Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O TÍTULO - Os Maias
O romance Os Maias conta a história da família Maia, através de três personagens masculinas que
representam três gerações, correspondentes a momentos histórico-políticos e culturais diferentes:
O trajecto da família Maia entrelaça-se com a história do século XIX, servindo o conjunto das três gerações
sucessivas para retratar a evolução de uma sociedade que continua a não encontrar um rumo certo de
modernidade.
Os Episódios da Vida Romântica constituem-se como «flagrantes» da vida portuguesa, onde estão
representados os defeitos caracterizadores da sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX, em
múltiplos aspectos:
Os figurantes
Este subtítulo permite-nos o contacto com múltiplas cenas e casos típicos da vida e da sociedade romântica
da época da Regeneração:
a sociedade lisboeta (costumes, vícios, virtudes...), representada por personagens que tipificam um grupo, uma
profissão, um vício...;
o mundo social e político da sociedade lisboeta de grande parte do século XIX, através de cenas e quadros:
actividades sociais, culturais, desportivas, lúdicas...;
carácter estático;
menos ficção, mais descrição;
menor interferência do narrador, embora este adopte frequentemente um tom irónico e pessimista.
A ACÇÃO
O plano da intriga apresenta uma acção secundária, que envolve Pedro e Maria Monforte; e uma acção
principal centrada na relação entre Carlos e Maria Eduarda.
A intriga secundária, que surge como introdução e permite a apresentação de Afonso da Maia, como
factor de unidade, e situa no tempo e no espaço o início da acção, centra-se na personagem Pedro, dando conta
do seu nascimento, formação, paixão e drama.
A intriga principal, que mantém a dimensão trágica e a amplifica, fazendo o desenvolvimento dos
acontecimentos, incide nas relações incestuosas de Carlos da Maia e Maria Eduarda, culminando com a morte do
avô. Com a desagregação da família, o último capítulo constitui o epílogo, onde Carlos e o seu amigo Ega,
regressados a Lisboa, admitem o fracasso de uma vida e verificam o atraso do país. Embora o regresso pareça
traduzir a desilusão pessoal sobre o futuro de Portugal, é possível vislumbrar alguma catarse na reflexão que o
mais importante é viver, mesmo falhando «sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação».
Em alternância com a intriga principal, desenrolam-se múltiplos episódios a que se costuma chamar a
crónica de costumes lisboeta, que constituem uma forte crítica social e uma reflexão histórica.
Casamento
Traição e fuga de Maria Monforte
Suicídio de Pedro
Infância e educação de Carlos em Santa Olávia
III-IV Estudos em Coimbra
Viagem de Carlos pela Europa
Carlos da Maia em Lisboa: o consultório; o laboratório
IV-V
O diletantismo de Carlos e de Ega
Apresentação de Carlos à sociedade lisboeta: jantar no Hotel Central
VI
Carlos vê Maria Eduarda
Carlos e as suas paixões:
VII O romance com a Gouvarinho
A obsessão pela «brasileira» (Maria Eduarda)
VIII Viagem a Sintra
Carlos, como médico, visita, no Hotel Central, Rosa, a filha de seis anos de Maria
IX
Eduarda
X As corridas
DESENVOLVIMENTO DA ACÇÃO
XII
Declaração de Carlos a Maria Eduarda
A Toca – lugar dos encontros amorosos de Carlos e Maria Eduarda
XIII A consumação da relação
Ruptura de Carlos com a Gouvarinho
Paixão de Carlos e Maria Eduarda
XIV Semelhança de Carlos com a mãe de Maria Eduarda
As revelações de Castro Gomes sobre a relação de Carlos com Maria Eduarda
A vida e educação de Maria Eduarda
Encontro de Maria Eduarda com Guimarães
XV
Episódio da «Corneta do Diabo»
Episódio no «Jornal da Tarde»
Sarau no Teatro da Trindade
XVI Revelações de Guimarães a Ega, entregando-lhe um cofre para Carlos ou para a
«irmã»
Revelações de Ega a Carlos, entregando-lhe o cofre
Revelações de Carlos a Afonso
Incesto consciente de Carlos
XVII Encontro de Carlos com Afonso
Morte de Afonso
Revelações a Maria Eduarda
Partida de Maria Eduarda
Viagem de Carlos.
