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A AGRESSIVIDADE COMO ELEMENTO INTRÍSECO DO DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL NA


TEORIA WINNICOTTIANA

Rafaela Reginato Hosokawa; Fabio Camargo Bandeira Villela

Universidade Estadual Paulista – UNESP, Faculdade de Ciências e Tecnologia – FCT, Departamento de Educação,
Presidente Prudente, SP. E-mail: rafaela_reginato@hotmail.com

RESUMO
Este artigo versa sobre a concepção de Winnicott sobre a agressividade infantil, abordando suas raízes e
apontando o caráter das manifestações agressivas à medida em que o indivíduo se desenvolve, bem como
o modo como o fator destrutivo relaciona-se com o processo de amadurecimento. Para atingir os objetivos
propostos, foram realizados, nesta pesquisa de natureza bibliográfica, levantamento e análise de obras de
Winnicott. O estudo mostrou que a agressividade, conforme os pressupostos da teoria winnicottiana, não
se restringe a uma reação à frustração, sendo entendida como elemento necessário para o transcorrer do
processo evolutivo que, quando ocorre de modo saudável, culmina no desenvolvimento de características e
capacidades indispensáveis para o bem-estar psíquico e para os relacionamentos interpessoais.
Palavras-chave: Winnicott; psicanálise; agressividade infantil; desenvolvimento emocional; ambiente
facilitador.

THE AGGRESSION AS INTRINSIC ELEMENT OF EMOTIONAL DEVELOPMENT IN WINNNICOTT’S THEORY

ABSTRACT
This article concerns Winnicott's concept of infantile aggression, addressing root causes. The nature of
aggressive manifestations while the individual is developing, as well as how this destructive influence
relates to the maturing process, is discussed. A bibliographical survey and analysis of Winnicott's work was
carried out to achieve the proposed objectives. Conforming to Winnicott's theoretical assumptions, the
study shows that aggression is not solely a reaction to frustration but should be understood as a necessary
part of the course of the evolutionary process which, when it takes place in a healthy way, results in the
development of characteristics and capabilities vital for psychological well-being and interpersonal
relationships.
Keywords: Winnicott; psychoanalysis; infantile aggression; emotional development; facilitating
environment

INTRODUÇÃO sujeito, quando esse se encontra apoiado por um


A agressividade infantil é algo muito ambiente estável, que favoreça o
comum entre as crianças e traz preocupação para estabelecimento de vínculos afetivos.
a família e para a escola. Esse fenômeno, O presente artigo aborda aspectos da
entretanto, é bastante complexo, bem como é concepção de Winnicott em relação à
controversa a forma de se lidar com ele. O tema agressividade infantil, sobretudo nos estágios
da agressividade infantil ganhou relevância nos iniciais do desenvolvimento da criança,
últimos anos e tem sido objeto de muitas apontando o caráter das manifestações
pesquisas em todo o mundo. agressivas à medida em que ela se desenvolve.
A teoria psicanalítica de Winnicott traz Para tanto, realizou-se um estudo bibliográfico da
diversas contribuições para a elucidação da teoria winnicottiana, no qual se efetuou uma
agressividade, compreendendo-a enquanto investigação acerca das raízes da agressividade e
elemento constitutivo da natureza humana, que o modo como o fator destrutivo relaciona-se com
propicia conquistas no desenvolvimento do o processo de amadurecimento.

