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O​ ​Looping​ ​Hiperbólico​ ​do​ ​Construtivismo​ ​Radical:


de​ ​Heidegger​ ​e​ ​Derrida​ ​ao​ ​desconstrutivismo
Blog​ ​do​ ​Sociofilo

Seção​ ​Cartografias​ ​da​ ​Crítica

Temática​ ​Transversal

Copyright​ ​Helen​ ​Brüseke

Por

Franz​ ​J.​ ​Brüseke

Fonte:​ ​Blog​ ​do​ ​Sociofilo​ ​(https://blogdosociofilo.wordpress.com/)


2

A academia sempre se viu num embate com a ignorância e, frequentemente,


com ideologias. A novidade é que além desses dois adversários perenes ela
confronta-se hoje com a confusão conceitual e mental de muitos dos seus
membros. Essa confusão faz da história das ideias um ​pot-pourri de
"narrativas" que competem entre si sem o mínimo de critério. Com forte viés
anti-civilizatório, pois aposta na libertação do Id em detrimento de prescrições
morais, abdica do discurso racional, nega qualquer possibilidade de uma
aproximação à verdade, e enterra de vez aquilo que costumamos chamar
realidade.

As ciências humanas nunca comungaram num paradigma único para fazer


depois de uma crise paradigmática consensualmente “ciência normal”, no
1
sentido de Kuhn (Kuhn, 1962/1992) . Grandes discussões entre escolas,
frequentemente com visões totalmente opostas, evitaram que a “unidade da
razão” apagasse a “multiplicidade das suas vozes”. Kantianos vs. hegelianos,
materialistas contra idealistas, positivistas vs. dialéticos, etc. etc. Nas ciências
humanas e sociais é infinito o número de posições, vertentes e comunidades
científicas acreditando no seu paradigma e criticando o paradigma dos outros.
No entanto, parece que o quadro mudou radicalmente desde que Lyotard, na
esteira do Zeitgeist de uma nova época, constatou a incredulidade nas
2
meta-narrativas (Lyotard, 1979) . Cada vez menos podemos identificar escolas
teóricas que realmente argumentam em consonância com seus próprios
“clássicos”, cada vez menos podemos ainda identificar diferenças realmente
paradigmáticas na raiz dos argumentos apresentados. Quem se auto-declara
marxista hoje, dificilmente é um. Apesar da sua escatologia histórica e seu
posicionamento político mais do que questionável, o marxismo ainda tinha, por
causa da sua interpretação da relação do homem com o mundo enquanto
Stoffwechsel (metabolismo), uma percepção da realidade (!) econômica.
Interpretação não livre de aporias, mas, todavia, criticável ou falseável, como
3
diria Popper (Popper, 1935) . A sociologia como ela é hoje praticada nos Centros
de Filosofia e Ciências Humanas Brasil afora (e a situação não é muito diferente
em outros países) não é mais corrigida pelos fatos, coisas, dados, pelo concreto,
pela práxis, pela produção, ou seja, como queremos nos referir à realidade.
Significados e ressignificações, identidades e identificações, símbolos e signos,
essência, substância, desintegração e performatividade... nadamos num mar de
palavras de um jogo linguístico confuso e difícil de decifrar. Em especial, nas

1
Thomas Kuhn. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva.
1962/1992
2
​ ​François​ ​Lyotard.​ ​A​ ​condição​ ​pós-moderna.​ ​Rio​ ​de​ ​Janeiro:​ ​José​ ​Olímpio,​ ​1979/2000
3
​ ​Karl​ ​Popper.​ ​Logik​ ​der​ ​Forschung.​ ​Akademie-Verlag,​ ​Berlin​ ​2004/1935
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últimas décadas e na esteira do sucesso do “construtivismo radical” , uma
palavra​ ​fez​ ​entre​ ​os​ ​cientistas​ ​sociais​ ​uma​ ​carreira​ ​inédita:​ ​a​ ​desconstrução.

É mérito de Derrida traduzir o conceito de ​Destruktion de Heidegger como


desconstrução​. Mais tarde relata Derrida que teria tentado “[...] traduzir as
palavras heideggerianas de ​Destruktion e ​Abbau ​e adaptá-las para minhas
finalidades” (Derrida, 1987/1967:388). Com isso, pretendeu evitar a conotação
de destruição (​Zerstörung​) presente também na palavra ​Destruktion​. Essa
alusão, que radicaliza e tonifica o significado da desconstrução, pode
eventualmente ser melhor entendida se lembrarmo-nos da tradição
fenomenológica, marcante para o Heidegger dos anos vinte. Foi Husserl, na fase
inicial importante para Heidegger, que convidou “ir para as coisas” e “pensar
sem conceitos”. ​Husserl propõe uma aproximação aos objetos eliminando num
primeiro passo todas as hipóteses anteriores e opiniões tradicionais sobre o
fenômeno em questão. Esse procedimento, também chamado “redução eidética”
(​eidetische Reduktion​) é consequência da ​epoché (​Einhalten, Innehalten​); uma
suspensão do juízo, postura a ser seguida pelo passo metódico da “redução
eidética transcendental”. Neste segundo momento, afastando todas as
características secundárias, revela-se o que o objeto realmente é, a sua essência.
5
(Husserl,​ ​1958/1907)

