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Você

já prestou atenção em como a fé (e a religiosidade) in;luencia a vida


das pessoas, talvez a sua, as mais variadas relações sociais, o sistema
político do seu estado, do seu país e do mundo? Quando você olha para
esses acontecimentos há algo que lhe incomoda? Já pensou que essa
afetação, em algum aspecto, pode causar prejuízos à humanidade? Você
tem coragem de questionar algo relacionado à fé e a religiosidade?
INTRODUÇÃO


Este livro nasce de um denso incômodo com as instituições religiosas

e as pessoas religiosas. Sobre os primeiros, o incômodo assenta nas

práticas maliciosas e efeitos danosos e predatórios de corromper a história,

conquistas humanitárias, o bem estar coletivo, o frágil sistema político e os

indivíduos religiosos. Sobre estes, o incômodo habita na fragilidade para o

ilusório, a propensão à abstração da realidade concreta: a capacidade de

negar os problemas que os cercam e que atingem a todo o planeta, ou

considera-los e transferi-los a um ente intangível, ou mesmo de considera-

los, bestialmente, como vontade divina.

Acompanhada do incômodo está a curiosidade de entender a força

invisível que arrebata pessoas tão díspares para uma postura domesticada,

uma visão de mundo reducionista, e um estado de bem estar mental

surpreendente. Essas pessoas são das mais variadas culturas, idades,

condições sociais e econômicas, graus de instrução formal, vivências.

Destacam-se, entre as arrebatadas, as que deveriam ter aversão aos

dogmas dominantes por convicção ideológica, o caso de feministas, por

convicção existencial, o caso da população LGBT, por convicção cultural, o

caso de populações indígenas, por convicção LilosóLica/intelectual, o caso

de cientistas e pensadores; todos e todas passíveis de adoção da fé das

grandes religiões, passíveis de domesticação, de uma negação de sua

própria trajetória e consciência, de apego irrestrito ao bem estar mental

mesmo que assim colaborem com o declínio humano.






O INCÔMODO E A CURIOSIDADE

Selecionei alguns acontecimentos que reviveram em mim o incômodo


e a curiosidade combustível para este escrito. São cinco eventos, que
abrangem dimensões diferentes, relacionadas a um mesmo fenômeno.
Existem muitos outros, sem dúvida, e espero que você se recorde de algum
e reflita sobre ele.
Devo dizer antes, que minha busca e este livro não tem intuito último
de desqualificar os atos de instituições e indivíduos religiosos (isso não
seria muito estratégico, como veremos), mas sim de explicar como a fé se
estabelece no humano, suas manifestações e seus efeitos individuais e
coletivos.
Caso I: Democracia Viciada

Nas eleições presidenciais de 2010, por pressão das bancadas


evangélicas e por medo de perder votos de religiosos, sobretudo
protestantes fervorosos, que representam boa parte da população
brasileira, a presidente da república (que foi reeleita no último pleito) fez
discursos religiosos e esquivou-se de falar sobre assuntos como legalização
do aborto. Os demais candidatos também utilizaram estratégias
semelhantes e no segundo turno vários líderes religiosos protestantes
declararam apoio a um ou outro candidato com falas bastante apelativas
envolvendo Deus, moral, pecados.
Outro acontecimento político significativo envolvendo a religião foi à
eleição de um líder religioso protestante à presidência da Comissão de
Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados. Esta
comissão foi uma conquista histórica, após o período de regime/ditadura
militar no Brasil, representando além de um símbolo de respeito aos
direitos da pessoa humana, um instrumento eficaz de combate a violações
desses mesmos direitos.
Nada disso foi suficiente para impedir um pastor, que extrapola os
níveis apelativos e discriminatórios de sua classe, de torna-se o novo
presidente da CDHM. Ele já protagonizou cenas de discriminação explícita
contra homossexuais e contra negros, dizendo, por exemplo, que a África é
um lugar amaldiçoado, fundamentado na interpretação de uma passagem
bíblica. Na Própria CDHM liderou a aprovação de um Projeto de Decreto
Legislativo (popularmente chamado de “Cura Gay”) que permitiria a
psicólogos “tratar e curar” a homossexualidade e ainda se manifestarem
publicamente a favor disso. Essa sua conquista foi resultado de barganha
da bancada de evangélicos do congresso. Em troca de apoio a alguns
interesses do governo dominaram um espaço que jamais poderiam, não
por acaso, mas com intenção clara de tornar o espaço da pluralidade, da
diversidade, da equidade, em uma patente cristã, ou simplesmente
paralisa-lo.
Resumindo o imbróglio temos: líderes religiosos que com suas altas
popularidades rendem votos para si e para aqueles que se sujeitam ao
apelo religioso, o caso da presidente, tornando o executivo e o legislativo
do país não mais laico (uma premissa das mais importantes da
democracia), mas muito propenso aos interesses de poder e riqueza dos
líderes religiosos e às ideias paralíticas e nocivas que as “ovelhas”
perpetuam.
Caso II: Necessidade dos Excluídos

No ano de 2011 houve em meu estado a II Conferência Estadual LGBT


(Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis). Eu prestigiei o evento como
convidado do organizador, um ativista do movimento, que conheço há
muito tempo. Fui acompanhado de um jovem do movimento de saúde que
havia sido meu aluno no passado, e recebemos olhares “atravessados” dos
transeuntes que estavam nas proximidades do local do evento.
Logo que chegamos, um palestrante falava para o público composto
de travestis, lésbicas, gays e uma minoria heterossexual, sobre a
discriminação que a população LGBT enfrenta em todo o país e citou alguns
casos de assassinatos; falou também dos discursos violentos praticados por
pastores que estimulam, de forma descarada ou dissimulada, a homofobia
em seus rebanhos; ainda lembrou os projetos de Lei absurdos como o já
citado “Cura Gay”. Neste momento lembrei-me de uma ação do parlamento
do meu estado para impedir a difusão de um projeto de orientação sexual e
prevenção a doenças em escolas públicas; esta também foi agitada pela
bancada evangélica e acatada por seus pares imensamente despreocupados
com os altos índices de doenças sexuais e gravidez não planejada entre
jovens do estado.
Em seguida foi a vez de um pastor como palestrante. O pastor falava
como em uma igreja: voz alta, andando de um lado para o outro, dando os
característicos saltinhos (que já não estão na moda). A plateia estava muito
concentrada naquele homem que tinha a tarefa de falar do cristianismo a
um público muito excluído das igrejas cristãs e das interpretações bíblicas.
A minha experiência em eventos sociais me induziu ao erro de supor
uma série de críticas e desabafos contra o cristianismo, os religiosos e seus
líderes, e contra a bíblia. Ao final da fala do pastor, quando foi dada a
palavra à plateia, o que ocorreu de fato foi algo que me intrigou: varias
travestis chorando agradeceram ao pastor por ele ter dito que elas também
eram filhas de Deus(na verdade o pastor falou “eles também eram filhos de
Deus”,). Essa falação foi repetida varias vezes; a emoção com choro foi
notável.
O pastor teve que sair às pressas, por questões de agenda, antes da
minha intervenção. Não estava muito confortável, mais precisava dizer
algo. Interessante essa inversão: o desconfortado era eu - um ativista do
movimento social que trabalhava exatamente com a perspectiva da
inclusão de populações vulneráveis e enfrentamento às violências - e não
do representante da instituição que produzia a própria discriminação.
Falei que elas não precisavam da chancela de um pastor para se
considerarem filhas de Deus, que os pastores eram apenas homens
(algumas vezes charlatões) e não possuíam esse poder; aceitar esse poder
de um pastor legitima o dos outros que negam as formas de ser da
população LGBT. Eu queria na verdade era dizer: qual o interesse de vocês
em fazer parte de uma religião que produz violência contra vocês, melhor,
que emoção é essa que as leva para a “caverna” de seus tiranos?
Caso III: Cultura Devorada

Há anos, pelo menos desde o inicio da década passada, líderes


indígenas de meu estado tentam resgatar as culturas de seus povos o que
toca invariavelmente em seus rituais místicos. Eles entendem que essa
cultura adormecida é fundamental para dar significado ao próprio ser
indígena que sucumbiu, pela força física e/ou pela ideologia consumista do
capitalismo, ao modo de vida dos “brancos”, a grande maioria vivendo em
situações degradantes nas periferias urbanas.
O que constatei em convivência com essas lideranças é que elas
também cederam ao cristianismo, mesmo reconhecendo o prejuízo que
essa religião causou para seus povos, mesmo vendo que essa religião
avança enquanto as suas tradições recuam.
Em um passado recente, inicio dessa década, um parlamentar do
Estado em seu expediente proferiu críticas aos rituais culturais indígenas
(citando a pajelança[1]), afirmando que são destruidores da moral, da
produção e trabalho e a favor do infanticídio e da bebedeira. Em defesa e
protesto algumas notas foram elaboradas por instituições representativas e
de apoio aos povos indígenas; em uma dessas notas uma liderança cometeu
a infelicidade de tentar compor as crenças indígenas com o cristianismo,
criando uma aberração cultural e subjugando a seus costumes, sua
tradição, que deveria ser defendida, ao Deus cristão.
Outras culturas, dogmas, seitas, também tentam fazer essa
composição ou foram tragadas pelo Cristianismo, em meu país e
continente, e pelo Islamismo, em outras partes do mundo. Isso demonstra
que essas duas religiões também possuem um diferencial em relação às
demais. Que força é essa que domina outras culturas, outras manifestações
de fé?
Caso IV: Pastores e Ovelhas