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 13, n. 4, p.01-05 out/dez 2016. DOI: 10.5747/ch.2016.v13.n4.h273
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Assim, a pesquisa tem como objetivo consegue reconhecer e é a partir dele que os
geral investigar as raízes da agressividade infantil alicerces para a saúde mental serão firmados. Em
e a sua influência no desenvolvimento emocional, suas obras, Winnicott utiliza o termo mãe
segundo as contribuições de Winnicott - um dos suficientemente boa para se referir à mãe que se
principais autores da psicanálise que adapta quase perfeitamente às necessidades do
investigaram o desenvolvimento infantil. bebê em seu período inicial. Para o autor, é por
meio dessa adaptação da mãe que o bebê tem a
METODOLOGIA ilusão de possuir domínio sobre os objetos
Para atingir os objetivos propostos, foram externos. Dessa forma, os cuidados maternos
realizados, nesta pesquisa de natureza propiciam a constituição de um mundo que
bibliográfica, levantamento das obras de atende aos desejos e às expectativas da criança.
Winnicott que apresentam contribuições Conforme Winnicott (2008), nessa etapa
importantes ao tema, bem como análise dessas do desenvolvimento emocional, a mãe ainda não
contribuições. é vista pela criança como um objeto
independente dela, e sua agressividade está
RESULTADOS fortemente ligada ao próprio ato de
Winnicott (2005b, p. 102) considera a sobrevivência e alimentação, ou seja, aos
agressividade algo inerente à constituição do ser impulsos implacáveis (ruthless), embora não haja
humano, possuindo dois significados: “Por um intenção de destruir.
lado, constitui, direta ou indiretamente, uma Quando a criança está excitada, ela
reação à frustração. Por outro lado, é uma das realiza um ataque imaginário ao corpo da mãe,
muitas fontes de energia de um indivíduo.” A por não perceber que se trata do mesmo corpo
agressividade, nos primórdios da vida, está que valoriza quando está tranquila, “Trata-se da
associada ao movimento corporal que o bebê realização do desenvolvimento emocional em
realiza ainda no ventre da mãe, possuindo a que o bebê experimenta pulsões eróticas e
função de estabelecer o eu (self) e o não-eu. agressivas em relação ao mesmo objeto, ao
Assim, mesmo tempo.” (WINNICOTT, 2000, p. 113)
Podemos compreender que Para o bebê, existiriam duas mães
essas primeiras pancadas distintas, denominadas por Winnicott (2000) de
infantis levam a uma mãe-objeto e mãe ambiente. A mãe-objeto seria
descoberta do mundo que aquela que satisfaz as necessidades urgentes do
não é o eu da criança e ao bebê e é alvo da destruição nos momentos de
começo de uma relação com excitação. Em contrapartida, a mãe-ambiente
objetos externos. O que refere-se àquela que recebe sua afeição e cuida
muito em breve será um ativamente do bebê, auxiliando no
comportamento agressivo desenvolvimento do sentimento de segurança.
não passa, portanto, no O bebê divide a mãe em duas entidades
início, de um simples distintas, que possuem funções também
impulso que desencadeia um diferentes. Enquanto a mãe-objeto tem a função
movimento e aos primeiros de sobreviver aos impulsos implacáveis, a mãe
passos de uma exploração. A ambiente deverá permanecer sensível às
agressão está ligada, desta necessidades da criança e criar um ambiente
maneira, ao estabelecimento acolhedor que receba os atos reparadores e se
de uma distinção clara entre mostre gratificado.
o que é e o que não é o eu. O autor acredita que esse tipo de
(WINNICOTT, 2008, p. 264) agressividade está associado ao amor, sendo
assim, a perda da mãe pela criança, nesse
Se analisarmos os primórdios do estágio, significaria, também, a perda da
desenvolvimento infantil, encontraremos uma capacidade de amar e, consequentemente, de se
estreita relação entre o amor primitivo e os relacionar com os objetos externos.
impulsos destrutivos, pelo fato de os desejos do Winnicott (1975) nos traz uma
ID nunca serem satisfeitos plenamente. importante contribuição acerca do valor positivo
Segundo Winnicott (2008), o cuidado da destrutividade que ocorre neste ponto do
físico é a primeira forma de amor que o bebê desenvolvimento humano. Para o autor, o

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desenvolvimento envolve, primeiramente, a intolerável e a integração garante à criança o


