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RESENHAS

A melancolia dos historiadores


Ronaldo Vainfas

Maria Lúcia Pallares Burke. As mui- ram, irrigaram a pesquisa historio-


tas faces da história. São Paulo: gráfica contemporânea, chegando
Unesp, 2000. 348 p. mesmo, em certos casos, a ultrapas-
sar os muros da academia. Um dos
É muito bem-vinda a publica- casos mais expressivos talvez seja o
ção desta coletânea de entrevistas de Natalie Davis, a única mullher
organizada por Maria Lúcia Garcia selecionada para este team, cujo
Pallares-Burke, reunindo, sob o tí- The Return of Martin Guerre (1983)
tulo As muitas faces da história, de- foi traduzido para o alemão, espa-
poimentos de nove scholars, — oito nhol, português, francês, holandês,
historiadores e um antropólogo — italiano, sueco, russo, e até para o
de significativa contribuição, para japonês.
dizer o mínimo, nos rumos segui- O livro de Pallares-Burke, tão
dos pela historiografia dos últimos logo publicado, já despertou a aten-
30 anos. A quase totalidade deles, ção dos especialistas, merecendo
à exceção de Asa Briggs e Daniel resenhas críticas de historiadores
Roche, é bem conhecida do público de peso em nosso meio. Evaldo
brasileiro especializado, pois tiveram Cabral de Mello publicou, no Ca-
livros importantes traduzidos, derno Mais (Folha de S. Paulo),
desde os anos 1980. É o caso de uma bela análise do livro sob o
Cario Ginzburg, Peter Burke, Keith título de “Historiadores no confes-
Thomas, Robert Darnton, Nata- sionário”; e Laura de Mello e Souza
lie Davis, Quentin Skinner e Jack publicou, no Jornal de Resenhas do
Goody. Trata-se de excelente elenco mesmo diário, artigo intitulado “A
de autores, os quais, seja pelos temas história em movimento”. Impos-
de investigação, seja pelas inovações sível não dialogar com os eminentes
teórico-metodológicas que propuse- colegas na análise que tentarei fazer

Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001, pp. 217-224.


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do livro em foco — eles que, não das à política maior; provocam re-
obstante reparos pontuais, recebe- flexões de ordem teórica de grande
ram a obra com grande entusiasmo. importância quanto às relações en-
E, realmente, o livro é impecável, tre a história, de um lado, e a an-
sob vários pontos de vista. tropologia, a literatura, o marxismo,
A introdução da organizadora a política e outros tópicos. É assim
explicita com nitidez a proposta da possível avaliar, longe das simplifi-
obra, bastante original, de trazer à cações e estereótipos, inúmeros per-
luz os bastidores da produção his- cursos e opções da chamada Nova
toriográfica de autores de ponta, História nas últimas décadas.
descortinando para o leitor as mo- Mas é mesmo da Nova História
tivações pessoais, as matrizes intelec- que o livro trata, exceto por Asa
tuais e mesmo um pouco da história Briggs, estudioso da cultura ma-
de vida que, de vários modos, terial e Skinner, mais dedicado à
encontra-se presente no trabalho de política e às instituições, de modo
cada um. As entrevistas compõem, que tem razão Evaldo Cabral de
assim, um painel que se aproxima Mello ao discutir a adequação do
dos Ensaios de Ego-história publi- título As muitas faces da História.
cados há uns 15 anos na França, A história em causa, se for o caso de
incluindo eminentes historiadores classificá-la, é sobretudo a chama-
da Nouvelle Histoire. Cada entre- da história antropológica, uma
vista é precedida de concisa apre- história que sem necessariamente
sentação por parte da organizado- negar processos gerais e totali-
ra, na qual se informa sobre o autor dades amplas, debruça-se antes so-
entrevistado, sua obra e biografia, bre enredos específicos, por vezes
deixando o leitor perfeitamente à microscópicos, incluindo-se em
vontade para apreciar a entrevista. vários casos na chamada micro-
As chaves da entrevista são igual- história. De modo que o leitor se
mente nítidas e pertinentes. Pro- depara, principalmente, com algu-
curam relacionar aspectos biográ- mas — e só algumas — faces da
ficos com produção intelectual; Nova História, não havendo, entre
verticalizam aspectos da produção os entrevistados, nenhum de seus
de cada entrevistado; particula- críticos frontais ou de autores pre-
rizam trajetórias específicas, quer ferencialmente dedicados ao estudo
acadêmicas, quer gerais, relaciona- das grandes estruturas. É como diz
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Evaldo, em sua análise, ao ressaltar cena inúmeros debates que ani-