Aceitando o convite de uma namorada, em 2002, fui a uma igreja


protestante para assistir a um culto. Uma década antes havia presenciado a
chegada de outra igreja em minha cidade; era o começo de uma nova forma
de atuação religiosa, muito dinâmica, alegre, com mensagens extraídas
direto das tendas de videntes, sempre sobre os males mais comuns na vida
das pessoas e as falas sobre um futuro melhor; porem, diferente do
catolicismo, um futuro breve, uma superação nesta vida, não mais após a
morte.
Essa igreja que visitava com a namorada não havia mudado a nova
estratégia de recompensa - bem estar imediato –, mas havia intensificado o
teor comercial da fé e da benção. Na minha adolescência o pastor fazia
gincana entre homens e mulheres e o gênero ganhador seria aquele que
mais pares trouxessem para a igreja. O grande prêmio, além da glória, era
bolo e refrigerante.
O que vi, dessa vez, foram dois pastores, irmãos (irmãos mesmo),
bem trajados em ternos de boa qualidade, o que até então era a imagem
simbólica de um executivo; talvez o diretor executivo de vendas da benção
de Deus; eloquentes, animadores profissionais.
Eles disseram que Satanás usou o dinheiro para comprar Judas, então
eles deveriam usar o dinheiro também para salvar as pessoas (boa sacada
de marketing). Continuaram, dizendo que precisavam de dinheiro para ir
em missão até o chile, respondendo a um chamado de Deus, para prevenir
suicídios de jovens.
Pediram para que todos sentassem e abaixassem as cabeças e aqueles
que sentissem o toque do criador deveriam ir até o altar e fazer suas
ofertas para essa empreitada. Cinco pessoas levantaram e somaram um
valor significante. Duas das pessoas que doaram não estavam tão bem
vestidas como os pastores; Eu não sei se dei algo quando passaram o
saquinho de coleta, mas sei que é uma sensação desagradável não “ofertar”
nada.
Meses atrás, um amigo me contou sua experiência inusitada em um
“templo sagrado”. Ele estava em uma cidade a trabalho e havia recebido mil
reais em espécie. À noite ele foi a uma igreja protestante e foi surpreendido
pela fala do pastor. Dizia o pastor: “você que está com mil reais no bolso
doe para a obra de Deus; Deus lhe dará em dobro”. Meu amigo disse que
ficou muito impressionado e pressionado a doar. Enfim ele resistiu e não
caiu na tentação, mas deixou cinquenta reais na igreja.
Todos os dias milhões de pessoas vão às igrejas com seus problemas
financeiros, de saúde, e emocionais; vão para pedir socorro, para agradecer
ou por medo de perder algo que jugam importante. É fácil para o pastor
citar em seu altar as situações que estão passando a maioria dos fiéis. E é
exatamente isso que o humano espera quando vai à igreja. Ele quer ser
percebido, enxergado, e ouvir que tudo vai dar certo. Por que o humano é
tão facilmente acalentado com algo racionalmente tão vago, tão
perceptivelmente fraudulento e ineficiente, se pensarmos em dimensões
globais?
Caso V: Ideologia para que te quero?

Aos 21 anos, em 2001, eu entrei em uma Organização Não


Governamental – ONG – feminista e tive a oportunidade de conhecer
homens e mulheres, do meu estado e de outros, engajados na promoção da
equidade de gênero.
De forma prática, eram feitas oficinas com mulheres sobre seus
direitos de ter uma vida sem violência, com liberdade de expressão e
sexual; também eram realizados cursos de formação em alguma área
produtiva ou comercial com intuito de prover a independência financeira e
empoderar a cidadania de mulheres em situação de vulnerabilidade e risco;
grupos de mulheres envolvidas em espaços de tomada de decisão como
sindicatos, associações, eram acompanhados com objetivo de fortalece-los
e garantir suas posições de decisão nas instituições.
Ainda havia as campanhas destinadas a um público mais amplo que
objetivavam sensibilizar governos, para adoção de políticas, e pessoas, para
mudanças de atitudes. Era um movimento intenso em minha organização,
nas demais do estado e no brasil.
No ano de 2009, após um período de dois anos atuando em outras
ações sociais, retornei à instituição, e percebi uma situação controversa,
que me deu o primeiro impulso para escrever este livro. A religiosidade
tinha dominado os espaços institucionais e arrebatado as integrantes que
antes combatiam a subjugação das mulheres pelas grandes religiões. Se a
religião era o ópio do povo, para Marx, seria a mordaça das mulheres, para
as feministas. A sua máxima de submissão, passividade, mansidão, para as
mulheres em relação aos homens, em especial a seus companheiros, é uma
violência silenciosa, é cumplicidade de muitas mortes, de vidas sofridas.
Mas então porque as esclarecidas disso tudo, empoderadas e
engajadas haviam sucumbido, assim como as travestis e índios, ao seu
Algoz? Que força ou falta de força se instalava sobre herdeiras de uma
grande causa? Como a fé religiosa venceu o pensamento crítico? Como
venceu a força da causa nobre, como fez vivências, pensamentos e práticas
diluírem-se?
A ORIGEM CULTURAL

Em todos os lugares do mundo há vivências com dogmas ou fé. Isto


me causou curiosidade por muito tempo e me fez observar como essas
experiências ocorrem e porque são planetárias. Decidi utilizar minha
própria história de infância e início da adolescência para mostrar
elementos comuns, outros particulares, que estão presentes na história de
diversas populações.
O motivo dessa escolha está em três fatos. O primeiro é que tive uma
vivência privilegiada com o cristianismo, pois morava ao lado da catedral
católica e acompanhava a rotina do templo; o segundo é que eu, como
quase todos os garotos da época, participei diretamente das atividades
cristãs, como a Primeira Comunhão e a Crisma, sempre com olhar curioso
ou intrigado com as “verdades” e mistérios cristãos; e o terceiro é que em
minha cidade natal havia poucas instituições presentes, o que simplifica
bastante a vida das pessoas, e proporciona um bom observatório para
percebermos como se origina e se perpetua a fé nos seres humanos pela
vivência com os dogmas e as rotinas de suas instituições.
A Cidade

Eu nasci em uma cidade pequena no interior da Amazônia Brasileira.


A cidade do Sindicalista Chico Mendes que morreu na década de 1980 era
regida por uma rotina simples de diversões e algumas obrigações para as
crianças e o oposto para os adultos. Sem dúvida a pequena e pacata cidade
de Xapuri, de três décadas atrás, era um ótimo lugar para uma criança.
A morte desse sindicalista, que era seringueiro e lutava com
companheiros pelo direito a terras em que viviam e trabalhavam, foi
noticiada em várias partes do mundo e colocou a desconhecida cidade
amazônica no foco da grande imprensa. Isso ocorreu porque na época a
pauta da ecologia ganhava força na comunidade internacional e Chico
Mendes havia sido assassinado devido sua luta pela garantia das terras de
seringueiros contra fazendeiros. Era uma luta por sobrevivência que
ganhou teor ecológico.
No aniversário de um ano de sua morte a igreja idealizou uma peça
teatral sobre o sindicalista na qual eu representaria o personagem na
infância. A peça infelizmente, assim como o grande evento programado, foi
cancelada.
A população da cidade, em parte, incidiu de nordestinos que
imigraram, no final do século XIX e início da década de 1940, em busca de
melhores condições de vida na floresta amazônica extraindo o látex,
matéria prima da borracha, de árvores seringueiras, e por isso foram
chamados de seringueiros. A primeira imigração foi motivada pela
demanda industrial dos Estados Unidos e Europa; a segunda, pela demanda
de grandes nações em guerra.
Essa população levou consigo uma forte tradição católica, até hoje
presente no Nordeste, que se tornou hegemônica nos meios urbano e rural
de Xapuri.
A população mais antiga são os índios que já habitavam a floresta as
centenas de anos. Uma parte considerável desses índios foi para a cidade,
muitas vezes de forma forçada. Sua cultura religiosa não era apresentada a
nenhuma criança não indígena, nem por pais, nem pela escola, que possuía
o ensino religioso e a disciplina História.
Na década de 1970 com incentivo governamental para “ocupação”
das terras da região houve uma onda de imigração de pecuaristas. Os
conflitos por terra intensificaram-se nesse momento.
Logo em seguida muitos agricultores e profissionais de diversas áreas
chegaram criando um microcosmo peculiar. A devoção religiosa tornou-se
uma unidade cultural para todos os seguidores do cristianismo. As demais
manifestações religiosas e seus adeptos eram vistas como estranhas,
inferiores, ilegítimas. Isso não impedia os laços de amizade entre as
crianças e adolescentes de manifestações de fé diferentes, mas gerava
alguma discriminação.
O Templo

A catedral da Igreja Apostólica Romana é ainda hoje a mais bela


arquitetura da cidade. Olhando de fora vemos um formato pentagonal com
duas portas laterais na sua face, e uma central, maior, com uma entrada
soberba. Acima desta, apontando para o céu, fica a torre que se afirma
como o ponto mais alto da cidade, depois da torre de telefonia. Lá ficam os
sinos que badalam todos os domingos, e em diversas ocasiões: casamentos,
batismos, velórios, novenas, procissões, quaresmas.
Ela possui vitrais esplêndidos, doados por famílias da região, que
retratam passagens bíblicas famosas; com o efeito do sol sobre eles
transformam-se em imagens reluzentes, quase revelações. Além deles as
estátuas melancólicas e apelativas cativam os observadores.
São Sebastião, padroeiro da cidade apresenta-se amarrado em um
tronco de árvore com corpo perfurado por flechas; sua expressão sofrida,
com sangue de tinta vermelha pelo corpo, impressiona, apesar da grande
maioria dos seus devotos não conhecer sua história bíblica; também há a
Virgem Maria com semblante compadecido e bucólico que acalenta aos
seus devotos e necessitados em geral. Costumam toca-la nos pés e fazer um
pedido ou agradecimento. Eu já tive essa experiência quando criança e
lembro-me da cena.
O Cristo está lá como estátua com seus furos de pregos nos pulsos ou
mãos e pés e de lança nas costelas. O sangue de tinta também decora essa
cena.
A igreja possui um vão amplo e uma altura pomposa estando no teto
à figura de uma grande cruz que atravessa o salão. Em cada uma de suas
pontas há um ornamento posicionado como abajur de forro com formato
de escudo.
Após o salão está o altar em dois níveis. O primeiro onde fica o padre
atrás de uma mesa coberta com pano branco; em cima dela o cálice
dourado do vinho que o padre bebe antes de dar a hóstia aos presentes na
igreja, mas só para os que passaram pela primeira comunhão
(oficialmente). Lembro que tinha grande curiosidade em saber qual o gosto
da hóstia e também achava que as pessoas, após comê-la, entravam em
transe espiritual; é claro que me desiludi.
No segundo nível encontra-se uma espécie de cofre de onde o padre
retira a hóstia. Este pequeno cofre sempre me chamou a atenção; ele possui
a face dourada e representa muito mistério aos olhos de uma criança.
À frente da catedral há uma grossa cruz de madeira, que fica
sustentada em uma base alta formando um espaço para receber velas, e
elas sãos às dezenas; formam uma camada de cera com um cheiro peculiar
e quando o vento ousa apaga-las, elas não apagam, mas apresentam “a
dança das velas”. Em 1994 quando o Brasil ganhou a copa do mundo nos
pênaltis contra a França, graças ao chute pra fora da área de Roberto
Baggio (o craque da seleção francesa), eu e um amigo fomos até esta cruz
para ascender duas velas; um trajeto de 80 metros através da calçada
lateral da igreja formada por tijolos maciços e lodo, e ornamentado por
plantas de um lado e o muro da catedral, baixo e elegante, de outro.
As velas foram dadas pela avó de meu amigo; ela disse que
deveríamos agradecer pela vitória e assim fizemos.
A catedral é uma obra projetada para impressionar, cativar e enredar
o cotidiano das pessoas da comunidade. Ela representa um norte, um
refúgio, um ponto seguro e confortável para os que possuem problemas
dolorosos, ou seja, todos nós e desde sempre.
Muitas outras também são assim em todo o planeta, de concreto, de
madeira, de vidro, de palha, de bambu, de lembranças, de sentimentos.
Esses templos regem a vida dos povos; Tudo seria diferente se eles não
estivessem lá. Muitas pessoas nem podem imaginar isso facilmente porque
significaria perder uma grande parte de suas vidas, e isso é muito caro para
nós; nossas lembranças são preciosas.
Você tendo vivenciado esse enredo, essa vivência, esse passado, essa
parte de você exercerá grande força sobre sua vida. Com o tempo se
tornará um tesouro cada vez mais distante, raro e precioso; Abalará seus
afetos e sua forma de ver e sentir o mundo.
A Rotina