relação de objeto, e, posteriormente, o uso do controle dos seus impulsos instintivos.
objeto. Entre esses dois momentos, existe uma Nessa etapa do desenvolvimento, a
das mais difíceis tarefas a serem realizadas pelo criança tende a reparar o mal que imagina ter
sujeito, que é entender o objeto como algo causado ao seu objeto de amor. Winnicott
externo e autônomo, não mais como algo denomina essa fase de Concern, termo que está
submetido ao seu controle onipotente. ligado ao sentimento de preocupação. Assim, “A
A percepção objetiva do objeto só é preocupação com o objeto amado surge a partir
alcançada pelo sujeito devido à sobrevivência: o dos elementos agressivos, destrutivos e vorazes
sujeito destrói o objeto em sua fantasia e a no impulso primitivo de amor, que é
sobrevivência deste é que lhe confere seu caráter gradualmente assimilado ao self como um todo
externo. Após este processo, o sujeito se insere [...]” (WINNICOTT, 1990, p. 99). Surge a
no mundo dos relacionamentos interpessoais, capacidade de sentir culpa e responsabilizar-se
podendo agora usar o objeto, já que o uso requer pelo outro, que constituem uma importante
que o objeto seja compreendido como externo e conquista no desenvolvimento emocional.
não como resultado da projeção. A oportunidade de reparação faz com
Segundo a tese do autor, a mãe tem a que a culpa deixe de ser sentida e permaneça
função de sobreviver frente aos impulsos latente, reaparecendo apenas quando não há
destrutivos do bebê, pois a sobrevivência do possibilidade de reparação. Os atos reparadores
objeto de amor o capacitará a diferenciar o que é permitem que o bebê liberte sua vida instintual,
eu do que é não-eu, objetificando a mãe, através da realização de ricas experiências
resignificando o amor e propiciando o surgimento instintivas, amparadas pelo cuidado materno.
da fantasia. Dessa maneira, Tais conquistas só se tornam possíveis
O estudo desse problema devido ao processo descrito, que ocorre
envolve um enunciado do gradualmente, denominado por Winnicott (1990)
valor positivo da de Círculo Benigno, cujo estabelecimento está
destrutividade. Esta, mais a ligado diretamente à continuidade do
sobrevivência do objeto à relacionamento entre o bebê e a mãe.
destruição, coloca este Dessa forma, o sentimento de confiança
último fora da área de na figura materna e a oportunidade de
objetos criados pelos reparação, possibilita que a culpa transforme-se
mecanismos psíquicos no que Winnicott (2005b) denomina de
projetivos do sujeito. Dessa envolvimento. Tal sentimento é considerado pelo
maneira, cria-se um mundo autor como uma reação positiva que permite o
de realidade compartilhada reconhecimento e a aceitação da
que o sujeito pode usar e responsabilidade sobre a agressividade,
que pode retroalimentar a denotando o alcance de um estágio complexo e
substância diferente-de-mim sofisticado do desenvolvimento emocional.
dentro do sujeito. Portanto, a capacidade de envolver-se está
(WINNICOTT, 1975, p. 131) atrelada ao desenvolvimento saudável e constitui
a base do brincar construtivo e do trabalho.
Portanto, para Winnicott (1975), a De acordo com Winnicott (2008), são as
realidade é decorrente do impulso destrutivo, o experiências satisfatórias de amamentação e as
que traz implicações na teoria das raízes da gratificações decorrentes dos bons cuidados
agressividade. maternos que contribuem para que a criança
A partir do momento em que a criança se integre a imagem da mãe e, consequentemente,
integra, ela começará a se preocupar com a mãe, adquira a capacidade de envolvimento e passe a
pois perceberá que esta é um ser humano total, se responsabilizar pelo aspecto agressivo de sua
que existe independentemente de sua vontade e natureza.
entenderá o caráter implacável dos impulsos Conforme Winnicott (2005b), o
primitivos. Ao reconhecer os elementos desenvolvimento emocional saudável torna o
destrutivos que acompanham as ideias excitadas sujeito apto a utilizar seus impulsos instintivos,
primitivas, surge um sentimento de culpa dentre os quais estão os impulsos agressivos, e
convertê-los em uma fonte de energia, que seria

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a base para atividades como o brincar e o DISCUSSÃO