que ali somente estão reunidos au- maram a polêmica historiográfica
tores que migraram “do porão ao dos últimos anos. Evaldo Cabral de
sótão” na pesquisa historiográfica. Mello observou, com olhar cirúrgi-
Laura de Melo e Souza tam- co, um certo desapontamento dos
bém observou, com razão, que autores entrevistados, alguma frus-
predominam autores da vertente tração por não terem estudado ou
anglo-saxã deste campo histo- orientado teses, por exemplo, de
riográfico — o que não deixa de história política ou diplomática.
causar certo espanto, tendo sido a Como os políticos que experimen-
França o cenário privilegiado das tam a “melancolia do poder”, os
mentalidades, em contraste com autores entrevistados parecem por
a Social History de língua inglesa, vezes sentir uma certa “melancolia
sabidamente marcada por forte do conhecimento”, permitindo-
empiricismo. Um autor como se dizer, em graus variáveis, que o
Serge Gruzinsky, por exemplo, marxismo, afinal, faz alguma falta e
— lembrado aliás por Laura — não está de todo morto; apontando
historiador que, além de francês e os riscos que o demasiado apego
muito inovador teoricamente, de- à escala microscópica acarreta ao
bruçou-se sobre a história colonial trabalho do historiador; “confes-
ibero-americana, seria muito bem- sando”, em vários casos, o caráter
vindo neste elenco predominan- aleatório das escolhas temáticas
temente composto por estudio- que os celebrizaram, como no caso
sos de temas europeus. Por outro extremo de KeithThomas, que ad-
lado, a quase “ausência” dos fran- mite ter estudado a feitiçaria por
ceses em livro no fundo dedicado à acaso, além de se dizer muito crédu-
Nova História é compensado pela lo e influenciável, sempre prestes a
forte presença de “francólogos” esposar as idéias do último livro que
expressivos, se me for permitada venha a ler.
a expressão, a exemplo de Burke, Esta “melancolia do conheci-
Darnton e Natalie Davis. mento”, que Evaldo apontou como
Os reparos de Evaldo e Laura, um dos pontos instigantes do livro,
que faço meus, não diminuem, porém, poderá ser um “prato cheio” para os
a qualidade da obra que, como disse, críticos ferrenhos da Nova História,
é cuidadosa na concepção e põe em sempre prontos a destroçá-la pelo
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apego a temas irrelevantes e minús- Por outro lado, encontra-se


culos, pelo descritério metodológi- em algumas entrevistas, aqui e ali,
co, pelo desengajamento político, um certo gosto pelo paradoxo com
pela invenção de modismos, pelo forte sabor provocativo, coisa que
“antropologismo” pulverizador, pe- autores deste porte, e já um tanto
las interpretações delirantes e, last “melancólicos”, como diria Evaldo, se
but not least, pela rejeição da luta de permitem cultivar, por vezes exa-
classes. gerando pontos de vista externa-
A bem da verdade, nota-se dos em suas pesquisas, outras vezes
mesmo um certo ar blasé em várias levados pela atmosfera de confes-
considerações de alguns dos autores sionário que entrevistas desse tipo
entrevistados. O melhor exemplo não raro ensejam. É o que vemos,
talvez seja o de Keith Thomas, que por exemplo, numa das respostas de
se compraz em dizer que nunca Goody a propósito do mito da “sin-
lera um artigo sequer dos Annales gularidade do Ocidente”, quando
em sua formação universitária e afirma que a “Revolução Industrial
de que Braudel, embora o tenha nada mais fez do que copiar, numa
impacta-do, era, quando publi- produção em grande escala, a pio-
cado, livro “indigerível” que “não neira indústria asiática” — tipo da
pegou na sua época”, a exemplo interpretação arrojada, em escala
dos livros de Febvre e Bloch. Só se macro-histórica, que não resiste,
pode entender semelhante opinião porém, a qualquer evidência. É o
partindo ela, como no caso, de au- que vemos numa das opiniões de
tor inglês desinteressado de outras Darnton — autor consagradíssi-
histórias além da britânica (e de mo — que, insistindo, com razão,
fato as historiografias européias, ao no dever que tem o historiador de
contrário do que se imagina, dia- sempre conferir os fatos narrados,
logam muito pouco entre si). Mas diz que, para tanto, todos “deve-
é decepcionante ver um historiador riam trabalhar algum tempo em
do porte de Thomas sublinhar com algum jornal cobrindo estupros, as-
tanta ênfase o improviso que car- sassinatos e assalto à mão armada”.
acterizou suas escolhas temáticas, Seria mesmo necessário tal estágio
seja no clássico A religião e o de- para o historiador zelar pelo rigor
clínio da magia, seja em O Homem factual de suas pesquisas?
e o mundo natural.
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Mas este elenco de entrevis- nas citações, porém explícito sobre a


