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Filologia Portuguesa - FFLCH - USP - Maria Clara Paixão de Sousa – MATERIAL DE APOIO [ 6 ]

[ 6] Crônica de D. João I – Fernão Lopes

(a) Fac-simile: Imagens da Cronica de D. João I

Arquivo Nacional da Torre do Tombo: Tesouros. <http://ttonline.dgarq.gov.pt>

Crónica de D. João I, primeira parte, 1


PT-TT-CRN/8; TES05\TT-CRN-8_1_c0001.jpg

Crónica de D. João I, primeira parte, 8v-p1


PT-TT-CRN/8 ; TES05\TT-CRN-8_8v-p1_c0003.jpg

(b) Edição Diplomática

Lopes, Fernão. Chronica del Rey D. Ioam I de Boa Memoria e dos reys de Portugal o decimo. Em Lisboa: Antonio Alvarez,
1644. - 2 v.;28 cm. BN H.G. 2551V. BN H.G.2552 V. Biblioteca Nacional de Lisboa. Edição diplomática
eletrônica: Corpus Tycho Brahe. <http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus/texts/xml/l_002>

[Fol. 003 ]

AQVUI COMEÇA
A CORONICA DELREY
DOM IOHAM DE BOA MEMORIA O
Primeiro deſte nome, & dos Reys
de Portugal o decimo.

CAPITULADA, E COMPOSTA POR FER-


não Lopez Eſcriuão da Puridade do Infante Dom Fernando,
filho do meſmo Rey Dom Iohão.

A QVAL CORONICA O DITO FERNAM LOPEZ


fez por mandado DelRey Dom Duarte, ſendo Principe.

CAPITULO PRIMEIRO,
REZOENS EM PROLOGO DO AVTOR
desta obra, ante que fale dos efeitos do Meſtre.

G
RANDE LI- de ſeus feitos. E tal fauoreza, co-
cença deu a afei mo eſta, nace de mũdanal afei-
ção a muitos, q' ção, a qual não he, ſaluo confor-
tiueraõ cargo midade de algũa couſa ao enten-
de ordenar hiſ- [5] dimento do homem. Aſſi que a [15]
torias, mórmen terra em que os homens, por lon
te dos Senhores, em cuja merce, go coſtume, & tempo, forão cria-
e terra viuiaõ, e onde forão nados dos, gèra hũa tal conformidade
ſeus antigos auôs, ſendolhe muy antre o entendimento, & ella;
to fauoraueis no recontamento [10] q'auendo de julgar algũa ſua cou [20]
Filologia Portuguesa - FFLCH - USP - Maria Clara Paixão de Sousa – MATERIAL DE APOIO [ 6 ]

[A ſa ]

[2 ]

