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REVISTA DO CFCH • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ISSN 2177-9325 • www.revista.cfch.ufrj.br


Edição Especial SIAC 2016

Nativos e Outsiders:
o cosmopolitismo na virada do século XIX para o XX

Carolina Mann de Oliveira


Instituto de História
carol.mann03@gmail.com

Orientadora: Professora Doutora Luiza Larangeira da Silva Mello


Instituto de História
luizalarangeira34@gmail.com

Palavras-chave:
História. Literatura. Cosmopolitismo. Subjetividade Moderna.

Homines non nascuntur, sed finguntur”, escreveu Erasmo – os homens


não nascem, são modelados –, uma fórmula que poderia ser tomada
como o lema da revolução humanista. A metáfora da modelagem
pressupõe que a natureza de um homem é essencialmente informe,
como cera, essencialmente neutra e, notemos de passagem, não
maculada pela depravação original. (GREENE, 2005, p. 12).

É desta forma que Thomas Greene descreve um self flexível, ou seja, uma subjetividade
modelável e capaz de se transformar. Greene percebe o surgimento deste tipo de
subjetividade sendo figurado na literatura a partir do Renascimento e sendo relacionado
aos ideais humanistas. A partir do movimento romântico alemão, em fins do século
XVIII, esses ideais propunham o desenvolvimento de todas as potencialidades do ser,
ou seja, a Bildung (do alemão, formação e cultivo) ainda estão bastante presentes no
final do século XIX e início do século XX. Apesar das dificuldades impostas aos ideais
romântico-humanistas de desenvolvimento individual, desde o surgimento das grandes
cidades, já que, por conta da rapidez das relações modernas, como coloca Walter
Benjamin, “se reduziram as chances dos fatos exteriores se integrarem a nossa
experiência” (BENJAMIN, 1989, p. 106), ainda é possível observar uma tentativa de
recuperação deste indivíduo cultivado por saberes a partir de uma subjetividade
cosmopolita figurada na literatura deste período. Portanto, neste breve ensaio pretendo
mostrar de que forma é figurada, no romance Howards End, escrito por E. M. Forster e

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publicado em 1910, a subjetividade moderna relacionada com o cosmopolitismo e com


o ambiente das grandes cidades.
Apesar da distância deste período para o aqui estudado, o início do século XX,
podemos perceber grandes pontos de contato entre esta subjetividade flexível, muitas
vezes ambígua e passível de modificação, com o conceito de cosmopolitismo aqui
analisado. A palavra cosmopolita vem dos radicais cosmo (mundo) e polis (cidade) e os
termos cosmopolita e cosmopolitismo se difundem a partir do final do século XVI e no
século XVII. Segundo Denis Diderot em sua Encyclopédie, cosmopolita significa
“Aquele que não é estrangeiro em nenhum lugar do mundo” (DIDEROT apud JACOB,
2006, p. 1). Este cosmopolita, portanto, é alguém que pertence a todo lugar, a todos os
grupos. Porém, como podemos entender a partir do texto Pro Patria Mori, de Ernst
Kantorowicz, as noções de pátria e, consequentemente, de família e de comunidade, são
ligadas a um pertencimento e, por isso, impõem fronteiras. Logo, dizer que não se é
estrangeiro em nenhuma parte configura um grande paradoxo, pois não seria possível
pertencer a todos os grupos identitários. Neste sentido, a descrição de Diderot seria
invertida, o cosmopolita era aquele que não é nativo de nenhum lugar do mundo, é
estrangeiro por toda a parte. No ano de 1894, o então futuro presidente dos Estados
Unidos Theodore Roosevelt publicou um ensaio chamado “True Americanism”, no qual
podemos perceber seu desprezo pelo indivíduo cosmopolita:

Há filósofos que nos asseguram que, no futuro, o patriotismo não será


considerado como uma virtude, mas meramente como um estado mental na
jornada a caminho de um estado de sentimento no qual nosso patriotismo
incluirá toda a raça humana e todo o mundo. Talvez seja assim, mas a idade de
que estes filósofos falam é ainda há várias eternidades de distância. De fato,
filósofos deste tipo são tão avançados que não têm utilidade prática para nossa
geração (ROOSEVELT, 1897, p. 54).

