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CAPÍTULO 3

A SIGNICIDADE DA CÉLULA BRAILLE


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3.1 Introdução

Quando o código Braille surgiu, na segunda década do século XIX,

assinalou no mundo da cultura, uma resposta para um dilema fundamental de

comunicação: Que linguagem seria capaz de traduzir para o tato, de forma

competente e abrangente, os vários domínios de significados que a escrita

convencional já havia posto à disposição das sociedades, nos mais variados âmbitos

do conhecimento humano?

A pequena matriz dos seis pontos justapostos, ao mesmo tempo que

instituía a pontografia como tradução para a escrita gráfica, firmava-se no cenário

lingüístico-semiótico-cultural como uma codificação autônoma, criando a partir da

sua utilização por uma comunidade de pertença, um conjunto genuíno de

indagações, muitas das quais nem sequer foram consideradas pela ciência.

As análises histórico-descritivas que se têm dedicado ao alfabeto em

relevo desde o seu surgimento, não puderam dar conta daquilo que o qualifica como

a ferramenta fundamental que propiciou às coletividades cegas a ampliação dos

mais variados domínios de significados que puderam então ser semiotizados para e

por esses indivíduos. Os estudos diacrônicos não puderam, pois, caracterizar a


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matriz dos seis pontos justapostos na sua qualidade de um tipo especial de signo,

um símbolo convencional que qualificou e refinou a percepção tátil, crescendo e

expandindo-se em uma semiose rica e complexa que merece ser desvendada.

É a abordagem semiótica que nos permitirá pôr em relevo esses

aspectos da escrita Braille, os quais dizem respeito à própria cultura humana,

exercitando seus processos de desenvolvimento de estratégias que possam

organizar em informação decodificável em signos, a vaga imparável dos sinais

criados por essa mesma cultura.

3.2 A célula Braille como percepto tátil

Imaginemos que temos à nossa frente uma folha de papel em branco,

em cujo centro aparece pontografada a matriz dos seis pontos de Braille. O que nos

dizem essas duas fileiras de seis pontos, compondo um pequeno retângulo em

relevo? Se formos semioticistas, será lícito pensar que estamos diante de um tipo

especial de signo? Será pertinente supor que temos diante de nós, um símbolo de

tipo especial, cujas leis precisamos desvendar?

Semioticamente, poderemos afirmar, como numa primeira linha de

raciocínio, que aquele ajuntamento de pontos minúsculos não é senão um percepto.

Um percepto que se força aos nossos olhos, mas se presta a uma interpretação

competente pela via da percepção tátil. Um percepto, pois, que se força aos nossos

dedos, com toda uma configuração singular que recupera, na escrita-leitura de

pontos, o antigo diálogo entre mão e cérebro, tão abundantemente praticado no


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âmbito da escrita gráfica em sua versão manuscrita. Diálogo de duas ordens de

fenômenos, conjugando duas perguntas básicas, conforme sugere Nicholas

Humphrey (1994): “O que está acontecendo comigo, com o que está acontecendo lá

fora.” Ou, por assim dizer, o diálogo entre percepção, sensação e cognição no

processo de decodificação da realidade.

Se pudéssemos acompanhar o desenvolvimento biológico e

sociocultural da percepção tátil e tocar nesse milenar intervalo de toda uma tradição

em que as coletividades cegas realizavam o exercício tátil de estar e perceber o

mundo de forma difusa, tendo, fundamentalmente na linguagem verbal, o código de

reconhecimento por parte da cultura, decerto poderíamos saudar o advento dos

pontos Braille como a novidade que veio qualificar e refinar essa percepção,

constituindo-se a chave genuína por excelência que os possibilitou habitar o

universo da cultura intelectual. Reforçando nosso raciocínio diríamos que a pequena

matriz de seis pontos justapostos configurou-se como o novo percepto, palavra nova

e singular que veio habitar e amplificar sobremaneira as potencialidades do código

tátil de percepção.

