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A casa, o sangue e uma memória delicada: a captura da “política” pela “moral”

em um povo de herdeiros e posseiros (Norte de Minas Gerais)

Ana Carneiro
(CFCHS/UFSB)

1 – Apresentação

Nesta fala, proponho articular ideias que desenvolvi em outros dois artigos, à primeira
vista sem muita relação entre si, a não ser pelo fato de estarem baseados em trabalho de campo
realizado junto ao Povo dos Buracos, localidade de aproximadamente 40 casas, situada ao norte
de Minas Gerais, no município de Chapada Gaúcha (na região identificada como Sertão
nortemineiro ou Sertão roseano, em função da paisagem na qual se ambientaliza a obra de
Guimarães Rosa).
O primeiro artigo, publicado na Revista Ruris em 2015, tratava de narrativas de memória
sobre Eloy Ferreira da Silva, nascido e criado no Povo dos Buracos, sindicalista rural,
assassinado em 1984, a mando de latifundiários.
O segundo, publicado na Revista Estudos Feministas em 2017, mostrava como as práticas
femininas da “mexida de cozinha” e o conhecimento sobre o corpo que elas engajam são centrais
na maneira como aquele povo concebe e vivencia as relações sociais em geral. Noutras palavras,
o “de-comer” daquele povo chapadense oferece-nos uma maneira peculiar de se pensar o sistema
social.
Vou buscar aqui aplicar esse modelo nativo de sistema social na compreensão de certos
fenômenos que poderiam ser descritos como da esfera “política”, mas não o são para aqueles que
os vivenciam.
Nos dois casos, o material etnográfico trazia uma dimensão moral. Em relação às práticas
culinárias, essa dimensão se evidencia, por exemplo, no sistema de classificação da “comida
reimosa”, que se articula com definições morais da pessoa e do corpo, seja em expressões como
“sangue ruim” e “sangue bom”, seja no receio de que uma cozinheira possa “rezar a comida”
(isto é, que possa “fazer porqueira”, ou seja, “botar feitiço”).
Quanto às narrativas em memória de Eloy Ferreira da Silva, a ênfase na maneira com que
ele fora assassinato, com sete machadadas na cabeça, era narrada pelos parentes em tom de
avaliação moral contra os assassinos: “ruindade”, “porqueira”, diziam-me. Com isso, pouco ou
nada era dito sobre a trajetória de luta política de Eloy junto ao sindicato, pelo direito à terra dos
pequenos posseiros, que havia motivado o crime. O mote dos relatos era o fato de que Eloy “era

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muito católico” e tinha “o corpo fechado”, por isso não bastaram as balas de revólver, foi preciso
quebrar seu crânio para desfazer a reza que protegia seu corpo. Foi muito sangue.
O que pretendo aqui é analisar a memória de Eloy a partir da lógica da “mexida de
cozinha”, que apresentei como fundamental ao entendimento das relações sociais em geral,
conforme observei na localidade dos Buracos, mas que parece se estender para os povos de
agricultores familiares daquela ampla região do cerrado.
Um terceiro caso, também relacionado à destruição de corpos e avaliações morais,
motivou-me a articular esses dois artigos. Em 2017, o funcionário de uma escola infantil em
Janaúba, também no norte de Minas, incendiou a escola com as crianças dentro, matando
queimadas a maior parte delas. A tragédia virou notícia nacional e logo comecei a receber de
minhas amigas chapadenses e buraqueiras textos, viralizados via Whatsapp, nos quais o horror
do ocorrido era associado à então recente exposição de arte queer, no Rio Grande do Sul,
promovida pelo Banco Santander e cancelada pelo mesmo, após protestos de seus clientes. Os
corpos das crianças da tragédia em Janaúba eram assim associados à exposição de corpos nus e
ao que se definia como “crescente desrespeito às crianças”. Na mesma semana, precisamente em
12 de outubro, Dia das crianças e também de N.S. da Aparecida, recebi uma mensagem com esse
mesmo teor (embora não mencionasse Janaúba). Foi enviada a mim por uma amiga que se tornou
muito próxima quando realizei pesquisa de campo nos Buracos, onde ela morava e onde nasceu
e se criou. Tratava-se de um vídeo no qual o pastor evangélico Marco Feliciano dizia o seguinte
(reproduzo os principais trechos):
“Peço a sua atenção e reflexão sobre a avalanche de ataques que vêm sofrendo nossas
crianças, nossas famílias e os bons costumes. Depois de tantos protestos que registrei
recentemente contra a exposição de arte com sexo bizarro no Rio Grande do Sul. Ou com o
homem nu no Museu de Arte Moderna em S. Paulo, com a menina levada pela mãe pra tocar o
seu corpo nu, ou sobre a novela da Globo, que só ensina porcariadas. Por exemplo uma menina
trocando de sexo ao seu bel prazer, numa diabólica naturalidade, inundando nossos lares de
abominação como apologia ao tráfico. Hoje, torno a me indignar com um vídeo levado ao ar
pelo Ministério dos Direitos Humanos, abordando a teoria de gênero, mas com cenas de apologia
a esse comportamento. [...]. Agora, se não bastasse, a fabricante de Sabão Omo, o mais vendido
no Brasil, lança uma campanha de gênero, estimulando que meninas brinquem com brinquedos
de meninos e meninos brinquem com brinquedos de meninas... Deixa eu respirar aqui... Senhores
pais e senhoras mães, será que vivemos em outro planeta? [...]. Estamos na semana da criança.
[...]. Sou pai. E em nome de milhares de pais quero oferecer meu protesto ao governo federal por
essa propaganda desnecessária. E ao sabão Omo. Para que deixem nossas crianças em paz. [...].
Não podemos deixar que eles destruam a nossa família, que destruam a nossa fé, que destruam