Este desprezo se dá por este indivíduo “europeizado” perder sua capacidade de trabalhar
para sua nação e, mais a fundo, de se identificar e de ser identificado como parte
daquela pátria e também não ser absorvido completamente por nenhuma outra pátria,
tornando-se alguém sem um lugar definido no mundo, um outsider. Esta subjetividade
desvinculada de relações com seu torrão natal é precisamente o self ambíguo,
modelável, flexível e instável descrito por Thomas Greene. Por não ser associada a um
grupo determinante, a subjetividade pode se tornar, como diz Paul Ricoeur, um “si-

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mesmo como outro”. Como percebe Luiza Larangeira, em seu texto Estrangeiros em
qualquer lugar do mundo: o ponto de vista cosmopolita no romance da virada do
século XX, a carta de Roosevelt tem uma clara referência aos irmãos Henry e William
James, o primeiro um ficcionista que saiu dos Estados Unidos e, no fim da vida, se
naturalizou inglês e o segundo um filósofo que permaneceu em seu país de origem
durante toda a vida. Contudo, é notável que há uma discordância por parte de Henry
James, que percebe sua posição como outsider como privilegiada. Em suas notas de
uma viagem que fez pelos EUA, James pôde perceber que seu olhar não era nem o de
um completo nativo que só conhece aquela realidade, a quem tudo parece cotidiano e
ordinário, e nem a de um completo estrangeiro, que percebe tudo como exótico. Seu
olhar continha o nativo e o outsider, simultaneamente, trazendo a ele toda a
ambiguidade destas duas perspectivas e gerando uma visão que considerava mais
completa e interessante. Este é o olhar de uma subjetividade cosmopolita.
Neste sentido, o ambiente das grandes cidades se torna o principal palco para a
subjetividade cosmopolita. Isto ocorre pela própria natureza das relações que se travam
nos grandes centros urbanos. Georg Simmel, no texto As Grandes Cidades e Vida do
Espírito, observa que as relações travadas no meio urbano são marcadas pela
impessoalidade e agilidade, diferente daquelas do meio rural, nas quais o caráter
sentimental das relações é dominante. Neste espaço desvinculado do sentimento, há a
quebra do vínculo com as barreiras de pertencimento que moldam identidades
específicas e, desse modo, se tornam um local onde o indivíduo é capaz de moldar a si
mesmo e de se individualizar, se tornando essencial para a subjetividade cosmopolita. O
maior retrato deste local, no século XIX e início do XX, é Londres. Descrita por
Nathaniel Hawthorne como “capital da humanidade”, esta cidade é tão fortemente
marcada pela ação humana por conta de acontecimentos históricos grandiosos que não
mais pertence a uma determinada nação, ela é universal e deixa que seu habitante se
expresse de maneira espontânea e individual. Por isso se torna uma escolha comum na
literatura do início do século XX para personagens que passam por grandes
transformações, como é o caso de Howards End, de E. M. Forster, que descreve
Londres, de forma muito poética, como “se um fragmento da Inglaterra flutuasse mar
adentro para saudar o estrangeiro” (FORSTER, 2006, p. 200).

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No enredo de Howards End, é comum as análises girarem em torno dos


contrastes entre as duas principais famílias de personagens representados na trama, que
se opõem em diversos aspectos durante o romance. De um lado temos a família Wilcox,
bem sucedidos comerciantes e donos orgulhosos não somente de propriedades e
carruagens, mas também de um pragmatismo tipicamente inglês. De outro lado, temos
as irmãs Schlegel, filhas de mãe inglesa e pai alemão, que se orgulham desta dupla
herança e de uma vida intelectual ligada às Artes e à Literatura, em contraposição com
“uma vida em que telegramas e raiva contam” (FORSTER, 2006, p. 49), como é
colocado no romance. Dessa forma, podemos perceber as irmãs Schlegel como as
figurações do cosmopolitismo neste romance por duas razões já abordadas. A primeira e
mais simples se refere simplesmente a sua dupla ascendência, que lhes proporcionou
vivências ligadas a duas experiências nacionais distintas e, em um período de aumento
do nacionalismo e do acirramento de disputas entre as nações – o imperialismo – muitas
vezes contraditórias e rivais. Como é descrito no próprio livro, as irmãs não são nem
“inglesas até a medula” e nem “alemãs da mais pavorosa espécie”, ou seja, não se
identificam completamente com os signos de nenhuma das duas nações, podendo com
facilidade transitar entre elas, mas nunca completamente se enquadrar em uma. Esta
ambivalência identitária das irmãs Schlegel é parte de sua subjetividade cosmopolita;
mas há outro fator de grande importância. Como dito acima, o intelectualismo e o gosto
pelas artes e literatura das irmãs as aproximam mais uma vez de um sentimento ao
mesmo tempo de universalização e de percepção de sua parcialidade e do seu ponto de
vista como uma das formas de acesso à realidade. Isso leva a uma flexibilização
subjetiva e uma capacidade de modulação que atravessa todo o romance.
Para ilustrar esta análise, trago um trecho do livro Howards End, na qual se pode
notar a subjetividade flexível de Margaret, uma das irmãs Schlegel:

O sobrinho altivo vinha certo dia a Wickham Place trazendo consigo a esposa
ainda mais altiva, ambos convencidos de que a Alemanha fora designada por
Deus para governar o mundo. Tia Juley chegava no dia seguinte, convencida
que a Grã-Bretanha fora designada para o mesmo cargo pela mesma autoridade.
Estariam ambas as estridentes partes com a razão? Em certa ocasião
encontraram-se, e Margaret, batendo palminhas, implorou-lhes que discutissem
o assunto em sua presença. Todos coraram e começaram a falar sobre o clima.
“Papai”, exclamou – era uma criança muito dada à ofensiva -, “por que eles não
querem discutir essa questão tão simples?” O pai, examinando as partes com
expressão sombria, respondia que não sabia. Inclinando a cabeça para o lado,

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Margaret então observava: “Para mim, uma das duas coisas é bem clara: ou
Deus não sabe o que pensa sobre a Inglaterra e a Alemanha, ou são eles que não
sabem o que Deus pensa”. Uma garotinha odiosa, mas aos treze anos
identificara um dilema que a maioria das pessoas passa a vida toda sem
perceber. Sua mente lançava-se em todas as direções; tornava-se cada vez mais
flexível e forte. (FORSTER, 2006, p. 52).

Dessa forma, podemos perceber como a subjetividade cosmopolita é figurada na


literatura do início do século XX, com personagens que desafiam as barreiras nacionais
e religiosas, que são capazes de sintetizar suas ambiguidades e formar um ponto de vista
que sobrepõe fronteiras e incorpora vozes muito distantes.

Referências
AUERBACH, Erich. Mimesis: representação da realidade na literatura ocidental. São
Paulo: Perspectiva, 2013.

BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In. BENJAMIN, Walter.


Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2010. p.
103-150.

FORSTER, Edward Morgan. Howards end. São Paulo: Globo, 2006.

GREENE, Thomas. A flexibilidade do self na literatura do Renascimento. História e


Perspectivas, Uberlândia, n. 32/33, p. 12, 2005.

JACOB, Margaret C. Strangers nowhere in the world: the rise of cosmopolitanism in


early modern Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2006.

ROOSEVELT, Theodore. True Americanism. In. ___. American ideals, and other
essays social and political. New York: G.P. Putnam’s Sons, 1897. p. 46-74.

SILVA MELLO, Luiza Larangeira da. Estrangeiros em qualquer lugar do mundo: o


ponto de vista cosmopolita no romance da virada do século XX. In. CHARBEL, Felipe;
GUSMÃO, Henrique Buarque de; SILVA MELLO, Luiza Larangeira da (Org.). As
formas do romance: estudos sobre a historicidade da literatura. Rio de Janeiro:
Ponteio, 2016. P. 123-143.

SILVA MELLO, Luiza Larangeira da. As grandes cidades e a vida do Espírito (a


cidade). In. SILVA MELLO, Luiza Larangeira da. Depois da Queda : a representação
da cultura nacional norte-americana na obra tardia de Henry James (1904-1907). Rio de
Janeiro, 2010. 58 f. Tese (Doutorado em História) - Departamento de História,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2010. p. 152-209.

SIMMEL. Georg. As grandes cidades e a vida do espírito.Mana, Rio de Janeiro, v. 11,


n. 2, 2005, p. 577-591.

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