Observar essa pequena matriz de pontos, para além do momento da

sua invenção, nos permite reencontrar uma pequena formação onde se entretecem

passado, presente e futuro. Associar e combinar pontos traduz o antigo texto da mão

e do cérebro do homem e uma fala tátil auto-referente, que transborda para o antes

e o depois da invenção da célula Braille e revolve-se dentro desse minúsculo

retângulo de sulcos. A nova escrita por sulcos imprime na cultura humana as marcas

de sua especificidade, as marcas táteis de uma espécie que, no grupo particular das

coletividades cegas, são fundamentais na construção da sua visão de mundo.

Imprime, pois, na cultura, os rastros particulares da espécie Sapiens, que, para


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Cassirer, diferencia-se fundamentalmente dos outros animais pela sua capacidade

ímpar de simbolização: “[...] O homem não vive num universo puramente físico, mas

sim num universo simbólico. Língua, mito, arte e religião [...] são os vários fios que

compõem a teia simbólica [...]. Cada progresso humano no pensamento e na

experiência reforça esta teia [...]” (apud SARTORI, 2000).

Para consubstanciar nossa compreensão primeira da célula Braille

como um percepto, apropriamo-nos de uma das formulações mais usuais de Peirce

para o conceito, a partir dos estudos de Santaella: “[...] Peirce afirmava que o

percepto é aquilo que tem realidade própria no mundo que está fora de nossa

consciência e que é apreendido pela consciência no ato perceptivo.” (SANTAELLA,

1998, p. 54). De fato, quando uma criança nasce cega, já encontra um mundo dado,

em que a forma privilegiada para os processos de percepção-apreensão é o código

tátil; um mundo dado, em que a ferramenta privilegiada para a leitura e a para a

escrita é o Braille. Assim, além de ser um percepto concreto, físico, a matriz dos seis

pontos envolve um conceito lógico, um conjunto de relações e inter-relações de

associação e combinação, que lhe confere o estatuto de signo de um tipo especial,

um símbolo que serve de mediação entre esses indivíduos e os mais variados

domínios da cultura.

A célula Braille, percepto concreto, exibe em seu arranjo singular, em

suas leis e regularidades, uma concepção de leitura e escrita capaz de falar a uma

mente particular, a uma mente tátil. E é o próprio Peirce que ilustra nossa afirmação:

[...] Os elementos de todo conceito entram no pensamento lógico através


dos portões da percepção e dele saem pêlos portões da ação propositada;
e tudo aquilo que não puder exibir seu passaporte em ambos esses
portões deve ser apreendido pela razão como elemento não autorizado [...]
(apud SANTAELLA, 1996, p. 63).
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Esse novo percepto propiciou aos indivíduos cegos, uma longa

abertura dos portões da percepção, oferecendo-lhes a saída lógico-racional por

excelência para a ampliação e qualificação do processo de uma semiotização tátil da

realidade.

3.3 A célula Braille e a segunda tricotomia peirceana

Eis que o nosso alfabeto já se encontra imerso na própria teoria

peirceana, participando de uma de suas tricotomias mais usuais. Avaliando as

relações semânticas que o signo cria com seu objeto, Peirce propôs a sua segunda

tricotomia. Trata-se da divisão dos signos em ícone, índice e símbolo. O ícone é

aquele signo que guarda alguma semelhança com o objeto que intenta representar.

Pinturas, esculturas e fotografias são exemplos de signos icônicos. O índice é um

signo que se refere ao objeto denotado, visto ser diretamente afetado por este. Terra

molhada, indício de chuva; fumaça indício de fogo.

É para o símbolo que voltamos nossa atenção. De acordo com a

definição peirceana, o símbolo é em geral um signo arbitrário, convencional,

representando um dado objeto pela associação de idéias. Todas as palavras de uma

língua, suas formas de representação em escrita são exemplos de signo simbólico. A

cor verde indicando esperança ou a cor branca simbolizando a paz são outros

exemplos de signos simbólicos. 1 De fato, um conjunto de signos arbitrários, aptos a

se estabelecerem como forma de escrita mediante uma convenção, criada a partir

1
Para uma primeira aproximação às dez tricotomias perceanas, ver as obras de Lúcia Santaella,
indicadas na bibliografia, assim como o livro de J. Texeira Coelho Neto, Semiótica,informação e
comunicação: diagrama da teoria do signo.
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de regras de associação e combinação de pontos, o alfabeto Braille pode ser

caracterizado como um sistema de signos simbólicos.