EPÍLOGO
Intriga secundária
Pedro, único filho de Afonso da Maia e de Maria Eduarda Runa, apaixona-se fatalmente por Maria Monforte, mulher bela
que aparece em Lisboa, acompanhada pelo pai, que enriquecera com o tráfico de negros.
Contra a vontade de Afonso, Pedro casa com Maria Monforte e dela tem dois filhos, Maria Eduarda e Carlos Eduardo.
O casal vive faustosamente em Lisboa, no palacete de Arroios e, um dia, Pedro traz para casa um belo príncipe italiano,
com quem Maria Monforte acaba por fugir, levando consigo a filha, Maria Eduarda. Nesse mesmo dia, Pedro corre para o
palacete de Benfica, reconcilia-se com o pai, após quatro anos de separação, entrega-lhe o filho que Maria lhe deixara, e
suicida-se cobardemente.
O palacete é fechado e Afonso da Maia parte com o neto para Santa Olávia.
Intriga principal
Em 1875, Carlos Eduardo, após ter-se formado em Medicina, vem viver com o avô, Afonso da Maia, no Ramalhete, à Rua
das Janelas Verdes, em Lisboa.
Carlos tenta concretizar os seus projectos profissionais, mas acaba por falhar todos os seus planos. Entretanto, integra-se
na elite da capital, frequentando espaços sociais requintados, onde priva com os importantes do Reino.
É no peristilo do Hotel Central, antes do jantar em honra do banqueiro Cohen, que Carlos, em companhia de Craft,
observa a chegada de Maria Eduarda, por quem se apaixona de imediato.
Depois de várias tentativas para conhecer pessoalmente Maria Eduarda, Carlos convive com esta, envolvendo-se numa
profunda paixão, plenamente correspondida.
É na Toca, situada na quinta dos Olivais, comprada por Craft, que os dois apaixonados cometem involuntariamente o
incesto.
O amor de Carlos por Maria Eduarda é tão forte que resiste ao facto de este saber que ela tivera um passado pouco
recomendável, havendo mesmo uma filha de uma relação anterior de Maria Eduarda – Rosicler. No entanto, a felicidade de
Carlos será completamente destruída pelas revelações de uma carta de Maria Monforte, na qual Maria Eduarda é identificada
como filha de Pedro da Maia (sendo, assim, irmã de Carlos).
Apesar de conhecer a verdade, Carlos comete incesto de forma consciente e Afonso morre de desgosto. Sentindo-se
extremamente culpado e arrependido, Carlos separa-se de Maria Eduarda, que parte para França.
Carlos viaja para o estrangeiro com o seu amigo Ega e fica a residir em Paris, regressando a Portugal apenas em Janeiro
de 1887.
A crónica de costumes
1. O jantar no Hotel Central
Neste episódio, desfilam perante Carlos as principais figuras e problemas da vida política, social e cultural da
alta sociedade lisboeta: a crítica literária, e literatura (que ocupam ambas lugar de destaque), a história de
Portugal, as finanças nacionais, etc. Todos estes problemas são objecto de discussão que acaba em desacato,
vindo denunciar a fragilidade moral dessa sociedade que pretendia apresentar-se como civilizada. Merecem
relevo o cínico calculismo de Cohen (que beneficia da degradação financeira do país), a miopia histórica de
Alencar (em que é visível a mentalidade retrógrada e passadista que via na ameaça espanhola um perigo para a
independência nacional e esquecia o adormecimento geral do país).