O caminho da ​Destruktion dos conceitos não pode negar a influência de Husserl


e foi, aprofundado pelo Heidegger maduro na busca da simplicidade (​Einfalt​) e
do pensar pré-conceitual (​Denken​, ​Danken​). O fato que “ainda não pensamos”
(Heidegger, 1984/1954) consiste em boa parte no hábito científico e, também,
filosófico de cobrir com conceitos e representações aquilo que é. Somente
perpassando a ​Destruktion das representações chegamos à apresentação
daquilo​ ​que​ ​é,​ ​por​ ​exemplo​ ​de​ ​uma​ ​árvore​ ​na​ ​nossa​ ​frente:

Estamos ​fora da ciência. Em vez disso estamos, p.e., frente a uma árvore
florescente e a árvore está na nossa frente. Ele apresenta-se. A árvore e nós
apresentamo-nos um para o outro, enquanto ela está aí e nós estamos na frente
dela. Nessa relação, colocado um em frente ao outro e para o outro, somos a
árvore e nós. Então, não se trata nessa apresentação de representações que
circulam pela nosso cabeça. Paramos um instante, como se nós quiséssemos

4
Ernst von Glasersfeld é considerado, ao lado do bio-físico e cibernético Heinz von Förster,
fundador do “construtivismo radical”, mais tarde ampliado e aprofundado por Humberto
Maturana Francisco Varela na biologia, neurologia, e áreas afins. Neste texto focamos no
conceito da “desconstrução” empregado nos contextos do “construtivismo social” que surgiu
independente do “construtivismo radical” mas compartilha com ele a primazia da percepção
sobre a realidade e a inexistência de uma verdade objetiva. O “construtivismo social”, como o
“construtivismo” em geral, abrange autores bastante heterogéneos, que frequentemente têm
pouco incomum. O uso das palavras “construção” e “construtivismo”, na área das ciências
humanas​ ​contemporâneas,​ ​não​ ​passa​ ​frequentemente​ ​do​ ​seu​ ​sentido​ ​metafórico.
5
Edmund Husserl. Die Idee der Phänomenologie. Gesammelte Werke, vol 2, Haag: Martinus
Nijhoff,​ ​1958​ ​(1907)
Fonte:​ ​Blog​ ​do​ ​Sociofilo​ ​(https://blogdosociofilo.wordpress.com/)
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puxar fôlego antes e depois de um salto. Agora saltamos mesmo, para fora da
área comum das ciências e ainda mais, como mostra-se agora, da filosofia. E
para onde pulamos? Será para dentro de um abismo? Não! Mas ao chão, no qual
vivemos e morremos, se não queremos iludir-nos. É uma coisa curiosa ou,
melhor, uma coisa estranha, que temos de saltar primeiro ao chão no qual nós já
6
estamos.​​ ​(Heidegger,​ ​1954/1984:16)

Heidegger ressalta aqui 1. a despedida de representações e ilusões e daquilo que


“circula pela nossa cabeça”; 2. um observador que se descobre sendo (!) junto
com aquilo que observa; 3. a volta ao chão onde já estamos. Eis aí um belo
exemplo de um pensar sem conceitos que, depois de ter “destruído” a distância
criada pelas representações, abraça a realidade, o chão, “onde vivemos e
morremos”. Um realismo pré-conceitual que permeia boa parte da filosofia, arte
e​ ​literatura​ ​“existencialista”,​ ​“materialista”​ ​e​ ​“concretista”​ ​do​ ​século​ ​XX.

Com a ​Destruktion Heidegger queria chegar a uma maior precisão dos


conceitos, não nega a tradição ontológica, no entanto, quer definir seus limites e
7
possibilidades. Heidegger também argumentou a favor de um entrelaçamento
da ​Destruktion e da construção. Entendeu a construção fenomenológica como
projeção do Ente dado na direção do Ser e suas estruturas, acompanhado por
um ​Abbau (desmontagem) de conceitos herdados. Esse último passo chamado
explicitamente​ ​Destruktion​.

O curioso é que o impulso husserliano de chegar “mais perto às coisas” para


descobrir sua essência perdeu-se para ser substituído, depois de ter destruído o
sentido “natural” das “coisas”, por uma atribuição arbitrária de qualidades, que
essas “coisas” de antemão não tinham. A desconstrução contemporânea parece
querer eliminar as opiniões pré-concebidas usando a tábula rasa da ausência do
sentido para impor novas interpretações aos “fenômenos” antigos. Já que essa
reconstrução dos significados não tem outra âncora senão a própria consciência
dos seus autores, voltamos na história das ideias por mais de dois séculos. É a
reprodução de um idealismo filosófico, na sua forma mais rasteira, que
consegue a façanha de instituir dogmaticamente seus valores e perspectivas,
depois de ter desconstruído, num banho ácido de relativismo e niilismo, os
sentidos e valores pré-estabelecidos. Não surpreende que autores importantes
do desconstrutivismo passaram de uma ou outra forma por uma adaptação de
Hegel às suas necessidades e interesses teóricos. Em consequência, a história da
Destruktion torna-se um looping conceitual que, em vez de nos afastar das
ilusões e representações não-fundamentadas, nos leva para um mundo do mero
opinar ou crer. O novo realismo contido ​in nuce ​nas reflexões de Husserl e, mais

6
Martin Heidegger (1984) Was heisst denken? Tübingen: Niemeyer, p.16; primeira edição:
1954.​ ​Tradução​ ​minha,​ ​FJB.
7
​ ​Martin​ ​Heidegger,​ ​Grundprobleme​ ​der​ ​Phänomenologie,​ ​GA​ ​24,​ ​pp.​ ​31
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ainda, em Heidegger, transformou-se (na mão dos pós-estruturalistas,


pós-modernos,​ ​queer-theorists​)​ ​em​ ​um​ ​novo​ ​ilusionismo.

