nas trabalhadores e minorias? Não seria
os problemas” (Haines,1987). a idéia de falsa consciência um instrumen-
to utilizado pelo critical legal studies para
Enquanto os critical scholars, em fun-
justificar uma posição imperialista?, per-
ção de uma proposta comunitária
gunta Delgado (1987). No mesmo senti-
interracial, consideram os direitos
do, Crenshaw (1988) observa que a do-
alienantes, opressivos e mistificadores,
minação racial não deriva de uma ideolo-
formas de garantir a propriedade e a se-
gia que induz ao consenso, mas sim da
gurança individual, as "minorias" perce-
coerção derivada do racismo, ou, em ou-
bem que os direitos representam um ins-
tros termos, da white race consciousness.
trumento jurídico para evitar a opressão
cotidiana, além de permitirem a organi- Seria extremamente problemático o
zação dos movimentos sociais (como o engajamento das minorias no programa
feminista e o negro) em torno de propos- comunitário utópico do critical legal
tas concretas (Delgado, 1987). Não acei- studies pois, por um lado, a participação
tando a perspectiva liberal e conservado- em um projeto comunitário pressupõe o
ra de uma “sociedade cega para questões reconhecimento do indivíduo como sujei-
de cor”, que defende uma meritocracia a to de direitos; por outro lado, os critical
partir do pressuposto de que a batalha scholars não podem oferecer qualquer
pelos direitos civis já foi vencida, Derrick garantia de que o racismo desapareceria
Bell (1987) sugere uma race- na comunidade utópica que propõem. Ao
consciousness perspective, que trabalhe contrário, em uma sociedade sem leis,
a partir de uma diferença cultural. A di- sem direitos e sem tribunais, o racismo
mensão da raça ultrapassa a pigmenta- poderia ser muito mais difícil de ser con-
ção da pele e só pode ser compreendida trolado (Delgado, 1987). À proposta do
no plano cultural, em que se distinguem critical legal studies opõe-se a defesa de
determinadas comunidades dentro da so- uma sociedade formal, com mecanismos
ciedade norte-americana. de punição para manifestações de racis-
mo, com uma autoridade central cética
Utópico, idealista e imperialista, o
em relação à natureza humana e à possi-
programa de transformação social do
bilidade de transformações sociais idea-
critical legal studies, ao rejeitar qualquer
listas. Quanto mais distante a autoridade
proposta reformista, traduz os interesses
estiver dos poderes locais, melhor (Del-
de um segmento social masculino e bran-
gado, 1987).
co, para o qual a conquista de direitos não
apresenta muita serventia, que pretende A partir de uma perspectiva mais
ensinar às minorias como estas devem positiva do que a de Delgado, que
interpretar os fatos que lhes afetam (Del- radicaliza as suas críticas em relação ao
gado, 1987). Pensar a realidade social critical legal studies, e não deixa aberta
apenas como uma construção mental e a qualquer possibilidade de diálogo,
opressão como uma falsa consciência é Matsuda (1987) sugere que os critical
muito fácil para os que não são cotidia- scholars passem a "olhar a partir de bai-
namente oprimidos. Para estes, entretan- xo”. Para Matsuda, assim como o critical

77
legal studies tem muito a oferecer às "pes- sença de alunos e alunas negros nos cur-
soas de cor", também tem muito a apren- sos de direito, por outro lado, a existên-
der, principalmente com vistas à elabora- cia de estudantes negros nesses cursos é
ção de um programa mais construtivo que pré-condição para que esta presença seja
ultrapasse o estágio que caracterizou o considerada importante para um maior
movimento como não programático, pluralismo jurídico. Não se trata de atri-
superidealizado, inacessível, cínico, não buir à população negra a responsabilida-
racional e niilista10 . Haines (1987), por de pela defesa dos seus direitos, que são
exemplo, considera que apesar de o critical os mesmos dos brancos. Entretanto, a
legal studies ter contribuído para enfatizar presença de estudantes negros é funda-
a necessidade de as "pessoas de cor" re- mental para quebrar a normalidade da
alizarem coalizões com outros grupos ausência. Como esta questão não vem
marginalizados, o movimento continua sendo pensada nos cursos de direito, nem
sendo elitista e etnocêntrico, não conse- por professores, nem por alunos, ao con-
guindo desenvolver análises e estratégi- trário do que ocorre, por exemplo, nos
as contra o racismo da sociedade norte- Estados Unidos, a diversificação dos es-
americana: tudantes de direito em termos raciais
torna-se imprescindível.
Certamente, no Brasil estamos lon-
ge de participar desse debate. Mas, se Metodologia
quisermos que aqui também seja possí-
A pesquisa abrangeu estudantes e
vel o surgimento de um movimento a par-
candidatos a estudantes de direito negros,
tir do qual “different and blacker voices
bem como professores e profissionais de
speak new words and remake old
direito.
doctrines”11 (Minda, 1995), já é tempo de
se assegurar uma maior participação ne- Levando-se em conta o objetivo de
gra em nossas faculdades de direito. Com estudar a democratização da justiça e a
certeza, já houve um avanço significativo construção de um novo sentido de justiça
nesse caminho com o pluralismo comuni- a partir da diversificação racial dos estu-
tário e participativo consagrado pela Cons- dantes de direito, a primeira parte da
tituição de 1988 que, para se tornar efe- investigação procurou olhar os candida-
tivo, depende da utilização de determina- tos negros ao vestibular de direito.
dos instrumentos – como ação afirmati- Esta parte voltou-se para a análise dos
va. A atual crise da modernidade signifi- cursos pré-vestibulares que concentram,
ca a construção desse pluralismo jurídico em função de suas características e objeti-
comunitário e participativo, onde os gru- vos, estudantes negros e carentes (no Bra-
pos sociais constituem e interpretam di- sil, a variável raça é acompanhada pela
reitos (Brito, 1999). variável classe social).
Assim, se, por um lado, a relevância O ponto de partida foi o Pré-Vestibu-
da existência de homens e mulheres ne- lar para Negros e Carentes, que acabou
gros como operadores do direito para a levando à descoberta de duas outras ex-
criação de um pluralismo jurídico comu- periências: o Sonho Cidadão e o InVest.
nitário e participativo independe da pre- Apesar de não serem formalmente inte-
10
Ainda que a autora reconheça estar trabalhando com generalizações.
11
Vozes diferentes e mais negras falem novas palavras e refaçam velhas doutrinas.

78
grantes do movimento do Pré-Vestibular Questionários
para Negros e Carentes, estes dois últi-
A aplicação dos questionários aos
mos possuem características bastante
estudantes dos cursos pré-vestibulares
semelhantes - todos se pretendem “pré-
teve como objetivo conhecer melhor os
vestibulares alternativos” e buscam ca-
candidatos negros que optam pelo vesti-
pacitar seus estudantes para o ensino
bular em direito. Afinal, pretendendo esta
superior a partir de um reforço nas maté-
pesquisa analisar as possibilidades de um
rias dos exames do vestibular e de um
novo conceito de justiça em função de uma
processo de conscientização.
maior diversificação racial dos estudan-
Com o objetivo de analisar as carac- tes – e, conseqüentemente, dos profissi-
terísticas mais gerais dos estudantes des- onais do direito, fazia-se necessário co-
ses vestibulares – e, entre eles, dos estu- nhecer o perfil dos candidatos aos cursos
dantes negros – foi aplicado um questio- de direito, assim como as suas expectati-
nário, que permitiu abranger uma signifi- vas em relação à profissão.
cativa amostra.
Ao todo, foram aplicados 92 questi-
Ainda nesta primeira fase e tendo em onários, distribuídos em:
vista conhecer a situação de estudantes
• três núcleos do Pré-Vestibular para
negros, oriundos desses cursos, que efe-
Negros e Carentes, um localizado em São
tivamente conseguiram ser aprovados no
João do Meriti (RJ), um em Duque de
vestibular, foram realizadas onze entre-
Caxias (RJ) e outro na Tijuca, bairro da
vistas com os estudantes negros de direi-
capital do estado do Rio de Janeiro;
to da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (PUC-Rio). • duas turmas do Sonho Cidadão, que
funciona aos sábados no Colégio Estadu-
Em outro momento, a pesquisa vol-
al André Maurois, no bairro da Gávea, tam-
tou-se aos professores de direito e pro-
bém na capital;
fissionais da área no universo jurídico. As
entrevistas com os professores de direito • uma turma do InVest, que funciona
concentraram-se na PUC-Rio, sendo en- todos os dias à noite no Colégio Santo
trevistados treze professores de diferen- Inácio, em Botafogo, no Rio de Janeiro.
tes disciplinas. Foram ainda entrevista-
O questionário compôs-se de 34 per-
dos dois professores da Universidade Fe-
guntas, abertas e fechadas, cujas respos-
deral Fluminense (UFF). Dos quinze pro-
tas permitiram traçar o perfil dos candi-
fessores entrevistados, seis possuem ou-
datos negros e carentes ao vestibular. O
tras inserções profissionais (são promo-
questionário não foi dirigido especifica-
tores, advogados, juízes etc.), permitin-
mente ao estudante de direito, em fun-
do que se cobrisse um espectro mais am-
ção da própria metodologia utilizada para
plo das profissões jurídicas.
a sua aplicação. Em função do objeto es-
Também foram entrevistados dois pecífico da pesquisa, seis das perguntas
profissionais do direito que prestam as- estavam voltadas diretamente para os
sistência jurídica a vítimas de discrimi- candidatos ao vestibular de direito.
nação racial no Centro de Estudo de Ar-
Entrevistas
ticulação de Populações Marginalizadas
(CEAP). As entrevistas realizadas (gravadas