2. As corridas de cavalos
É um episódio em que se procura assumir uma atitude civilizada. É Dâmaso Salcede quem representa essa
mentalidade que se pretende estrangeirar a todo o custo, para parecer mais civilizado, «chic a valer». As
corridas de cavalos são organizadas precisamente com o objectivo de transpor para Lisboa uma atmosfera de
cosmopolitismo que, por ser postiço, a capital acaba por não suportar. E é por isso que estala uma desordem
que vem fazer estalar todo o verniz de civilização e requinte social, desmascarando-se as aparências e saltando
à vista a essência provinciana da mentalidade lisboeta. Há um contraste entre o ser e o parecer, que a visão de
Carlos (narrador de focalização interna) focaliza de uma forma muito crítica.
3. O Sarau do Teatro da Trindade
Aqui critica-se a superficialidade das conversas, o alheamento perante a música tocada por Cruges, as
atitudes empoladas do conde de Gouvarinho, a tibieza de Eusebiozinho, a oratória e o lirismo de «conotações
sociais» de Alencar, ultra-romântico, balofo e vazio, que pretende propor uma visão ingénua e utópica de uma
República em que o milionário, sorrindo, abre os braços ao operário, que são desmistificados pela visão crítica
de João da Ega.
4. O episódio final
Este epílogo do romance, dez anos depois de encerrada a intriga, quando Carlos visita Lisboa, vindo de
Paris, pleno de pessimismo. O passeio que Carlos e Ega dão em Lisboa é um passeio simbólico. Os espaços que
atravessam têm profundas conotações históricas e ideológicas: o Largo de Camões (um Portugal do passado,
glorioso, mas estagnado), o Chiado (o Portugal do presente, decadente), os Restauradores (símbolo de tentativa
de uma recuperação falhada, com um ambiente de decadência e amolecimento que cerca o obelisco), os bairros
antigos – Graça e Penha (que representam a época anterior ao liberalismo, o Portugal absolutista, intolerante e
clericalista, que é através de conotações negativas).
Delimitação da narrativa
Considerando os dois níveis da história, teremos n’Os Maias uma acção fechada e uma acção aberta. O
nível da intriga identifica-se com aquilo a que se costuma chamar uma acção fechada, porque todos os seus
acontecimentos se encadeiam numa sucessão causa-efeito e porque, até ao fim da obra, tudo se soluciona, não
havendo possibilidades de continuação para além do desenlace. De acordo com esta ideia, pode considerar-se
que a intriga d’Os Maias é constituída fundamentalmente pelos amores de Carlos e Maria Eduarda, assim como
pelo desfecho trágico, isto é, a descoberta do incesto e a morte de Afonso da Maia. Depois desta última, pode
dizer-se que a intriga d’Os Maias se encontra praticamente concluída; o que não significa, no entanto, que com
isso se encerre a acção, pois todo o capítulo XVIII constitui ainda um prolongamento, embora ocorrido dez anos
mais tarde, e o destino final de Carlos continue em aberto.
O ESPAÇO
Espaço físico
Exterior
Santa Olávia - infância e educação de Carlos
Coimbra - estudos de Carlos
- primeiras aventuras amorosas
Lisboa Baixa - vida social de Carlos
Aterro - local onde se passa a intriga principal
Campo Grande - local privilegiado para a visão crítica da sociedade portuguesa da 2ª
metade do século XIX
Interior
O espaço social
Ficha informativa sobre «Os Maias»
Página 5
Escola Secundária/3 José Cardoso Pires
11º ano – Português
Ficha informativa sobre «Os Maias», de Eça de Queirós
Os Maias é um romance de espaço (social) porque nele desfila uma galeria imensa de figuras que
caracterizam a sociedade lisboeta: as classes dirigentes, a alta aristocracia e a burguesia. Cumpre um papel
eminentemente crítico.
O espaço psicológico
A mudança do tempo contribui para a dinâmica d’Os Maias. De acordo com o crítico João Gaspar Simões, «o
movimento de Os Maias é dado pela passagem do próprio tempo. O tempo, não a acção, é que move os
acontecimentos: as personagens, no romance, envelhecem realmente». Cerca de setenta anos é o tempo
passível de ser datado n’Os Maias, embora a acção central não ultrapasse os catorze meses, do Outono de 1875
ao Inverno de 1876/1877.