Podemo-nos até perguntar até qual ponto a crise do marxismo acadêmico está,
mais uma vez, na raiz da regressão pré-marx da esquerda intelectual europeia. É
frequente, já em gerações acadêmicas anteriores, responder às frequentes crises
do marxismo, crises tanto teóricas como políticas, com uma tentativa de
reanimar o “método de Marx”, por sinal a dialética hegeliana, para recompor o
sentido original do próprio marxismo. No debate sobre os futuros caminhos da
social-democracia alemã, nos anos noventa do séc. XIX com orientação
marxista, podemos registrar uma primeira tentativa nessa direção. Eduard
Bernstein opõe-se com toda razão aos argumentos “revolucionários” da ala
esquerda​ ​do​ ​partido​ ​dizendo:

Todas as vezes em que observarmos o ensinamento, que parte da economia


como o fundamento do desenvolvimento da sociedade, capitular ante a teoria
que conduz o culto da violência ao ápice, então estaremos diante de um
princípio hegeliano. Talvez apenas como analogia, o que seria, ainda pior. O
grande engano da dialética hegeliana é que nunca está completamente errada.
Ela cobiça a verdade como a luz errante cobiça a iluminação. Ela não se
contradiz, porque depois dela cada coisa porta consigo mesmo a sua
contradição. Existe uma contradição em colocar a violência onde ainda a pouco
se encontrava a economia? Oh! Não. Pois a violência é por si só uma ​potência
8
econômica​ ​(Bernstein,​ ​1973:21) .

Mas, as tentativas de buscar apoio em Hegel quando Marx está em apuros, não
9 10 11
param por aí. De Lukacz , ao Ernst Bloch e Jean-Paul Sartre vão as tentativas
de flexibilizar ou relativizar dialeticamente o determinismo econômico contido
em Marx, fazendo frente à coisificação (​Verdinglichung​) e alienação
(​Entfremdung​), tentativas que tem um desfecho grandioso e melancólico na
12
“dialética negativa” de Th.W.Adorno . Pois, junto com o próprio marxismo em
declínio enfraqueceu também a tradição dialética, evocada em seu apoio. Outras
fontes mais vivas tinham que ser abertas para alimentar o projeto da superação
do ​status quo​, tanto do “capitalismo” como do “patriarcado” ou, em geral, da
ordem social ocidental preestabelecida. Politicamente é mais do que curioso que
o mal afamado Heidegger começou a ser referência filosófica, principalmente
entre jovens franceses como Foucault e Derrida e toda uma geração em volta.
Enquanto Adorno celebrava seu desprezo pelo homem da floresta negra no

8
Bernstein, Eduard (1973) ​Die Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der
Sozialdemokratie.​ ​J.​ ​H.​ ​W.​ ​Dietz​ ​Nachf.​ ​Bonn,​ ​Bod​ ​Godesberg,​ ​1973.
9
Georg Lukácz. Geschichte und Klassenbewusstsein. Studien über marxistische Dialektik
Berlin:​ ​Malik,​ ​1923
10
​ ​Ernst​ ​Bloch.​ ​Subjekt-Objekt.​ ​Erläuterungen​ ​zu​ ​Hegel.​ ​Frankfurt:​ ​Suhrkamp,​ ​1962
11
​ ​Jean-Paul​ ​Sartre.​ ​Critique​ ​de​ ​la​ ​raison​ ​dialectique.​ ​Paris:​ ​Gallimard,​ ​1960
12
​ ​Theodor​ ​W.​ ​Adorno.​ ​Negative​ ​Dialektik.​ ​Frankfurt:​ ​Suhrkamp,​ ​1966
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“Jargão da Autenticidade”, descobriram os franceses que Heidegger e sua
ontologia fundamental continham uma mensagem importante: o Ser é
contingente​ ​e​ ​passa​ ​sua​ ​contingência​ ​para​ ​todos​ ​os​ ​entes​ ​existentes.

O fato que algo é como é, mas também, poderia ser diferente, assusta aqueles
que percebem a ameaça à qualquer ordem que essa mensagem também
transmite. No mínimo, a descoberta da contingência inspira cuidado com as
formas ordenadas e sensibiliza para a fragilidade daquilo que se cristalizou em
longos processos históricos. Para aqueles, interessados na variação,
transformação, mudança, ruptura, revolução etc. era o que faltava, depois da
ressaca marxista e sua dialética bipolar, para dar asas à imaginação. O próprio
Derrida mostrou mais do que uma vez descontentamento com a leitura dos seus
escritos, em especial com a carreira do conceito da “desconstrução” que ganhou
cada​ ​vez​ ​mais​ ​vida​ ​própria,​ ​independente​ ​do​ ​seu​ ​autor.