79
e posteriormente transcritas) com os es- nessa área do direito, assim como suas
tudantes negros de direito da PUC-Rio representações sobre a atuação do Poder
buscaram conhecer, a partir das represen- Judiciário. Como é percebida a atuação
tações desses atores, quem são os estu- de juízes e advogados em casos de dis-
dantes negros que optam pelo curso de criminação racial? Como as ações propos-
direito. Como representam suas expecta- tas pelas vítimas de discriminação têm
tivas profissionais? Que expectativas sido decididas? Também foram entrevis-
constroem sobre o curso de direito? Como tados advogados que trabalham no CEAP
imaginam a sua influência pessoal – e a – Centro de Articulação de Populações
influência dos estudantes negros - no pro- Marginalizadas -, uma entidade civil sem
cesso de democratização do acesso à jus- fins lucrativos que atua não apenas em
tiça? Em função da mudança que hoje se questões raciais, mas também na luta
observa no perfil dos alunos de direito, o contra a violação dos direitos das crian-
estudo das representações dos estudan- ças, adolescentes e mulheres.
tes negros de direito é de extrema impor-
Por último, as entrevistas com pro-
tância. Mesmo que estes estudantes ain-
fessores com outras inserções profissio-
da sejam poucos, eles podem significar o
nais não se concentraram apenas nas
começo de um processo de transforma-
questões relativas aos cursos de direito,
ção do campo jurídico.
mas objetivaram conhecer as represen-
As entrevistas (roteiro em anexo) tações desses operadores do direito no
foram realizadas com base em um roteiro exercício de suas atividades jurídicas,
prévio que abrangia também temas rela- principalmente em relação às suas per-
cionados ao racismo, à discriminação so- cepções sobre as possibilidades de demo-
cial e racial e ao próprio curso de direito. cratização do acesso à justiça e de cons-
Como, para esses estudantes, as barrei- trução de um novo sentido de justiça a
ras do acesso às faculdades de direito já partir da diversificação racial e social dos
haviam sido superadas, foram operadores do direito. Importante obser-
exploraradas as representações sobre as var que dois professores universitários,
suas experiências no curso de direito e as apesar de atualmente estarem afastados
expectativas profissionais. da advocacia, já trabalharam em organi-
zações não governamentais de direitos
As entrevistas com professores –
humanos.
brancos e negros - objetivaram analisar
as representações desse grupo sobre o Análise documental
processo de diversificação na composição
Além dos questionários e entrevis-
dos alunos e sobre as conseqüências desse
tas, a pesquisa foi complementada pela
processo nas aulas e no curso em geral
análise de documentos dos cursos Pré
(principalmente identificando estratégias
Vestibular para Negros e Carentes, Sonho
utilizadas na abordagem e discussão do
Cidadão e InVest, que permitiram conhe-
tema).
cer melhor os objetivos pretendidos por
Nas entrevistas com os operadores essas experiências.
do direito que prestam assistência jurídi-
ca a vítimas de discriminação racial, o
O valor simbólico dos cursos de
direito
objetivo foi analisar a trajetória destes
profissionais e a experiência na atuação Em 1998, a maior procura no ensino
80
superior foi pelo curso de direito, com Quadro 2 - Evolução da matrícula nos
490.610 inscrições para o vestibular (para cursos de direito
89.060 vagas). Atrás dos cursos de direi- Anos Número de alunos matriculados
to vinham a administração (275.966), a Nº Crescimento
medicina (262.344), a engenharia (ano base: 1996)
(173.098), a odontologia (115.509) e a 1970 71.672 100
comunicação social (107.610). No Provão 1980 137.373 192
1990 155.803 217
(exame nacional de cursos) de 1998 ins-
1996 239.201* 330
creveram-se 44.318 alunos de direito e,
1998 292.728* 408
em 1999, 43.775 alunos de direito.
Fonte: http://www.unescostat.unesco.org.
Concomitante a este aumento da pro- *Sinopse Estatística do Ens. Superior, EEC/MEC
cura pelos cursos jurídicos, ocorreu um
Com o aumento no número de esco-
processo de proliferação das escolas jurí-
las de direito, o perfil dos estudantes vem
dicas. Em 1999, havia 303 cursos de di-
se modificando de forma gradual e contí-
reito 12 , para uma população de
nua. E, aqui, não custa lembrar que ape-
157.070.163 habitantes (dados para
nas 37,2% dos pais dos inscritos no
1996). Os dados do Provão, que ainda não
Provão de direito em 1999 têm instrução
retratam os novos cursos abertos nos úl-
superior, contra 60,4% dos formandos de
timos cinco anos e que ainda não forma-
medicina, 52,0% dos formandos de odon-
ram turmas, são surpreendentes: em ape-
tologia, 45,9% dos formandos de medici-
nas quatro anos (1996-1999), o número
na veterinária e 44,1% dos formandos de
de formandos em direito quase duplicou,
engenharia civil13 .
sendo bastante previsível um novo boom
nos próximos anos, em razão da expan- Um dos grandes atrativos da escola
são dos cursos de direito ocorrida nos úl- jurídica é o fato dela permitir várias in-
timos anos. serções profissionais. O bacharel em di-
reito poderá optar entre fazer o Exame de
Quadro 1 - Número de inscritos no Ordem da Ordem dos Advogados do Bra-
Provão de direito sil (OAB) e inserir-se no mundo da advo-
Ano Número de inscritos Crescimento cacia, ou ingressar na carreira pública,
(ano base: 1996) onde também há várias oportunidades,
1996 27.220 100 como a magistratura, promotoria e
1997 39.715 146 defensoria, ou dedicar-se ao magistério.
1998 44.318 163 Além do mais,
1999 45.373 167 O curso de direito, embora permita
Fonte: INEP – Relatório Síntese 1999 implementação de projetos de vida vin-
culados ao cultivo da reflexão e da edu-
cação pessoais, não estigmatiza com um
status social degradado como a filoso-
fia, ciências sociais, letras e história.
Ainda que esses cursos caracterizem-
se por uma maior ênfase humanista,
com certeza não apresentam o mesmo
12
Sinopse Estatística do Ensino Superior, 1999.
13
Relatório Síntese do Provão, 1999.

81
nível de profissionalização – no sentido Entre os estudantes de direito, 54,7%
de prestígio e compensação financeira haviam cursado o ensino médio, total ou
– que o direito, carreira que, além de parcialmente, em escolas particulares. A
permitir uma futura vida acadêmica, maioria desses estudantes veio de famí-
para os interessados em pesquisa e lias cujos pais não possuem educação
docência, abre outras possibilidades de superior, sendo que grande parcela deles
inserção profissional, como, por exem- nem sequer chegou ao ensino médio.
plo, advocacia ou um emprego público.
(Junqueira, 1994, p. 59) O fato de a carreira jurídica ter sido
Se, historicamente14 , a faculdade de construída, na história brasileira, como
direito foi criada para atender a uma elite uma carreira destinada aos filhos da elite
que via o curso jurídico como instrumen- não significa que não tenhamos tido im-
to de consolidação de uma estrutura polí- portantes juristas negros. Tivemos, mas
tico-administrativa e ideológica para um foram poucos, entre os quais se destaca
Brasil recém-independente, atualmente os Tobias Barreto, jurista e crítico
cursos de direito têm exercido um outro pernambucano (1839-1889). Mas a pró-
papel no imaginário dos estudantes. Se pria criação dos cursos de direito em 1827,
antes serviam para sistematizar a ideolo- voltados para a reprodução da elite social
gia político-jurídica do liberalismo e for- e a formação de quadros nacionais, ex-
mar a burocracia, em grande parte com- plica a menor presença de negros entre
posta de filhos da elite dominante, que os alunos desse curso. Moema Teixeira
operacionalizavam esta ideologia, hoje re- (1998) constata que o direito situava-se,
presentam uma esperança de mobilidade junto com a medicina, entre os cursos com
social ou de manutenção de uma elite em uma menor proporção de alunos negros.
franca decadência. No caso específico do direito, esta pre-
sença era de apenas 2,6%. Cai por terra,
A partir da década de 70, com a cri-
portanto, o mito da democracia racial15
ação desenfreada dos cursos de direito e
que tem impedido de se colocar a raça no
com as transformações introduzidas pela
centro das análises sobre o processo de
reforma do ensino superior, iniciou-se uma
exclusão do negro brasileiro.
substantiva modificação no perfil dos es-
tudantes de direito. De acordo com a pes- Atualmente, a situação nos cursos
quisa realizada por ocasião do primeiro jurídicos é um pouco diferente. Muito
Provão (INEP, 1997, p. 25), os estudan- embora ainda seja tímida a presença de
tes de direito são, majoritariamente, sol- estudantes negros, há claramente um
teiros, sem filhos e residem predominan- processo de modificação no perfil des-
temente com os pais ou parentes. A mi- ses estudantes em termos sociais e ra-
noria se dedica apenas aos estudos, a ciais. Parte desta modificação decorre
maioria trabalhando em horário integral da proliferação dos cursos de direito nos
ou parcial. últimos anos, que passaram a recrutar

14
Sobre a trajetória histórica do ensino jurídico, ver Venancio Filho (1982); Falcão (1984); Faria (1987);
Rodrigues (1988).
15
O termo democracia racial é utilizado aqui no sentido de representação das relações raciais harmo-
niosas, um dos mitos que têm impedido uma percepção efetiva do problema racial no Brasil (problema
que não se enfrenta apenas com o aumento quantitativo do número de negros nas faculdades de
direito).