Depois de situar a acção em 1875, Eça estabelece uma ordem para a pluralidade do tempo da história, quer
alternando a ordem dos factos e o ritmo temporal, com recurso a analepses (recuos no tempo) e reduções
temporais (por intermédio de resumos, sumários e elipses), quer apresentando os acontecimentos em
registos competitivos, ou, simplesmente, mantendo a ordem do discurso a acompanhar a ordem temporal
(isocronias).
Analepses
Como vemos no esquema atrás representado, o início do romance situa-nos em 1875, no Outono.
Estamos, por isso, na terceira geração, na história de Carlos. Apercebemo-nos, no entanto, que será
necessário recuar no tempo para encontrar explicações para alguns factos do presente.
Quando se fala de Afonso da Maia, afirma-se que a sua «existência nem sempre correra com a
tranquilidade larga e clara de um belo rio no Verão».
Está criada a necessidade e encontrado o pretexto para uma longa analepse, que vai recordar os cerca
de sessenta anos anteriores:
juventude, exílio e casamento de Afonso;
juventude, educação e amores de Pedro;
ruptura de Pedro com Afonso;
fuga de Maria Monforte;
suicídio de Pedro;
educação de Carlos em Santa Olávia e estudos em Coimbra;
viagens pela Europa.
«E então Carlos Eduardo partira para a sua longa viagem pela Europa. Um ano passou. Chegara esse Outono de 1875: e o avô, instalado
no Ramalhete, esperava por ele ansiosamente» (Cap. IV).
A carta
A carta de Maria Monforte (lida por Ega a Vilaça) vem finalmente revelar a verdadeira identidade de
Maria Eduarda. Esclarecido todo o mistério do seu passado, o desfecho trágico dos amores incestuosos
adivinha-se.
Reduções temporais
O período compreendido entre 1820 e 1875 foi sujeito a anisocronias (quando o tempo narrativo é
menor do que o tempo da história), conseguidas através do recurso a resumos e a elipses.
Resumos ou sumários
Noção: redução do tempo da história, por síntese dos factos ocorridos.
Exemplos:
«Seu pai morreu de súbito, ele teve de regressar a Lisboa. Foi então que conheceu D. Maria Eduarda Runa, filha do conde de Runa,
uma linda morena, mimosa e um pouco adoentada. Ao fim do luto casou com ela. Teve um filho, desejou outros; e começou logo, com
belas ideias de patriarca moço, a fazer obras no palacete de Benfica, a plantar em redor arvoredos, preparando tectos e sombras à
descendência amada que lhe encantaria a velhice» (Cap. I).
É através de sumários que ficamos a conhecer:
a juventude, o exílio e o casamento de Afonso;
o crescimento, a educação, as crises e aventuras amorosas de Pedro;
a formação universitária e as aventuras românticas de Carlos.
Elipses
Noção: omissão de alguns factos ou mesmo de alguns períodos da história.
Exemplos:
«Outros anos tranquilos passaram sobre Santa Olávia. Depois uma manhã de Julho, em Coimbra…»;
«Mas, passado ano e meio, num lindo dia de Março, Ega reapareceu no Chiado» (Cap. III).
Isocronias
Noção: tentativa de fazer corresponder o tempo narrativo ao tempo da história.
Objectivo: realçar a importância de determinado facto.
Processos:
utilização do discurso directo;
descrições pormenorizadas de ambientes e de personagens.
Exemplos:
o suicídio de Pedro;
o sarau no Teatro da Trindade;
o momento das revelações da verdadeira identidade de Maria Eduarda;
(…)
Tempo psicológico
A passagem do tempo influencia as personagens, não apenas no seu envelhecimento, mas também em
mudanças comportamentais. Esse referencial de mutações, que reflecte vivências e emoções das
personagens, é o tempo psicológico.
Exemplos:
A noite em que Pedro da Maia se apercebeu do desaparecimento de Maria Monforte e o comunicou ao pai.
