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07/05/2019 O Brasil contra a filosofia

O Brasil contra a filosofia


Olavo de Carvalho
Playboy, novembro de 2006

Outro dia, meu filho de dezessete anos me disse: “Pai, no Brasil


nunca vi alguém que acreditasse em alguma coisa por ser
verdade. Eles dizem o que querem que aconteça, ou o que
acham que é bom para eles, e chamam isso de ‘verdade’.”

É a experiência de um garoto que veio para os EUA dezoito


meses atrás. Se tivesse desembarcado no Japão ou em Angola
seria a mesma coisa. Ele tinha descoberto a diferença entre o
Brasil e a espécie humana.

Não foi só ele quem descobriu. Nossos melhores romancistas –


Machado de Assis, Lima Barreto -- já haviam reparado no
fenômeno. Para isso é preciso muito estudo, muita reflexão.
Sobretudo é preciso que tenha despertado na sua alma aquilo
mesmo que falta no ambiente: o desejo de conhecer a realidade,
de sacudir de si o torpor solipsista e tentar descobrir as coisas
como são. O brasileiro a quem isso aconteça vê logo um abismo
abrir-se entre ele e os outros. O que ele aprendeu é
incomunicável na linguagem comum, feita para expressar
desejos, temores, esperanças, não fatos, coisas, situações. Ele é
agora o portador de um segredo, e quanto mais se esforça em
revelá-lo mais parece ocultá-lo sob um manto esotérico. Os
profanos se vingam, chamando-o de arrogante e esnobe. A
família ri dele, a namorada ameaça largá-lo. Então ele não
agüenta mais: vende a consciência em troca de afeição. Está
maduro para tornar-se um professor da USP.

Tanto em Machado quanto em Lima Barreto os únicos


personagens que querem saber da realidade acabam vivendo

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num quase completo isolamento. O Conselheiro Aires e M. J.


Gonzaga de Sá personificam o destino da consciência inquieta
num oceano de inconsciência satisfeita. Não estou falando do
“destino do intelectual”. O Brasil está cheio de intelectuais. Eles
não precisam se perguntar sobre a realidade porque já
receberam todas as respostas na universidade, acompanhadas
da reconfortante solidariedade grupal que acaba se tornando o
mais invencível dos vícios. Eles tanto desprezam o
conhecimento que, quando encontram alguém que sabe mais
que eles, tratam logo de isolá-lo para que não cometa o pecado
de lhes ensinar alguma coisa.

A filosofia nasce da pergunta sincera sobre a realidade. Com o


tempo, pode degenerar em imitação acadêmica, mas sempre há
filósofos genuínos que a devolvem à sua inspiração primeira.
No Brasil, o que se entende por filosofia não é nem a imitação
acadêmica: é a imitação da imitação acadêmica européia. Sim, a
nossa experiência da filosofia não vem da fonte direta, daquele
espanto inicial, o thambos aristotélico, que desperta o desejo de
conhecer. Não vem sequer dos gregos, portadores da
experiência originária do thambos. Quando tomamos
conhecimento da filosofia, já é de terceira mão, por meio de
seus mais recentes subprodutos universitários. A régua com
que medimos nossas miúdas especulações não é a
profundidade e seriedade da experiência interior ou exterior,
não é nem mesmo a tradição clássica; é o critério escolar do dia,
é a opinião corrente de burocratas, arquivistas da filosofia. Na
USP ou na PUC ninguém jamais se interessou em
conhecimento da realidade. Talvez nem concebessem que ela
existe -- e ainda foram reforçados nesse estado de ignorância
homeostática pela autoridade clerical do desconstrucionismo,
que transforma a impotência de conhecer numa obrigação
estatutária de achar que não há nada para ser conhecido.
Dispensados de respeitar a presença das coisas e seres, estão
livres para tagarelar sobre “autores”, “textos”, “discursos”,
“constructos culturais”, bem como para entregar-se à volúpia
da “imposição de discurso” sob a desculpa de que ninguém
jamais fez outra coisa no mundo.

Não espanta que, após alguns anos dessa dieta, não agüentem
manter nem sequer o padrão escolar, e caiam para a
papagaiada ideológica. Ideológica? Não chegam nem a isso.
Doutrinação ideológica supõe algum esforço intelectual,
alguma ordenação das idéias. Isso está infinitamente acima da
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capacidade de um Emir Sader, de uma Marilena Chauí, de um


Gilberto Felisberto de Vasconcelos. O que eles fazem é
beletrismo publicitário esquerdista, desesperadoramente
kitsch.

O Brasil optou desde o século XIX por uma cultura de ódio ao


conhecimento e de amor às futilidades socialmente lindinhas.
Só faltava transformá-la numa força política organizada. Com a
ajuda de Antonio Gramsci, a presente geração de intelectuais
ativistas fez isso. O Mensalão, o dinheiro na cueca e cinqüenta
mil homicídios anuais entre louvores entusiásticos à
normalidade democrática são a cultura brasileira transfigurada
em Estado.

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