ſa aſſi em louuor, como por cõ ſos, por as mingoas das terras de


trairo, nunca por elles he direita- que eraõ em certos paſſos clara-
mente recontada, porque louuã- mente não ſerem viſtas, eſpecial
doa, dizem ſempre mais daquel- mente no grande deſuairo, que o
lo, & ſe doutro modo naõ eſcre- [25] muy virtuoſo Rey da boa memo [60]
uerem ſuas perdas tão mingua- riaDom Iohão, cujo regimento, e
damente, como acontecerem, ou reynado ſe ſegue, ouue com o
tra couſa gera ainda eſta confor- nobre, & poderoſoRey Dõ Iohão
midade, & natural inclinação, ſe de Caſtella, poendo parte de ſeus
gundo ſentença de alguns que o [30] bons feitos fora do louuor, que [65]
pregoeiro da vida he a fame, rece merecia, & enadindo em alguns
bendo refeição, para o corpo, o outros da quiſa, que não aconte
ſangue, & eſpiritos gerados de tã ceraõ, atreuendoſe a pobricar eſ-
tas ciandas, tẽ hũa tal ſemelhan- to em vida de taes, que lhe forão
ça antre os que cauſa eſta confor [35] companheiros, bem veedores de [70]
midade. Alguns outros tiueraõ, q' todo o contrario. Nós certamen
iſto decia na ſemente, no tempo te leuando outro modo, poſta a
de geração, a qual diſpoem por departe toda affeição, que por a
tal guiſa aquello, q' della he gra- zo das ditas rezoens auer podia-
do, que lhe fica eſta conformida mos, noſſo deſejo foi em eſta o- [75]
[40]
de, tambem acerca da terra, co- bra eſcreuer verdade, ſem outra
mo de ſeus diuidos, & ao que pa meſtura leixando nos bons aque
rece que o ſentio Tulio, quando cimentos todo fingido louuor, e
veio a dizer. Nós não ſomos nados mormente moſtrar ao pouo, qua
a nós meſmos, porque hũaparte de eſquer contrairas couſas da guiſa [80]
nós tem a terra, & a outra os pa- [45] que auierem. E ſe o Senhor Deos
rentes: & porém o juizo do ho- a nós outorgaſſe o que algũs eſ-
mem acerca de tal terra, ou peſ- creuendo naõ negou, conuem a
ſoas recontando ſeues feitos, ſem- ſaber, em ſuas obras calra certidão
pre copega. Eſta mundanal affei de verdade, ſem duuida não ſo- [85]
ção fez alguns hiſtoriadores, que [50] mente mentir do que ſabemos,
os feitos de Caſtella, com os de mas ainda errãdo falſo não que-
Portugal, eſcreverão, poſto que riamos dizer, como aſſi ſeja, que
homensd de boa authoridade foſ outra couſa não he deerrar, ſaluo
ſem, deſuiar da verdadeira eſtra- cuidar que he verdade aquello ~q [90]
da, & colher por ſemideiros eſcu [55] he falſo, & nos enganados por ig

[noran- ]
Filologia Portuguesa - FFLCH - USP - Maria Clara Paixão de Sousa – MATERIAL DE APOIO [ 6 ]

[3]

norancia de velhas eſcrituras, & ſa faluo de muitos aprouado,


deſuairados authores, bem podia & por eſcrituras veſtidas de ſò .
mos ditando errar; porém que eſ Doutra guiza ante nos calaria-
creuendo homem do que não he [95] mos, que eſcreuer couſas falſas,
certo, ou contar mais curto do que logar nos ficaria para a fer- [140]
que foi, ou falara mais largo do moſura, & afeitamento das pala-
que deuemos, mentirá, & eſte co uras, pois todo noſſo cuidado he
ſtume he muito afaſtado de noſ- [100] iſto deſpezo naõ abaſta para or-
ſa vontade. E com quanto cui- denar a mà verdade; porem ape-
dado, & diligencia vimos gran- guandonos em ella firme os cla- [145]
des volumes de liuros, & deſuai- ros feitos dignos de grande re-
radas longoagens, & terras, & iſſo [105] lembrança do mui famoſo Rey
meſmo publicas eſcripturas de Dom Iohão ſendo Meſtre; de ~q
muitos cartorios, & outros luga- guiſa matou o Conde Iohão Fer-
res, nas quaes, deſpois de longas nandez; & como o pouo de Lis- [150]
vigilias, & grandes trabalhos, [110] boa o tomou primeiro por ſeu
mais certidão auernão podemos Regedor, & defenſos, & depois
do conteudo em eſta obra. E ſen outros alguns do Reyno; & deſ-
do achado em algũs liuros o cõ- hi em diante como reynou, &
trairo do que em ella falla, cui- [115] em que tempo, breue, & ſaámen [155]
dai que não ſabedormente,mas te contados poemos em praça
errando muito ſerão taes couſas. na ſeguinte obra.
Se outros por ventura em eſta co
ronica buſcão fermoſura, & no- [120]
uidade de palauras, & não acer- CAP.2. Como o Conde
tidão das hiſtorias, deſprazerlhe ouvera,
ha de noſſo rezoado, muito li- de ſer morto por vezes, &
geiro a elle de ouuir, & não ſem [125]
gram trabalho em nos de o orde ne-
nar. Mas nós não curando deſeu nhũa ouue azo de ſe acabar.
juizo, leixando os cõpoſtos, & en F ALANDO algũs
feitados rezoamentos, que mui- [130] da morte do Con-
to deleixão aquelles que ouuem de Iohão Fernan-
antepoemos a ſimpres verdade, ~q dez, onde ſe come-
afermoſentando falſidade. Nem ção os feitos do eſtre allegaõ
entendaes que certificamos cou- [135] hum dito, de que nos naõ praz,
dizendo que fortuna muitas ve-
zes por longo tẽpo eſcuſa amor
a alguns homens por lhe depois
[A 2 azar ]
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(c) Comentário Lingüístico (morfossintaxe)