As horas passadas no consultório, que Carlos considerava monótonas e «estúpidas».
Carlos recorda o primeiro beijo que a condessa de Gouvarinho lhe dera:
«O criado entrou com a bandeja – e Carlos, de pé junto da mesa, remexendo o açúcar no copo, recordava, sem saber porquê,
aquela tarde em que a condessa, pondo-lhe uma rosa no casaco, lhe dera o primeiro beijo; revia o sofá onde ela caíra com um
rumor de sedas amarrotadas… Como tudo isto era já vago e remoto» (Cap. XVII).
No último capítulo, Carlos e Ega visitam e contemplam o velho Ramalhete (em Janeiro de 1887) e reflectem
sobre o passado e o presente; numa das suas intervenções, Carlos, com emoção e nostalgia, recorda,
valorizando, o tempo aí passado:
«- É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!» (Cap. XVIII).
NARRADOR
Quando à presença, o narrador d’Os Maias é heterodiegético, ou seja, narra os acontecimentos na 3ª
pessoa.
Quando à ciência, a focalização é de dois tipos: ominisciente e interna.
A focalização omnisciente (que surge quando o narrador revela ter total conhecimento da diegese,
caracterizando exaustivamente as personagens e os espaços, e manipulando o tempo segundo as suas opções
ideológicas) predomina nos primeiros capítulos: a renovação do Ramalhete; a juventude de Afonso; a educação
de Pedro; o suicídio de Pedro; a formação de Carlos em Coimbra.
A partir do capítulo IV, predomina a focalização interna (quando o narrador conta a história de acordo
com a sua capacidade de conhecimento de uma ou mais personagens, ou suja, quando a informação é
condicionada pela subjectividade e pela limitação de conhecimentos) sob o ponto de vista de algumas
personagens, como Carlos e Ega, embora surja já no capítulo III sob a visão de Vilaça, quando visita Santa
Olávia.
A focalização interna ganha particular significado com a visão de Carlos da Maia, que dá um contributo
fundamental na construção das personagens Afonso da Maia, Ega e Maria Eduarda.
Pelos olhos críticos de Carlos são dados a conhecer grande parte dos espaços sociais que a personagem
passa a frequentar quando chega a Lisboa. Veja-se, por exemplo, o episódio das corridas de cavalos.
A focalização interna de Ega ganha particular relevo nos episódios do jornal «A Tarde» e no sarau do Teatro
da Trindade.
num «dândi» [janota, elegante, peralta] e num diletante [aquele que se dedica a determinado assunto ou teoria de um modo pouco sério e
sem qualquer obrigação] que, no momento mais decisivo da sua vida, irá fraquejar de maneira absurda e trágica (pelo incesto).
No fim de contas, Eça de Queirós pretenderá demonstrar que, naquela sociedade lisboeta, e, por extensão, em toda a
sociedade portuguesa da época, nem aqueles que pareciam constituir a esperança de redenção da classe dirigente do país
tinham um carácter e uma vontade suficientemente fortes e íntegros para garantirem a continuidade de Portugal como país
independente.
Com o fracasso dos sonhos do avô e de todos os projectos de Carlos é toda uma época e todo um país que falha. É que,
no dizer acertado de Jacinto do Prado Coelho, um dos mais brilhantes estudiosos da obra de Eça de Queirós, Portugal é «a
grande personagem latente na obra de Eça, sua obsidiante preocupação».
O LIRISMO (efusões líricas) é também uma agradável realidade nesta prosa de Eça. Manifesta-se sobretudo na descrição de espaços,
quer interiores, quer exteriores, mas sobretudo na descrição do espaço rústico (paisagens). Esta irresistível tendência de Eça para a poetização
dos espaços descritos provém de uma outra tendência: fazer, pela animização desses espaços, que eles exprimam o estado emotivo de per-
sonagens, segundo a perspectiva das quais, esses quadros são traçados. Daí que as efusões líricas apareçam também frequentemente em
monólogos interiores, dados, por vezes, em discurso semidirecto. Veja-se por exemplo o monólogo de Carlos da Maia, quando, inutilmente,
tenta desligar-se de Maria Eduarda, ao saber que é sua irmã e o monólogo com que o mesmo Carlos comenta a morte do avô ("Carlos perdia-se
nesta contemplação dolorosa...").