82
alunos de diferentes classes sociais. Ter acesso às faculdades de direito não é,
portanto, passagem direta para uma mo-
Mas, por que as escolas de direito
bilidade social. Se, por um lado, permite-
têm sido tão procuradas? Sem dúvida, o
se o acesso de estudantes de diversos seg-
grande atrativo dos cursos jurídicos pa-
mentos sociais aos cursos de direito, por
rece estar nas diferentes oportunidades
outro, existe um processo de exclusão das
oferecidas pelo diploma. Em tese, o ba-
minorias no mercado de trabalho.
charel em direito poderá optar entre in-
gressar no mundo da advocacia, continu- Ao lado da “democratização” das es-
ar estudando e inserir-se no mundo aca- colas de direito, um filtro dos novos ope-
dêmico ou passar no concurso público, radores jurídicos é desenvolvido. Formar-
opção esta muito cobiçada atualmente. se no curso de direito não é suficiente para
Esta últma opção permite uma “democrá- poder advogar. Para a prática da advoca-
tica” forma de ascensão social, já que as cia, é preciso, primeiro, passar na prova
provas são iguais para todos os candida- da OAB, o temido Exame de Ordem (em
tos e as relações pessoais não são tão média, apenas 30% são aprovados). Não
determinantes no processo seletivo. En- se trata de uma mera formalidade, mas
tretanto, o recém-formado depara-se com de uma prova difícil com objetivo de sele-
uma realidade perversa, pois para passar cionar os futuros advogados. Para ingres-
nas provas dos concursos é preciso um sar nas carreiras jurídicas, o processo
excelente preparo e muita dedicação. É seletivo é disputadíssimo, dispendioso e
preciso que o estudante tenha feito uma demanda tempo, dedicação e dinheiro.
boa faculdade de direito, na qual só terá Dois professores mostraram-se atentos a
conseguido ingressar se tiver uma sólida esta realidade:
formação de ensino médio. Depois, ao ter- A forma de recrutamento para as car-
minar o curso, deverá ter condições finan- reiras jurídicas, Ministério Público, ad-
ceiras para bancar os caros livros de direi- vocacia pública, pela sua natureza, em
to, os cursos preparatórios para concursos grande parte é ultra positiva e em boa
públicos e as taxas de inscrição. Tais exi- parte é um processo impessoal, que se
gências acabam transformando-se em um desenvolve pelo concurso público, ten-
processo seletivo dos futuros operadores de evidentemente a permitir uma possi-
do direito, pois, mais uma vez, apenas os bilidade de disputa de cargos nestas
estudantes com boas condições financei- carreiras públicas por pessoas oriundas
ras poderão arcar com o investimento. de segmentos sociais, econômicos e ra-
ciais discriminados ou fragilizados. Por
No entanto, apesar das oportunida- outra parte, a gente sabe que os filhos
des que um diploma de direito oferece, a da elite têm, em princípio, desde que
realidade do mercado de trabalho não é tenham interesse, melhores condições
tão animadora. Com cada vez mais estu- de disputar um concurso. Eu acho que aí
dantes formando-se, o mercado fica mais há dois problemas: uma desigualdade real
competitivo e só as pessoas bem prepa- que produz uma desigualdade na disputa
radas – ou bem relacionadas - conseguem pela vaga que tende a permitir que os
se profissionalizar no direito. Na opinião membros das elites ocupem estas posi-
dos professores entrevistados, é quase ções se tiverem interesse.
impossível este contingente enorme de Muitos destes alunos podem estar se
estudantes ser absorvido pelo mercado. inserindo em outras atividades que não

83
a jurídica, até porque têm um na área jurídica). Como explicar, portan-
background desvantajoso, então, é mais to, a procura pelo curso de direito? Veja-
difícil de se inserir nas profissões jurídi- mos os dados obtidos através da aplica-
cas tradicionais. Não é que não exista, ção do questionário.
mas o número é reduzido16 .
Dos dez alunos que iam prestar ves-
Mesmo com essas dificuldades, o tibular para direito, dois demonstraram
sonho de um diploma em direito é com- claramente a escolha para buscar uma
partilhado pelos entrevistados nesta pes- ascensão social. Nas palavras de um de-
quisa. Apesar de apenas 10% dos alunos les: “Porque eu estava em busca de status,
dos Pré-Vestibulares para Negros e Ca- uma questão mais pessoal. Queria estar
rentes pretenderem fazer vestibular para em um patamar mais alto, que implicas-
a faculdade de direito, 37% deles disse- se poder”. Cinco alunos escolheram a fa-
ram que já pensaram em fazer o curso culdade em razão da possibilidade de aju-
jurídico. dar as pessoas e de se poder fazer justi-
Quadro 3 - Alunos dos cursos pré-ves- ça, indicando uma vontade de mudanças,
tibulares, segundo o interesse pelo cur- de intervenção na sociedade em geral.
so de direito Apesar de a opção pelo curso ser feita por
Situação Nº Porcentagem razões particulares, percebe-se um olhar
Têm interesse 34 37 mais amplo para a profissão, que repre-
Não têm interesse 41 44 senta não somente uma busca pessoal,
Não responderam 17 18 mas um ideal de transformação da socie-
Total 92 100 dade. Um dos vestibulandos declarou ter
Mas, por que esses estudantes de- escolhido fazer vestibular para direito
cidiram fazer o curso de direito? Para porque é um curso de cidadania e um ins-
responder a essa pergunta, em primei- trumento de combate às discriminações
ro lugar utilizou-se a análise desen- sociais. A opção destes alunos vincula-se à
volvida por Moema Teixeira: busca de uma sociedade mais justa, onde
as desigualdades não sejam tão gritantes.
Toda escolha baseia-se numa determi-
nada visão ou campo de possibilidades Em relação aos estudantes negros
traçado, construído e pesado de forma de direito da PUC-Rio, todos querem tra-
complexa, a partir de uma lógica não balhar com o direito e estão na faculdade
tão aparente nem tão explicitada no dis- porque buscam ingressar no mundo jurí-
curso, em que a própria pessoa, sua dico. O curso de direito não representa
personalidade, as próprias informações apenas um diploma de ensino superior,
sociais (percebidas ou não) quanto à mas significa a realização de uma busca
aquisição de status, a influência de ou- pelas profissões jurídicas. Muitos alunos
tras pessoas etc. e um sem número de entraram para a faculdade de direito por-
fatores podem estar imbricados (1998). que vieram de outros cursos considera-
Em segundo lugar, utilizaram-se os dos mais fáceis de passar no vestibular.
dados do Provão, segundo os quais 62,8% Nas palavras de um deles:
dos formandos de 1999 pretendiam tra- Eu achei que nunca ia passar para direi-
balhar, futuramente, com o direito (con- to, então fiz para ciências sociais. Lá eu
tra 37,2% que não pretendiam trabalhar tinha chance, pois a relação candidato/
16 Comentário de um professor entrevistado.

84
vaga é menor. Não tenho o que quero, No entanto, apesar de alunos e pro-
mas vou fazer o que posso. fessores constatarem um processo de
Já o outro explicou: mudança no perfil do aluno de direito,
muitos percebem um futuro não muito
Sempre quis fazer, embora tivesse ver-
animador. Se, por um lado, o crescimento
gonha de dizer para as pessoas que eu
no número de estudantes negros de di-
queria esta carreira. ... Porque não é
reito permitiu que alunos de outros seg-
curso para pobre. Pobre não pode fazer
mentos sociais estudassem direito, por
medicina, odontologia e direito, pois
outro lado, o mercado de trabalho está
como é que vai viver durante a faculda-
de? As pessoas iam me perguntar isto.
cada vez mais competitivo. Em verdade,
Me diziam que na verdade o que eu que- não apenas o mercado, mas as próprias
ria era poder, mas não é isto. Você ser faculdades de direito, em função da fis-
pobre e falar que quer fazer direito tem calização exercida pelo Ministério da Edu-
um peso. As pessoas olham diferente cação. Neste sentido foi a constatação de
para você, acham que aquilo não é para duas entrevistadas:
você.
As faculdades agora serão cada vez mais
Ao ser perguntado sobre o que seria, competitivas por causa do mecanismo
então, um curso para pobres, veio a se- de avaliação do MEC. Esta tendência à
guinte resposta: adoção de medidas que permitam que
estudantes não tão qualificados ingres-
Seria um curso de história, de ciências
sem na faculdade é diminuir. As facul-
sociais. Eu fiz formação de professores
dades vão querer alunos que tirem as
de 1a e 4a série, então seria alguma coi-
melhores notas no Provão. As faculda-
sa para complementar o curso que eu
des estão dando bolsa hoje não mais
já tinha feito.
em função da necessidade social do es-
Um terceiro entrevistado, ex-aluno tudante, mas da capacidade intelectual.
e ex-professor de um núcleo do Pré-Ves- Na Estácio [Universidade Estácio de Sá],
tibular para Negros e Carentes, considera os melhores alunos e aqueles que já têm
que: curso superior ganham bolsa. A tendên-
cia nas faculdades privadas é dar bolsa
O pessoal geralmente procura o que é
para os melhores e não para os caren-
mais cômodo para passar. Porque a reali-
tes, que têm mais dificuldade, pois vão
dade é outra. A realidade dos alunos que
fazer com que as suas notas caiam.
estudam na Baixada Fluminense é bem
diversa dos alunos que estudam aqui. É ... Como hoje há muitas faculdades de
muito fácil para o aluno que estuda na direito, que têm diferentes valores infe-
Zona Sul, além do conteúdo que dá mais riores (mensalidade), valores que a ca-
facilidade para passar, o aluno daqui tem mada mais pobre pode fazer um sacrifí-
condição de fazer um bom pré-vestibular. cio e cursar, existe mais possibilidade
Lá você já não tem isto, assim não dá destas pessoas, que geralmente são não
para concorrer com medicina, direito na brancas, ascenderem. Eu dou até força,
universidade pública. Geralmente, o pes- mas é uma ilusão, porque estas facul-
soal procura história, letras, que é mais dades geralmente não permitem nada
fácil passar e depois dá um jeito de trans- mais do que a pessoa se forme e aquilo
ferir, ou depois de conseguir o diploma, não adianta nada. Em termos de quali-
faz o que gosta. É muito por aí. dade, têm muito pouco a oferecer e a

