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CAPÍTULO 3
3.1 Introdução
convencional já havia posto à disposição das sociedades, nos mais variados âmbitos
do conhecimento humano?
indagações, muitas das quais nem sequer foram consideradas pela ciência.
relevo desde o seu surgimento, não puderam dar conta daquilo que o qualifica como
mais variados domínios de significados que puderam então ser semiotizados para e
matriz dos seis pontos justapostos na sua qualidade de um tipo especial de signo,
em cujo centro aparece pontografada a matriz dos seis pontos de Braille. O que nos
relevo? Se formos semioticistas, será lícito pensar que estamos diante de um tipo
especial de signo? Será pertinente supor que temos diante de nós, um símbolo de
Um percepto que se força aos nossos olhos, mas se presta a uma interpretação
competente pela via da percepção tátil. Um percepto, pois, que se força aos nossos
Humphrey (1994): “O que está acontecendo comigo, com o que está acontecendo lá
fora.” Ou, por assim dizer, o diálogo entre percepção, sensação e cognição no
sociocultural da percepção tátil e tocar nesse milenar intervalo de toda uma tradição
pontos Braille como a novidade que veio qualificar e refinar essa percepção,
matriz de seis pontos justapostos configurou-se como o novo percepto, palavra nova
tátil de percepção.
sua invenção, nos permite reencontrar uma pequena formação onde se entretecem
passado, presente e futuro. Associar e combinar pontos traduz o antigo texto da mão
e do cérebro do homem e uma fala tátil auto-referente, que transborda para o antes
retângulo de sulcos. A nova escrita por sulcos imprime na cultura humana as marcas
de sua especificidade, as marcas táteis de uma espécie que, no grupo particular das
ímpar de simbolização: “[...] O homem não vive num universo puramente físico, mas
sim num universo simbólico. Língua, mito, arte e religião [...] são os vários fios que
para o conceito, a partir dos estudos de Santaella: “[...] Peirce afirmava que o
percepto é aquilo que tem realidade própria no mundo que está fora de nossa
1998, p. 54). De fato, quando uma criança nasce cega, já encontra um mundo dado,
escrita é o Braille. Assim, além de ser um percepto concreto, físico, a matriz dos seis
domínios da cultura.
suas leis e regularidades, uma concepção de leitura e escrita capaz de falar a uma
mente particular, a uma mente tátil. E é o próprio Peirce que ilustra nossa afirmação:
realidade.
relações semânticas que o signo cria com seu objeto, Peirce propôs a sua segunda
aquele signo que guarda alguma semelhança com o objeto que intenta representar.
signo que se refere ao objeto denotado, visto ser diretamente afetado por este. Terra
cor verde indicando esperança ou a cor branca simbolizando a paz são outros
1
Para uma primeira aproximação às dez tricotomias perceanas, ver as obras de Lúcia Santaella,
indicadas na bibliografia, assim como o livro de J. Texeira Coelho Neto, Semiótica,informação e
comunicação: diagrama da teoria do signo.
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está convertida em leitura e escrita, quando ainda é um percepto, uma marca apta a
cabe perfeitamente dentro da moldura triádica concebida por Peirce na sua definição
forjadas por Peirce e conhecemos os alertas dos seus estudiosos sobre aplicações
mal sucedidas das suas teorias a objetos do cotidiano. No entanto, seja por
processo abdutivo, seja por processo analítico, tocar a célula Braille, avaliar o seu
intimamente dependente deste, ou seja, o seu objeto imediato, aqui tido como as
modo de escrita pertencente a uma matriz tátil que, por sua vez, atualiza a própria
ainda mais esse signo em relevo na evidência do seu objeto dinâmico ou seus
objetos dinâmicos.
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deste signo numa determinada mente, envolve o que, por falta de termo mais
apropriado. 2
uso no seio da cultura, eles podem passar por misturas sígnicas, onde se permite,
2
Aqui não tocamos sequer no problema do objeto dinâmico, assim como ficou intocada a discussão
sobre interpretante imediato, interpretante dinâmico e interpretante final, conforme propôs Peirce, na
sua concepção de signo. Para um aprofundamento da questão, podem ser vistas as obras de Lúcia
Santaella indicadas na bibliografia.
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de signos, que Peirce nos leva a pensar no alfabeto Braille na sua qualidade de
são permitidas e outras não; quando analisamos as formas que surgem de tais
cuja sutileza é de difícil percepção, pois não se trata aqui de um diagrama forjado
para a decodificação pelo olhar, mas antes, o seu escrutínio exige a ação do
complexo tátil.
Semiótica de Sander Charles Peirce e exibem somente dois dos aspectos das
assim como toda a Semiótica peirceana, estão fundamentadas por uma matriz
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pensamento e verdade.3
aqui da excelente síntese realizada sobre o tema por Winfried Nöth, para situarmos
Peirce acrescenta:
Nöth prossegue:
3
Ver a esse respeito a obra de J. Teixeira Coelho Neto, assim como as obras de Lúcia Santaella
indicadas na bibliografia.