Aparece também o COMENTÁRIO do narrador para continuar, ou esclarecer a fala de uma personagem. É também um processo de, por
uma espécie de discurso semidirecto, cortar a fala de uma personagem e, ao mesmo tempo, exprimir ele o que aquela poderia dizer, evitando
assim a monotonia do discurso directo. Veja-se, o comentário do narrador a sublinhar a repreensão de D. Ana à sobrinha por estar a brincar
com Carlos (" Sempre detestara ver a sobrinha... a brincar assim com o Carlinhos..." ).
Vejamos alguns dos processos pelos quais Eça conseguiu essa força evocativa, esse verdadeiro magnetismo das palavras.
ADJECTIVO EXPRESSIVO
A adjectivação é em Eça um poderoso agente evocativo, reflectindo a maneira estética de ver a realidade e dando origem a uma
linguagem precisa e ao mesmo tempo aberta à imaginação. Exemplifiquemos apenas com algumas variantes mais significativas:
a) ADJECTIVAÇÃO IMPRÓPRIA
"Amaro, com o odioso guarda chuva entre os joelhos". Note-se que o adjectivo odioso, aplicado a guarda-chuva, tem a intenção de atingir
Amaro (é uma hipálage). O mesmo se verifica na frase seguinte: "Propício tem um leito de ferro filosófico e virginal".
b) ADJECTIVAÇÃO ANIMISTA OU PROSOPOPEICA
"A pressa esperta e vã dos regatinhos e todas as contorções do arvoredo e o seu resmungar solene e tonto". "Os velhos carvalhos violentos
e proféticos, os choupos desfalecidos, onde o vento vaga aflito..."
Com esta fusão do mundo físico com o moral, tão do agrado de Eça, a natureza ganha vida e solidariza-se com o homem. Veja-se ainda o
admirável animismo que se verifica na bela descrição do Ramalhete e espaço circundante.
c) ADJECTIVAÇÃO HIPERBÓLICA
"Era uma velha hedionda..."
"...as suas digestões monstruosas..."
"Caminhou para ela com passos marmóreos que faziam oscilar o tablado".
Estes exageros dão-nos, no geral, imagens caricaturais, burlescas.
d) ADJECTIVAÇÃO ANTITÉTICA
"Ela mostrava o seu lindo espanto". (fingia-se espantada para mostrar a sua beleza).
"...ri num doloroso riso deste mundo burlesco e sórdido".
Estes grupos antitéticos exprimem a síntese de sensações contraditórias.
e) ADJECTIVAÇÃO DE LINHAS IMPRECISAS
"Abria um olho vago..."
"...uns sons de piano dolente e vago".
Eça emprega centenas de vezes o adjectivo vago, para criar um ambiente de mistério.
f) ADJECTIVAÇÃO BINÁRIA
"Salomé dançou nua e deslumbrante".
"Os olhos do gato fixaram-no fosforescentes e aterradores".
Note-se, nos dois pares, que o primeiro adjectivo exprime uma característica física e o segundo, moral. Trata-se de percepções duais, são as
duas faces da realidade.
"Aquela mulher que qualquer podia ter, sobre um sofá, fácil e nua". Aqui já é o primeiro adjectivo que exprime uma nota subjectiva e o
segundo, objectiva.
g) ADJECTIVAÇÃO ADVERBIAL
" Adélia fumava um cigarro lânguido".
O adjectivo lânguido liga-se a Adélia (lânguida) e à acção de fumar (languidamente).
A colocação do adjectivo obedece não apenas ao sentido, mas também ao ritmo da frase.
