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Brincava a quê?
Eu, desde muito cedo, fazia desenhos ao colo de um tio. Que embora fosse
uma negação para o desenho, me instruía e animava essa vontade. Suponho
mesmo que criou essa vontade – coisa estranha. A minha mãe era outra
negação para o desenho. Quer eu quer o meu irmão mais velho, a [escola]
primária, estudámos em casa.
Tinham uma preceptora?
Era uma prima da minha mãe que era professora e que mais tarde foi nossa
explicadora de inglês. Morava em frente. Está a ver, era tudo muito
relacionado… Atravessa a rua de manhã e dava-nos aulas.
Até aos oito, nove anos, não sentiu medo? Das coisas em geral, e não
apenas das aulas e do professor.
É possível que alguma vez me tenha pegado com vizinhos, mas não me
lembro. As crianças eram muito protegidas, a vida era num círculo restrito. A
ida para o colégio não foi fácil. Eu não estava habituado ao convívio com
pessoas que não eram da relação da minha família. Depois adaptei-me –
incluindo o medo.
A mesa de jantar onde tudo se passava era parecida com esta onde
estamos, e que é onde trabalha?
Era mais larga, menos comprida.
Porquê?
Para resistirem, se houvesse bombardeamentos. Fazia-se uma quadrícula com
fitas adesivas, que foram distribuídas. Havia exercícios de simulação de um
ataque; aviões, navios e submarinos andavam ali muito perto. Foram
distribuídas lanternas aos homens que tinham idade de fazer guerra. Uma
lanterna que tinha um foco vermelho, um foco verde e um foco branco.
O seu pai falava muito do Brasil, onde viveu até aos 12 anos?
Falava bastante. Contava-nos histórias do Belém do Pará.
Urubus?
Sim! Uns pássaros feios. Falava do teatro de ópera, em Manaus. A vida
cultural era riquíssima. Contaram-me na Colômbia, (nas duas vezes que fui lá,
para seminários na Escola de Arquitectura de Bogotá), que se fazia a viagem a
partir de Bogotá, que é a 4000 metros [de altitude], para chegar a uma
cidadezinha junto a um rio, afluente do Amazonas. À medida que se vai
descendo, é impressionante o aumento de dimensão das folhas das árvores;
são enormes quando se chega à cidade. Contaram-me que o Caruso ia de
barco até essa cidade e depois ia até Bogotá de burro! Imagine que super-
homens eram estes! E chegavam lá e cantavam!
As coisas que o seu pai contava pareciam-se com essas? E alguma vez fez
essa viagem?
Fiz, de carro. O meu bisavô, que era fotógrafo profissional, tinha um estúdio
em Belém e na Goiânia, onde tinha um sócio inglês. Estive lá há pouco tempo.
O estúdio, a casa propriamente, já não existe. Ele deslocava-se entre o Pará e a
Goiânia e esteve na Exposição de Chicago [1893]. Descobriu-se a existência
de um álbum da cidade com fotografias do meu bisavô. Reeditaram-no há uns
anos. Organizaram uma exposição com as fotografias do bisavô e a mim
pediram-me para fazer desenhos dos mesmos sítios, hoje.
Herdou do seu pai o gosto pela ópera. A última vez que Caruso se
apresentou em público foi em Sorrento, no jardim do Hotel Excelsior.
Não sabia. Já fiquei várias nesse hotel, em frente ao mar, com o Vesúvio por
perto. Uma maravilha. Estou a fazer um trabalho em Nápoles, juntamente com
o Souto Moura. Vou lá para semana. E vou cantar! [risos] Nesse hotel, passou
tudo: o Humphrey Bogart, reis…
E o Siza.
[gargalhada]. Não me parece que o carisma seja o mesmo. O Humphrey
Bogart, fumando sempre. Recentemente vi num hotel em Londres o Breakfast
at Tiffany’s; no filme, todos fumavam, e no hotel era proibido! Uma nuvem de
fumo que quase invadia o espaço, mas que ficava no ecrã. Tornou-se um filme
sádico, para um fumador.
O cigarro, nos momentos em que está com outros e não pode desenhar, é
uma muleta e uma barreira?
Há um problema do uso das mãos ligado a isto. Uma pessoa habitua-se a ter as
mãos ocupadas, a empunhar o cigarro. Mas o mais importante é que [fumar] é
bom!
Fecha as pálpebras muitas vezes. Li que o António Damásio lhe disse que
esse tique deriva da consumo do tabaco.