Padres e freiras eram personagens de destaque da cidade. Os


discursos do padre dentro da catedral imponente ganhavam um valor
sagrado. Qualquer fala religiosa ou política era expressa e entendida como
verdade. O efeito sonoro interno e os alto falantes alojados nas paredes da
frente potencializavam as vozes e as ideias. Mas quando você vê a mesma
cena diversas vezes ou quando vê as personagens por traz das cortinas
teatrais, no dia a dia, “a sua criança morre”. A curiosidade, a observação
atenta de fato nos tira a infância mais cedo, mas só parte dela.
As freiras eram responsáveis pela primeira comunhão e pela crisma,
além de eventos de cultura e lazer. Lembro-me de oficinas de fabricação de
objetos com jornal e goma, de apresentação de danças folclóricas, de
ensaios de quadrilha de Festa Junina. As lembranças vêm acompanhadas de
sensações reconfortantes.
Os grupos de catequese se reuniam aos sábados à tarde e tinham
normalmente duas freiras na condução. Na Primeira Comunhão é feita a
primeira confissão ao padre, algo que gera ansiedade e desconforto entre
os pré-adolescentes de 10 e 11 anos, mas na prática é menos
constrangedor do que apresentar um trabalho de aula que você não
estudou. A partir de então você está apto a receber a misteriosa hóstia,
primeiramente em uma bela cerimônia, e após por toda a vida.
O passo seguinte é participar do grupo de Crisma, que é misto, assim
como o anterior. Mas nestes os gêneros perdem a aversão do “Clube do
Bolinha” ou “Luluzinha” e dão espaço para ideações românticas. Certa vez
meu grupo de crisma apresentou uma peça teatral na qual eu era esposo de
uma mulher descompensada e a minha amiga que a interpretava ficou
muito nervosa o que me rendeu alguns puxões de cabelo e tapas realísticos
demais. E isso acabou com o “clima”.
Apesar de essas serem minhas lembranças mais presentes, também
recordo dos primeiros questionamentos sobre questões cristãs. A
apresentação de Jesus Cristo com pele e olhos claros, sendo ele de uma
região geográfica em que vivem povos de características étnicas diferentes,
e a incompatibilidade do livre arbítrio com a onisciência de Deus, foram
dois desses questionamentos.
Lembram que falei do valor das vivencias da infância ao longo do
tempo? Mesmo aquelas que não possuíram importância na época em que
ocorreram como fato ou aquelas que não eram agradáveis, tendem a
tornarem-se desencadeadoras de boas sensações. Por exemplo, as musicas
que nossos pais ouviam e não nos agradavam e agora se tornam aprazíveis.
O mesmo ocorre com a rotina de ir à igreja. Normalmente não é uma
programação das mais empolgantes quando somos crianças, mas depois de
adultos essa lembrança nos conduz ao retorno ou a manutenção desse
hábito de forma agradável.
O Grande Evento

De todos os eventos da cidade, não só religiosos, a Festa de São


Sebastião era e continua sendo o mais notável. Ela arrebata mulheres,
homens, crianças, idosos; pessoas de todo o Estado e outros vizinhos.
A procissão, que é o principal episódio da festividade, parece uma
gigantesca cobra humana se movendo nos contornos das ruas entoando
cantigas católicas, muitas velas e devoção. Pessoas pagando promessa,
agradecendo por algo que aconteceu, a grande maioria ligada à saúde, mas
outras diversas situações também estão presentes.
Comerciantes de roupas de vários lugares montam barracas de
madeira muito improvisadas e a população local “renova o guarda roupa”
com as marcas e estilos dos grandes centros urbanos. Pelas ruas é notável a
satisfação dos transeuntes com suas novas vestes. Este segmento é mais
movimentado nessa ocasião do que nas festas de fim de ano.
Empreendedores do entretenimento também se fazem, ou faziam,
faziam presentes com parques de diversão compostos por brinquedos
eletrizantes (como o Chapéu Mexicano) ou românticos (como a Roda
Gigante) e jogos de azar.
A catedral fica pequena para a multidão que vai assistir às missas que
iniciam as atividades noturnas. Após estas, num espaço anexo a catedral,
são realizados bingos com premiações de prendas (galinhas, patos,
carneiros, novilhos, porcos) ofertadas por devotos.
As festas noturnas, antigamente em casas a beira do Rio Acre o que
davam a vista de dezenas de pequenas embarcações ancoradas, lotam e
aparecem muitas pessoas que se distanciaram da cidade há anos. Um
retorno, uma visita.
Como não ser cristão num lugar desses, ou porque não ser? Só com
muita teimosia. Todos esses acontecimentos, situações, vivências,
promovem uma naturalização de que a devoção, a fé em Deus, neste caso, é
a única forma de se viver, se não isso, a melhor.
O Lar

Minha família morava em uma grande casa de madeira de altura


descomunal coberta por zinco (folhas de alumínio) que se transformavam
em um gigantesco prato de bateria quando chovia, e a chuva, nos estados
da Amazônia, é muito abundante. O som produzido era algo poderoso e
tranquilizante, um convite ao sono e ao relaxamento.
A casa tinha essa forma porque antes havia sido uma morada de
freiras, segundo dizem. É uma ideia plausível já que ao lado está a Igreja de
São Sebastião.
Na sala havia uma estante onde ficavam o televisor e alguns livros de
introdução à física, química, biologia, matemática, romances e relações
humanas; em uma bela mesinha de centro com pernas torneadas e uma
superfície com borda, feitas por meu pai, ficava a volumosa bíblia de capa
preta e as pontas das páginas douradas.
Ela ficava aberta em um suporte semelhante aos que existem nas
igrejas. Era um livro imponente exposto de forma artística. Sua presença
marcante imprimia respeito ao lugar e um ar de moral. Meu pai não era
religioso, mas mesmo assim fez esse “altar” em nossa casa porque isso era
algo de importância para a sociedade.
Eu costumava deitar no sofá, olhar para os livros e escolher um para
ler. Algumas vezes eu iniciei a leitura do livro preto, mas a falta de coesão e
substância dos retalhos escritos não me agradava. Preferia imaginar o
processo da eletricidade estática com o atrito dos corpos; às descargas de
energia do solo para as nuvens; os movimentos dos elétrons ao redor do
núcleo atômico; ou entender a lógica matemática que explicava o mundo
com formulas e máximas; e os escritos de relações humanas que me
ajudaram com a timidez e me deu alguma vantagem na apresentação de
trabalhos de aula, algo temido por qualquer aluno do fundamental.
Ao ir dormir, por várias vezes, eu e meus irmãos rezávamos. Muitas
outras noites dormíamos sem esse protocolo de forma muito tranquila,
mas quando algo psicológico pretendia incomodar meu sono rezava e isso
costumava me acalentar.
No quintal havia pés de coco, bananas e uma goiabeira, dezenas de
galinhas (algumas delas doações futuras para os bingos da igreja) e alguns
patos que rendiam saborosos pratos regionais, como o delicioso Pato no
Tucupi (prato tradicional de minha família). Uma escada íngreme de 12
degraus emendava em uma pequena calçada que levava ao banheiro. Após
o banho costumava parar por alguns instantes em frente ao banheiro
olhando para a torre de telefonia que ficava em frente de casa, e para a
torre da igreja que estava a minha direita. Olhar para a torre de telefonia
me fazia pensar na ciência, na física principalmente; olhar para a torre da
igreja me fazia pensar na arte, na beleza e mistério que ela possuía.
O Bem Estar

Toda essa aparente ação coletiva harmônica e fraterna, porem, é


ilusória. As intenções e interesses são individuais. Apesar de a estrutura
religiosa poder ajudar a promover um convívio social entre os moradores
da comunidade e isso ser algo realmente relevante; apesar de o padre
poder transmitir informações de boas práticas de cidadania, da
importância da fraternidade, do exemplo de Jesus; os fieis não estavam lá
na catedral por isso, nem tinham isso em mente algumas vezes.
O que os motivava era a possibilidade de serem curados de
enfermidades do corpo e da mente; não era toda a história ou estória de
peregrinação de Jesus Cristo falando sobre amar ao próximo, e sim a
possibilidade de receber um dos milagres dele. Era algo individual e
egoísta.
Mesmo quando oravam por familiares e pessoas da comunidade
faziam isso porque a morte ou doença de alguém próximo iria lhes causar
dor também. Além disso, fazer uma oração é bem mais fácil e econômico do
que qualquer outra ação. Tudo então se voltava para si. As pessoas não
estavam interessadas em refletir que os poucos milagres contidos na Bíblia
seriam irrelevantes para a população do planeta. Queriam apenas ser uma
daquelas a receber o milagre.
Mas é claro que existem pessoas religiosas (cristãs nesse caso)
solidárias e fraternas. Tive a sorte de ter por perto bons exemplos. Essas
pessoas submetidas à religião têm como pano de fundo recompensas
divinas; na prática são importantes para mitigar alguns problemas sociais
ou socorrer vidas sofridas; outras detentoras de uma fraternidade
espontânea conseguem pensar, de forma crítica, nas causas dos problemas
que enfrentam.
Não sei se notaram quando descrevi as figuras ornamentais da
catedral de minha cidade a abundância de situações de violência. Somos
desde crianças expostos a imagens e estórias ou histórias que retratam
violência, dor e sangue e isso gera uma forte impressão e impregnação para
toda a vida.
Se não possuíssem o rótulo de sagrados, muitos contos e imagens
bíblicas seriam proibidos para crianças (como ocorre com filmes, novelas e
outros livros) pelo seu alto teor violento, e pornográfico, se pensarmos no
velho testamento. Esses contos são uma forma didática de internalizar
para sempre nos inocentes humanos as doutrinas, pensamentos e emoções
da religião.
As lembranças de vivências com as rotinas dogmáticas na infância e
adolescência são causa de muitas pessoas se entregarem a fé por toda a
vida.
O INCÔMODO E A CURIOSIDADE II

