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Psicanalise e sociologia da sociedade do medo

Nossa herança Iluminista com forte apelo ao individualismo e ao produtivismo nos remete à
marginalização do emotivo frente ao racional. Nos afetos haveria uma “força do mal” ligada à
superstição que seria eliminada pelo exercício da razão. Entretanto, não apenas a dita razão
não eliminou essa força emotiva como, na verdade, é nela que se observam as formas mais
poderosas de reprodutividade ou de improdutividade da realidade social. A produção se daria
pelo novo, criativo, resultado do contato com o Outro. A improdução se daria no circuito das
coisas cotidianas, do mesmo, da monotonia. Por incrível, nossas vidas se pautam pela
improdução. Apesar da velocidade alucinada do capitalismo, o Mesmo sempre se apresenta
diante de nós. A enorme velocidade de transformações se dá sobre as coisas mais superficiais
contribuindo, ao contrário, para limitar nossas formas de ver criativamente nosso presente e
nosso futuro.

Trata-se de uma sociedade que se estruturou de forma individualista e competitivista. Esse


formato se radicalizou nos últimos séculos se mostrando mais inadequado à manutenção da
própria totalidade social, forçando cada vez mais o tecido social. Apesar da inúmeras soluções
– contratualismo, democracia, Estado de Direito… – o problema básico permanece:
competitividade entre as pessoas que gera a desconfiança e, consequentemente, o medo.
Medo do outro que ameaça; medo de se tornar um despossuído. Na verdade, todas essas
forma legais-institucionais de resolução do conflito na sociedade do indivíduo são evidências
do oposto, da necessidade de cada um se proteger de todos os demais através do Estado,
espécie de espelho da proposta hobbesiana.

No atual estágio dito neoliberal e pós-moderno (“neo” e “pós”: os prefixos usados quando não
se sabe o que “é”) a formação das subjetividades individuais-competitivas foi levada ao
extremo. A pessoa torna-se empreendedora de si, “investe” em si a cada tempo para um
sucesso que nunca chega. Os termos são típicos do mundo empresarial, mas para designar
fatos do cotidiano das pessoas. O átomo (indivisível) do homem é o homem como empresa.

Nesse estágio a alienação ganha novos contornos. Não há solidariedade entre empresas
concorrentes; se há cooperação, trata-se de um auxílio instrumentalizado para um
determinado fim. As relações entre homens tendendo à eliminação e à instrumentalização,
oposto do Imperativo Categórico kantiano.

Um homem crescentemente isolado e sem recursos sociais de redes confiáveis de


solidariedade tende à agressividade e ao isolamento. Quanto maior o medo, maior o
isolamento. Daí a aglomeração entre os que percebe como iguais em uma fracassada busca
por segurança. Fracassada porque:
“(…) Freud cunhou a expressão “narcisismo das pequenas diferenças” tentando, explicar as
grandes intolerâncias étnicas, raciais e nacionais – sobretudo a que pesava sobre os judeus na
Europa. É quando a diferença é pequena, e não quando é acentuada, que o outro se torna alvo
de intolerância. É quando territórios que deveriam estar bem apartados se tornam próximos
demais, quando as insígnias da diferença começam a desfocar, que a intolerância é convocada
a restabelecer uma discriminação, no duplo sentido da palavra, sem a qual as identidades
ficariam muito ameaçadas.” (Maria Rita Kehl)

Buscando uma conclusão e voltando o primeiro parágrafo, é na emotividade que se ancora a


criatividade. É no encontro com o outro que se alcança o novo, que se busca que se rompe
com a improdutividade. Hoje se faz o oposto, talvez sob um ordenamento político mais ou
menos consciente. Afinal, acompanhando Safatle na bizarra paráfrase de Orwell, quem
controla o Futuro controla o Presente. O Futuro é passível de controle quando, entre outros,
ele é negado às pessoas amputadas de suas possibilidade criativas pelo medo imobilista da
diferença.

Uma comprovação deste quadro distópico e, ao mesmo tempo, esperançoso se dá no ataque


que as pessoas e instituições conservadoras-reacionárias executam sobre instituições e
manifestações do encontro, da criatividade, da diferença: LGBT, feminismo, instituições de
fundo coletivo como educação ou regime de aposentadoria. A defesa desta diversidade é uma
trincheira na defesa do homem e do seu futuro.

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