85
pessoa acha que só porque adquiriu o Eu tenho certeza, aqui ainda tendem
grau acadêmico aquilo vai resolver to- mais para a advocacia liberal porque ela
dos os problemas da vida dela. paga melhor. Para fazer carreira pública
só realmente quem tem uma ideologia,
Mas, o sonho por uma profissão jurí-
porque se eles forem realmente bons, e
dica apresenta matizes em função da atra-
são porque têm condições de estudar,
ção que exerce, de um lado, a advocacia
têm acesso aos livros, a viagens, ao que
e, de outro, os concursos públicos. Dos
eles quiserem. Mas agora lá [na Facul-
alunos dos pré-vestibulares que efetiva- dade Veiga de Almeida] a única saída é
mente se arriscaram a fazer um vestibu- concurso e nem é o para magistratura e
lar para direito, cinco gostariam de pres- Ministério Público. O concurso técnico
tar concurso público (para a magistratura para eles já é o suficiente, concurso para
ou para delegado de polícia) e quatro pre- delegado de polícia é muito perseguido.
tendem advogar (principalmente na área São outros sonhos.
trabalhista, uma área considerada menos
O aluno da PUC não busca mobilidade
nobre na profissão).
social, pois ele já está inserido numa
Quadro 4 - Alunos dos cursos pré-ves- classe privilegiada. Claro que busca uma
tibulares, segundo a expectativa da colocação, mas já traz uma boa forma-
carreira jurídica ção de colégios privados, cursos de idi-
Resposta Nº % omas, intercâmbios no exterior, assim,
Concurso público 5 50 não busca mobilidade. Mesmo o negro
Advocacia 4 40 que aqui está tem uma bagagem muito
Não sabe 1 10 diferenciada. Os negros para quem eu
Total 10 100 dou aula, você percebe que o rendimento
e o aproveitamento são bem menores,
No entanto, é bom lembrar, o exer-
pois vêm de escolas públicas, deficitári-
cício da profissão jurídica pressupõe ven-
as. Vamos comparar a PUC com a [Uni-
cer a própria discriminação racial e a dis-
versidade} Universo, de Niterói. Lá o
criminação em razão da classe social,
público é totalmente diferenciado. Quem
como percebem com bastante clareza os é o advogado que se forma na PUC? É
alunos dos entrevistados. aquele que vai trabalhar no Sergio
Quadro 5 - Alunos dos cursos pré-ves- Bermudes, nos grandes escritórios de
tibulares, segundo o tipo de discrimi- advocacia. O da [Universidade] Univer-
nação mais difícil de ser vencida pelo so vai trabalhar em Niterói, São Gonça-
profissional do direito lo. Vai trabalhar num escritório
Resposta Nº % pequeninho. Quem faz o concurso pú-
Problemas de raça 5 50 blico aqui faz para juiz, promotor, de-
Problemas de classe social 4 40 fensor etc. O de lá faz para o 2o grau,
Não respondeu 1 10 faz até para 3o grau, mas para técnico.
Total 10 100 A diferença é marcante. É claro que um
ou dois de lá vão fazer para juiz, mas é
Em suma, existem sonhos e sonhos,
a exceção.
cuja realização depende muito do capital
cultural e social. Analisando os alunos da Ou seja: de um lado, situa-se o ba-
PUC-Rio, dois professores assim enten- charel em direito com elevado capital so-
deram as possibilidades profissionais: cial, que facilmente poderá se inserir em

86
uma advocacia privada de alto rendimen- no que ingresse de uma classe social não
to, e, de outro, situa-se o bacharel em privilegiada. As exceções são estas: ou
direito com baixo capital social (e cultu- são trabalhadores da PUC com bolsa,
ral), para quem ser aprovado em um con- ou fazem parte deste projeto, pois não
curso técnico já é suficiente, já que as teriam condições de pagar, porque hoje
chances de ser aprovado em um concurso o sistema de bolsas na PUC é muito di-
público para a magistratura e para a pro- fícil. Esta realidade você percebe em
outras universidades, já que eu tenho
motoria pública são apenas sonhos.
experiência de dar aulas em universida-
Faculdades de direito pluri-raciais des de periferia17 .

Ainda que os mecanismos para au- No entanto, a presença de estudan-


mentar a presença de estudantes negros tes negros nos cursos de direito ainda é
nas faculdades de direito sejam tímidos, percebida como muito pequena.
já é possível perceber alguns sinais de Quando perguntados sobre a
mudança no perfil de um curso tradicio- interação destes novos alunos em um
nalmente branco, principalmente na PUC- ambiente predominantemente branco e de
Rio, onde podemos observar alguma di- classe média-alta, os professores entre-
versidade racial e social no curso de di- vistados explicam que não percebem ne-
reito. De acordo com um dos professores nhum tipo de discriminação racial ou so-
entrevistados: cial. No entanto, apesar da convivência
Tenho [percebido que há mais estudan- harmoniosa em sala de aula, existe uma
tes negros], mas não consigo precisar de nítida separação dos alunos em razão das
quando foi esta modificação. Eu estudei desigualdades econômicas e sociais. Em
fora dois anos e quando eu voltei já havia verdade, a própria percepção (e
este percentual mais elevado... eu me lem- autopercepção) como negro é difícil em
bro que quando voltei dos EUA, em qual- um ambiente elitista como a PUC-Rio:
quer grupo de estudantes a questão do
estudante negro sempre aparecia e eu Ali na PUC tem uma coisa meio falseada,
nunca tinha pensado nisso. do tipo, é por isto que o professor tá
aqui, ou então, é por isto que ele é pro-
Se antes havia um, dois alunos negros
fessor, porque ele não é negro, é um cara
por turma e hoje há três ou quatro, o
que vai muito à praia – olha, tem até
aumento pode ser de 100%, mas conti-
isto – eu estou falando sério que tem
nua sendo irrisório o número de afro-
gente que brinca comigo dizendo que eu
brasileiros nas salas de aula.
não devo sair da praia. E eu nem consi-
Na opinião de outro professor: go mais responder a isto, mas enfim, já
Aqui na PUC, desde que eu entrei, eu tive passagens assim na época de estu-
não via um negro. Havia turma sem um dante, em que você percebe claramente
negro sequer. Você via no máximo um. que a pessoa tenta não ver aquilo que é
Eu tive um colega negro, mas era filho a verdade. Eu acho que é importante
de promotor e aí já vem de uma classe inclusive que estas pessoas sejam leva-
social privilegiada. Com o projeto que a das ao constrangimento de serem dis-
PUC tem, o número de negros está au- criminadas, eu acho que é importante
mentando. Eu não percebo muito o alu- que sejam discriminadas neste ambien-

17
O entrevistado referiu-se a instituições situadas nos subúrbios do Rio de Janeiro e na Baixada
Fluminense.
87
te para perceberem o quanto vão ter que que chega a ser ameaçadora para as
lutar e mudar o tipo de atitude de quem pessoas que não fazem parte desta eli-
tem poder para modificar aquele quadro. te branca de zona sul, eles cortam o
caminho, fazem todo o possível para não
Neste ambiente, a discriminação tor-
atravessar o pilotis, por aí você pode
na-se natural:
perceber o mal estar que eles têm de
Eu acho que tem uma seleção natural. estar naquele lugar.
Os alunos tratam bem em sala de aula.
Em outros termos, a maior
Não há discriminação. Eu tenho uma alu-
pluralidade racial da PUC-Rio – e de ou-
na, carente, que de forma alguma é dis-
criminada. Ela vende várias coisas na tras faculdades de direito – é apenas um
aula, mas não faz parte do ciclo de ami- mito. Na verdade, reproduzem-se, inter-
zade das outras meninas, que freqüen- namente, mecanismos de discriminação
tam lugares caros. Existe uma exclusão e de segregação que alijam os estudan-
de ambos os lados, tanto ela não acha tes negros, que não participam das mes-
que deve freqüentar estes lugares, pois mas redes sociais, das oportunidades pro-
não ficaria à vontade, quanto também fissionais às quais seus colegas brancos
as outras meninas que, por exemplo, têm acesso.
sabem muito bem que ela não seria a
pessoa que iria gostar daquele lugar.
Importância e problemas de uma
Esta solidariedade se estabelece dentro
turma pluri-racial
dos limites da sala de aula. Há exclusão Qual o significado dessa maior pre-
de ambos os lados. sença negra nas faculdades de direito?
A presença de alunos negros não sig- Como esses estudantes são percebidos e
nifica, portanto, uma integração entre como eles se percebem? Como a presen-
brancos e negros. Muito pelo contrário, a ça desses estudantes estimula o debate
discriminação torna-se mais explícita. Na de temas vinculados aos direitos huma-
opinião de um dos professores entrevis- nos? Como a questão racial é tratada em
tados, as pessoas criam afinidades que sala de aula?
não passam necessariamente pela cor da No discurso dos professores entre-
pele, mas em razão da origem social e, vistados, prevalece a opinião de que a
neste sentido, o pilotis18 da PUC-Rio é bas- diversificação dos alunos é importante
tante emblemático: pois permite o aprendizado da tolerância
e da compreensão, que só é possível quan-
O caso do pilotis da PUC é um caso mui-
do a turma é diversificada racial, econô-
to visível, todo mundo que parou para
olhar aquela configuração sócio espaci- mica e regionalmente. Porém, para que
al do pilotis viu como é que isto é difícil, esta diversidade modifique os cursos ju-
não sei se você já reparou, mas o pes- rídicos, tornando-os mais próximos da
soal do serviço social mais amorenado realidade da sociedade brasileira, é pre-
simplesmente evita o pilotis, porque ele ciso que haja uma postura estimuladora
é exatamente o centro de gravidade do debate, da discussão. Na visão de um
onde a jeunesse da PUC se encontra, é professor, os conflitos decorrentes da
o centro de sociabilidade e este espaço pluralidade são extremamente pedagógi-
ganha uma densidade social tão dura cos já que, muitas vezes, as palavras não
18 O pilotis é a principal área de convivência da PUC-Rio onde os estudantes se encontram nos
intervalos das aulas para bater papo, trocar idéias e conhecer outros alunos.