A origem cultural da fé poderia ser sua causa única? Muitos


pensadores atentos acreditam que sim; acreditam que a fé se retroalimenta
pela continua vivência ou contato das pessoas com o mundo religioso que
por sua vez se adapta ou provoca às mudanças históricas e sociais.
O cristianismo, como se sabe, aproveitou-se da decadência do Império
Romano para se constituir como força política e cultural inquestionável por
muitos séculos e conseguiu expandir a fé cristã para diversas partes do
mundo.
O filósofo Nietzsche[2] afirmava, em meio as suas revelações do estado
diminuído do ser religioso, que a religião é que havia criado o sentimento
de culpa e se apropriado das ideias do filósofo grego Platão[3] para
condicionar os indivíduos, para moldar-lhes uma moral servil, um
comportamento de ovelha, de fraqueza, de submissão; que afastava o
humano de sua natureza, de suas reais virtudes. Assim o humano seria
moldado por uma força externa a ele (a religião).
Karl Marx[4] elucidava que a religião é o ópio do povo; ela amolece,
ilude o povo a uma conformação de sua realidade terrena. Após afirmar a
necessidade de as instituições religiosas serem eliminadas, chegou a
acreditar que isso ocorreria naturalmente com a racionalização das ideias e
do modo de vida dos humanos.
Max Stirner[5] compreendeu o falso altruísmo pregado pelos
religiosos, de seu tempo e do passado (na atualidade o cinismo e a
hipocrisia operam), na negação dos prazeres terrenos, no exercício de uma
vida sem excessos, sem paixões, sem a busca egoísta da felicidade terrena.
Segundo ele, este altruísmo é falso porque os religiosos querem em
troca as benesses da vida eterna no paraíso; aí está o egoísmo que os
religiosos denunciam dos ímpios. Seu “bem viver” espera em troca o maior
prêmio; suas boas ações não são finalidades de vida, mas meios para
agradar o ser supremo e receber a recompensa desproporcional.
Charles Darwin[6], por sua vez, apresentou ao mundo a teoria que
explica a nossa existência, assim como de todas as demais formas de vida
desse planeta: evolução por seleção natural. Seu trabalho foi amplamente
divulgado e deu origem a grandes avanços nas ciências naturais,
proporcionou diversas soluções para problemas biológicos humanos.
Alguns autores, inclusive dentre esses, também consideraram o papel
dos humanos necessitados, dominados, na criação da religião como
estratégia de união, de resistência contra opressores, e geradora de bem
estar coletivo, mas que ao longo da história essas instituições se tornaram
de domínio dos próprios opressores.
As denuncias desses pensadores sobre imposição de submissão às
religiões para seus fieis, do estado diminuído do intelecto e dos prazeres
dos mesmos, mais a constatação da evolução das espécies e não a criação
instantânea alardeada pela Bíblia coloca em xeque um alto preço pago, pelo
humano, por nada; o abandono da vida, do devir, por nada.
Então porque a fé prevalece mesmo com o “triunfo” da ciência e com
o amplo acesso a informações consolidados no século passado (Deus não
está morto senhor Nietzsche)? Porque a cultura religiosa continuou a
expandir-se e fez morada na minha cidade de Xapuri? E porque em todas as
partes do mundo há manifestações de fé hoje e sempre no passado? Qual a
essência da fé?
As instituições religiosas, as tradições, os costumes, a história,
influenciam e potencializam a fé nos humanos, mas não são anteriores a
ela, não a pariram, são causa, mas não a causa primeira; Formam o grande
abismo convidativo, mas o impulso para o humano pular possui outra
origem, anterior e mais profunda.
Seria Deus e os demais entes divinos que despertam a fé nos
humanos? Que “tocam seus corações”? A resposta é não. Deus
nasceu depois da fé. É parte do abismo, talvez seu aspecto mais sombrio e
atraente, é o maior produto da fé.
Devemos usar a estratégia de Mahatma Gandhi[7]. Ele percebeu que a
essência do império britânico, do domínio sobre a índia não era o exército,
ou uma “cultura privilegiada” dos ingleses, ou seu sistema de produção
altamente desenvolvido. A essência desse império eram os indianos; o povo
indiano que “fazia” dos ingleses seus soberanos, seus dominadores e
superiores.
Gandhi se preocupava com as ações e pensamentos de seu povo. De
forma análoga devemos olhar, primeiramente, não para as estruturas, as
figuras, os documentos que influenciam os humanos à fé, mas para este
humano. Qual seu motivo? Qual sua causa? Quando tudo começou?
A ORIGEM INTRÍNSECA DA FÉ

As perguntas postas nos levam a um momento da organização social


humana anterior aos que estamos acostumados a ver e pensar, no que diz
respeito a manifestações de fé, às instituições religiosas e seus atributos.
Antes dos documentos sagrados, dos grandes templos, dos cânticos,
das romarias, das batidas de tambor, dos rituais de pajelança, dos
sacrifícios humanos, das oferendas, das missas e pregações, algo aconteceu
que alterou a forma de ver, sentir e se comportar de nossa espécie.
O humano pré-histórico por longo período de tempo enfrentou as
grandes adversidades com pouca compreensão de si e do mundo a sua
volta, mas em certo momento, por volta de 70 mil anos atrás, sua
racionalidade e emotividade chegaram ao seu clímax; quando nossa
estrutura cerebral já era semelhante a dos dias atuais nos diferenciamos
definitivamente dos demais animais.
Sim, os demais animais possuem racionalidade, uma visão limitada de
si e do mundo a sua volta, e emotividade, esta mais perceptível a nós, pelas
manifestações que vemos em cães e gatos, por exemplo.
Esse período evolutivo da humanidade é marcado por
desenvolvimento de ferramentas mais elaboradas e organização grupal
mais complexa e, talvez por esses dois aspectos, pela disseminação do
humano primitivo por amplas regiões do planeta. É considerado o
momento da revolução cognitiva e do despertar da consciência.
O Paradoxo

Ao perceberem o quão eram frágeis diante dos fenômenos exógenos


e de tão pouco tempo de existência, uma verdadeira passagem pelo
purgatório, e ao mesmo tempo com sua profunda capacidade emotiva,
perderam a vantagem da inocência diante do inimigo voraz e implacável. A
consciência de sua condição no planeta iria paralisá-los, torna-los mais
vulneráveis.
Até então o instinto de autopreservação era predominante e abafante;
as perdas e dificuldades não eram mensuradas, apenas seguiam em frente.
Fazendo uma analogia podemos nos lembrar do conto popular do
aluno do curso de matemática que dormiu em sala de aula enquanto o
professor apresentava para a classe três problemas matemáticos nunca
resolvidos.
Quando a sirene tocou o aluno dorminhoco despertou e perguntou a
um colega o que significava as questões no quadro. O colega de classe, por
diversão, informou que as três questões no quadro eram o dever de casa. O
dorminhoco apressou-se em anotar as questões e saiu com os demais. Na
aula seguinte o aluno se aproxima do professor muito ansioso e diz:
“Professor é o seguinte, o primeiro problema eu respondi fácil, o segundo
foi difícil, levei um tempo, mas também respondi, agora o terceiro não
consegui mesmo, quero que o senhor me mostre a solução”.
O aluno encarou os problemas "insolúveis" como algo simples do
cotidiano, um desafio que ele se considerou totalmente capaz de resolver e
obteve grande êxito, ainda se indagou porque não conseguiu solucionar o
terceiro problema. Sua inocência o protegeu do estresse, do desânimo, da
sensação de incapacidade, de impotência. Isso já aconteceu algumas vezes
na historia humana, talvez na sua.
Assim era o humano antes de seu despertar, antes de se tornar vítima
de sua própria evolução (uma armadilha evolutiva).
Emergiu, então, a primeira consciência humana, que percebe a
realidade nua e crua, implacável, insensível a sua existência; uma visão
extremamente desanimadora. Esse foi o primeiro paradoxo humano, um
paradoxo da consciência: aquilo que nos fazia ser diferenciados seria nosso
próprio limitador.
É preciso esclarecer algo. Com esse despertar, a própria consciência
de não saber mais sobre o mundo a sua volta gerou incômodo no humano,
mas este fator influenciou determinantemente a curiosidade intelectual, a
busca por conhecimento. Daí as evoluções tecnológicas, exclusivamente, e
sociais, partilhadamente, ocorreram. A curiosidade intelectual é irmã
gêmea da fé. Mas nesse caso não há paradoxo, pois o não saber é razão
primeira da curiosidade intelectual, não causa impotência, e sim estimula o
humano. Muitas construções simbólicas, como mitos, possuem elementos
da fé e da curiosidade intelectual ao mesmo tempo.
Depois de mais de dois milhões e meio de anos de evolução
persistindo sobre todas as adversidades do ambiente, diferenciando-se dos
demais animais por suas habilidades de criação e adaptação, a mesma fonte
dessas habilidades que teriam substituído e superado as características
intrínsecas dos outros animais, garras, presas, tamanho, força, velocidade,
agora em sua plenitude seria seu próprio limitador? Seria este o sistema de
controle da natureza? Ela teria tratado de eliminar uma espécie que
poderia comprometer o equilíbrio do planeta?
Mas, se estou escrevendo agora e você lendo, algo deu errado nessa
armadilha evolutiva. Nós conseguimos burlar o sistema, mudar nosso
destino. O que aconteceu?
A Solução Genial

Tarde demais para a natureza frear a investida humana sobre a terra.