Derrida mesmo vê a sua ideia de desconstrução inserida no contexto teórico de


Hegel, Marx, Nietzsche, Heidegger, Kojève, no fim da filosofia, fim do homem,
fim da história na percepção desses autores (ao ponto que os chama clássicos do
fim) e na longa crise do marxismo soviético pós-guerra. E diz: “Sem dúvida era
neste elemento, onde se desenvolveu o que chamamos de desconstrução – e
principalmente na França, é impossível, neste momento, entender algo da
14
desconstrução sem levar em conta esse contexto histórico” (Derrida, 1993:31) .
Derrida defende um “outro pensar do conhecimento” (Derrida, 1993: 55) que
não exclui a ciência, mas destrói as representações comuns dela e a coloca de
cabeça para baixo. Em outro momento, se referindo àquilo que herdamos dos
grandes autores, define herdar como filtrar, adiar, variar e decidir qual parte da
herança nós aceitamos. Convida para ouvir as múltiplas vozes de uma frase, um
texto. Pois Derrida vai além, a “diferença” está sendo superada pela “diferança”,
um “quase-conceito” que “dissemina” não (!) a multiplicidade de identidades e
sentidos, não é uma mera polissemia, mas uma ação corrosiva que desconstrói
qualquer posicionamento fixo e significado último. Sabemos da importância da
diferença ontológica, a diferença entre o Ser e os entes, com a qual Heidegger
15
introduz sua ontologia fundamental (Heidegger, 1927) . Com o descobrimento
16
do Ser consegue Heidegger um fundamento (​Grund​), nunca plenamente
alcançada,​ ​todavia​ ​dando​ ​direção​ ​ao​ ​seu​ ​pensar.

Com certa necessidade e coerente com o “Ser e Tempo”, Heidegger vai “parar”
(​Innehalten​) e “morar” (​Wohnen​) perto, todavia distante, daquilo que é o mais
importante: o Ser. Difícil não ver nisso uma postura mística, no sentido

13
​ ​Theodor​ ​W.​ ​Adorno.​ ​Jargon​ ​der​ ​Eigentlichkeit.​ ​Frankfurt:​ ​Suhrkamp,​ ​1964
14
Jacques Derrida. Spectres de Marx. Paris: Éditions Galilée, 1993 cit. Seg. ibd. Marx
Gespenster.​ ​Frankfurt:​ ​Suhrkamp,​ ​2004
15
​ ​Martin​ ​Heidegger.​ ​Sein​ ​und​ ​Zeit.​ ​Tübingen:​ ​Niemeyer,​ ​1993​ ​(1927)
16
​ ​Martin​ ​Heidegger.​ ​Der​ ​Satz​ ​vom​ ​Grunde.​ ​Neske:​ ​Pfullingen,​ ​1957
Fonte:​ ​Blog​ ​do​ ​Sociofilo​ ​(https://blogdosociofilo.wordpress.com/)
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filosófico e teológico da palavra. A superação da metafísica, o projeto de


Heidegger, percorreu um grande círculo. O “sagrado” o espera no lugar onde ele
partiu e onde ele não o esperava. Derrida, movido pelo mesmo furor
anti-metafísico tem outro alvo primordial. Não é o esquecimento do Ser, mas a
escrita e sua interpretação que não revelam a verdade plena (!), sempre oscilam,
adiam e não têm autoridade. Arriscamo-nos também nesse caso de apontar na
direção da mística (e também nesse caso sem a mínima conotação pejorativa),
que não permite que Derrida alcance a verdade pura e a palavra exata. A
desconstrução é movida por um motivo de des-profanizar o que foi profanizado
e deturpado a partir do momento da sua fixação por escrito. A gramatologia
procura nos escombros dos sinais o rastro daquilo que é o mais importante,
mostrando que qualquer fixação não chega perto do ... indizível. De sua maneira
aponta Habermas, na sua leitura de Derrida, numa direção semelhante.
Comparando​ ​Derrida​ ​com​ ​Heidegger​ ​diz​ ​ele:

Apesar da postura diferente também ele (Derrida) somente mistifica (...); ele
desvincula o pensamento essencial, desconstrutivista, da análise científica e
pára na adoração (​Beschwörung​), usando fórmulas vazias, de uma autoridade
indefinida. Essa não é, portanto, a autoridade do Ser descoberto dos entes, mas
a autoridade de uma Escrita não mais Sagrada, uma escrita exilada, errante,
alienada do seu sentido próprio, uma escrita testemunhando a ausência do
17
sagrado​ ​(Habermas,​ ​1988:214) .
18
Entender a polifonia de um texto como as várias dimensões ou camadas do seu
conteúdo - afinal, posso ler um texto sob ângulo histórico, psicológico, estético
etc. - está na longa história da leitura, da interpretação, da exegese. O que une
nesse caso as “múltiplas vozes” é o próprio texto que não se multiplica, pois
continua sendo o mesmo e único texto. Habermas, quando fala da “unidade da
razão na multiplicidade das suas vozes”, aponta nessa direção, ora se referindo
ao grande “texto” da comunicação. Se perdermos o texto - o único e específico
texto - como referência, perdemos todas as coordenadas. Uma espécie de
dissociação cognitiva tomaria conta do leitor que seria incapaz de associar o que
ele escuta daquele que fala; muito menos consegue recompor as vozes diferentes
e temporariamente dissociadas para descobrir o sentido (multifacetado) desse
mesmo texto. Uma compreensão errônea da contingência que diz “tudo é
possível!” contribui para uma leitura dissociada dos fenômenos. Não é “tudo”
que é possível, somente muito mais do que nós geralmente imaginamos. A
contingência dos entes, sejam eles artefatos, pedras, plantas, elementos
químicos etc. manifesta-se dentro de padrões das suas possibilidades