GRANDE LI- de ſeus feitos. E tal fauoreza, co-


cença deu a afei mo eſta, nace de mũdanal afei-
ção a muitos, q' ção, a qual não he, ſaluo confor-
tiueraõ cargo midade de algũa couſa ao enten-
de ordenar hiſ- [5] dimento do homem. Aſſi que a [15]
torias, mórmen terra em que os homens, por lon
te dos Senhores, em cuja merce, go coſtume, & tempo, forão cria-
e terra viuiaõ, e onde forão nados {1} dos, gèra hũa tal conformidade
ſeus antigos auôs, ſendolhe muy antre o entendimento, & ella;
to fauoraueis no recontamento [10] q'auendo de julgar algũa ſua cou [20]

[A ſa ]

[2 ]
ſa aſſi em louuor, como por cõ ſos, por as mingoas das terras de
trairo, nunca por elles he direita- que eraõ em certos paſſos clara-
mente recontada, porque louuã- mente não ſerem viſtas, eſpecial
doa, dizem ſempre mais daquel- mente no grande deſuairo, que o
lo, & ſe doutro modo naõ eſcre- [25] muy virtuoſo Rey da boa memo [60]
uerem ſuas perdas tão mingua- riaDom Iohão, cujo regimento, e
damente, como acontecerem, ou reynado ſe ſegue, ouue {4}com o
tra couſa gera ainda eſta confor- nobre, & poderoſoRey Dõ Iohão
midade, & natural inclinação, ſe de Caſtella, poendo {5} parte de ſeus
gundo ſentença de alguns que o [30] bons feitos fora do louuor, que [65]
pregoeiro da vida he a fame, rece merecia, & enadindo em alguns
bendo refeição, para o corpo, o outros da quiſa, que não aconte
ſangue, & eſpiritos gerados de tã ceraõ, atreuendoſe a pobricar eſ-
tas ciandas, tẽ hũa tal ſemelhan- to em vida de taes, que lhe forão
ça antre os que cauſa eſta confor [35] companheiros, bem veedores de [70]
midade. Alguns outros tiueraõ, q' todo o contrario. Nós certamen
iſto decia {2} na ſemente, no tempo te leuando outro modo, poſta a
de geração, a qual diſpoem por departe toda affeição, que por a
tal guiſa aquello, q' della he gera- zo das ditas rezoens auer podia-
do, que lhe fica eſta conformida mos {6}, noſſo deſejo foi em eſta o- [75]
[40]
de, tambem acerca da terra, co- bra eſcreuer verdade, ſem outra
mo de ſeus diuidos, & ao que pa meſtura leixando nos bons aque
rece que o ſentio Tulio, quando cimentos todo fingido louuor, e
veio a dizer. Nós não ſomos nados {3} mormente moſtrar ao pouo, qua
a nós meſmos, porque hũaparte de eſquer contrairas couſas da guiſa [80]
[45]
nós tem a terra, & a outra os pa- que auierem. E ſe o Senhor Deos
rentes: & porém o juizo do ho- a nós outorgaſſe o que algũs eſ-
mem acerca de tal terra, ou peſ- creuendo naõ negou, conuem a
ſoas recontando ſeus feitos, ſem- ſaber, em ſuas obras calra certidão
pre copega. Eſta mundanal affei de verdade, ſem duuida não ſo- [85]
ção fez alguns hiſtoriadores, que [50] mente mentir do que ſabemos,
os feitos de Caſtella, com os de mas ainda errãdo falſo não que-
Portugal, eſcreverão, poſto que riamos dizer, como aſſi ſeja, que
homensd de boa authoridade foſ outra couſa não he deerrar, ſaluo
ſem, deſuiar da verdadeira eſtra- cuidar que he verdade aquello ~q [90]
da, & colher por ſemideiros eſcu [55] he falſo, & nos enganados por ig
[noran- ]
Filologia Portuguesa - FFLCH - USP - Maria Clara Paixão de Sousa – MATERIAL DE APOIO [ 6 ]