Havia algo no ser humano desenvolvido por centenas de milhares de anos;
algo complexo e único que estava pronto para reagir de forma genial e
burlar a armadilha evolutiva: O cérebro (e a mente) humano. Não
precisamos debater sobre as teorias que abordam a relação entre cérebro e
mente. Mas podemos pensar na mente como uma filha rebelde do cérebro
que adquiriu certa autonomia. Ela cuida/realiza os processos psicológicos,
conscientes e inconscientes, simples e complexos ou superiores (como
dizem alguns teóricos). Ela influencia e sofre influência do corpo biológico.
Evoluímos ao ponto de atingir uma visão/perspectiva concreta da
realidade que nos cercava. Mas esta visão não nos fazia bem, já éramos
emotivos demais. Então era necessário retornar a um estágio
imediatamente anterior, precisávamos da velha inocência, mas nossa
mente já havia se expandido; podia simplesmente retroceder? Aqui cabe
uma célebre frase atribuída ao grande físico Albert Einstein[8], mas que é de
fato de Oliver Wendell Holmes[9]: “A mente que se abre a uma nova ideia
jamais volta ao seu tamanho original”.
Muito malcontente devo confrontar essa máxima e dizer que foi
exatamente isso que a mente humana fez. Contrariando seu curso
previsível, derrubando o paradoxo da consciência (aquilo que o tornou
forte passou a tornar fraco), escapando da armadilha evolutiva, ela deu ao
humano a capacidade de abdicar da razão quase pura, da visão concreta da
realidade, por outra mais fraterna, uma realidade paralela, uma ilusão.
Essa ação foi involuntária e motivada por uma força, um impulso
comum a todos os animais: O instinto de sobrevivência.
Pensemos na situação que estão passando os moradores da Faixa de
Gaza. Bombardeios diários que mataram até o momento mais de 1000
pessoas (mulheres, homens, crianças) absolutamente inocentes e sem
qualquer possibilidade de defesa. Todos que estão lá sabem da eminência
da morte; estão aterrorizados.
Assisti a uma reportagem televisiva sobre os conflitos em que um
correspondente do ocidente não consegue concluir sua resposta; ele entra
em desespero e chora incontrolavelmente. É natural e prudente se voltar
para uma proteção/intervenção divina numa situação assim (mas apenas
para os que estão sofrendo a ação).
Agora é o homem a grande ameaça do humano, na pré-história aquilo
que mencionei atrás. Em resposta, nosso instinto de sobrevivência excitou
a mente a elaborar uma saída. O sentido de autopreservação voltou a atuar
como soberano, sua necessidade foi evocada pela ameaça da consciência de
fragilidade e ele respondeu a altura.
Isso ocorreu em um período de milhares de anos e de forma não
linear. Ao passo que nos tornávamos mais frágeis por saber da hostilidade
do mundo e de nossa efemeridade essencial, o sentido de autopreservação
avançava reprimindo este saber sobre a realidade concreta.
Na longa noite da reflexão humana o sonho foi o instrumento para
dar vida a realidades alternativas. Nele o humano podia se encontrar com a
parceira morta pelo frio, ou pelas garras do Tigre; poderia vê-la íntegra,
viva na ilusão.
Essa ilusão o inspirou a enterrar seus mortos e a fazer rituais
fúnebres; a crer na vida após a morte. Isso se tornou um grande consolo
para suportar a vida de hostilidades: saber que seus pares estavam vivos
em algum outro lugar e saber que eles também teriam outra vida além
desta; poderiam reencontra-los.
Hoje vemos jovens terroristas suicidas que são convencidos a abdicar
desta vida por outra no paraíso onde (pensam) serão recebidos como
heróis por 72 virgens de olhos negros, pele branca e cabelos pretos;
tomarão vinho e terão à disposição 72 camas para se esbaldar de prazer. Ao
mesmo tempo serão homenageados e serviram de inspiração para crianças
e jovens de domínio do fanatismo islâmico. A primeira parte dessa fábula
expressa a poderosa realidade ilusória, a segunda, a realidade concreta.
Séculos atrás, jovens guerreiros vikings também acreditavam que
iriam para outra vida ao lado dos grandes guerreiros se fossem abatidos
em batalhas, um verdadeiro prêmio. A vida após a morte é uma publicidade
realmente eficaz para estimular o humano a fazer algo extremamente
controverso.
O humano também sonhou com as grandes potências, idealizou uma
relação de proximidade, de servidão. Na ondulada história humana nós
vimos isso acontecer em muitas ocasiões, a chuva que preparava a terra
para os primeiros agricultores foi seu objeto de adoração, para os Maias o
sol que castigava com secas prolongadas era objeto de adoração, de
sacrifícios humanos.
Esses seres endeusados foram se moldando às necessidades humanas
de cada lugar e época.
A nova perspectiva (consciência viciada) colocava novamente o
humano em situação de vantagem; antes de seu despertar ele era protegido
do estresse da realidade concreta pela inocência, agora era protegido pela
ilusão de uma segunda vida, uma segunda chance, e de proximidade com os
fenômenos naturais, criaturas e situações ameaçadoras.
Mas neste caso, o humano poderia manipular a ilusão, poderia ser
inocente parcialmente, à medida da autopreservação e do bem estar
mental.
Assim se inscreveu no humano a emoção secundária chamada de fé; A
emoção necessária para sustentar uma realidade ilusória. Aclarando: os
humanos possuem emoções primárias, inatas, presentes já no nascimento
do ser, como o medo, a raiva; e adquirem outras emoções por isso
intituladas secundárias, como a vergonha motivada pelas convenções
sociais.
A solução genial é inerente a todos os seres humanos, é a solução do
paradoxo da consciência. É uma resposta individual. É a tendência que
todos temos à manifestação da fé. Por isso em todos os cantos do mundo e
em todas as épocas existem manifestações de fé enredadas pelas diversas
culturas.
A PROPENSÃO A FÉ

A causa de toda fé é a percepção da situação de fragilidade humana


diante da realidade concreta potencializada pelas vivências com os dogmas.
Ela aumenta em proporção direta a vulnerabilidade sofrida pelo indivíduo,
particularmente, e seu povo, coletivamente. “Quanto mais frágil um povo,
mais poderoso será seu Deus”. Isso significa que as situações globais que
afastam progressivamente a maioria dos seres humanos da dignidade é um
estímulo à fé.
A realidade ilusória criada pela fé fica justaposta à realidade concreta,
algumas vezes em arranjos bem elaborados por teólogos e filósofos
dogmáticos, e outras em arranjos provisórios, elaborados por lideres
religiosos e seus rebanhos, que se destinam a sanar alguma cólera
imediata.
Divulga-se, por vezes, a conversão ao cristianismo de algum pensador
de destaque, cientista, escritor, filósofo, principalmente se ele for um ateu
convicto, como prova da existência de Deus. Dizem que “Deus tocou seu
coração”. Além da estratégia publicitária dessa notícia há uma ingênua
confusão quanto a esse acontecimento.
A verdade é que ninguém, por sua natureza frágil e efêmera, possui
um estado de lucidez intocável. Pense no que já vimos sobre a origem
cultural e sobre a origem intrínseca, toda uma vivência de contatos com a
religião, mais o paradoxo da consciência; agora some tudo isso a uma ou
algumas variáveis tocantes (doença, velhice, morte de alguém próximo,
miséria) e teremos um gatilho poderoso que desencadeará um estado de
religiosidade, de fé; uma verdadeira rendição do corpo e da mente humana
a ilusão do bem estar.
Destarte, aquelas travestis da II Conferência LGBT possuíam
acúmulos de problemas sociais e familiares; cansadas de sempre lutar,
vulneráveis e sedentas de acolhimento, de bem estar mental, de estar do
lado do Deus que tudo proverá. As feministas também, após anos de luta
contra a cultura machista impregnada na sociedade, sem o apoio devido do
estado, sem o triunfo capitalista de acúmulo de capital, tão esperado pelos
pares, cederam ao conforto da indiferença social, ao pensamento
individualista, agarraram na mão do imaginário confortável. E muitos
ativistas e lideres estão sucumbindo e o mundo está ficando a mercê de
uma ilusão.
Os religiosos natos, por seu lado, possuem um pacto de mediocridade
com seus líderes à lá capitalismo. Estes fingem que estão conduzindo obras
divinas e salvando seu rebanho, o rebanho passa a requerer a salvação e a
melhor vida imediata (ou a paciência) como outro produto qualquer pago e
recebido em doses mensais com o dízimo, e com doses extras em situações
de incômodos pontuais. Mas, como vimos, existe um transe que deixa esse
acordo camuflado.
O problema da razão humana é que ela é humana e não pura, está
impregnada de emoções que distanciam o humano de uma análise, de si e
do mundo, imparcial. Somos tomados por nossas emoções inatas e
aprendidas para formular ideias e tomar decisões, alias as emoções são o
próprio motor de tudo que fazemos. Se fôssemos uma caravela a emoção
seria as velas e a razão (pura) o leme.
Além desses dois há o instinto de autopreservação que seria a própria
necessidade de se movimentar para a caravela. Esta caravela tende a ir
para onde o vento sopra mais forte e não para onde indica a frieza do leme.
A fé são velas gigantes que suprimem o pobre leme; as vezes o
arranca e assim temos a caravela desgovernada seguindo qualquer vento,
qualquer fala tola, mas forte, de um líder religioso, ou uma constante de
autopreservação. Por isso precisamos do pensamento crítico, precisamos
admitir que somos regidos/influenciados por nossas emoções e perceber
quais nos tiram da visão concreta de si e do mundo; e quais os efeitos da
realidade ilusória.
Expondo de outra forma pensemos em uma criança que começa a
sentir aversão à disciplina de matemática. Isso ocorre por algum motivo.
Talvez porque o método do professor não seja interessante, empolgante;
talvez porque seus pais não gostem ou não dominem a disciplina e isso é
percebido; Talvez porque os amigos têm dificuldade e a criança deduziu
que a matemática não é boa, ou mesmo para não aparentar ser diferente
dos seus pares.
Em qualquer uma dessas situações a criança passa a sentir
desconforto com a disciplina, gradativamente se afasta dela e por
consequência deixa de ter este conhecimento e todas as vantagens que ele
proporcionaria na sua vida. Ao contrário, terá cada vez mais dificuldade
com a disciplina e os problemas reais que a envolvam (são muitos, garanto)
e a maior dificuldade irá gerar mais repulsa, maior incômodo, um efeito em
espiral.
De forma análoga ocorre com o indivíduo que desde criança é exposto
a interpretações reducionistas e ilusórias sobre o universo e os humanos.
Gradativamente este indivíduo vai se distanciando da visão critica e esta a
cada momento seguinte lhe causará maior repulsa, incomodo.
Com o tempo ele estará imerso em um mundo ilusório que precisará
se retroalimentar a cada choque de realidade que se apresente. Quanto
mais o conhecimento científico e as situações do cotidiano se mostrarem
contrárias ao seu mundo ilusório, mas precisará afundar no poço da ilusão.
Em certo momento este indivíduo será todo constituído de ilusão: seu
passado, seu presente e se não reagir fortemente também seu futuro. Dos
efeitos falaremos afrente.
INVENÇÃO E HEGEMONIA DO
“DEUS HOMEM”