trabalho. O estudo mostrou que a agressividade,
A aceitação dos símbolos pela criança, de conforme Winnicott, não se restringe apenas
acordo com o autor, é uma marca do como reação à frustração. Para o autor, a
desenvolvimento sadio, pois esses possibilitam agressividade é inata, sendo, portanto, inerente à
que ela encontre uma excelente ferramenta que natureza humana, estando relacionada, no
lhe permite a elaboração de conflitos internos. princípio, ao amor primitivo e à motilidade.
O brincar constitui uma das alternativas Winnicott nos mostra o valor positivo do
baseadas na aceitação de símbolos, representa aspecto agressivo, que proporciona a
uma prática saudável e essencial para o constituição da realidade externa, assim como a
desenvolvimento emocional da criança, pelo fato capacidade de preocupar-se com o outro e
de permitir que ela entre em contato com seu buscar a reparação.
mundo interno, de forma a melhor compreendê- Conforme o autor, seriam os fatores
lo e elaborá-lo, bem como de ampliar sua ambientais que influenciariam na maneira pela
criatividade e seu self. qual o sujeito irá lidar com suas tendências
Winnicott (2005b) considera que a destrutivas. Quando o desenvolvimento
capacidade de construir apresenta-se para a emocional progride de forma saudável, apoiado
criança como uma forma importante para lidar por um ambiente que proporcione cuidados
com sua agressividade. O brincar construtivo satisfatórios e forneça a possibilidade de
significa um sinal de saúde, pois “[...] em reconhecer e manifestar o aspecto destrutivo, a
condições ambientais favoráveis, um impulso agressividade torna-se madura e converte-se em
construtivo está relacionado com a aceitação uma fonte de energia, que será canalizada para
pessoal, por parte da criança, da atividades como o brincar e o trabalho.
responsabilidade pelo aspecto destrutivo da sua Ao tratarmos de crianças, devemos
natureza.” (WINNICOTT, 2005b, p. 107). Esse considerar a complexidade que a vida representa
brincar construtivo surge gradualmente no para elas, que precisam desde o princípio lidar
decorrer do desenvolvimento da criança, já que com necessidades, sentimentos e impulsos
depende das experiências de vida no ambiente. extremamente fortes para seu ego ainda fraco.
O autor considera que o sonhar constitui Assim, é importante encará-las como
outra alternativa madura para o comportamento seres humanos totais, que, como qualquer outro,
agressivo, pelo fato de permitir que a criança precisa elaborar técnicas para lidar e canalizar
experimente a destruição na fantasia, seus potenciais agressivos.
acompanhada de um grau de excitação no corpo, É fundamental que os cuidadores da
o que confere à atividade onírica a característica criança tenham consciência de que “É tudo muito
de uma experiência concreta, não apenas complicado e é necessário muito tempo para que
intelectual. Os jogos de competição realizados a criança domine idéias e excitações agressivas e
por crianças e adolescentes também constituem seja capaz de controlá-las sem perder a
uma opção para o controle da agressividade capacidade para ser agressivo em momentos
madura. apropriados, seja ao odiar ou ao amar.”
A questão da administração do potencial (WINNICOTT, 2005b, p. 108)
agressivo envolve inúmeros fatores e nem
sempre haverá recursos proporcionados pela CONCLUSÃO
agressividade madura, aqui encontram-se os Discutiu-se, por meio deste trabalho, os
casos de crianças que, por motivos diversos, não aspectos destrutivos presentes na natureza
estão conseguindo gerenciar a contento seus humana e a forma como estes podem promover
aspectos destrutivos. O presente artigo não um desenvolvimento emocional saudável, aliados
versará sobre tais casos por não se tratar do foco à fatores ambientais favoráveis.
de estudo. A teoria winnicottiana considera a
Como se pode perceber, o agressividade parte constitutiva do ser humano e
desenvolvimento emocional é algo complexo e a elemento necessário para o transcorrer do
maioria das dificuldades na infância pode não ser processo evolutivo que, quando ocorre de modo
detectada por um observador desavisado, já que saudável, culmina no desenvolvimento de
estas concentram-se, em grande parte, no características e capacidades indispensáveis para
mundo interno da criança.

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o bem-estar psíquico e para os relacionamentos


interpessoais.
Quando o desenvolvimento emocional é
apoiado por um ambiente suficientemente bom,
os impulsos destrutivos convertem-se em uma
força valiosa, que constitui a base de atividades
como o trabalho e o brincar, a partir da qual o
desenvolvimento pessoal pode se enriquecer,
sem que se perca a capacidade para se tornar
agressivo nos momentos adequados.

REFERÊNCIAS
WINNICOTT, D. W. A criança e o seu mundo.
6.ed. Rio de Janeiro: LTC., 2008.
______. A família e o desenvolvimento
individual. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2005a.
______. Conversando com os pais. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. Da pediatria à psicanálise: obras
escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
______. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro:
Imago, 1975.
______. Os bebês e suas mães. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
______. Natureza Humana. Rio de Janeiro:
Imago, 1990.
______. Privação e delinqüência. 4. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2005b.

Recebido para publicação em 17/08/2016


Revisado em 19/08/2016
Aceito em 17/09/2016

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