Retomemos, no entanto, a matriz dos seis pontos, quando ainda não

está convertida em leitura e escrita, quando ainda é um percepto, uma marca apta a

ser decodificada pelo complexo tátil. Realmente, a pequena formação em si mesma

cabe perfeitamente dentro da moldura triádica concebida por Peirce na sua definição

mais usual de signo:

[...] Um signo intenta representar, em parte, pelo menos, um objeto que é,


portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo que
o signo represente o objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu
objeto implica que ele afete uma mente de tal modo que, de certa maneira,
determina, naquela mente, algo que é mediatamente devido ao objeto.
Essa determinação da qual a causa imediata ou determinante é o signo e
da qual a causa mediada é o objeto pode ser chamada de interpretante.
(apud SANTAELLA, 2001, p. 42).

Sabemos do caráter extremamente abstrato e geral das concepções

forjadas por Peirce e conhecemos os alertas dos seus estudiosos sobre aplicações

mal sucedidas das suas teorias a objetos do cotidiano. No entanto, seja por

processo abdutivo, seja por processo analítico, tocar a célula Braille, avaliar o seu

desdobramento em signos e signos, nos impele a pensar nessa malha triádica em

que esse percepto, como o primeiro, é o fundamento que, em seu arranjo de

associação e combinação, faz surgir um dado objeto ausente do signo, mas

intimamente dependente deste, ou seja, o seu objeto imediato, aqui tido como as

letras, tornadas em traduções das outras linguagens que o Braille intenta

representar, deflagrando o processo de outras traduções, desvendando assim um

modo de escrita pertencente a uma matriz tátil que, por sua vez, atualiza a própria

história da escritura e, por assim dizer, semiotiza a própria cultura, complexificando

ainda mais esse signo em relevo na evidência do seu objeto dinâmico  ou seus

objetos dinâmicos.
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Seguindo a análise peirceana, diríamos que no seu uso cotidiano,

multiplicando-se em traduções e traduções, a letra Braille suscita inúmeros objetos

dinâmicos, como a simbologia matemática, a musicográfica e outras.

Finalmente, o terceiro desta relação, o interpretante, ou seja, o efeito

deste signo numa determinada mente, envolve o que, por falta de termo mais

apropriado, temos caracterizado como um modo de pensar em Braille, conforme

será analisado mais adiante. É, pois, na esteira do interpretante, no processo de

expansão da matriz de pontos em signos de signos de signos, que podemos

perceber uma semiose rica e complexa, da qual trataremos em item apropriado.

Dado o caráter geral e exploratório do nosso trabalho, não podemos ir

mais longe na aplicação dessas concepções ao nosso objeto de estudo, embora

tenhamos consciência de que este caminho poderia suscitar resultados ao mesmo

tempo singulares e complexos, merecendo mesmo uma análise futura em fórum

apropriado. 2

Fiquemos por enquanto, nas fronteiras da abordagem, pois é certo que,

conforme Santaella (2001, p. 43):

[...] Falar em signo já inclui o objeto e interpretante, pois aquilo que


constitui o signo é a relação triádica entre três termos: o fundamento do
signo, seu objeto e seu interpretante.
Nenhum signo pode funcionar como tal sem o objeto e o interpretante.
Esses termos indicam as posições lógicas ocupadas por cada um dos
elementos na semiose onde o fundamento do signo é um primeiro, o objeto
é um segundo e o interpretante um terceiro.

É ainda a própria teoria peirceana que nos impele a pensar o sistema

da escrita em relevo, para além de suas características de sistema de signos

simbólicos. De fato, na malha cotidiana de interação dos signos, na sua lógica de

uso no seio da cultura, eles podem passar por misturas sígnicas, onde se permite,
2
Aqui não tocamos sequer no problema do objeto dinâmico, assim como ficou intocada a discussão
sobre interpretante imediato, interpretante dinâmico e interpretante final, conforme propôs Peirce, na
sua concepção de signo. Para um aprofundamento da questão, podem ser vistas as obras de Lúcia
Santaella indicadas na bibliografia.
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por exemplo, que um signo simbólico revele características icônicas ou que um

signo indicial seja percebido como um ícone.