Freud argumentou que o fato de adorarmos como Deus uma figura


com características de um homem seria porque idealizamos nela o pai: ao
mesmo tempo protetor e punidor. É uma ideia interessante; normalmente
os fieis buscam a proteção de Deus e também temem seus castigos. Mas
essa ideia, apesar de atraente, é equivocada. Ela não explica os diversos
povos que já adoraram ou ainda adoram outros entes não humanos ou
femininos.
Os Incas e os Maias, por exemplo, adoravam o Sol e não um ser com
imagem e características de homem, de um pai se preferir. A verdade é que
cada povo em sua manifestação de fé se volta a maior expressão de
potencia que conhece.
Nietzsche já dizia que o ser humano tem sede de potência/poder, mas
que o cristianismo proporcionava exatamente o contrário disso. Ele achava
que o humano deveria se livrar das amarras da religião para despertar seu
ser natural (de potencia, orgulho, autossuficiência). Mas agora sabemos
que foi o próprio humano que teve necessidade de uma ilusão para
prosseguir a odisseia terrestre.
Assim uma vez percebida sua fragilidade o humano se volta a maior
(ou maiores) expressão de poder e fantasia ter com ela uma relação de
proximidade, de completude, de subserviência.
Mas para o ser humano a grande expressão de potencia não é algo de
mera constatação, isenta de valor ou interesse pessoal, e sim aquilo que o
torna fraco, impotente, que o aflige: o seu maior algoz. Cabe aqui a máxima
popular: Já que não pode vencê-lo, junte-se a ele. Por isso os Maias tinham
o sol como seu grande Deus. Aquele que promovia grandes secas, que
esvaziava os seus reservatórios de água, que matava as plantações, os
animais; o sol era o seu grande algoz.
Na mesma lógica, o Deus de características humanas nasceu da
necessidade dos povos de ter ao seu lado um ser mais poderoso do que o
homem que os subjugava. Com o progressivo conhecimento e domínio
sobre a natureza pelos humanos ela foi perdendo sua força e forma divina,
ao mesmo tempo se consolidavam as relações entre os povos pelo advento
das guerras; pela subjugação do próprio humano. A partir de então o
homem tem se eternizado como o algoz de seus pares, aquele que
escraviza, que tortura, que explora, que negligencia, que extermina seu
semelhante. Como disse Thomas Hobbes[10]: “O homem é lobo do homem”.
Por isso fez-se a imagem de Deus um humano, e não só humano, mas
especificamente homem; mais poderoso do que qualquer outro homem:
onipotente, onipresente, onisciente. Este Deus é mais poderoso do que os
presidentes das grandes nações, do que generais, do que seu chefe, do que
seu inimigo. Ao lado dele o crédulo não teme a nenhum outro homem. Ao
lado dele se torna invencível.
Você já se perguntou por que o símbolo maior do cristianismo é o
instrumento de tortura e humilhação daquele que fundamentou a religião,
que o fez sofrer e clamar por intervenção (“Pai porque me abandonaste”)?
Porque a cruz, o instrumento romano de tortura, se tornou objeto tão
adorado? Porque em minha cidade natal não havia um grande cálice em
frente à igreja, representando a santa ceia, mas sim uma cruz? Imaginem se
o símbolo maior do movimento negro fosse um chicote, do movimento
feminista uma vassoura, do movimento LGBT a Bíblia? Isso pareceria
estranho não?
Aqui também prevalece a lógica do símbolo de potencia. A cruz
representa alto poder e inconscientemente os crédulos cristãos se ligam a
ela, se submetem a ela e por isso levam-na em cordões junto ao pescoço.
Isso nos esclarece outra ordem quanto à dinâmica das religiões:
Aquelas que possuem o super-humano como principal divindade tendem a
se expandir e tragar/afundir as outras.
No meu Estado ocorre uma situação que demonstra esse fenômeno.
Já disse antes, do incômodo e curiosidade sobre a submissão dos povos
indígenas e seus líderes ao cristianismo - antes igreja católica e a gora
protestante. Eu também constatei que a vida desses ativistas e seus povos
não é nada fácil.
Eles lutam constantemente por acesso a uma saúde que só existe no
“papel”, por suas terras em conflito com fazendeiros, por acesso a educação
digna, pelo fim de uma pesada discriminação de seus povos e culturas.
Esta situação extremamente estressante torna esses ativistas, e as
populações indígenas, propensos ao apelo do Deus dos cristãos que é mais
poderoso que seus tiranos.
Isso se efetiva como uma verdadeira armadilha psicológica onde o
defensor de uma cultura genuína se rende há outra invasora não por esta
ser mais autêntica, mas sim porque a invasora é mais potente, mais
enérgica, mais estratégica para uma situação de guerra ou de grandes
perdas.
AS ESTRATÉGIAS DE DIFUSÃO

As religiões e os religiosos não podem sustentar a divindade


(exterioridade) da fé com argumentos inteligíveis (racionais), porque a
racionalidade humana operante na fé é de autopreservação e esta não se
interessa pela verdade, mas pela melhor forma de sobrevivência do
indivíduo humano.
Sendo assim utilizam-se de estórias para endossar o sentido da fé.
Isto, de fato, começou com a própria construção das religiões. Se tomarmos
como exemplo o cristianismo, com breve pesquisa verificamos que muitas
passagens bíblicas foram plagiadas de diversas fontes da antiguidade.
A imagem bestial do Capeta, Satanás, Cão, possui características
(rabo, chifre) de um demônio pagão. Esses atributos foram implantados na
figura do grande demônio do cristianismo como estratégia para seduzir os
humanos incrédulos ou de religião pagã. Outro exemplo clássico é o mito da
gênese extraído, para não dizer novamente plagiado, da mitologia dos
povos da antiguidade. E quanto esta história mitológica tem custado para
os cristãos.
Aqui estamos então com a grande estratégia publicitária das grandes
religiões, notadamente o cristianismo: plagiar e usar a seu favor histórias e
estórias de fontes diversas.
Nos dias atuais para dar dinamismo aos dogmas cristãos,
acompanhando a onda de difusão de informações pelas mídias e redes
sociais, o plágio de histórias e estórias de pessoas e povos pelos religiosos é
frequente. Normalmente contam um caso e ao final, sem nenhum zelo com
a coerência dos acontecimentos, inserem uma razão, fundamento ou
desfecho religioso.
Descaracterizam acontecimentos para encaixa-los em versões
religiosas. Isso demonstra a necessidade de afirmação da fé já que os
triunfos das ciências e o pensamento crítico de grandes pensadores (e
escritores) estão expostos ao alcance de todos, ora mostrando a realidade
concreta, ora desmontando “verdades” sagradas.
Quando uma história não é plagiada ela pode simplesmente
desaparecer das mentes dos religiosos. Uma situação emblemática para
mim de negação da história ocorreu a mais ou menos dois anos atrás (em
2013).
Eu fui levar uma recém-convertida a um retiro religioso onde apenas
mulheres pastoras podiam pregar a palavra, elas estavam no comando.
Muitos homens, inclusive pastores estavam presentes. Fiquei lá por algum
tempo e pude ouvir algumas pregações. Enquanto aquelas mulheres
estavam animando a plateia com falas as vezes criativas, as vezes
simplórias, lembrei-me da luta travada por outras de varias partes do
mundo, de suas adversidades, dos altos preços pagos, as vezes com a
própria vida para a emancipação das mulheres, para o direito ao voto, a
expressão de sua sexualidade, ao poder sobre seu corpo, pelo trabalho fora
do lar, para que pudessem estar ali se expressando em um espaço
tradicionalmente e intrinsicamente machista (as igrejas sempre foram
inimigas da emancipação das mulheres).
Fiquei triste e incomodado por nenhuma daquelas mulheres, munidas
de autoridade, lembrar, mencionar, seus pares que lhes proporcionaram
isso; mais incômoda ainda foi a percepção de que estas mulheres ali na
minha frente estavam, na verdade, reproduzindo a diminuição das
mulheres diante dos homens, com afirmações sobre o papel contido e
auxiliar, secundário, dócil e sacrificável que seu deus esperava delas.
Estavam agindo contra si mesmas e contra todas as mulheres; estavam
desconstruindo serias e caras conquistas históricas.
MANIFESTAÇÕES E EFEITOS

A mente humana é uma engenharia poderosa e complexa, mas não é


perfeita, possui suas falhas. A solução genial pra triunfar no ambiente hostil
da pré-história tornou-se a armadilha da fé: um vício que rouba
racionalidade.
Como já vimos, a orientação para a fé não é algo da razão, do
intelecto, mas sim da emoção. Individualmente os humanos de fé precisam
esforça-se (emotivamente) para acreditar nas ideias de intervenção divina.
Por isso os relatos sinceros das conversas, sonhos, e aparições divinas são
sempre de algo pouco elaborado, de embaçada coerência; uma luz, uma
voz, uma sensação boa, um arrepio.
A fé se manifesta como emoção e a perspectiva do indivíduo sobre o
mundo externo passa a ser fortemente influenciada por esta manifestação;
ele perde gradativamente a capacidade de pensar criticamente, ou, se for
conduzido à religiosidade desde criança, não a adquire.
Reservei esta parte do escrito para expor as manifestações, efeitos
mais notáveis que a fé desencadeia ou está relacionada. Esta exposição está
dividida em tópicos por um caráter didático já que os fenômenos
abordados se combinam criando uma teia que é percebida como harmônica
em si e com o nosso planeta. A ilusão se torna sólida, transfigura-se para o
real. Só com olhar atento é possível perceber o caos criado, o cataclismo
social invisível para muitos.
No Indivíduo