17
Jürgen Habermas. Überbietung der temporalisierten Ursprungsphilosophie: Derridas Kritik
am​ ​Phonozentrismus.​ ​In:​ ​Der​ ​philosophische​ ​Diskurs​ ​der​ ​Moderne.​ ​Frankfurt:​ ​Suhrkamp,​ ​1988
18
O conceito da polifonia migrou da música para a ciência literária. Assim empregado por
Mikhail​ ​Bakhtin: ​Probleme​ ​der​ ​Poetik​ ​Dostoevskijs​.​ ​Hanser:​ ​München​ ​1971
Fonte:​ ​Blog​ ​do​ ​Sociofilo​ ​(https://blogdosociofilo.wordpress.com/)
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(Heisenberg, 1989/1939) . Uma abertura conceitual grande demais, uma
variação interpretativa arbitrária e inadequada, produz somente ruído e não
detecta​ ​as​ ​possibilidades​ ​reais​ ​(!)​ ​que​ ​algum​ ​fenômeno​ ​específico​ ​tem.

Não adianta querer expandir hiperbolicamente possibilidades, dimensões ou


sentidos. Não somente “as coisas” existem dentro das suas reais possibilidades
como a nossa percepção somente é possível dentro de limites neurológicos e
cognitivos. A fala da redução da complexidade de Luhmann, não é somente uma
ficção no mundo da teoria dos sistemas, mas é ​conditio humana​. Estamos
condenados à redução da complexidade tanto na percepção como no campo do
agir. “Para poder agir, tens que esquecer!” diria Goethe e Luhmann completaria:
“ Você não pode ver, que você não pode ver o que você não pode ver” (Luhmann,
20
1997) .

Voltamos ao “chão onde vivemos e morremos” e tomamos conhecimento


21
daquilo que Heidegger chama desocultamento (​Entbergung​) , pois este
conceito une o fazer do homem com os limites e possibilidades dados pelo
próprio ser. Nesta perspectiva, a técnica moderna e o pensamento
tecno-científico não são somente uma construção, mas uma maneira de
desocultamento​. Isso significa entender a técnica não mais exclusivamente
como um feito humano e como algo exterior e exclusivamente instrumental. O
desocultamento não é algo fixo, pois possui temporalidade e assim história. Na
história das diversas populações, culturalmente distintas, encontramos
diferentes modalidades de desocultamento. Estas, por sua vez, são na sua
diversidade somente possíveis, porque o Ser “permite” diferentes maneiras de
desocultamento. De certa maneira podemos dizer que o Ser mostra-se, sempre
de um ângulo diferente. De suma importância é o fato que o desocultamento
foge da vontade humana de manipular as coisas ou construir (!) ao seu bel
prazer. O homem não dispõe sobre o não-velado (​Unverborgenheit​) do Ser que
se mostra e se oculta no mesmo momento. Se somos incapazes de entender o
que transcende o nosso horizonte, também não conseguimos entender esse
retroceder do real. O desocultamento técnico moderno que percebemos como
autor exclusivo das suas descobertas e construções, ignora este outro lado do
desocultar, a “permissão limitada”, dado pelo próprio Ser, de participar nos seus
segredos. Ou como Heidegger diz: “O fato que o real mostra-se desde Platão na
luz das idéias, não foi feito por Platão. O pensador somente respondeu aquilo, o
22
que correspondeu com ele” (Heidegger, 1994/1954:21) . O que também

19
​ ​Werner​ ​Heisenberg.​ ​Ordnung​ ​der​ ​Wirklichkeit.​ ​München:​ ​Piper,​ ​1989/1939
20
​ ​Niklas​ ​Luhmann.​ ​Die​ ​Gesellschaft​ ​der​ ​Gesellschaft.​ ​Frankfurt:​ ​Suhrkamp,​ ​1997
21
Veja também as nossas explicações mais detalhadas em: Heidegger como crítico da técnica
moderna. In: Brüseke, F.J. A técnica e os riscos da modernidade. Florianópolis: Editora da
UFSC,​ ​2001;​ ​p.57-114
22
Martin Heidegger (1994) Die Frage nach der Technik​. In: M.Heidegger. Vorträge und
Aufsätze.​ ​1.ed.​ ​1954,​ ​Stuttgart:​ ​Neske;​ ​p.21
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9

significa que conceitos construídos pelo homem (ideias) podem corresponder


com aspectos da realidade, sem que essa realidade se tornasse fruto de uma
ideia​ ​ou​ ​seria​ ​uma​ ​construção​ ​meramente​ ​humana.

Desocultar o Ser significa deixar sempre algo no escuro. O Ser nunca revela-se
na sua plenitude. Esse tema ganha na fase da filosofia tardia de Heidegger suma
importância, porque confronta o filósofo com esse resto inexplicável do real, que
já Schelling caracterizou como algo que fica sempre inacessível para as nossas
interpretações racionalizantes, ocultado no fundamento do Ser. “Isto é a base
não-entendível da realidade nas coisas, o resto sobrando e inexplicável, aquilo,
23
(...)​ ​que​ ​fica​ ​eternamente​ ​no​ ​fundo”​ ​(Schelling,​ ​1964:30) .