Na frase" Ela mostrava o seu lindo espanto", o adjectivo vem antes do substantivo porque o que se pretende realçar é a beleza que o
espanto confere à senhora; mas na frase "via moverem-se ali mil figuras voluptuosas e sinistras, trágicas, disformes, irónicas, apaixonadas,
ciosas e lívidas", a sequência dos adjectivos já obedece mais ao ritmo da frase.
Na adjectivação binária é vulgar colocar um adjectivo antes e outro depois do substantivo: "vago sorriso exausto", em vez de "vago e
exausto sorriso" , ou de "sorriso vago e exausto".
ADVÉRBIO EXPRESSIVO
Como palavra volumosa que é, o advérbio de modo serve admiravelmente o ritmo e a musicalidade da frase: "Falou de si
constantemente, irresistivelmente, imoderadamente". Tem além disso, como o adjectivo, um grande poder sugestivo, como se pode ver pelas
seguintes modalidades:
a) ADVÉRBIO IMPRESSIONISTA
"Quando entrava no café toda a gente se curvava palidamente sobre o periódico" (o advérbio atinge o sujeito e a acção: curvava-se e em-
palidecia).
b) ADVÉRBIO METAFÓRICO (de uso impróprio)
"Não ousava fumar no café... devia recolher-se virginalmente à noitinha (como se fosse uma virgem).
"...foi levá-lo preciosamente a Coimbra" (como se fosse uma coisa preciosa).
c) ADVÉRBIO DE EFEITO CÓMICO
"Beatas com grossos rosários enfiavam gulosamente para a Igreja"; "estava sentado na chaminé cuspilhando tristemente para as cinzas". O
cómico está no facto de o advérbio gulosamente (que se refere sempre ao material, à comida) estar aqui ligado ao espiritual (Igreja); e o
advérbio tristemente (que em si denota o psíquico) estar aqui ligado a cuspilhando (acção grosseiramente material).
d) ADVÉRBIO ALIADO AO OBJECTIVO
"Carlos achava esta palavra melancolicamente estúpida" (melancólica e estúpida).
"horrivelmente bem falante" e "atrevidamente tímida" (antitético em relação ao adjectivo).
Ficha informativa sobre «Os Maias»
Página 10
Escola Secundária/3 José Cardoso Pires
11º ano – Português
Ficha informativa sobre «Os Maias», de Eça de Queirós
O DIMINUTIVO
Eça utiliza frequentemente o diminutivo, para além de elemento caracterizador da personagem, com uma intenção de crítica mordaz à
sordidez, à pequenez da individualidade que pretende satirizar, integrando-a no universo social português representado no romance («Carlos
cumprimentou as duas irmãs do Taveira, magrinhas, loirinhas, ambas correctamente vestidas de xadrezinho…»
A FRASE
Eça de Oueirós prosseguiu o trabalho de modernização da prosa portuguesa, já começado por Garrett. Assim, e tal como ele,
evolucionou para o uso das frases curtas, para a preferência da ordem directa, para o tom oralizante do diálogo e para a variedade de discursos
com a vulgarização do discurso indirecto livre ou semidirecto.
Eça de Oueirós, na sua contínua luta por conseguir uma forma de expressão bela e expressiva, debateu-se perante uma antinomia,
balançando-se entre dois pólos: o Realismo/Naturalismo e o Parnasianismo/Simbolismo (que nesse tempo já vigorava na França). É o que ele
exprimia por esta frase que foi o seu lema de artista: "Sobre a nudez forte da verdade (realismo), o manto diáfano da fantasia"
(simbolismo).
AS PERSONAGENS
CONCEPÇÃO E FORMULAÇÃO
- há personagens planas, personagens modeladas; e ainda, predominantemente, personagens-tipos sociais integradas no clima
social que o narrador vai filmando.
Psicologia individual
forte
vincada
verosímil
com conflito interior - Afonso, Ega, Maria Eduarda...
