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Crônicas de um Haitiano

Histórias... Uma vida observada. Sentimentos não pronunciados, psicológicos instáveis não
diagnosticados. História com tanto significado para um indivíduo, narradas com pouca
importância, para não destroçar o limite de linhas. Uma busca, um sonho e tão pouco tempo
para conta-los.

Não sabe quantos verões se passaram desde o dia em que Francel iniciou sua jornada. Era um
homem esquecido por Deus, banhado em suas próprias lágrimas e arrependimentos. Em sua
terra natal temia os desastres, a fome, a sede, temia por sua vida. Com rancor, sentia o peso
sobre as costas, ao lembrar o que fez para deixar o Haiti. Fez coisas das quais nenhum homem
jamais deveria se orgulhar. Tais memórias, fantasmas do passado, lhe assombravam sempre às
16:30, a hora em que toda a tragédia se desenrolou. O andarilho lembrava da face da jovem,
algo tão puro se tornando algo tão repugnante. Entre tempestades e alvoroços, Francel andava.
Andava, a procura de algo que pudesse chamar de redenção, de destino. A maravilhas da cidade,
o avanço da tecnologia lhe causavam o maior dos medos, se sentia pequeno e esquecido. O
labirinto o chamava, o tentava, mas Francel se recusava a cair em seus gracejos. Ele ia encontrar.
Sua busca não era em vão.

Viu a vida nascer, viver e morrer. Observou a guerra entre as raças, provou da luxúria do homem
branco e sorriu ao término da conversa com Deus, mesmo sabendo que devia estar em prantos.
Contudo, agora, ele estava perto. Muito perto. Seus pés afundavam na lama e ao longe escutava
os urros. Tão próximo e chamativo. Com esperança dentro de uma mochila surrada, o andarilho
vagou entre os galhos quebrados e as nascentes dos rios. Uma clareira. Parou, soltou tudo ao
que estava agarrado pelo caminho e desmoronou no chão.

Olhos, olhos por toda parte. Olhos famintos lhe observavam através dos arbustos, árvores, todos
escondidos, mas ávidos por natureza. Francel sorriu, olhando para o céu, com suas nuvens em
forma de um barco.

- Venham. Esse é o meu destino! O fim dos meus medos. Me deem o que eu mereço, o que eu
desejo!

Suas palavras não fizeram eco. Ao término delas, apenas a confusão de pés sedentos por sangue
podiam ser ouvidos. Homens, como animais, saltavam de seus esconderijos. Despidos tanto de
roupa quanto de dignidade, cercavam o andarilho e observavam suas reações inexistentes. Se
aglomeravam e analisavam a presa. Tudo estaria acabado, assim que o primeiro começasse.
Em um pulo, o banquete estava servido, o sangue escorria entre as folhas, lama, galhos
quebrados e as mãos dos atacantes. As gotas deslizavam gentilmente até suas cinturas,
contando histórias e mágoas. Os dentes fortes roíam os ossos e puxavam a carne, desprezando
a gordura. Os olhos, postos em colares como troféus e ossos fariam parte da construção de seus
novos edifícios. Sublime, divino e medonho, era a visão bela da perversão da carne humana. Os
vermes viram suas chances e caçaram os restos, levando-os para seus abrigos subterrâneos. As
gralhas da fúria e do bem-dizer observavam, em silêncio, o ciclo da vida humana.

Francel, se tivesse sua mandíbula, ainda estaria sorrindo agora, afinal, nada mudava. Não
importava se era Haiti, Brasil, ou qualquer outro maldito lugar.

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