O Damásio nem hesitou: “Isso é da nicotina”! Mas eu tenho ideia que não é…
O meu filho assistiu a um programa na televisão sobre isto. Nos Estados
Unidos, um grupo consistente de médicos estudava o fenómeno há anos e não
tinha chegado a conclusão nenhuma. Aparentemente é um nervo, louco, que,
quando lhe apetece, dá ordem à pálpebra para apertar. Não é a pálpebra que
cai, é um espasmo. Às vezes pode durar meia hora, e é fatigante.
Insisto na pergunta: por que é que não quis ser pintor se desenhar lhe era
tão essencial? E porque é que acha que foi mais tocado por ter visto uma
obra do Gaudì do que um quadro do El Greco?
O meu pai preparava as viagens, arranjava uns livros. “Vamos ver isto e isto”.
E quando vi imagens do Gaudì, alto: “Isto interessa-me. Parece escultura”.
Visitei quase todas as obras em Barcelona e apercebi-me que aquilo que para
mim era escultura era feito com portas, punhos de porta, rodapés… Aquilo
tinha tudo o que tinha a minha casa. Simplesmente era a cantar. Tudo
relacionado. Tive um baque pela arquitectura. Mas passou. Passou porque
estava interessado na escultura e na pintura.
Tsunami.
Exactamente. Eu estava em Vila do Conde, na rua à saída da ponte antiga.
Olho para trás e não era o rio que estava lá, era o mar. O mar ergueu-se, e
começou toda a gente a correr, amigos e amigas a subir a rampa. De repente
apareceu um autocarro amarelo, que se atravessa na rua. E fica-se ali
empancado, em terror.
Noutro desenho aparece implicado no que se vê. Vê-se a cena que desenha
e a sua mão a desenhar aquela cena.
Uma vez o arquitecto Távora falou-me de um desenho do paladium em que
aparece a mão. “Você copiou isto?”. “Não, nem conhecia o desenho”. Mas se
calhar vi-o. O desenhar, para um amador como eu, descontrai. Descontrai do
trabalho do arquitecto, que é de grande concentração e exigência. O Alvar
Aalto, que pintava, dizia que no desenvolvimento de um projecto, às vezes,
havia um bloqueio; estava encravado. Deixava tudo e ia para casa pintar ou
desenhar, sem pensar naquele problema. Às vezes, no que estava a fazer,
vinha a ponta da meada da solução. Portanto, há uma conquista de
espontaneidade e intuição que complementa o trabalho racional.
Porque é que sendo tão sensível ao que é familiar é tão desligado da casa
onde vive? Não viveu nunca casa projectada por si.
Devo ser um péssimo cliente!
Viveu a vida quase toda num apartamento da Rua da Alegria, que era a
casa onde viveu com a sua mulher e os seus filhos.
Vivi lá para aí 40 anos. Só recentemente mudei. Porque mudei o escritório
para aqui, onde estou com vários amigos. Achei que tinha de arranjar uma
casa perto. Surgiu esta possibilidade, uma casa feita pelo Souto Moura, e
comprei-a.
Souto Moura, de quem é amigo íntimo, vive no mesmo prédio. Como na
sua infância, os próximos vivem todos perto uns dos outros.
Não é bem a mesma coisa. Às vezes passa uma semana que não o vejo!
Atendendo à sua vida pensei que ia dizer que se passava um mês sem o
ver.
Não, isso não.
Está a dizer que também fez as contas que se faziam na casa dos seus
pais?
Ah, claro. Depois comecei a ter mais trabalho, e trabalho fora, e agora não me
posso queixar de ter dificuldades económicas. Vivo confortavelmente.
A sua vida parece uma fuga para a frente. Por causa da velocidade a que
vive, viaja, projecta, faz conferências, visita obras, recebe prémios. O que
é que o faz correr? E porque é que está sempre a correr?
É difícil escapar a tantas solicitações. Tento limitar o mais possível
workshops, conferências. Mas há muitos casos em que não é possível dizer
não. Mas toda essa actividade: acabo por gostar!
Isso incomoda-o?
Não me incomoda profundamente, mas incomoda-me que essas lendas criem
dificuldades. Como que deito árvores abaixo, que faço tudo branco, ou
cinzento. Pode haver projectos que não se desenvolvem porque há campanhas
contra. Juízos de valor: nem me incomoda nem deixa de incomodar.
Estou também a perguntar como lida com a ideia da morte, com o que
fica de si depois dela.
O grande poeta Gomes Ferreira: perguntaram-lhe sobre a relação com a morte.
“Não me importo nada. Mas na horinha vai ser uma grande vergonha.” O que
está implícito é que na horinha vai ter medo… O que me incomoda é a ideia
de ficar imobilizado, de ser uma carga para alguém, num estado lamentável.
Agora há esse debate sobre a eutanásia: eu preferiria, se estivesse numa vida
vegetal, que não fossem utilizados meios para prolongar uma situação que, já
não é de agonia: é de inconsciência.