É, sobretudo, quando trata da qualidade diagramática de alguns tipos

de signos, que Peirce nos leva a pensar no alfabeto Braille na sua qualidade de

sistema de signos icônico-diagramáticos.

3.3.1 Os pontos em relevo: diagramaticidade e iconicidade

Não imaginem os leitores que estamos criando um paradoxo ao

apreciar o caráter icônico-diagramático do relevo Braille, depois de havermos

estabelecido a sua natureza simbólica. É patente que a célula Braille, pertencendo

ao universo das representações, constitui-se um símbolo. No entanto, quando

analisamos suas relações de associação e combinação, nas quais algumas regras

são permitidas e outras não; quando analisamos as formas que surgem de tais

relações, desdobrando-se em gradações, diferenças, achamo-nos diante de uma

linguagem lógico-matemática, melhor dizendo, diante de um ícone diagramático,

cuja sutileza é de difícil percepção, pois não se trata aqui de um diagrama forjado

para a decodificação pelo olhar, mas antes, o seu escrutínio exige a ação do

complexo tátil.

As concepções de iconicidade e diagramaticidade são filhas da

Semiótica de Sander Charles Peirce e exibem somente dois dos aspectos das

chamadas relações triádicas observadas nos signos em ação. Tais concepções,

assim como toda a Semiótica peirceana, estão fundamentadas por uma matriz
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filosófica que envolve a ação dos signos (semiose) e as concepções de mente,

pensamento e verdade.3

[...] Ressaltando que, em Peirce, termos como ‘mente’ ou ‘pensamento’


devem ser encarados numa perspectiva mais ampla (‘mente’ pode ser
entendido como ‘semiose’, ou processo de formação das significações;
‘pensamento’ pode ser substituído por termos como ‘signo’ ou ‘símbolo’ ou
‘interpretante’), seu método consistia em desenvolver uma concepção da
mente derivada de uma análise do que está implícito na tendência humana
para a procura da verdade. (COELHO NETO, 1980, p. 52).

A aplicação dos conceitos de iconicidade diagramática aos fenômenos

lingüísticos e literários encontrou, ao longo dos séculos, apoio em diversos teóricos

da Semiótica e Lingüística, mas é sobretudo nas idéias de Peirce que encontramos

melhor aplicabilidade dessas concepções ao nosso tema de estudos. Servimo-nos

aqui da excelente síntese realizada sobre o tema por Winfried Nöth, para situarmos

o percurso teórico da iconicidade diagramática.

É assim que ele nos informa:

[...] Anteriormente havíamos concluído que o potencial da linguagem para


representar por meio de imagens - no sentido peirceano - é mais ou menos
restrito. As áreas mais importantes da iconicidade lingüística são as
representações diagramáticas e metafóricas. Como o estudo das metáforas
tem se desenvolvido no centro dos estudos literários e lingüísticos da
atualidade, podemos restringir o tema das estruturas diagramáticas a três
subáreas, a saber: os símbolos em estruturas diagramáticas, diagramas
sintagmáticos e diagramas paradigmáticos. (NÖTH, 1995, p. 100).

Peirce acrescenta:

[...] Diagramas verbais são ícones fundamentados em elementos


simbólicos. A natureza de tais estruturas foi explicada por ele partindo de
exemplos de fórmulas algébricas. Considerava que toda equação algébrica
é um ícone, na medida em que mostra, por meio de signos algébricos (que
em si mesmo não são ícones), as relações das quantidades em causa [...].
(apud NÖTH, Ibidem, p. 100-101).

Nöth prossegue:

3
Ver a esse respeito a obra de J. Teixeira Coelho Neto, assim como as obras de Lúcia Santaella
indicadas na bibliografia.
86

[...] A estrutura tipográfica de qualquer livro com sua subdivisão em


capítulos e parágrafos e até em frases e outros segmentos indicados pela
pontuação e pelo espaçamento constitui um diagrama das relações
estruturais do texto.
Enquanto a língua escrita pode utilizar-se do espaço bidimensional do
papel para representar relações diagramáticas, o potencial diagramático do
discurso falado fica restrito a relações lineares [...]. (Ibidem, p. 101).