tas, se por essas e outras podem importância de Lévi-Strauss no seu
municiar os críticos acérrimos da História Noturna. Keith Thomas é
chamada Nova História, oferecem, igualmente convincente quando se
por outro lado, elementos preciosos refere à influencia de Evans-Pritchard
para desfazer certos estereótipos de no seu The religion and the decline of
críticas por vezes simplificadoras ou magics. As várias menções a Cliford
“ideológicas”. Geertz também são dignas de nota
Antes de tudo, o caráter an- e muito já se escreveu sobre a pode-
tropológico desta história que muitos rosa influência de seu trabalho na
adversários da Nova História con- chamada micro-história. Mas, na
sideram uma espécie de pecado maior parte dos casos, a salutar
original da historiografia recente. aproximação com a Antropologia
Pois bem, a leitura atenta das en- é, como afirmou Natalie Davis,
trevistas com esses grandes autores movida por “razões instrumen-
sugere relação pouco sistemática de tais”, o que traduzo como: um
quase todos eles com a Antropolo- refinamento da perspectiva mi-
gia — melhor dizendo, com as an- croanalítica; uma atenção com
tropologias —, quer em termos de as invariantes da sociedade, sem
formação intelectual, quer em ter- prejuízo de sua dinâmica; um
mos de adoção sistemática de con- cuidado especial com a descrição
ceitos operativos. À exceção, por de detalhes ritualísticos e sim-
razões óbvias, do único antropólo- bólicos — mas não, sob nenhum
go incluído no livro — e que por ponto de vista, a adoção de mo-
sinal se empenha em destacar seu delos antropológicos de interpre-
projeto de historicizar a cultura — tação. Quando muito, a adoção
a maioria dos entrevistados admite de certos conceitos, como o da
manter relação apenas pontual com descrição densa de Geertz, porém
alguns textos antropológicos de totalmente refundidos pela
tendências e épocas diversas. Não é perspectiva diacrôníca da pesqui-
o caso de Peter Burke, por exemplo, sa histórica.
que enumera os antropólogos que Outro ponto, que decorre do
julga importantes e diz o porquê viés antropológico adotado por esses
das escolhas. Não é também o caso historiadores, diz respeito à micro-
de Ginzburg, mais parcimonioso história. Trata-se de assunto inevi-
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tável, justamente provocado pela coisa muito bem acentuada pelo


organizadora do livro, seja porque seu conterrâneo Jacques Revel em
alguns deles realmente protago- outro livro, a saber: o que dife-
nizaram este gênero — Ginzburg, rencia — mas não hierarquiza —
Natalie Davis —, seja porque, na a macro e a micro-história é a es-
visão dos críticos da Nova História, cala de observação e não o esforço
ela não raro aparece como sinôni- ou renúncia de explicações. De
mo de micro-história, entendi- minha parte, lastimo um pouco
da como estudo de minudências que os entrevistados não tenham
irrelevantes, fantasmas, periferias aprofundado este ponto, insistin-
do que é realmente essencial. do apenas na necessária, porém
Pois o que se encontra no de- dificílima, articulação entre mi-
poimento desses historiadores é, croanálise e generalização.
pelo contrário, uma consciência Um terceiro estereótipo que
bastante nítida dos perigos de uma as entrevistas reunidas no livro
micro-história levada às últimas põem em xeque é a propalada
conseqüências, isto é, descontex- idéia de que a Nova História não
tualizada e exclusivamente narra- faz diferença, dado o seu apego à
tiva e um tanto novelesca de casos narrativa, entre história e ficção.
isolados. Todos os entrevistados Por mais que Asa Briggs enfa-
apregoam, em uníssono, a necessi- tize a importância da “evidência
dade de se articular o global e o literária”; que o próprio Ginzburg
particular, o caso minúsculo e a so- admita que, por vezes, a “distin-
ciedade inclusiva — ainda que tais ção entre ficção e não-ficção se
conexões sejam muitas vezes, em torne muito pouco clara”; que
razão do recorte dos objetos, mais Natalie Davis, et pour cause, insista
implícitas do que sistemáticas. em que “a escrita da história exige
Daniel Roche, historiador francês, uma habilidade que é imagina-
talvez seja dos poucos a admitir, tiva” — nenhum dos autores em
com tranqüilidade, não ser “um causa renuncia à prova dos fatos.
fato lamentável não se ter uma ex- Fatos verdadeiros — porque, em
plicação global” para os fenômenos alguma medida os há, como há os
históricos. E nisso toca, embora fatos deliberadamente mentirosos
despretensiosamente, num ponto —; e fatos ao menos verossímeis,
essencial e sério da micro-história, que são a maioria. A factualidade
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comprovável é, pois, em qualquer e vota no PC italiano, não hesita