A visão do humano religioso sobre o mundo é reducionista. Assim se


algum problema ocorre o religioso tende a apelar para a intervenção
divina, antes de refletir criticamente sobre a situação.
Só após a fuga do mal estar, a ideia de ter Deus ao seu lado, o conforto
da fé, ele pode tentar entender e solucionar o problema, mas sempre com
uma reserva de ilusão, uma reserva de fuga da dor, do incômodo. Ao longo
do tempo esse reducionismo de visão do mundo e esse vício no bem estar
mental debilita consideravelmente o indivíduo.
Tenho uma amiga que é uma religiosa fervorosa e costumamos ter
conversas agradáveis, mas quando algum assunto sobre fé ou religião é o
objeto do diálogo, ela primeiro tenta convencer-me pela emoção da palavra
bíblica, quando contesto, normalmente mostrando alguma contradição ou
aberração no próprio enunciado, ela se sente mal, lhe doe a cabeça, fica
com mal estar.
Qualquer choque de realidade concreta, de sensatez, lhe causa dor,
desorientação. Ela já está há muito tempo com a perspectiva da ilusão;
perdeu a capacidade de pensar criticamente sobre questões gerais,
coletivas, planetárias; ao mesmo tempo possui um forte apego por suas
ideias mirabolantes e simplistas, afinal a sensação agradável, o apego, é a
própria essência da sua interpretação, da sua fé.
De forma prática um indivíduo orientado pela fé terá maior
dificuldade de se preparar e realizar uma atividade em que é exigida uma
interpretação crítica dos problemas circunstanciados, ou realizar uma
tarefa que exija raciocínio lógico; terá sua criatividade limitada por um
livro e acomodação intelectual.
Sim, muitos religiosos são pessoas inteligentes (considerando sua
amplitude e variedade) e competentes. Eles conseguem esses bons feitos
apesar da fuga da realidade concreta. A minha amiga, a mesma, é um
exemplo de moça competente e astuta para as questões pessoais,
operacionais, que envolvam apenas seu micro mundo.
De modo geral, deixar as preocupações coletivas de lado gera uma
vantagem competitiva que compensa ou supera a limitação
criativa/intelectual em situações de grande estresse, de ameaça eminente
da sobrevivência individual ou de um micro grupo.
Quando uma pessoa enfrenta um problema de saúde na família, uma
perda abrupta, um grave problema financeiro, uma desilusão amorosa, está
em situação de privação de liberdade, é dependente de alguma droga lícita
ou ilícita, ela pode encontrar na fé uma ajuda. Recorrer à fé nesses casos é
uma alternativa, uma estratégia interessante.
Ainda podemos dizer, lembrando dos pensadores e ativistas
humanitários, altruístas, que a satisfação causada por decifrar os
problemas do mundo, ou intervir contra eles dura poucos momentos,
seguidos de preocupação e estresse; o bem estar mental de não saber de
tais problemas dura toda a vida.
Cabe agora lançar uma ideia, brevemente, sobre a diferença entre
saúde e bem estar mental. Este se refere á um estado de alegria,
contentamento, paz; aquela (a saúde mental) se refere há um estado de
lucides, consciência, considera a ética e as questões coletivas; é harmônica
com pensamentos e atos responsáveis, e admite o desconforto mental.
A busca da felicidade, tão universalmente difundida, tão
descuidadamente difundida, aponta para o bem estar mental. Desconsidera
as responsabilidades sociais e anula os desconfortos da realidade humana,
inclusive a sua.
Desta forma, e por extensão, os conceitos que tratam saúde humana
como pleno bem estar em um ou vários aspectos (biológico, social,
profissional, interpessoal) são convenções românticas e acomodadas. Em
nosso mundo, a rigor, saúde e bem estar mental são incompatíveis em
tempo contínuo.
No Coletivo

O problema se destaca quando estendemos uma estratégia pontual


para todos os problemas de nossas vidas e da nossa aldeia global. A
estratégia que nos fez triunfar no ambiente hostil da pré-história se tornou
uma grande ameaça para a perpetuação da raça humana.
A cada novo problema no mundo, violência, escassez de água,
precariedade na saúde, má ou péssima educação, desemprego, catástrofes
ambientais, os religiosos precisam de mais doses de ilusão, mais abdicação
do pensamento crítico, distanciando-se cada vez mais da realidade
concreta, um efeito em cascata.
A nossa existência e das demais vidas desse planeta estão ameaçadas.
Não encarar os problemas da realidade concreta permite que nosso
potencial criativo se incline para a destruição.
Quando o humano abdica de observar e entender o mundo exterior
de forma racional ele se torna potencialmente perigoso. Se isto ocorre em
um meio que as informações são de grande difusão então este humano é
também um medíocre.
Os efeitos dessa conduta de abdicação quando realizada por um
coletivo, uma comunidade, um povo, é catastrófico.
A Antiética

A ética desaparece quando o humano tenta transferir o valor e a


legitimidade de tudo para um “ser além”. As respostas que este humano
passa a ter sobre os acontecimentos consigo e ao seu redor são aquelas
encarnadas em seu psicológico, armazenadas ao longo dos anos. Isso faz
prevalecer ideias recentemente ultrapassadas socialmente como a
discriminação explícita contra negros e índios.
Quando criança era habitual criar e reproduzir apelidos pejorativos
contra colegas negros. Um amigo foi alvo desses apelidos. Se eu fosse
religioso teria uma forte tendência há manter esse pensamento
discriminatório, pois a suposta ética divina que abdica de pensamento
crítico iria, na verdade, buscar seus fundamentos na minha vivência.
Um exemplo esclarecedor é o da população LGBT (lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais). Atualmente existe uma verdadeira
cruzada contra essa população por parte dos líderes religiosos e seus
exércitos de sequelados.
A causa dessa investida, mais do que a fixação aos livros sagrados das
três grandes religiões, refere-se ao curtíssimo tempo de emancipação,
conquistas de direitos, dessa população, que se choca diretamente com os
pensamentos e sentimentos de quem teve uma infância há mais de trinta
anos ou que recebe forte influência de pessoas assim (pai, mãe,
professores, pastores, etc).
A população de mulheres sofreu semelhante discriminação explícita
Décadas atrás quando sua emancipação era recém-nascida e hoje, passado
um bom tempo, a discriminação, que ainda existe, é camuflada e talvez
menor. As novas gerações tiveram uma vivência recente com a população
feminina, já com alguns direitos consolidados, deferentemente da
população LGBT, e construíram sobre ela uma nova visão.
Outro fator sobre essa “ética divina” é que ela responde a necessidade
do indivíduo de bem estar, de fuga da dor, do sofrimento; desta forma o
humano religioso toma suas decisões, tem seus pensamentos, de acordo
com suas necessidades. Normalmente embrulha seus desejos e suas
angústias em um belo papel de presente dogmático, torna-os externos, não
subjetivos. E quais são essas necessidades inerentes ao ser humano? A
autopreservação da melhor forma possível é uma resposta resumida.
Isso significa que tudo que não agrada, que ofende (o religioso), deve
ser deixado de lado e se não for possível, combatido, e tudo que satisfaz,
que faz feliz deve ser protegido, promovido. Os problemas sociais,
ambientais, econômicos, são normalmente negligenciados pelos religiosos
e quando recebem alguma atenção, são entendidos como algo a ser
resolvido pelo seu Deus.
Esta ética, ou antiética, retira do humano a responsabilidade. Por isso
precisamos de mais coletividade e menos autopreservação, mais ética e
menos fé.
A alegação de que pessoas não religiosas são perigosas porque não
temem a punição divina é uma inversão de coerência. Esses humanos têm
sobre si a responsabilidades de seus atos e omissões e isso é fundamental
para a construção de personalidades comprometidas com os demais
humanos e o mundo.
Os Documentos

Os “livros sagrados” dos cristãos, judeus e mulçumanos, por sua vez,


são instrumentos (externo) de fabricação de fanáticos porque forçam os
seus adeptos a defenderem suas ideias, violentas, arcaicas e errôneas sobre
as pessoas e o universo.
Refletem os pensamentos e sentimentos encarnados naqueles que
escreveram, retratando aqui e acolá algumas ideias nobres e coerentes, e
muitas outras equivocadas e violentas. Além disso, por seus caracteres
toscos precisam de "intérpretes" para diversas situações o que coloca
pessoas despreparadas e/ou pilantras na posição de orientador/líder
religioso.
Segundo Nietzsche este líder religioso transmite as suas próprias
convicções o que o torna o verdadeiro Deus de seus seguidores.
O que se apresenta é algo curioso: a interpretação de um humano
(líder religioso) sobre as ideias de outros humanos (escritores dos
documentos) que vão guiar a vida de terceiros humanos. Tudo (muito)
humano e nada imparcial.
A cada nova evolução social e científica um novo embate com os
conhecimentos arcaicos contidos nesses livros força o ser religioso a
abdicar um pouco mais do pensamento crítico, a ir mais fundo em sua
ilusão exigindo mais da sua fé. Ao mesmo tempo, como diversos temas não
são (bem) abordados nesses livros, essas mentes que estão interpretando o
mundo sob a ótica da ilusão, que já abandonaram ou nunca exercitaram o
pensamento crítico, formulam e disseminam ideias equivocadas e egoístas
sobre temas coletivos e globais.
Lembro-me da fala de uma amiga evangélica (essa integrante de ONG
feminista) sobre um pastor que dizia querer que todas as pessoas da cidade
tivessem um carro, que iria orar para isso. Seria muito esperar um zelo
analítico quanto aos efeitos desta hipotética situação. Como disse algumas
vezes essas falas são simplesmente reflexo de ignorância, de mentes de
limitada intelectualidade que na verdade só precisam gerar/alimentar a
emoção, não a razão.
Algumas pessoas tentam transformar estes livros em documentos
inclusivos, mas de fato não são. Outros como já vimos aceitam essa
subjugação. Esses livros são parte fundamental da intolerância religiosa e
estão nas mãos dos grupos extremistas.
O melhor seria, para o cristianismo, aposentar seu livro sagrado e
observar com mais atenção os ensinamentos do atual papa. Um exemplo de
ser fraterno que infelizmente ainda está preso, porem não inerte, na
estrutura inexorável do livro e da doutrina. Mas que bobagem estou
dizendo? Os líderes dos protestantes são outros; aqueles com grande
habilidade de entorpecer os fieis; animadores profissionais, capitalistas
selvagens.
Abestalhação Programática