Ora, mesmo antes de ser escrita pontográfica, organizada em discurso

e traduzindo toda a intersemiose presente ao processo da linguagem escrita, a

célula Braille, com suas duas linhas de pontos justapostos, já é em si mesma uma

relação diagramática. A pequena célula retangular, sem representar em si mesma

nenhum aspecto de iconicidade, contém o padrão e o arranjo de associação e

combinação de pontos. Tal fato nos faz pensar na matriz Braille como uma função

matemática ou um ícone diagramático estrutural, no qual existe um esquema

potencial em que certas possibilidades de associação e combinação são permitidas

e um número muito restrito de relações e combinações outras não são permitidas no

contexto da composição das letras e de outras representações.

Aliás, uma pesquisa que desejasse investigar em que medida o código

de Braille exibe em si um pensamento matemático ou profundas relações com a

linguagem matemática, como tem ocorrido com estudos que relacionam a Música e

a Matemática, poderia chegar a conclusões surpreendentes. Ver-se-ia que, na

gênese da sua constituição, muito mais do que relações entre linguagem verbal e

escrita gráfica, o alfabeto em relevo também conteria o germe desse princípio lógico-

matemático que presidiu as linguagens binárias que passaram a ser estudadas pela

Teoria da Informação e culminaram com os importantes avanços tecnológicos

contemporâneos.

Apresentada ainda que de modo sucinto, a análise da topologia da

matriz Braille, nos seus aspectos icônico-diagramáticos, uma questão já


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anteriormente explorada, novamente avança como música de fundo: De que modo

os seis pontos em relevo, em seus arranjos e combinações, não exibem no nível

intra e extracerebral, um aspecto importante de uma visão-percepção espacial de

mundo ou um diagrama espacial?

Para além do transporte de unidades mínimas de informação, os

pontos Braille, observados no seu uso por sujeitos reais, cingidos pela condição da

cegueira, não estariam a exibir um diálogo singular entre mão e cérebro, onde se

engendram os possíveis mapas mentais que sugerem às pontas dos dedos, um

outro caminho singular da decodificação da cultura?

Podemos mesmo afirmar que a observação desse emaranhado de

pontos de per si em nada define o que poderíamos chamar de leitura e escrita.

Leitura e escrita são irrelevantes do ponto de vista da estrutura interna dos pontos

em relevo. É somente do ponto de vista de um observador específico ou de um

usuário específico, com sua competente ferramenta neuro-sensório-motora para a

decodificação de tal sistema, para o estabelecimento de relações de associação e

combinação entre essa trama de pontos, que se pode falar de leitura e escrita. Ou

seja, só se fala de leitura e escrita Braille pelo fato de que a estrutura do relevo

pontográfico corresponde a uma estrutura neuro-sensório-motora de configuração

da percepção tátil.

Vale a pena registrar aqui informações empíricas do cotidiano desses

indivíduos, as quais ilustram muito bem o nosso raciocínio: pessoas cegas

submetidas a cursos intensivos de mobilidade relatam que têm um melhor

desempenho nos trajetos que vão percorrer, quando antes lhes é apresentado um
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mapa em relevo, com informações das vias por onde trafegarão, obstáculos e outras

informações que estarão presentes ao percurso. 4

Parece, pois, que a linguagem pontográfica, forma singular de fala tátil,

não é unicamente uma tradução intersemiótica da escrita convencional, mas

estabelece um diálogo competente entre as estruturas cerebrais que organizam uma

percepção-reapropriação dinâmica do ambiente.

Novamente nos servimos de uma observação de senso comum, para

ilustrar tal realidade. Pessoas com visão normal usualmente espantam-se ao assistir

a um indivíduo cego utilizando o telefone ou mesmo outras plataformas, como

teclados de computador, caixas eletrônicos, calculadoras, sem cometer qualquer

engano com a disposição dos dígitos. Em tais experiências cotidianas, o que está

em jogo é esse diálogo entre mão e cérebro, em que arranjos mentais exibem

diagramas da percepção tátil, os quais, ousamos repetir, ganham em refinamento e

qualificação se o indivíduo cego tiver sido submetido a competentes programas de

instrução em que o aprendizado do Braille constituiu-se em ferramenta fundamental.