88
são capazes de expressar uma determi- po, contribui para a democratização das
nada situação. Para ele, só o fato de ha- profissões jurídicas ao proporcionar a con-
ver alunos de diversos segmentos sociais vivência com as diferenças, tornando a
e raciais na sala modifica a dinâmica da profissão jurídica, que tradicionalmente é
sua aula: muito conservadora, mais humana. Des-
Muita [diferença]. O [pedagogo brasi- ta forma, se as turmas forem compostas
leiro] Paulo Freire formou uma idéia so- por pessoas de diferentes raças, os futu-
bre o peso da palavra. Quando alguém ros operadores de direito terão sua aten-
que mora num bairro que tem todos os ção despertada para a pluralidade racial
serviços básicos, “falta d’água” tem um da sociedade brasileira e para os valores
determinado peso; quando esta mesma democráticos.
frase é dita por alguém que mora num
bairro sem infraestrutura, cai com mui-
No entanto, existe um outro lado
to mais peso. Quando discuto a justiça, revelado nas entrevistas: a presença de
fundamento do jusnaturalismo, e discu- estudantes negros na sala pode causar
tindo a justiça segundo alguns autores também um certo desconforto para o
gregos, em especial Aristóteles, sou professor:
obrigado a falar em fundamentação éti- Eu me sinto muito constrangida em
ca. E quando discuto ética como respei- abordar determinados temas. No
to à tolerância, à diferença, para positivismo eu trabalho dois autores,
exemplificar, eu falo em padrão de bele- Lombroso e Nina Rodrigues, o Lombroso
za. Intolerância vem exatamente pelo brasileiro. Nina Rodrigues tem uma teo-
não respeito da diferença, e, aí, eu mos- ria em função da raça e uma das ques-
tro o padrão de beleza do negro e do tões que eu trabalho é a questão da res-
branco e como o do branco é dominan- ponsabilidade penal e as raças no Bra-
te. Mas é uma coisa que eu digo e a sil. Eu sempre trabalhei o texto dele de
maioria não entende o que eu estou fa- uma forma muito tranqüila, mas quan-
lando. Mas, quando tem um negro na do alunos negros passaram a aparecer
sala isto é diferente. Isto diferencia na nas aulas, comecei a ficar constrangida.
minha didática, na maneira que eu es- Na minha outra turma, trabalho a ques-
tou falando, nas palavras que eu uso, e tão do ensino jurídico.
isto influência na minha recorrência pe-
dagógica, nos exemplos que eu posso Apesar desse depoimento (isolado),
dar e, no fundo, na base de tudo, vai predomina a percepção de que a diversi-
diferenciar na possibilidade de eu poder ficação social e racial da turma é impor-
fazer a crítica do direito, de pensar cri- tante para trazer para dentro da sala de
ticamente o direito. aula um pouco da realidade da maioria da
Esta opinião é também compartilha- população brasileira. A heterogeneidade
da por estudantes de direito, que acredi- dos alunos é extremamente educativa,
tam ter a diversidade dos alunos de direi- principalmente em um ambiente elitista
to em termos raciais e sociais uma dupla como o da PUC-Rio, antecipando o conta-
função, pois contribui para uma formação to com uma realidade da vida que se dará,
do profissional de direito inspirada em com certeza, no mercado de trabalho. Afi-
valores democráticos, desenvolvendo uma nal, os alunos de direito da PUC-Rio são
reflexão sobre a composição multirracial economicamente “bem confortáveis”, jo-
da sociedade brasileira e, ao mesmo tem- vens criados dentro das denominadas “bo-

89
lhas sociais”, que freqüentam apenas lu- vela, o trato social é outro, quer dizer,
gares considerados “seguros” (por serem direito de vizinhança que está no códi-
freqüentados por pessoas do mesmo ní- go, por exemplo, é totalmente diferente
vel social). do da favela. O código é piada, não exis-
te. Direito de família é a mesma coisa.
A PUC é marcadamente para um grupo
que quer advogar. É ainda uma faculda- No entanto, além de ser importante
de de elite, de um pessoal que ficou perto para o estudante de direito, essa diversi-
da faculdade pública e não passou ou dade é fundamental para preparar para o
fez uma opção por ela mesma. Mas o futuro exercício profissional, como diz um
grupo mudou bastante. Hoje é bem uma dos entrevistados, com longa experiência
extensão dos colégios. Eu sinto isto bem na magistratura:
marcado porque a garotada daqui pas-
sa mais cedo, e também muita gente A Justiça é totalmente heterogênea. É
prefere o filho numa faculdade mais per- uma escola. Você tem que ter bom sen-
to. As públicas têm condições físicas pi- so, humildade, para poder aprender e
ores, é mais longe, a instalação pior. As querer ouvir. Por exemplo, quando eu
pessoas optam pela PUC também pela estou em vara de família, da justiça gra-
questão do campus, então, o perfil é tuita, tem que ouvir as pessoas, tem que
muito homogêneo. Por outro lado, a saber que é um salário para dividir por
vidinha da PUC aliena um pouco. Eu ado- todos e tem que deixar para o
ro a PUC, ela tem uma proposta de in- alimentante porque ele precisa viver. É
formação, mas o aluno deveria estar lá uma realidade completamente diferente
por isto e não porque é perto de casa. da nossa.

A diversidade em sala de aula influ- Dois pontos merecem ser destaca-


encia na formação dos alunos. Um dos dos. Em primeiro lugar, essas narrativas
entrevistados, jovem professor, contou apontam a contribuição do estudante ne-
que foi muito influenciado por um colega gro para o estudante branco. Ou seja, a
negro, com quem fez amizade. A partir presença do estudante negro em sala de
deste contato, de realidades de vida tão aula não é vista a partir do ponto de vista
díspares, pôde desenvolver sua consciên- desse estudante negro, mas sim do estu-
cia das desigualdades das relações raciais. dante branco. O estudante negro existe
Além do mais, as aulas em uma turma he- para facilitar que o estudante branco se
terogênea eram mais produtivas e ricas em familiarize com uma diversidade que terá
razão da pluralidade de opiniões. de enfrentar quando ingressar no merca-
do de trabalho. Em outros termos, o estu-
Para um professor de ética profissi-
dante negro antecipa o caráter não ho-
onal entrevistado, os alunos negros teri-
mogêneo do mundo real, desconhecido do
am uma contribuição a dar na construção
estudante de direito, branco e pertencen-
de um curso mais próximo da realidade
te à elite, da PUC-Rio.
brasileira:
Em segundo lugar, será que a sim-
A teoria do direito no Brasil é, infeliz-
ples presença dos estudantes negros em
mente, como se tudo fosse um mar de
rosas, embora se fale nos conflitos, são sala de aula possui este efeito transfor-
os que não atingem nem 10% da popu- mador? Para um dos professores entre-
lação brasileira na maioria dos casos. É vistados, a diversificação na composição
um direito para elite. Se você vai na fa- dos alunos não é suficiente para a cria-
90
ção de um curso jurídico mais próximo da al: a raça aparece, já que a atividade po-
realidade nem para a conscientização do licial está primordialmente voltada para
grupo estudantil: a repressão das classes marginalizadas (e,
Por si só não necessariamente. Isto de- portanto, dos negros). Mas, não se vai
pende muito mais da postura e da von- muito além dessa abordagem tangencial.
tade de discussão e manifestação dos Segundo os professores, os própri-
próprios alunos do que simplesmente da os alunos negros não se sentem à von-
composição. Se você tiver turmas plu- tade para trabalhar um tema que envol-
rais, porém, apáticas, a contribuição ou va a questão racial em sala de aula; as
o avanço destas reflexões e destes de- poucas discussões sobre discriminação
bates serão insuficientes. Agora, se a
racial são estimuladas pelo professor e
essa variação de diversidade corres-
não pelos alunos negros. E quando te-
ponder uma variação de estudo, de par-
mas sobre relações raciais são tratados
ticipação, de cotejo, de vida, de reali-
em sala de aula, as discussões encami-
dade diferentes, aí sim.
nham-se para um debate sobre as desi-
A conscientização para os proble- gualdades sociais, escamoteando-se o
mas raciais tema racial.