[3]

norancia de velhas eſcrituras, & ſa faluo de muitos aprouado,


deſuairados authores, bem podia & por eſcrituras veſtidas de ſò .
mos ditando errar; porém que eſ Doutra guiza ante nos calaria-
creuendo homem do que não he [95] mos, que eſcreuer couſas falſas,
certo, ou contar mais curto do que logar nos ficaria para a fer- [140]
que foi, ou falara mais largo do moſura, & afeitamento das pala-
que deuemos, mentirá, & eſte co uras, pois todo noſſo cuidado he
ſtume he muito afaſtado de noſ- [100] iſto deſpezo naõ abaſta para or-
ſa vontade. E com quanto cui- denar a mà verdade; porem ape-
dado, & diligencia vimos gran- guandonos em ella firme os cla- [145]
des volumes de liuros, & deſuai- ros feitos dignos de grande re-
radas longoagens, & terras, & iſſo [105] lembrança do mui famoſo Rey
meſmo publicas eſcripturas de Dom Iohão ſendo Meſtre; de ~q
muitos cartorios, & outros luga- guiſa matou o Conde Iohão Fer-
res, nas quaes, deſpois de longas nandez; & como o pouo de Lis- [150]
vigilias, & grandes trabalhos, [110] boa o tomou primeiro por ſeu
mais certidão auer não podemos {7} Regedor, & defenſos, & depois
do conteudo em eſta obra. E ſen outros alguns do Reyno; & deſ-
do achado em algũs liuros o cõ- hi {9} em diante como reynou, &
trairo do que em ella falla, cui- [115] em que tempo, breue, & ſaámen [155]
dai que não ſabedormente,mas te contados poemos {10} em praça
errando muito ſerão taes couſas. na ſeguinte obra.
Se outros por ventura em eſta co
ronica buſcão fermoſura, & no- [120]
uidade de palauras, & não acer- CAP.2. Como o Conde ouvera,
tidão das hiſtorias, deſprazerlhe de ſer morto por vezes, & ne-
ha de noſſo rezoado, muito li- nhũa ouue azo de ſe acabar.
geiro a elle de ouuir, & não ſem [125]
gram trabalho em nos de o orde F ALANDO algũs
nar. Mas nós não curando deſeu da morte do Con-
juizo, leixando os cõpoſtos, & en de Iohão Fernan-
feitados rezoamentos, que mui- [130] dez, onde ſe come-
to deleixão aquelles que ouuem ção os feitos do eſtre allegaõ
antepoemos {8} a ſimpres verdade, ~q hum dito, de que nos naõ praz,
afermoſentando falſidade. Nem dizendo que fortuna muitas ve-
entendaes que certificamos cou- [135] zes por longo tẽpo eſcuſa amor
a alguns homens por lhe depois
[A 2 azar ]

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