PAPEL NA ECONOMIA DA NARRATIVA
Protagonista - Carlos
- linear, plana, mas focalizado como um temperamento sóbrio e requintado,
- em pequeno - voluntarioso, um pequeno senhor
- depois - diplomata, superior, árbitro, agindo timidamente, sempre nubladamente, até ao momento climático, mas dominando e atraindo
as atenções, pois era:
- belo de olhos negros, culto, fidalgo, elegante;
«uma fisionomia de belo cavaleiro da Renascença», como a irmã, uma deusa, figura de tragédia; marcado pelo fatalismo;
- um sentimental, generoso, mas sensual com uma personalidade fraca a lembrar a mãe e, como ela, boémio. Estudante, em
Coimbra, a arte, a literatura entram no seu programa de vida, mas são apenas uma espécie de verniz. Foi um médico fracassado.
«Tinha nas veias o veneno do diletantismo ao que Ega fazia eco», «um impotente de sentimento... pedante... um D. Juan... um
devasso... com uma pontinha de romantismo», mas com realismo.
As outras personagens são secundárias, mas Afonso e Maria Eduarda têm papel de relevo.
Afonso - mens sana - (de princípios sãos mas) vítima do ambiente social. Vive um forte conflito interior no princípio e no fim do romance.
Como dissemos a propósito de Viagens na Minha Terra, simboliza o velho Portugal. É uma personagem deslocada do contexto social de uma
sociedade corrompida que não o compreende. Até Carlos o considera duro, ultrapassado; clássico;
Pedro - um fraco, um mórbido, produto da origem materna e do ambiente em que se criou; um segundo Byron;
Maria Monforte - uma sensual, inútil, egoísta, como Luísa do Primo Basílio é mais uma Bovary também leitora de novelas «Tua mãe tinha
literatura e da melhor» disse Alencar a Carlos;
Ega - arrebatado, violento, todo dependente de Carlos; uma projecção de Eça pela sua ideologia literária, e até, de vidro no olho, relevando-
se «o seu dandismo requintado» a sentir a vaidade do adultério elegante. É um revolucionário, democrata «o pai já era um regenerador...»,
um ateu, mas um sentimental que se emociona com o drama de Carlos; é o confidente, o intermediário, no momento crucial, o informador de
Maria Eduarda;
Alencar - o poeta das Vozes d'Aurora definido e definindo a sua posição de romântico contra o Satanismo (de Ega e de outros) e o
Naturalismo logo no encontro no Hotel Central - personagem necessária no complexo documentário social que Eça visava; é o informador do
destino de Maria Monforte; como romântico que era, um idealista, um sentimental, generoso, sincero, mas incompreendido também; mas
tenta a poesia realista;
Dâmaso - um vira-casacas; primeiro admirava Carlos «com religião», mas, sem personalidade, mostra-se depois, um coscuvilheiro, um
sabujo, um afrancesado (tal como se confessa Eça em Francesismo), um usurário: «Já com ares de emprestar a trinta por cento»;
Eusébio - «de perninhas moles» - figura insignificante, vítima da educação romântica, sempre o Eusebiozinho que acaba por casar com uma
mulher que é a sua antítese - o que é da predilecção do autor;
Maria Eduarda Runa - mulher fatal, sedutora, «uma deusa», requintada (reflexo de Carlos), fraca, mais dominada pelo senti mento do que
pelo sexo, passiva, é vencida por um amor-paixão por Carlos; é uma romântica;
A Gouvarinho - sensual, provocante, com o seu quê de romântico;
- além destas, outras personagens como os zelosos Vilaças, D. Diogo - o penetrante, com «o seu fino olho à Balzac», os Cohen (a finança e o
«adultério elegante»), Craft na sua opinião romântica, de esteta: «E a obra de arte vive apenas pela forma», e o seu «ar imperturbável de
gentleman correcto»; Steinbroken - o diplomata finlandês, Cruges, o tipo são, o músico, tímido (até a natureza na viagem a Sintra se identifica
com ele - 236, 239), quase à parte desta longa galeria; Guimarães - simpatizante do comunismo, democrata de meia tigela será o portador da
carta que provoca o conflito; Palma Cavalão - o exemplo do jornalismo corrompido - todas servem ao intento do autor, quer sejam quase cari-