escala, dimensão importantíssima em dizer que “nunca se declarou
do trabalho historiográfico, e so- marxista”, seja por ignorar o con-
bretudo por isso sua escrita não junto da obra de Marx, seja pelo
haverá de ser ficcional. Um quarto seu pouco comprometimento com
e último ponto — que longe está a esquerda. O mais enfático nesse
de esgotar a riqueza de questões ponto é, sem dúvida, Daniel Roche,
postas pela coletânea — diz res- para quem o ecletismo é preferível
peito à relações ente esses autores e “a continuar dizendo, como se fa-
o marxismo. E nisso me afasto um zia, que a economia dita tudo...”. A
pouco da conclusão de Laura que, julgar por esses depoimentos, vários
na sua resenha do mesmo livro, desses historiadores nem estiveram
salienta que para eles seria impor- no porão, antes de se instalarem no
tante “revistar o marxismo antes sótão.
de alardear a sua morte”. Natalie De modo que, na verdade,
Davís, que já foi simpatizante do o marxismo não parece gozar de
socialismo, afirma que nunca se grande prestígio entre esses autores.
convertera ao marxismo, na ver- Não o marxismo in totum — e nisso
dade. Keith Thomas, perguntado Laura tem razão —, pois todos eles
sobre se o marxismo de Cristopher admitem estar ali uma chave para
Hill o influenciara, afirmou que, entender a importância dos confli-
antes disso, fora realmente seduz- tos de classe na história. Mas o mar-
ido pela personalidade de Hill, xismo realmente rejeitado por esses
sendo que ele, Thomas, quando autores e pela Nova História, em
muito, não passara, quando jo- geral, é aquele que — vulgar ou re-
vem, de um “marxista vulgar”. finado — apregoa o determinismo
Peter Burke não evita afirmar que econômico, mesmo que “em última
nunca fora marxista e prefere mes- instância”, e vê na luta de classes “o
mo o ecletismo teórico. Robert motor da história”.
Darnton não se acanha em dizer E nem por rejeitarem esses pres-
que não relê Marx freqüentemente supostos, com maior ou menor con-
“nem procura em sua obra chave trangímento, tais autores podem
para resolver algum problema”. ser vistos como absolutamente “de-
Cario Ginzburg, um dos que mais sengajados”. Em geral são eleitores
valoriza a luta social em sua obra da esquerda ou de propostas à es-
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querda, ainda que titulados de Lord a lógica do conflito, sem cair em


ou Sir, defendem, como militantes, relacivismos radicais; que a obser-
inúmeras causas de minorias, como vação microscópica é tão capaz de
a das mulheres ou de grupos étnicos explicar a história como as inter-
oprimidos; Jacques Goody chegou pretações de conjunto, respeitada a
a se engajar em lutas anticolonialis- diferença de escalas; que o conflito
tas na África... social possui, além da luta de classes,
A história é mesmo mais rica múltiplas dimensões — étnicas, re-
do que a luta de classes ou o deter- ligiosas — e talvez essas últimas te-
minismo econômico — e não se nham produzido e produzam as tra-
poderia compreender o passado e gédias mais dramáticas da história.
o presente a partir, exclusivamente, A biografia e a historiografia
desses dogmas. É isto, também, o desses autores mostra que supera-
que nos mostra esse livro de entre- ram intelectualmente o século XIX
vistas e a Nova História, em geral, e atravessaram as tragédias, dilemas
com perdão pelo uso do rótulo im- e utopias do XX. Não se escusam de
preciso. Mostra-nos que nem mes- enfrentar os dilemas do século XXI,
mo o capitalismo entronizou de vez embora, com enorme lucidez, muita
o homo oeconomicus; que a lógica da melancolia e alguma prudência,
diferença é tão importante quanto evitem dar lições arrumadas.

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