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célula Braille, com suas duas linhas de pontos justapostos, já é em si mesma uma
combinação de pontos. Tal fato nos faz pensar na matriz Braille como uma função
linguagem matemática, como tem ocorrido com estudos que relacionam a Música e
gênese da sua constituição, muito mais do que relações entre linguagem verbal e
escrita gráfica, o alfabeto em relevo também conteria o germe desse princípio lógico-
matemático que presidiu as linguagens binárias que passaram a ser estudadas pela
contemporâneos.
pontos Braille, observados no seu uso por sujeitos reais, cingidos pela condição da
cegueira, não estariam a exibir um diálogo singular entre mão e cérebro, onde se
Leitura e escrita são irrelevantes do ponto de vista da estrutura interna dos pontos
combinação entre essa trama de pontos, que se pode falar de leitura e escrita. Ou
seja, só se fala de leitura e escrita Braille pelo fato de que a estrutura do relevo
da percepção tátil.
desempenho nos trajetos que vão percorrer, quando antes lhes é apresentado um
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mapa em relevo, com informações das vias por onde trafegarão, obstáculos e outras
ilustrar tal realidade. Pessoas com visão normal usualmente espantam-se ao assistir
engano com a disposição dos dígitos. Em tais experiências cotidianas, o que está
em jogo é esse diálogo entre mão e cérebro, em que arranjos mentais exibem
especial de pensar que, por falta de conceito mais adequado, poderíamos chamar
de modo tátil de pensar ou munditactência (ver capítulo 4), tal como ilustra a
afirmação seguinte:
[...] Mas [...] se já não escrevo; se já mal leio, é no entanto ainda em Braille
que penso [...] e será sempre! As minhas idéias serão sempre registradas,
na minha cabeça, em pontinhos. Os pensamentos dos outros, podem,
eventualmente ser chatos; os meus, serão sempre em relevo! (BARATA,
2003, p. 23).
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Em projetos de habilitação e reabilitação, pessoas cegas são treinadas em cursos de orientação e
mobilidade, com técnicas para um melhor desempenho na locomoção, tais como o uso de bengala,
orientação espacial, cão guia etc.
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signo original em signos outros, forjando um diálogo maior entre os outros códigos
da cultura.
se combina para formar letras. E aqui somos tentados a pensar essa unidade
das letras leva-nos a pensar em formas de semiose mais ou menos limitadas por
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Do ponto de vista da análise lingüístico-semiótica, as menores unidades de informação susceptíveis
de apreciação são, na linguagem verbal, o fonema, e, na escrita, o grafema. O primeiro, representa o
som; o segundo, a letra, substituto lingüístico do fonema.
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limitações e condicionalismos.
para o código Braille, que por sua vez, não permite a introdução de toda uma
Precisamos sair do terreno circunscrito à formação das letras, para avaliar a ação do
signo em relevo, que já é palavra e por assim dizer, texto, mediação da realidade em
realidade:
[...] Reificar, ou seja, corporificar, coisificar, encarar algo abstrato como uma
coisa material ou concreta, é uma das funções heterônomas mais
relevantes da escrita. ‘A língua escrita e lida torna-se um objeto, uma coisa,
separada da consciência que a cria, e imobilizada numa condição de
relíquia física’. (HAVELOCK, 1982, p. 296 apud PAULUK, 2003).
importância desse processo, diremos que o Braille permitiu que os indivíduos cegos
lhes permitiu constituir uma nova individualidade histórica, todo um mundo amplo a
se descortinar na ponta dos seus dedos, numa revolução semiósica levada a cabo
por apenas seis pontos em relevo. Uma revolução que os parece ter conduzido
[...] Exilado, Manuel Alegre escreveu, a propósito das mãos, que nelas
começa a liberdade. 150 anos depois da morte do inventor do Sistema
Braille, estas palavras possuem para mim um significado próprio, preciso:
através dos pequenos cumes desses pontos concebidos por Louis Braille,
a quem Enrique Elissalde gostava de exaltar mais como Libertador do que
como simples benfeitor dos cegos, elas me conduziram à Cidadania, a ser
Pessoa, a ser Eu. E por esse caminho descobri ainda, que ‘ver é
importante, mas nem sempre se pode dizer fundamental’. 6
6
Na citação se faz alusão a Enrique Elissalde, uruguaio cego que dedicou toda sua vida à luta pela
melhoria das condições de vida das pessoas cegas, tendo falecido a 5 de janeiro de 1999.
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pois, a estratégia por excelência que possibilitará ao nosso sujeito particular ter
alguma apreensão tanto das coisas com existência material real (objetos físicos)
quanto dos objetos sem existência tangível, como, por exemplo, os símbolos do
significativamente a gama dos fenômenos, corpos e objetos que puderam então ser
nosso sujeito cingido pela condição da cegueira, ao tornar-se usuário desse novo
invento, deixou de ser apenas ser lingüístico, para converter-se com maior
competência em homo-táctilis-literário.
linguagem que o homem se constitui como sujeito”, podemos agora afirmar, acerca
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do indivíduo cego, que é na e pela escrita em relevo que ele se constitui como
percepção e sensação e, por assim dizer, cria novas bases para a análise do que
permite falar ou propor pelo menos dois importantes níveis sutis de semiose: um
primeiros em signos outros (os diversos subsistemas que a escrita em relevo intenta
cultural e os outros sistemas com os quais agora o sujeito cego entra em contato, a
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semiotiza.
anteriores podia apontar o número daqueles indivíduos cegos que podiam penetrar o
pela experiência cotidiana. Esta, com a conquista da escrita alargou-se para além de
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A concepção de modelização, adotada pelos semioticistas russos da Escola de Tártu, estabelece
que os sistemas míticos, os sistemas religiosos e as artes são exemplos de sistemas modelizantes
secundários, processos de passagem da codificação da linguagem natural para codificações de
novas linguagens, codificações outras que estabelecem uma língua própria a cada um desses
sistemas, assim como reforçam o diálogo entre as múltiplas codificações presentes nesses
processos.
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suas fronteiras, permitindo-se pensar na cegueira não mais como uma realidade