Como as questões raciais são traba- No Brasil você não tem um bairro ne-
lhadas em um curso de direito? Será que gro, embora a maior parte da Baixada
os professores de direito estão preocupa- Fluminense seja de negros e não bran-
dos em desenvolver a consciência de seus cos, quer dizer, não é caracterizado
como um bairro negro, como você vê
alunos?
na Inglaterra, nos EUA. O espaço urba-
As respostas, infelizmente, são no nestes locais tem uma dimensão
desanimadoras. Nenhum dos professores histórica. No Brasil, o contexto históri-
entrevistados trabalha especificamente co, tem até no livro do Darcy Ribeiro O
questões raciais em sala de aula. Pelo povo brasileiro, que trabalha bem na sua
menos, não em profundidade. Nem mes- dimensão conflitiva, mas este processo
mo o professor de direitos humanos (dis- de integração e miscigenação de certa
ciplina optativa na PUC-Rio) consegue maneira camuflou, ou seja, colocou em
motivar os alunos para discutir o tema: segundo plano a questão racial, como
ao solicitar que os alunos escolham, den- se a questão fosse somente social.
tre sete temas apresentados, um para ser Esse professor de ética profissional
desenvolvido em grupo, o tema menos situa-se entre os poucos que tentam dar
procurado é, justamente, questões raci- um enfoque mais social à ética, menos
ais (provavelmente em razão de uma fal- técnico, pois isto o aluno pode aprender
ta de identificação com o tema19 ). É bem lendo o próprio código. Na sua visão, o
verdade que o tema das desigualdades direito deve ser um fator de promoção da
raciais pode ser abordado, mas de forma sociedade e não de restrição das possibi-
indireta, em outras disciplinas, como, por lidades de atuação da pessoa na socieda-
exemplo, quando se estuda a ação polici- de como, em geral, acontece:
19
Comparando a Universidade Veiga de Almeida com a PUC-Rio, uma das entrevistadas relatou que na
primeira instituição há um maior interesse pelo tema, em função do perfil dos estudantes, que costu-
mam trazer para debate problemas que enfrentam no dia a dia, em uma loja ou em um banco (prin-
cipalmente em decorrência das portas giratórias das instituições bancárias).
91
É a velha estória, quem tem direito é res negros de direito? Será que essa di-
quem tem patrimônio. Então, a minha versidade racial corresponderia a uma
investigação é no sentido de provocar Justiça/justiça mais democrática? Como
um questionamento. Isto, às vezes, não a variável raça permeia as decisões do
é muito aceito. Há uma formação muito Poder Judiciário? Há condições para que
monolítica neste sentido, vendo o direi- caminhemos para uma critical race theory
to apenas como uma ciência, mas que aqui no Brasil?
se aplica aos contextos possíveis. Eu
acho que não é bem por aí e deve ser Justiça imparcial?
aplicado a qualquer contexto, porque é
A igualdade formal garantida pela
vida, é relação humana. O direito serve
para integrar essas relações, então, o Constituição Federal não se concretiza,
meu curso é baseado nesta sistemática infelizmente, em uma igualdade real no
e trabalha a questão do preconceito, e, Poder Judiciário. Pelo menos, essa é a
aí, entra a questão social também por- percepção dos entrevistados em relação
que a nossa “raça profissional” é muito à atuação da Justiça: brancos e negros
vaidosa, orgulhosa e então cria certos são tratados de maneira desigual. Um
estigmas em relação a certos grupos único estudante, todavia, considera que
sociais. O medo do diferente. Será que o problema da desigualdade não é de res-
tem consciência que o negro e o branco ponsabilidade da Justiça, mas daqueles
são iguais? Numa determinada situação que estão mais próximos dos fatos:
quem seria atendido primeiro: o negro
Quando a Justiça pega a coisa ela já está
ou o branco?
tipificada de modo que prejudique mais
Sendo os direitos dos negros um as- os negros que os brancos. Se cinco pes-
sunto marginal no curso – e, acreditamos, soas são presas por seqüestro, três ne-
não apenas na PUC-Rio -, os profissionais gros, um mulato e um branco, o branco
que prestam assistência jurídica a vítimas vai ser tratado como chefe da quadri-
de discriminação racial não são prepara- lha. Quando duas pessoas, um branco e
dos para a prática profissional. O desen- um negro, dão um golpe no banco, o
volvimento do trabalho depende muito branco vai ter praticado o crime de co-
mais de um feeling dos advogados do que larinho branco e o negro de estelionato.
de uma preparação profissional adequa- Mas, o problema não pode ser limi-
da para este tipo de advocacia. Segundo tado à esfera policial, como pretende o
uma advogada do Centro de Articulação discurso acima. A resistência das autori-
de Populações Marginalizadas (CEAP), dades judiciárias em enfrentar questões
seriam necessários cursos de aperfeiçoa- relacionadas às discriminações raciais é
mento para os profissionais que atuam no flagrante, conforme percebido pelos ad-
campo das discriminações no Rio de Ja- vogados do CEAP. De acordo com os rela-
neiro, além de doutrinas jurídicas especí- tos dos entrevistados, muitos juízes, na
ficas nesta área. própria audiência, revelam que não acre-
ditam na existência de discriminação ra-
Democratização da Justiça
cial no Brasil; outros consideram estas
Que efeito pode produzir na Justiça, querelas de pouca importância e, por isto,
enquanto instituição, e na justiça, enquan- tentam forçar um acordo com o pretexto
to valor, uma maior presença de operado- de terem coisas mais importantes para

92
fazer. Esta opinião é compartilhada pelos (valor) não são justas, conforme compro-
advogados entrevistados, que consideram vam as pesquisas e conforme dizem to-
o Poder Judiciário muito conservador e os dos os entrevistados, será que uma mai-
juízes, na maioria, ainda sem consciên- or presença de operadores negros de di-
cia da discriminação racial que existe na reito contribuiria para a democratização
sociedade brasileira. do acesso à justiça, como pretendem as
teorias construídas nos Estados Unidos e
Se essa discriminação existe nas di-
na Inglaterra? Será que os entrevistados
ferentes esferas da Justiça, ela com cer-
acreditam nessa possibilidade?
teza se faz mais visível na esfera penal,
cujos réus são majoritariamente não bran- A resposta, em princípio, surpreen-
cos e pobres. Pesquisa coordenada por de: os entrevistados – estudantes, pro-
Sergio Adorno (1984) revelou, especial- fessores e profissionais de direito – efeti-
mente, o processo discriminatório da jus- vamente acreditam que o aumento no
tiça criminal, que condena um número número de profissionais do direito negros
maior de acusados negros do que bran- produziria uma democratização do aces-
cos. Perguntado quanto à igualdade de so à justiça e uma modificação na atua-
tratamento da Justiça aos negros e bran- ção do Poder Judiciário.
cos, um advogado do CEAP exemplifica:
No entanto, relativizando um pouco
Não, claro que não. Até porque tem a essa afirmativa, muitos vinculam esta
dificuldade do julgador de estar ali com transformação a um processo de
um crime de racismo. Na maioria das conscientização, que deve começar pelos
vezes, a vítima, o autor da ação, o que
próprios estudantes de direito negros, que,
tem direitos subjetivos exigíveis, é um
muitas vezes, negam a influência da cor
negro. O agressor, o criminoso, o
na atuação profissional, atitude bastante
indiciado, na maioria das vezes é bran-
compreensível em um país racista como
co (já que em geral o crime de racismo
o Brasil20 . Bastante paradigmática dessa
é praticado por um branco contra um
negro) e isto é uma situação nova para postura de negação da cor é a afirmativa
o julgador. Na maioria das vezes, ele está de um dos estudantes negros da PUC-Rio:
acostumado a ver o contrário, ver o ne- Eu não tenho cor. Eu vou ter que ser um
gro como réu, como criminoso. Na ver- profissional. Quando eu for trabalhar eu
dade, ele vai estar julgando um branco, não vou ter que olhar para a cor da mi-
igual a ele, muitas vezes de uma classe nha pele. Isto fica de lado. Não influen-
social bem próxima à dele, por um crime cia em nada.
que ele seria capaz de cometer, como por
exemplo, na hora do trânsito, ao chamar Existe nos discursos – e não apenas
um negro de macaco. Ele mesmo [juiz] nesse – uma contradição flagrante. De um
ou o filho dele poderia praticar este cri- lado, ao se negar a identidade negra, ima-
me, nervoso, no trânsito. Fica uma situa- gina-se que a cor da pele não influencia a
ção bastante desconfortável para o juiz. atuação do profissional. Mas, de outro
lado, afirma-se que uma maior presença
Operadores do direito negros: uma
de estudantes negros contribuiria para
Justiça mais justa?
democratizar a Justiça. Como afirmou um
Se a Justiça (instituição) e a justiça outro estudante:
20
A este respeito, ver: Gomes (1995) e Souza (1993).

93
Não penso muito se a minha atuação Na opinião de outro professor:
vai contribuir para o movimento negro, Isto pode possibilitar a formação de um
mas de qualquer forma, em qualquer senso comum jurídico do que se tem,
área que eu trabalhe, é claro que eu es- que ainda é muito elitista, positivista e
tarei fazendo presença como um ele- que se expressa nas práticas dos advo-
mento negro e indiretamente é claro que gados, promotores, defensores, juízes,
vai dar um respaldo para a questão da alunos e professores, doutrina jurídica
negritude. no seu sentido mais amplo. Quando você
Nas palavras de outro aluno: imagina família, moradia, propriedade,
imagina as relações variadas, daí a pre-
Porque tem uma coisa, se o negro pro-
sença de maior participação cidadã e
cura um advogado, se for um advogado
segmentos variados da sociedade,
negro ele vai. A gente se sente mais se-
como, por exemplo, mais mulheres. Na
guro. Você pode até achar que é pre-
minha época de estudante eram 30%
conceito, mas não é, é insegurança. A
de meninas, hoje são 50% a 60%, 70%
gente sente assim. Tem que ser para
de moças em sala de aula, e tem um
saber.
significado semelhante em relação aos
Ao ser indagado sobre a possibilida- negros, sendo que os negros ou pelo
de de não se ter discriminação racial de menos a população não branca no Bra-
réus negros julgados por juízes negros, o sil é uma grande maioria.
advogado do CEAP respondeu: “Se fosse O processo seria igual ao que ocorreu
negro não, mas se o juiz tivesse consci- com as mulheres quando começaram a in-
ência das desigualdades raciais no Brasil, gressar na carreira da magistratura e que
com certeza mudaria. Não importa a cor”. se tornaram mais conservadoras, preferin-
Em outros termos, menos do que a do seguir a jurisprudência dominante:
cor da pele – ou a experiência subjetiva Os recém chegados numa determinada
de discriminação -, o importante é a cons- profissão local tendem a ser mais con-
ciência do operador do direito sobre os servadores do que aqueles que já estão
problemas raciais que enfrentamos no lá há mais tempo. É uma forma de você
quotidiano da sociedade brasileira. Um conquistar o seu lugar. Não sendo dife-
novo sentido de justiça dificilmente será rente, mas sendo conservador. Se a pes-
construído a partir de uma maior diversi- soa já tem alguma coisa que o faz dife-
dade racial entre os operadores de direi- rente, tenta não marcar mais esta dife-
to, até porque os próprios profissionais rença, mas se enquadrar dentro dos
negros que conseguem ingressar no mer- padrões dominantes.
cado do trabalho acabam deixando alguns A maioria dos entrevistados acredi-
de seus valores de lado para serem acei- ta que há uma tendência do profissional
tos e conquistarem seus lugares. Neste negro se embranquecer, já que atuará em
sentido é a opinião da advogada do CEAP: um ambiente composto majoritariamente
por brancos. Talvez, este processo de
Eu noto que muitas pessoas, o próprio
negro, é racista. Eu passei por uma ex- embranquecimento comece na própria
periência com um juiz negro que não faculdade.
quis atuar no processo. Declinou da Quando [os estudantes negros] se for-
competência por foro íntimo. mam estão embranquecidos e quando