A pontografia parece mesmo ter instituído ou refinado um modo

especial de pensar que, por falta de conceito mais adequado, poderíamos chamar

de modo tátil de pensar ou munditactência (ver capítulo 4), tal como ilustra a

afirmação seguinte:

[...] Mas [...] se já não escrevo; se já mal leio, é no entanto ainda em Braille
que penso [...] e será sempre! As minhas idéias serão sempre registradas,
na minha cabeça, em pontinhos. Os pensamentos dos outros, podem,
eventualmente ser chatos; os meus, serão sempre em relevo! (BARATA,
2003, p. 23).

4
Em projetos de habilitação e reabilitação, pessoas cegas são treinadas em cursos de orientação e
mobilidade, com técnicas para um melhor desempenho na locomoção, tais como o uso de bengala,
orientação espacial, cão guia etc.
89

3.4 O relevo Braille: seis pontos de uma revolução semiósica

Os elementos até aqui colocados já nos permitem uma rápida

discussão a respeito das formas de semiose que se desenvolvem, a partir da

instituição do ponto em relevo, como linguagem sígnica tátil fundamental. A partir

dessa transação entre mão e cérebro, no trabalho de decodificação desse pequeno

filete de seis pontos justapostos, em suas sessenta e quatro possibilidades de

associação e combinação, pode ser observada uma progressiva multiplicação do

signo original em signos outros, forjando um diálogo maior entre os outros códigos

da cultura.

Avaliemos novamente essa matriz de seis pontos em seu processo de

desdobramento. Temos uma unidade básica fundamental, o ponto, que se desloca e

se combina para formar letras. E aqui somos tentados a pensar essa unidade

fundamental como o pontema, (semelhante ao grafema5), como a unidade menor e

mais básica no processo da escrita em relevo. Um pontema que, fora de qualquer

contexto, não passa de um sulco em relevo, e que somente ganha o estatuto de

letra, quando se desloca, associa-se e combina-se nas regras do código Braille.

Observar, no entanto, o desdobramento do signo Braille no processo de formação

das letras leva-nos a pensar em formas de semiose mais ou menos limitadas por

regras de associação e combinação predeterminadas. Além disso, sendo uma

transliteração do alfabeto convencional e tendo que transpor para um código tátil um

5
Do ponto de vista da análise lingüístico-semiótica, as menores unidades de informação susceptíveis
de apreciação são, na linguagem verbal, o fonema, e, na escrita, o grafema. O primeiro, representa o
som; o segundo, a letra, substituto lingüístico do fonema.
90

código eminentemente visual, o ponto em relevo carrega consigo inúmeras

limitações e condicionalismos.

O mais importante de tais condicionalismos, conforme nos informa

Reino (2000, p. 33), manifesta-se na produção da escrita, ou seja, na sua tradução

para o código Braille, que por sua vez, não permite a introdução de toda uma

variedade de soluções grafo-perceptivas advindas com os avanços tecnológicos a

serviço da escrita, tais como a cor e suas nuances, os suplementares arranjos

tipográficos e mais mobilidade na direção e no tamanho dos caracteres.

É assim que, para melhor patentearmos a semiose do signo Braille,

precisamos observá-lo para além das normas, leis e restrições do alfabeto.

Precisamos sair do terreno circunscrito à formação das letras, para avaliar a ação do

signo em relevo, que já é palavra e por assim dizer, texto, mediação da realidade em

suas mais variadas instâncias.

Já havíamos observado, no primeiro capítulo, o fato de que os

indivíduos cingidos pela condição da cegueira encontraram ao longo de uma milenar

tradição de comunicação oral, a forma privilegiada para a sua inserção na cultura.