Voltando ao Derrida podemos dizer que a desconstrução é na intenção desse


autor uma (nova) leitura de textos. Ela tenta decompor, desmontar a escrita,
atrasar e adiar sua mensagem, repetir seu conteúdo inúmeras vezes em
contextos diferentes, descobrir significados ocultos etc. Digamos “etc.”, pois
Derrida consegue nos seus textos variar, diferenciar, fazer oscilar suas ideias
infinitamente. Nisso Derrida insiste: os sinais têm vários sentidos e as
afirmações representam diferentes valores. Pois a coexistência de evidências
conflitantes não leva à unidade, as oposições continuam, não estão superados
24
em​ ​algum​ ​patamar​ ​superior​ ​(Sloterdijk,​ ​2007) .

Surpreende que o conceito de desconstrução, que é relativamente modesto no


seu alcance e suas pretensões, teve uma recepção tão calorosa entre os
contemporâneos, que, quanto menos bagagem teórica possuem, mais tendem a
simplificar a proposta da desconstrução, que apesar da sua relativa pobreza de
conteúdo, pois trata-se meramente de um “método”, é apresentada de forma
exigente pelo seu autor. O próprio Heidegger, frequentemente confrontado com
a objeção de ser “misterioso”, incompreensível ou até impreciso na sua escrita, é
uma verdadeira “clareira” em comparação com os intermináveis meandros de
Derrida.

Seja o que for, por que o sucesso do conceito de desconstrução? Vendo quem
usa e onde aparece o conceito, temos um “rastro” para uma possível resposta.
Primeiro: a desconstrução migrou desde sua criação, mais do que cinquenta
anos atrás, do seu uso entre os sofisticados filósofos franceses, para a militância
política, hoje geralmente de pouco conhecimento filosófico. Em geral, a origem
do conceito de desconstrução e o significado que Derrida atribui a ele, são
desconhecidos. Houve um evidente deslocamento da desconstrução de Derrida
para a “desconstrução” usada em contextos construtivistas e pós-modernos.
Aliás, até o “construtivismo”, como ele se apresenta por exemplo nos debates

23
Schelling, F.W.J. (1964) ​Über das Wesen der menschlichen Freiheit​. [Sobre a essência da
liberdade​ ​humana​].​ ​Stuttgart:​ ​Reclam,​ ​p.30
24
​ ​Peter​ ​Sloterdijk.​ ​Derrida​ ​ein​ ​Ägypter.​ ​Frankfurt:​ ​Suhrkamp,​ ​2007
Fonte:​ ​Blog​ ​do​ ​Sociofilo​ ​(https://blogdosociofilo.wordpress.com/)
10

sobre sexualidade e gênero, participa nessa migração e transformação do seu


sentido original. Construtivismo e desconstrutivismo parecem hoje, no
entendimento de muitos, como os dois lados da mesma moeda. Seguindo o
lema: o que posso construir, posso também desconstruir. Pois, dessa maneira,
fica da conceituação original na tradição de Heidegger e Derrida, somente a
casca​ ​de​ ​uma​ ​palavra​ ​vazia,​ ​pronta​ ​para​ ​servir​ ​em​ ​qualquer​ ​jogo​ ​linguístico.

Nas discussões sobre construção e desconstrução, no âmbito das ciências


sociais, nunca falta como referência bibliográfica o livro de Peter Berger e
Thomas Luckmann “A construção social da realidade”. Escrito em 1962/63 o
livro está na tradição da, na época, ainda jovem sociologia do conhecimento
(​Wissenssoziologie​), que poderíamos chamar hoje também sociologia do saber,
para evitar a alusão a teoria ou filosofia do conhecimento (​Erkenntnistheorie​)
da qual Berger/Luckmann se distanciam enfaticamente. Precursores são Max
25 26
Scheler e Karl Mannheim , no campo estrito da sociologia do
conhecimento/saber. No campo macrossociológico partem de Weber e sua
27
interpretação por Alfred Schütz e destacam a importância de Marx por ter
levantado a questão da ideologia e da consciência falsa, além do mais,
28
referenciam o lema metodológico de Durkheim , tratar os fatos sociais como
coisas. A sociologia do conhecimento proposta pelos autores tem decidido
cunho empírico e visa a análise do conhecimento/saber cotidiano, constitutivo
para as, culturalmente distintas, sociedades. Para Berger/Luckmann, a
“realidade” (​Wirklichkeit​) é a qualidade de fenômenos que existem
independente da nossa vontade (1963/2007:1). “Conhecimento definimos como
29
a​ ​certeza​ ​que​ ​fenômenos​ ​são​ ​reais​ ​e​ ​tem​ ​qualidades​ ​definíveis”​ ​(1963/2007:1) .