94
entram no escritório de advocacia ou Caminhos para uma democratização
passam em um destes concursos, prin- da Justiça
cipalmente magistratura, eles estão
Dentre as várias possibilidades de
90% embranquecidos. E se galgam pos-
tos mais elevados na hierarquia judiciá-
democratização da Justiça, gostaríamos de
ria, eles terminam arianos. Não que seja chamar a atenção para a experiência do
uma regra, mas eu percebo isto, eu lido CEAP, uma organização não-governamen-
com isto, porque eu procuro isto, eu sou tal fundada em 1989 por um grupo de
obrigado a pesquisar leis, posiciona- militantes do Movimento Negro Organi-
mentos judiciais e doutrinas. Algum tem- zado do estado do Rio de Janeiro. O CEAP
po atrás, a revista Veja falou dos ne- é independente, sem fins lucrativos, com
gros que se projetaram na sociedade, experiência em diversas áreas de atua-
artistas, cantores, esportistas, políticos ção, principalmente no combate à discri-
e um jurista, um magistrado, que era minação racial e na valorização dos direi-
juiz ou desembargador. O que ele dizia tos humanos, objetivando a organização
na revista não era nada significativo autônoma dos marginalizados.
sobre a sua posição frente ao direito. E
o direito é especial na sociedade, é o As ações políticas do CEAP susten-
locus da disputa de poder, da tam-se em três programas: a) Programa
normatização e da regulação. Jurídico Insurgente de Combate ao Racis-
mo (AJIR), b) Centro de Documentação
Em suma, os entrevistados conside-
(CEDOM) e c) Núcleo de Comunicação.
ram que a pluralidade dos atores jurídi-
cos modificará o perfil do Poder Judiciá- Para o Coordenador do AJIR, a pro-
rio, ainda muito conservador e tradicio- posta da entidade é “ser um centro de arti-
nal. A quebra da cultura monolítica jurí- culação de meios com fim de promoção da
dica amplia a visão de mundo dos opera- defesa de direitos humanos de uma ma-
dores do direito e, com isto, a Justiça es- neira geral e especial da população afro
tará mais rica e com melhores instrumen- brasileira”. Com esta finalidade, o AJIR foi
tos para atender aos anseios e resolver criado em março de 1966. De lá para cá, os
os conflitos sociais. Mas, para isso, neces- dois advogados e uma advogada do pro-
sitamos ter, efetivamente, operadores do grama já ingressaram com cinqüenta ações
direito negros. Hoje, juízes negros e esta- jurídicas em razão de preconceito e discri-
giários negros no fórum são raros. Uma minação racial. O objetivo é a criação de
juíza entrevistada relatou que, nos seus oito jurisprudência na área criminal e a criação
anos de magistratura, encontrou estagiári- de uma prática de indenização na área cível.
as negras, mas apenas aquelas De acordo com os dois advogados entre-
vistados, os resultados são animadores: se
bem clarinhas, com cabelo extremamen-
te alisado, aquela coisa, o negro que
no início não conseguiam obter uma sen-
adota todo o referencial de beleza do tença de mérito, ou seja, o juiz lançava mão
branco, bota logo uma lentona verde. A de todos os instrumentos jurídicos que dis-
aculturação é forte, mas aquele que tem punha para extinguir o processo sem jul-
orgulho, faz trancinha, com este nunca gamento do mérito, atualmente, os juízes
me deparei nem como advogado nem já estão levando o processo até a sentença
como estagiário. final. Nas palavras dos advogados:

95
Olha, o nosso projeto tem três anos e (um crime menor). O que eu acho é que
agora é que as ações estão tendo resul- na verdade é racismo comparar alguém
tado. Em média, tem sido favorável. No a um animal intelectualmente inferior,
início, logo que a gente entrava, eles não tenho nada contra os macacos, mas
arquivavam o processo ou indeferiam a comparar alguém por causa da cor ...
inicial por falta de provas. Mas agora eles Um dos maiores problemas enfren-
têm ido até o final, inclusive julgando o
tados pelos advogados do CEAP na defesa
mérito. Procedente ou não, tem se jul-
dos direitos dos seus clientes é a fase
gado o mérito. No começo do projeto,
probatória do crime. A mais comum e fá-
todas as nossas ações eram, pratica-
cil prova da ocorrência da discriminação
mente, extintas sem julgamento do
racial é a testemunhal. No entanto, a di-
mérito.
ficuldade de se trabalhar com este tipo de
Aos poucos fomos conseguindo superar prova compromete a eficiência dos servi-
isto, usando alguns outros artifícios, ços prestados. Muitas vezes, num primei-
aumentando a quantidade de pena, ca-
ro momento, as testemunhas se dispõem
pitulando mais de um artigo da lei, cons-
a depor, mas, no momento seguinte, vol-
truindo a estrada para termos uma sen-
tam atrás ou até mesmo apresentam de-
tença de mérito, nem que seja
poimentos comprometedores. Nestes ca-
absolutória, para que fique bem clara a
sos, o processo acaba sendo arquivado ou,
posição do Judiciário. Para a nossa sur-
presa, as sentenças de mérito têm dado
na melhor das hipóteses, desqualifica-se
mais vitórias do que derrotas, tivemos o crime.
quatro sentenças de mérito, com três Mais uma vez, é importante lembrar
vitórias e uma derrota. que os advogados destes serviços não
Esta mudança tem grande relevân- esbarram apenas com a fragilidade da
cia, já que é na sentença que o juiz julga prova testemunhal, mas, mais seriamen-
procedente ou improcedente o pedido, ou te, com o mito da democracia racial bas-
seja, reconhece a ocorrência do racismo tante presente na atuação do Poder Judi-
ou ofensa à honra do autor da ação. Um ciário. Ou seja, mesmo que o processo
processo com grande destaque na mídia esteja respaldado por uma prova teste-
foi o famoso caso da música Veja os ca- munhal convincente, é preciso contar com
belos dela, com mensagens racistas, do a sorte para não se deparar com juízes
cantor Tiririca. Ao final do processo, a descrentes da existência de racismo na
Sony Music Entertainment foi condenada sociedade brasileira.
a pagar uma indenização no valor de três Conclusão
milhões de dólares.
Com a expansão do ensino médio e
Para a juíza do processo, se houves- do ensino superior é indiscutível o pro-
se mais profissionais negros no Poder Ju- cesso de modificação no perfil dos estu-
diciário, algumas questões que são leva- dantes universitários como um todo
das até aí poderiam ser encaradas de uma (Junqueira, 1999). Da proliferação dos
forma diferente: cursos jurídicos nas últimas décadas, ori-
Há casos que são levados ao tribunal ginou-se um processo de diversificação
em que um negro é chamado de maca- dos estudantes de direito. Atualmente os
co, isto até hoje não é considerado cri- alunos das faculdades jurídicas não são
me de racismo, mas de ofensa à honra apenas os filhos da elite dominante. Es-
96
tudantes de outros segmentos sociais es- a tese, de origem anglo-saxã de que uma
tão sendo recrutados pelas novas escolas maior presença de operadores de direito
jurídicas e, com isto, o perfil dos atores contribui para a democratização da justi-
do direito vem sendo modificado. Por con- ça. No entanto, sem dúvida, como foi am-
seqüência, era de se esperar uma demo- plamente reconhecido, a presença do es-
cratização do acesso à justiça, bem como tudante negro em salas predominante-
a criação de um novo sentido de justiça mente de alunos brancos é extremamen-
mais comprometida com a realidade da te pedagógica. Quando se debate sobre
sociedade brasileira. Diante deste proces- justiça, igualdade e raça, a presença do
so, os estudantes de direito exercem uma aluno negro é imprescindível para a com-
função importante. preensão da própria discussão. Assim,
Não se trata, obviamente, de afirmar quando mencionam as situações
que a presença de estudantes negros nos discriminatórias decorrentes das portas
cursos jurídicos seja imprescindível para giratórias das instituições privadas, sobre-
uma conscientização das desigualdades tudo as financeiras, se a turma é com-
das relações raciais e sociais. Não se pre- posta só por alunos brancos, na verdade,
tende atribuir aos novos estudantes a ta- o debate não se desenvolve, pois, em ge-
refa de aproximar os cursos de direito à ral, há um consenso de que o dono da
realidade brasileira. Todavia, é forçoso instituição pode barrar e permitir a en-
reconhecer que estes estudantes têm uma trada de quem quiser. Mas, se há um alu-
função nas escolas jurídicas, pois, em úl- no negro, a discussão evolui e opiniões
tima análise, são responsáveis pela que- contrárias são levantadas. Muitas vezes,
bra da normalidade da ausência. Também preconceitos e atitudes racistas são tra-
é legítimo esperar destes estudantes e dos zidos à tona, permitindo que o debate
futuros operadores do direito uma maior ganhe um viés ainda mais jurídico, uma
ligação entre direito e raça. vez que a discriminação racial é crime.