Está em curso em meu país há alguns anos, mais fortemente, desde


quando comecei a pensar neste opúsculo (2012), uma investida de líderes
religiosos para desqualificar as ciências, o pensamento crítico e as
instituições laicas ou representativas.
O objetivo, até o momento, sabendo que se retroalimenta, é criar um
ambiente de incertezas onde o conhecimento religioso não encontre
objeções e os seus lideres se tornem autoridades equiparadas àquelas que
estudaram e exauriram alguma área do conhecimento humano. Querem o
estatuto de Einstein, Freud, Sartre, ao mesmo tempo. Mas a motivação não
é a curiosidade intelectual, solucionar ou descobrir algo que mude a vida
dos humanos, nem salva-los, é simplesmente poder e capital.
Tal deturpação já era feita há muito tempo em enfrentamento as
ciências que historicamente desfizeram “verdades sagradas”.
Na idade média tivemos a Santa inquisição da Igreja Católica
Apostólica Romana, que torturou e assassinou homens e mulheres que
ousavam avançar em descobertas sobre o universo, a natureza e a
humanidade. Giordano Bruno[11] foi condenado à fogueira por afirmar,
entre outras coisas, que o universo é infinito e que existem outras estrelas e
planetas. Muitos outros tiveram o mesmo fim ou abjuraram, como Galileu
Galilei[12], para salvar a própria vida.
Agora, com o crescente estado de fragilidade coletiva, devido às
mazelas sociais, culturais e ambientais, ocorre maior inserção de pessoas,
inclusive de formação intelectual, que deveria confrontar práticas e ideias
absurdas, ao mundo religioso.
No começo desse livro falei do ataque à laicidade do Estado com a
tomada da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, pela
bancada evangélica. O mesmo grupo aprovou recentemente, em comissão
especial, o parecer favorável a uma PEC (proposta de emenda
constitucional), que autoriza as igrejas a questionarem regras ou leis junto
ao Supremo Tribunal Federal.
Ao mesmo tempo o Eventual Governo interino a ser instalado por
impeachment da presidenta pode ter a frende do Ministério da Ciência e
Tecnologia um bispo (pastor) de uma igreja protestante.
A essa investida, soma-se a proliferação, em espaços acadêmicos, de
conciliações de ideias, teorias e técnicas científicas com pensamentos e
convicções religiosas.
É evidente que quando isso ocorre cria-se algo novo que não é
científico, nem crítico, e não sustenta o que propõe. Quando ocorre em um
curso de psicologia, por exemplo, onde se estuda os processos mentais com
suas representações e disposições; a busca do humano por prazer e fuga da
dor (dito pelo próprio Freud); a criação e os efeitos danosos das ilusões;
fica manifesto o rompimento com a lucidez, com a seriedade de se
aprender e ensinar os conteúdos que dignificaram o humano como ser
pensante, racional. No lugar instala-se a pseudociência, a aberração
intelectual, o saber da ilusão, a oratória vazia e caótica.
Nesse ambiente o ser religioso que recorre ao apelo do ilusório tem
“grande vantagem”, pois recebe o estímulo da ilusão (como ocorre em
outras situações) e suas produções fabulosas são bem aceitas pelo
ambiente deturpado. Produz-se assim um efeito em espiral coletivo; o dano
cultural e científico é desastroso.
Países que hora são extremistas religiosos passaram por essas
fases/momentos que o meu e outros países estão vivendo. Nosso prejuízo
já é enorme, mas pode ficar pior. Somos “o sapo sendo escaldado sem
perceber”.
O Fanatismo

A emoção da fé, em alto grau, é mais potente do que qualquer outra


droga comercial. Exatamente por isso ela substitui outros vícios e mazelas
psicossomáticas.
Muitos usuários de drogas em situação de dependência, ou seus
familiares, após largos prejuízos sociais, psicológicos e materiais procuram
centros de reabilitação que utilizam o advento da fé e do hábito dogmático.
Esses centros são efetivos e conseguem, sem técnicas e procedimentos
sistemáticos, uma solução paliativa que, em contra partida, força o assistido
à adoção intensa da fé e submissão religiosa.
Nesse estado, a fé tem sustentado psicologicamente (ausência de
remorso e culpa), ao longo da historia, matanças inumanas.
Não precisamos recorrer ao passado para trazer à mente
acontecimentos chocantes produzidos pela fé. Ocorrem a todo o momento e
cada vez mais constantes e absurdos. Aos grandes líderes mundiais fica o
papel de prestar condolências aos familiares, de protestar em tom solene,
com o nome de Deus muitas vezes; Apesar da falta de zelo com a coerência,
é uma forma estratégica de acalentar a população.
O próprio instinto de sobrevivência que é a força impulsionadora da
fé e com ela está na sustentação da religiosidade, por vezes, é suplantado.
Os fatos que mostram essa contradição, ou evolução da fé, são os suicídios
coletivos (ocorrem em seitas radicais normalmente em rituais de “ascensão
a plano superior”) ou individuais, realizados pelos terroristas religiosos (os
“homens bombas”).
Nos dois casos apresentam-se os elementos das origens cultural e
intrínseca. A necessidade de aceitação social saciada por acolhimento e
status de singularidade afeta fortemente o psicológico do humano, aquele
tão propenso à ilusão da vida de maravilhas após a morte depois desta tão
particularmente cruel e injusta, em sua perspectiva.
OUTRA PERSPECTIVA

Sabendo que a humanidade está desposada de ética e cheia de seu


individualismo religioso (ilusório) que proporciona imediato bem estar
mental.
Sabendo que este bem estar confundi a mente humana que é
complexa, mas não perfeita e tende fortemente a busca-lo.
Sabendo que os grupos e constructos sociais são reforçadores natos,
poderosos, deste estado de realidade fantasmática.
Sabendo que o mundo informatizado/globalizado pende mais para o
engodo da realidade alterada do que para a produção e disseminação do
conhecimento, do pensamento crítico.
Sabendo que os pilantras religiosos estão de plantão com suas
ganancias imensuráveis, não só financeira, mas também estatutária já que
seriam de pouca ou nenhuma valia em um mundo orientado para a
coletividade e a visão crítica.
Acredito que minhas ultimas palavras, já cumprida minha modesta
tarefa de expressar impressões pessoais sobre a origem da fé, suas
manifestações e efeitos, devam ser diretamente ao indivíduo que lê por si
próprio este livro; que abdica do bem estar mental por uma situação menos
confortável e necessária; que estima mais a verdade concreta que o
conformismo; que renuncia um pouco de seu sentimento de
autopreservação por outro de coletividade, de fraternidade espontânea;
que quer fazer valer esta incrível e singular experiência de perceber a si e
tudo ao seu redor; que quer ultrapassar a fase primitiva de nossa existência
e ser livre, ser consciente com todo seu ônus.
Devemos assumir a liberdade anunciada por Sartre[13] e buscar a
consciência, a liberdade, contra o determinismo pregado sobre nós mesmos
e o mundo a nossa volta. Olhar e refletir sobre nossos problemas e atuar
para elimina-los.
Essa ação não trará bem estar mental e talvez atrapalhe sua busca
pessoal por bens matérias e reconhecimento; talvez te desloque do comum,
da rotina, da “normalidade”, mas o aproximará da plenitude de nossa
espécie, de nossa existência.
Abro espaço ainda, como reflexão, para uma situação intermediária
na qual direcionemos essa necessidade pelo conforto do ilusório, da fé
instalada como propensão em nosso ser, para uma fraternidade, com
diversas possibilidades de arranjos, que olhe para o coletivo, para o
universo ainda incompreendido e obtenha prazer, obtenha satisfação de
uma experiência mais inteligível.
Alguns grupos religiosos estão de certa forma vizinhando isso. No
meu estado há uma doutrina espiritual criada a partir da junção de
elementos do cristianismo, de religiões de matriz africana e de rituais
indígenas amazônicos, que proporcionam uma relação complacente com a
floresta e seus elementos. Já o budismo oferece um autoconhecimento e
desenvolvimento psicológico/mental surpreendente; parece extrair
características violentas do sentido de autopreservação. Mas o niilismo
negativo[14] presente em ambas as doutrinas, assim como de assemelhadas,
é negligente quanto a questões coletivas e globais.
Os ateus, por sua vez, são prova de que é possível viver sem fé
(religiosa), sem o arranjo do ilusório divino, e moldar sua personalidade
pela ética humana (a legítima). No lugar do bem estar mental aconchegam-
se na beleza e mistérios da realidade concreta, das descobertas, das
dúvidas e possibilidades, e mesmo em fantasias conscientes (são
inspiradoras). Encaram perdas, dores e desconfortos como processos
naturais (mas não se esqueçam do que foi disso sobre a propensão à fé). As
estatísticas sobre violência, desenvolvimento, intelectualidade,
compromisso social, estão a seu favor verificadas em pesquisas realizadas
comparando países com diferentes índices de religiosidade ou ateísmo.
Além, os danos provocados por ideias e atitudes lunáticas já são alvos de
seus protestos e resignação mesmo que na maioria das vezes de forma não
organizada;
O ateísmo é uma expressão do ceticismo que flerta com o humanismo.
O pensamento crítico utilizado para escapar da fé/religiosidade possibilita
ideias contundentes sobre nossa situação no tempo e espaço e, quando não
inclusivas, costumam ser neutras sobre direitos humanos, sobre as
diversas relações sociais (com exceção da religiosidade).
A fé e a religiosidade não foram vencidas ou ultrapassadas ou
substituídas pela ciência como disse o filósofo, agora sabemos. Muita coisa
foge do alcance da ciência e outras que ela domina não geram, até o
momento, o convencimento mais adequado para que o humano se
desprenda de uma emoção tão forte, tão constitutiva de si (subjetiva e
cultural). Só o pensamento crítico pode revelar os males que a fé está
promovendo ou escondendo atrás da cortina da ilusão. E dai poderemos
trilhar um caminho mais sustentável para nossa espécie e para o frágil e
belo ponto azul, nosso lar.

[1]
A pajelança é um ritual de cura realizado pelos índios. Quem realiza este ritual é o pajé
(curandeiro e líder espiritual da aldeia)
[2]
Friedrich Nietzsche (1844-1900) foi um filósofo e escritor alemão de grande influência no
Ocidente.
[3]
Platão (427 a.C. - 347 a.C.) foi um filósofo grego considerado um dos principais pensadores da
história da filosofia
[4]
Karl Heinrich Marx (1818–1883) foi um filósofo que exerceu influência em várias áreas do
conhecimento e sistemas políticos.
[5]
Marx Stirner (1806 – 1856) foi um filósofo e escritor alemão que lançou luz sobre o egoísmo
humano.
[6]
Charles Darwin (1809-1882) foi um naturalista inglês, autor do livro “A Origem das Espécies”.
Formulou a teoria da evolução das espécies e revolucionou o conhecimento humano.
[7]
Maohandas Karamchand Gandhi (1869-1948) foi um notável ativista indiano que liderou a
independência de seu país, então colônia da Inglaterra, através de revolução pacífica.
[8]
Albert Einstein (1879 – 1955) foi um físico e matemático alemão e até hoje é conhecido pela sua
genialidade.
[9]
Oliver Wendell Holmes (91809 - 1894) foi um médico e escritor americano considerado dos
melhores de seu tempo.
[10]
Thomas Hobbes (1588-1679) foi teórico político, filósofo e matemático inglês. Sua obra mais
evidente é "Leviatã", no qual desenvolveu a ideia de contrato social.
[11]
Giordano Bruno ( 1548 - 1600) foi um teólogo, filósofo, escritor e frade dominicano italiano
condenado à morte na fogueira pela Inquisição romana.
[12]
Galileu Galilei (1564-1642) foi matemático, físico, astrônomo e filósofo italiano. Estabeleceu
princípios e causou uma renovação na história da Ciência.
[13]
Jean-Paul Sartre (1905-1980) foi filósofo e escritor francês; "O Ser e o Nada" foi o seu principal
trabalho filosófico. Foi um dos maiores representantes do pensamento existencialista.
[14]
Niilismo negativo – negação deste mundo, do devir e da vida terrena por uma ideia sobre outra
imutável, além, um por vir.

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