Já Max Scheler diz no prefácio da obra: “Certo, construção é uma palavra dura,
ainda mais na boca de fenomenólogos. Quem constrói aqui? A realidade social
mesma ou o sociólogo?” (Scheler, 2007:XV). Essa “palavra dura” é o que seduz
hoje, meio século depois, “construtivistas radicais”, que colocam
Berger/Luckmann na fila dos antecessores da sua maneira de interpretar a
realidade; o que é realmente e facilmente motivo para grandes
desentendimentos ... se conhecemos somente o título da obra. É tarde demais
para esse empreendimento, mas, para evitar associações errôneas, seria melhor
pensar em outro título para este importante livro. Já “A constituição social da
realidade” evitaria o pior, melhor ainda seria “A constituição social do
cotidiano”. O conceito “construção” mesmo tem tão pouca importância no

25
​ ​Max​ ​Scheler.​ ​A​ ​situação​ ​do​ ​homem​ ​no​ ​mundo.​ ​Lisboa:​ ​Edições​ ​70,​ ​1928/2005
26
​ ​Karl,​ ​Mannheim.​ ​Ideologie​ ​und​ ​Utopie.​ ​Frankfurt:​ ​Vittorio​ ​Klostermann,​ ​1929/1995
27
​ ​Alfred​ ​Schütz.​ ​Der​ ​sinnhafte​ ​Aufbau​ ​der​ ​sozialen​ ​Welt.​ ​Frankfurt:​ ​Suhrkamp,​ ​1932/1993
28
​ ​Emile​ ​Durkheim.​ ​Die​ ​Regeln​ ​der​ ​soziologischen​ ​Methode.​ ​Frankfurt:​ ​Suhrkamp,​ ​1895/1984
29
Berger, Luckmann (1963/2007) Die gesellschaftliche Konstruktion der Wirklichkeit.
Frankfurt:​ ​Fischer​ ​2007
Fonte:​ ​Blog​ ​do​ ​Sociofilo​ ​(https://blogdosociofilo.wordpress.com/)
11

decorrer da abordagem que nem aparece no minucioso ​Sachregister no final do


livro.

A referência de Berger/Luckmann, no capítulo “A sociedade como realidade


30
objetiva”, à antropologia filosófica de Scheler, Plessner e Gehlen realça a
distância enorme entre os autores e qualquer construtivismo radical. Em
consonância com os três antropólogos eles constatam a inexistência de uma
natureza biológica que determina formações sócio-culturais, não obstante,
importam de Gehlen o conceito “constantes antropológicas”, que possibilitam as
criações culturais e, ao mesmo tempo, as limitam (!). “Assim podemos dizer: o
homem tem uma natureza. Mais preciso, no entanto, seria: o homem faz sua
própria natureza – ou, mais simples ainda: o homem produz se mesmo”.
(Berger/Luckmann,​ ​1963/2007:52)

Formulação que na sua simplicidade é aceitável como ... metáfora e conhecida


desde a publicação dos “manuscritos de Paris” escritos por Marx em 1843/44,
31
mas somente publicado em 1932 . Com a auto-produção do homem refere-se
Marx à produção dos meios da vida (​Lebensmittel​) e aponta na produção da
base material da vida em sociedade pelo próprio homem. Junto com um
conceito do “mundo do homem” (​“Der Mensch, das ist die Welt des Menschen.
Staat, Sozietät.​” “O homem, isso é o mundo do homem. Estado, sociedade.”)
Marx, com vinte e cinco anos de idade, afasta-se de qualquer antropologia
“idealista” que vê na auto-movimentação do espírito a primeira instância,
incondicionada. “Colocar Hegel nos pés”, esse projeto do jovem Marx deveria
levá-lo à um materialismo dialético que, todavia, nunca deixou dúvidas sobre a
essência da virada anti-hegeliana: é o Ser que determina a consciência e não são
as ideias que constroem o mundo. O marxismo de Marx é desde então em
primeiro lugar: estudo da economia e a busca das (supostas) leis que a
movimentam. O fato que a “dialética” ficou bastante enfraquecida e deu lugar a
um primado econômico (alguns críticos dizem: a um determinismo econômico),
levou a várias tentativas dentro do neo-marxismo do século vinte de tentar
recuperar a perdida tradição dialética no pensamento do autor do O Capital. Se
podemos ver nisso ainda um certo mérito exegético, é, todavia, totalmente
descabido citar Marx como algum precursor do construtivismo radical. O
“marxismo”​ ​da​ ​esquerda​ ​pós-moderna​ ​é​ ​um​ ​marxismo​ ​sem​ ​Marx.

Berger e Luckmann comungam no conceito da auto-produção do homem,


contido ​in nuce nos manuscritos de Paris de Marx e diferenciado pela
antropologia filosófica dos anos vinte e trinta do séc. XX (Scheler, Plessner,

30
​ ​Arnold​ ​Gehlen.​ ​Der​ ​Mensch:​ ​Seine​ ​Natur​ ​und​ ​seine​ ​Stellung​ ​in​ ​der​ ​Welt.​ ​Wiesbaden:
Aula-Verlag,​ ​1986
31
Karl Marx. Ökonomisch-philosophische Manuskripte. In: Karl Marx. Texte zur Methode und
Praxis​ ​2:​ ​Pariser​ ​Manuskripte​ ​1844.​ ​Hamburg:​ ​Rowohlt,​ ​1968
Fonte:​ ​Blog​ ​do​ ​Sociofilo​ ​(https://blogdosociofilo.wordpress.com/)
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Gehlen). A famosa frase de Plessner - “O homem é artificial por natureza” –


sublinha que o homem é condenado por sua constituição biológica (pobre de
instintos, ser deficiente: ​Mängelwesen​) de partir para técnicas de sobrevivência.
As primeiras técnicas são compensações de deficiências fisiológicas. É a
condição material e biológica que faz do homem um ​homo faber​; as suas
construções são respostas àquilo que não foi construído por ele. A “construção
social da realidade”, anunciada bombasticamente no título, se reduz no corpo do
texto a uma diferenciada apresentação do homem nos seus limites biológicos e
sociais. Dentro desses limites, variações são possíveis e acontecem no decorrer
da história, distinguem épocas e culturas. Mas os autores alertam: “...nossa
animalidade está sendo transformada pela socialização, mas não anulada”
(Berger/Luckmann,​ ​1963/2007:​ ​192).