Uma pesquisa a respeito das produ- Desta forma, a presença de estudan-


ções acadêmicas sobre relações raciais e tes negros é importante para um proces-
direito demonstra claramente esta tendên- so de reconhecimento da discriminação
cia. Ou seja, a maioria das (poucas) dis- racial e para que o racismo não permane-
sertações de mestrado bem como a lite- ça “estranho ao domínio do direito”, con-
ratura sobre raça e direito é de autores forme ensina Denise Ferreira da Silva
negros, vinculados ao movimento negro. (2000):
Mais uma vez, referendando a opinião Much of the problem with the logic of
quase unânime dos alunos do Pré-Vesti- racism – the logic of exclusion – derives
bular para Negros e Carentes, antes da from the assumption that racist ideas
cor da pele, é preciso ser negro. Ou seja, are foreign to the modern conception of
é importante que o aluno ou o profissio- Justice. Many have pointed to the
nal de direito negro tenham consciência shortcomings of the liberal perspective
das desigualdades raciais para que con- which condemns racist ideas and
practices on the grounds that they
tribuam para uma mudança na condição
counter the universalism inherent to the
do negro na sociedade brasileira.
discourse of modernity. The most
Os dados da pesquisa não trouxeram important contribution of such critiques
elementos substantivos para comprovar of the liberal paradigm of justice has

97
been to point out how racist ideas are 4. Você gostaria de trabalhar em uma
not extraneous to modern imagination organização que prestasse assistência
but that they circumscribe the zone of jurídica a pessoas vítimas de discrimina-
operation of universality. Because ção racial?
principles, procedures, and judicial
5. Você acha que se houvesse um mai-
decision-making are informed by the
or número de professores negros haveria
principles associated with the culture of
uma maior preocupação para que o advo-
the dominant ‘racial group’, and because
gado atue em casos de discriminação?
those implementing them usually share
in the interests and principles of those
Você acha esta formação específica im-
who will benefit from raced-based portante?
exclusion, the argument that racism is 6. Você acha que a justiça trata igual-
foreign to the domain of law cannot be mente brancos e negros? Por que? O que
sustained21 . poderia ser feito para mudar isso? Um
Não podemos fazer como uma das alu- maior número de profissionais do direito
nas entrevistadas na PUC-Rio, que se sen- negros reverteria isso? Por que?
te inibida para colocar certos assuntos, 7. Os serviços jurídicos que atuam em
como, por exemplo, sobre as desigualda- casos de discriminação racial queixam-se
des das relações raciais e sociais, pois acre- que os profissionais do direito são mal pre-
dita que seu comportamento deve ser pau- parados para este tipo de prática. Você
tado pelo ambiente. Ou seja, acredita que, acha isto verdade? O que poderia ser fei-
por ser minoria ali naquele universo, já que to para modificar esta situação?
tem o privilégio de estar ali, o mínimo que 8. Você sabe quais são as principais leis
pode fazer é não incomodar levantando contra discriminação racial no Brasil?
questões que não interessam à maioria. Na Quais são? Você acha que o ordenamento
verdade, começar a discutir um problema jurídico brasileiro tem instrumentos sufi-
é a primeira forma de enfrentá-lo. cientes e adequados para combater a dis-
criminação racial?
Anexo - Roteiro da entrevista
9. Você já assistiu a algum seminário
1. Racismo deveria ser mais debatido nas específico sobre direito e relações raci-
diversas disciplinas do curso de direito? ais? Já viu anunciado algum seminário
2. Você já teve alguma disciplina que sobre este assunto? Teria interesse espe-
analisou este tema especificamente? cífico em assistir?
Qual? Como foi? 10. Você acha que deveria haver uma
3. Você já fez a disciplina de direitos associação dos estudantes negros na PUC,
humanos? Ela deveria ser obrigatória? Por como existe em universidades norte-ame-
que? ricanas? Por que? Que contribuição este

21
A lógica do racismo – a lógica da exclusão - assume que idéias racistas são alheias à concepção
moderna de justiça. Muitos já identificaram as limitações da perspectiva liberal, que condena idéias e
práticas racistas, porque elas contrariam o universalismo inerente ao discurso da modernidade. A
maior contribuição dessas críticas ao paradigma liberal de justiça tem sido ressaltar que idéias racistas
não são exteriores ao imaginário moderno, mas, na verdade, elas circunscrevem a zona de operação
da universalidade. Precisamente porque os princípios, procedimentos e decisões judiciais são associa-
das à cultura do “grupo racial” dominante, e porque aquele/as que as implementam compartilham os
mesmos interesses e princípios com aquele/as que se beneficiam da exclusão racial, o argumento de
que o racismo está fora do domínio da lei é insustentável.
98
tipo de associação poderia trazer? CRENSHAW, Kimberlé Williams. Race,
11. Que tipo de discriminação é mais reform, and retrenchment :
difícil para ser vencida como profissional transformation and legitimation in
do direito, problemas de raça ou proble- antidiscrimination law. Harvard Law
mas de classe social? Review, v. 101, n. 7, maio 1988, p.
1331-1387.
12. O que poderia ser feito para au-
mentar o número de estudantes negros DELGADO, Richard. The ethereal scholar
nas faculdades de direito? : does critical legal studies have what
13. Qual seria o papel da ordem dos minorities wnat?. Harvard Civil Rights-
advogados neste processo? Civil Liberties Law Review, n. 22, 1987,
p. 301-322.
14. Qual a instância da sociedade mais
importante para o combate à discrimina- DURKHEIM, Emile, MAUSS, Marcel. Al-
ção racial: a política, a jurídica ou a edu- gumas formas primitivas de classifica-
cacional? Por que? ção. In: MAUSS, Marcel. Ensaios de
15. Você gostaria de lecionar em uma sociologia. São Paulo : Perspectivas,
faculdade de direito? Qual disciplina? 1981.

Referências bibliográficas ECONOMIDES, Kim. Lendo as ondas do


‘movimento de acesso à justiça’ :
ABEL, Richard. American Lawyers. New epistemologia versus metodologia? In:
York: Oxford University Press, 1989. PANDOLFI, Dulce Chaves et al (Orgs.).
ADORNO, Sergio et al. Preso um dia, preso Cidadania, justiça e violência. Rio de
toda a vida : a condição de estigmati- Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, p.
zado do egresso penitenciário. Temas 61-76.
Imesc, São Paulo, v. 1, n. 2, 1984, p. FALCÃO, Joaquim. Os advogados : ensi-
101-117. no jurídico e mercado de trabalho. Re-
BARCELOS, Luiz Claudio. Aspectos da cife : Massangana, 1984.
realização educacional de negros e FARIA, José Eduardo. A reforma do ensi-
brancos no ensino superior no Brasil. no jurídico. Porto Alegre : Sergio Fa-
Gênero, geração e etnia, Rio de Janei- bris, 1987.
ro, 1999.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coi-
BELL, Derrick. And we are not saved : The sas : uma arqueologia das ciências hu-
elusive quest for racial justice. New manas. São Paulo : Martins Fontes,
York : Basic Books, 1987. 1987.
BRITO, Jadir Anunciação de. A igualdade GOMES, Nilma Lino. A mulher negra que
na lei e a desigualdade pela ração : eu vi de perto : o processo de constru-
pluralismo jurídico e constitucionalismo ção da identidade racial de professoras
comunitário : ação afirmativa no Bra- negras. Belo Horizonte : Mazza, 1995.
sil. Rio de Janeiro, 1999. Mimeo.
HAINES, Andrew. The critical legal studies
CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant movement and racism: useful analytics
(Ed.). Acesso à justiça. Porto Alegre : and guides for social action or na
Sérgio Fabris, 1988. irrelevant moder legal scepticism and

99
solipticism?. William Mitchell Law law: critical discourses exploring law
Review, n. 13, 1987, p. 685-736. and society methods and traditions, Law
and Society Association. University of
INEP — Instituto Nacional de Pesquisas
California, San Diego].
Educacionais. Relatório síntese.
Brasília : Inep, 1997 SILVA, Jorge da. Direitos civis e relações
raciais no Brasil. Rio de Janeiro : Luam,
INEP — Instituto Nacional de Pesquisas
1994.
Educacionais. Relatório síntese.
Brasília : Inep, 1999 SOUZA, Neuza Santos. Tornar-se negro :
as vicissitudes da identidade do negro
JUNQUEIRA, Eliane. A sociologia do di-
brasileiro em ascensão social. Rio de
reito no Brasil. Rio de Janeiro : Lumen
Janeiro : Graal, 1993.
Jures, 1994.
TEIXEIRA, Moema de Poli. Negros em
JUNQUEIRA, Eliane. Acesso à justiça : um
ascensão social : trajetórias de alunos
olhar retrospectivo. Estudos Históricos,
e professores universitários no Rio de
Rio de Janeiro, n. 9, 1996, p. 389.
Janeiro. Rio de Janeiro, 1998. Tese
LEMPERT, Richard O., CHAMBERS, David (Doutorado). Museu Nacional - UFRJ.
L., ADAMS, Adams, Terry K. Michigan’s
TURNER, Michael. Do marron ao preto :
minority graduates in practice : the
mudando as atitudes raciais dos uni-
river runs through law school. Law and
versitários afro-brasileiros. [s.n.t.],
Social Inquiry, n. 25, 2000
[1992]. 26 p.
MATSUDA, Mari. Looking to the bottom :
VENANCIO FILHO, Alberto. Das arcadas
critical legal studies and reparations.
ao bacharelismo. São Paulo : Perspec-
Harvard Civil Rights – Civil Liberties
tiva, 1982.
Review, n. 22, p. 323.
VERAS, Cristiana Vianna. A transforma-
MINDA, Gary. Postmodern legal
ção das faculdades de direito em esco-
movements. New York : New York
las de justiça : a promoção de uma
University Press, 1995.
maior igualdade : relatório final. São
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Ensino Paulo : Ação Educativa ; Anped, 2000.
jurídico : saber e poder. São Paulo : (Relatório de pesquisa)
Acadêmica, 1988.
SÁ, Celso Pereira de. Representações
sociais : o conceito e o estado atual da
teoria. In: SPINK, Mary Jane (Org.).
O conhecimento no cotidiano. São Paulo
: Brasiliense, 1993.
SILVA, Denise Ferreira. Interrogating the
socio-logos of justice : considerations
of race beyond the logic of exclusion.
San Diego (EUA) : Summer Institute,
2000. [Artigo distribuído e apresenta-
do no Painel Race, Place and Space, no
2000 Summer Institute: Race and the

100

Você também pode gostar