Sobretudo nos momentos de interação com o ambiente externo, eram, pois,

crucialmente carentes daquilo que poderíamos chamar, numa apropriação da linha

de raciocínio proposta por Deely, de estratégias cada vez mais crescentes de

corporificação de coisas em texto. O autor nos afirma:

A corporificação é o fenômeno geral da experiência, visto que o que quer


que encontremos, aprendamos ou compartilhemos através da experiência
tem, quanto a si, um aspecto que é acessível através de alguma
modalidade sensória, seja ele apenas o ser físico de marcas ou sons
subsuntos dentro da língua e empregados para criar algum texto (um
corpus literário, diríamos mesmo). (DEELY, 1990, p.75)

É a partir do advento do código Braille que se poderá falar sobre

ampliação da gama de objetos e coisas do ambiente que poderão ser corporificados


91

em textos; a leitura e a escrita em relevo permitirão a esses indivíduos a

semiotização, de instâncias da realidade até então limitadas ou distanciadas de suas

experiências cotidianas. Isto significa que, do ponto de vista da nossa análise

específica, a escrita em relevo, como ocorre com outros processos semióticos,

realiza uma das funções mais importantes do processo de semiotização da

realidade:

[...] Reificar, ou seja, corporificar, coisificar, encarar algo abstrato como uma
coisa material ou concreta, é uma das funções heterônomas mais
relevantes da escrita. ‘A língua escrita e lida torna-se um objeto, uma coisa,
separada da consciência que a cria, e imobilizada numa condição de
relíquia física’. (HAVELOCK, 1982, p. 296 apud PAULUK, 2003).

Se quisermos ao mesmo tempo sutilizar e evidenciar ainda mais a

importância desse processo, diremos que o Braille permitiu que os indivíduos cegos

saíssem do seu mundo específico, para compartilharem de forma mais abrangente,

esferas comuns de realidade com os outros indivíduos da cultura.

Proprietários de um competente sistema simbólico manejado por eles

próprios, os indivíduos cegos encontraram no Braille a ferramenta fundamental que

lhes permitiu constituir uma nova individualidade histórica, todo um mundo amplo a

se descortinar na ponta dos seus dedos, numa revolução semiósica levada a cabo

por apenas seis pontos em relevo. Uma revolução que os parece ter conduzido

gradualmente à liberdade, conforme afirma Matos (2003, p. 33):

[...] Exilado, Manuel Alegre escreveu, a propósito das mãos, que nelas
começa a liberdade. 150 anos depois da morte do inventor do Sistema
Braille, estas palavras possuem para mim um significado próprio, preciso:
através dos pequenos cumes desses pontos concebidos por Louis Braille,
a quem Enrique Elissalde gostava de exaltar mais como Libertador do que
como simples benfeitor dos cegos, elas me conduziram à Cidadania, a ser
Pessoa, a ser Eu. E por esse caminho descobri ainda, que ‘ver é
importante, mas nem sempre se pode dizer fundamental’. 6

6
Na citação se faz alusão a Enrique Elissalde, uruguaio cego que dedicou toda sua vida à luta pela
melhoria das condições de vida das pessoas cegas, tendo falecido a 5 de janeiro de 1999.
92

A corporificação, a transformação de objetos e coisas em texto, esta é,

pois, a estratégia por excelência que possibilitará ao nosso sujeito particular ter

alguma apreensão tanto das coisas com existência material real (objetos físicos)

quanto dos objetos sem existência tangível, como, por exemplo, os símbolos do

unicórnio ou os sapatinhos da Cinderela no conto de fadas, sem se perder de vista a

perspectiva lotmaniana de que “o texto não é a realidade, mas o material para a

reconstituir” (LOTMAN, 1981, p. 43).

Poder-se-á argumentar, no entanto, que a regra também é verdadeira

para qualquer outro sujeito da espécie humana, sobretudo nas sociedades

contemporâneas, quando os grupos humanos só têm acesso a uma gama muito

variada de objetos e coisas da experiência mediante a sua corporificação em textos.

Ocorre que, no caso do nosso sujeito particular caracterizado pela ausência do

código da visualidade, a gama dos fenômenos que obrigatoriamente necessitam ser

tornados em corpo literário, em texto, é nitidamente muito mais ampla.

Tais constatações nos levam a supor que, nas épocas anteriores ao

invento do código Braille, eram bastante limitadas as possibilidades de

corporificação desses fenômenos em textos passíveis de serem decodificados pelos

indivíduos cegos. Com o advento do código, no entanto, aumentou

significativamente a gama dos fenômenos, corpos e objetos que puderam então ser

corporificados, tornados em texto, acontecimento que nos impele a pensar que o

nosso sujeito cingido pela condição da cegueira, ao tornar-se usuário desse novo

invento, deixou de ser apenas ser lingüístico, para converter-se com maior

competência em homo-táctilis-literário.