Mais radical do que Berger e Luckmann, o construtivismo social tomou nas


últimas décadas um rumo que tem fortes traços de uma virada culturalista.
Difícil, por causa do seu ecletismo e do desconhecimento das suas próprias
fontes, responsabilizar diretamente este ou aquele autor pelos produtos teóricos
e políticos desse construtivismo radical contemporâneo. Ele não é somente um
projeto teórico; o “mundo da vida” com suas interações e tradições, não
somente linguísticas, está no centro da atenção da militância das mais variadas
causas, que se reúnem sobre bandeiras como ​cultural studies​,
pós-estruturalismo, pós-colonialismo, construtivismo social e
32
desconstrutivismo​ ​ou​ ​gender​ ​theory​.

O desconstrutivismo contemporâneo não é mais um método para a


interpretação de textos, no sentido de Derrida, mas um instrumento nas lutas
culturais acerca de questões como raça, gênero e outros assuntos que merecem,
na​ ​visão​ ​dos​ ​seus​ ​militantes,​ ​ser​ ​destradicionalizados​ ​ou​ ​desnaturalizados.

O já mencionado ​looping conceitual que coloca (novamente) a consciência no


centro do mundo como ​demiurgo do real​, em detrimento do ser e, nega ou
relativiza, em geral, uma realidade independente das observações e fazeres
humanos, está completo. O construtivismo radical, na sua fase inicial, já tinha se
despedido da verdade absoluta, da objetividade empírica e de um cientista
separado do conhecimento e do processo da “produção do conhecimento”.
Desde Nietzsche e Einstein, entre muitos outros, nenhuma novidade. Com isso
focou essa vertente da teoria do conhecimento na pluralidade e diferença entre
concepções conflitantes do mundo, criadas pelo próprio observador. O
construtivismo, então, foca em realidades que o próprio conhecimento

32
​Butler, Judith. ​Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity.​ Routledge, New
York,​ ​1990

Fonte:​ ​Blog​ ​do​ ​Sociofilo​ ​(https://blogdosociofilo.wordpress.com/)


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“constrói”. A observação do observador, que produz, para Luhmann,


observações de segunda ordem, ainda tem um potencial crítico e pode,
porventura mostrar, que “alguém somente pode ver, o que ele pode ver”. Esse
olhar está na tradição da reflexividade do próprio processo científico e é boa
tradição iluminista criticar a crítica (e o crítico) e denunciar a filosofia (e o
filósofo) como portadores da ideologia do contexto social do qual pertencem.
Marx o diga. Pois a radicalização do construtivismo afasta-se desse impulso
inicial e se imuniza contra a própria crítica através de argumentações
circulatórias,​ ​tautológicas​ ​e​ ​paradoxais.
É mais do que óbvio que construções humanas existem; isso vale tanto para
fenômenos culturais, como para artefatos. A argumentação “construtivista” tira
daí sua plausibilidade e força sedutora. A questão somente é até qual limite
expandimos o poder construtor do homem. O curioso looping desconstrutivista
quer mobilizar conceitos da fenomenologia (mundo da vida) e ontologia
fundamental (​Destruktion​) ignorando que possui exatamente na ontologia de
Heidegger seu maior contrapeso e, quiçá, seu profeta, pois foi este autor que
chamou atenção para o fato que estava em marcha, já no início do século XX,
um empoderamento do subjetivismo desenfreado veiculando através da ciência
e​ ​técnica​ ​moderna​ ​um​ ​total​ ​esquecimento​ ​do​ ​fundamento​ ​destes:​ ​do​ ​Ser.
Percorremos o caminho que começou com Husserl e de sua ida às coisas,
lembramos da ​Destruktion de representações (ônticas) por Heidegger para
chegar mais perto ao Ser e de sua compreensão ontológica, apresentando
finalmente Derrida como autor do conceito de desconstrução e diferança como
método de leitura. No construtivismo radical chega o antropo-centrismo ao seu
auge, como se fosse de fato o ponto mais alto de um ​looping hiperbólico. “Eu fiz
o mundo!” diz o construtor, e seu colega diz: “São as minhas ideias e palavras
que definem como as coisas são”. Com isso, como sempre, quando a teoria
começa a agitar os teóricos, chegamos à profundeza da genealogia do seu saber,
para não dizer: à gênesis. Somente a palavra divina tinha antes do
construtivismo radical o poder de criar o mundo. E, somente para filósofos
idealistas, rima a onipotência do espírito com a palavra divina, criadora e
primordial.

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Fonte:​ ​Blog​ ​do​ ​Sociofilo​ ​(https://blogdosociofilo.wordpress.com/)

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