Se para Benveniste, citado por Morin (1986, p. 116), “[...] é na e pela

linguagem que o homem se constitui como sujeito”, podemos agora afirmar, acerca
93

do indivíduo cego, que é na e pela escrita em relevo que ele se constitui como

sujeito intelectual, individualidade com suas possibilidades de semiotização da

realidade refinadas e ampliadas.

Ao ultrapassarmos a fronteira dos pontos Braille em seu ato de

associar e combinar para compor as letras do alfabeto, ao mergulharmos naquele

terreno polissêmico da constituição da intertextualidade, nas suas diversas

modalidades, defrontamos-nos com uma semiose extremamente complexa, em que

um sujeito particular, cingido pela condição da cegueira, é agora proprietário de uma

gama incalculável de fenômenos da experiência tornados em texto.

A decifração privilegiada de todo um mundo cultural por meio de uma

matriz de pontos parece trazer à tona, toda uma gama de questionamentos de

ordem filosófica e bio-antropológica. Parece ainda revitalizar o diálogo entre

percepção e sensação e, por assim dizer, cria novas bases para a análise do que

estamos chamando de mundividência tátil ou munditactência, tema que será

trabalhado no próximo capítulo.

A análise do uso do Braille por uma comunidade de pertença nos

permite falar ou propor pelo menos dois importantes níveis sutis de semiose: um

primeiro nível envolve o par percepção-cognição, presente na decodificação do

alfabeto em si, ou seja, as letras em relevo, e a ação-expansão desses signos

primeiros em signos outros (os diversos subsistemas que a escrita em relevo intenta

representar). Um segundo nível, já no plano do discurso ou no plano da

corporificação de coisas em texto, envolve uma semiose muito mais complexa,

porque põe em diálogo inúmeros sistemas comunicativos, como o próprio código

cultural e os outros sistemas com os quais agora o sujeito cego entra em contato, a
94

exemplo da arte, da literatura e de tantos outros sistemas que a escrita em relevo

semiotiza.

A semiotização de vários níveis de realidade é o aspecto mais

relevante da revolução promovida pela conquista do código Braille. Desta forma,

somos tentados a pensar na arte (mais particularmente na literatura) como sistema

crucial de modelização secundária para aqueles indivíduos com cegueira congênita,

para os quais são tão limitadas as possibilidades de acesso a níveis de realidade

que não são tangíveis ao tato.7

É certo que o acesso à literatura, ao conhecimento científico e, por

assim dizer, a fenômenos artísticos promoveu um impacto na vida das coletividades

cegas que ainda não é conhecido de uma análise científica criteriosa.

Se a história dos primórdios da modernidade ou mesmo de períodos

anteriores podia apontar o número daqueles indivíduos cegos que podiam penetrar o

círculo do conhecimento e da pesquisa científica, é certo que no período posterior ao

advento da escrita Braille, particularmente a partir do século XX, o número de

cientistas cegos cresceu significativamente no mundo.

Obviamente, o fenômeno da corporificação da realidade em texto, por

meio do relevo Braille, jamais deve funcionar como mecanismo único de

estruturação de mundo por parte desses indivíduos. No entanto, esses sistemas de

tradução intersemiótica viabilizados pelo Braille funcionam como importantes

ampliadores de uma visão de mundo que antes era marcada, fundamentalmente,

pela experiência cotidiana. Esta, com a conquista da escrita alargou-se para além de

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A concepção de modelização, adotada pelos semioticistas russos da Escola de Tártu, estabelece
que os sistemas míticos, os sistemas religiosos e as artes são exemplos de sistemas modelizantes
secundários, processos de passagem da codificação da linguagem natural para codificações de
novas linguagens, codificações outras que estabelecem uma língua própria a cada um desses
sistemas, assim como reforçam o diálogo entre as múltiplas codificações presentes nesses
processos.
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suas fronteiras, permitindo-se pensar na cegueira não mais como uma realidade

paralisante e mutiladora, mas antes como uma forma de visão.

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