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as nossas crianças. [...] Diferenças são intrínsecas ao ser humano. O homem vai sempre proteger,
e a mulher, vai sempre amamentar. Pergunto se tem como o homem amamentar com seu corpo
natural. [...] Portanto, aí vai meu apelo: que todos façam boicote geral contra o sabão Omo. Para
que suspenda contra essa sórdida desconstrução da sociedade, implantar regimes onde o Estado
e a sociedade tomam o lugar de Deus. [...]”
Assustei-me com esta mensagem. A dimensão moral da família, da fé em Deus e da
atenção cuidadosa à corporalidade havia sido capturada por um moralismo radical e duro que eu
não nunca havia observado antes, quando morei nos Buracos. De onde vinha essa adesão a um
deputado da chamada Bancada do boi, da bala e da Bíblia? Bancada essa cuja pauta vai
justamente contra os direitos de populações tradicionais tais como o Povo dos Buracos. Como
entender essa adesão ao discurso de Marco Feliciano?1
Voltei a lembrar do episódio de Eloy Ferreira da Silva e da maneira com que a dimensão
política do crime contra ele havia sido silenciada na memória de seus parentes. Logo após o
assassinato, sua mulher e filhos partiram para a cidade de São Francisco e rarearam o contato
com a parentada que ficou. Durante minha pesquisa de campo para o doutorado, tornei-me
bastante próxima da irmã de Eloy, Dona Zefa, que aos 70 anos deixara a localidade dos Buracos
para morar em Chapada Gaúcha. Em sua casa, acostumei a passar longas tardes nas quais
conversávamos, comíamos e, sobretudo, bebíamos café. Seu assunto preferido era a ampla
variedade de plantas medicinais em seu quintal. Pouco falávamos sobre Eloy, cujo retrato
pregado na parede não rendia muita prosa.
Em 2010, logo após o término do doutorado, fui contratada pelo Ministério do
Desenvolvimento Agrário para ajudar a elaborar uma publicação sobre a repressão no campo
durante a Ditadura Militar (1964-1984)2. Findo o trabalho, fui visitar D. Zefa para lhe presentear
com a publicação e ela então me contou que, ao longo dos anos, haviam aparecido um e outro
interessados no caso de Eloy, sempre “gente de fora”. Foi uma dessas “gentes” que lhe
presenteara com o livro intitulado Eloy: morre a voz, nasce o grito (AMADO, 1985). O livro
permanecia guardado havia alguns anos, integrando um conjunto de objetos em memória a
Eloy: uma carta, papéis do sindicato, poucas fotos. Tudo dentro de uma caixa escondida no

1
Utilizo aqui o termo “adesão” para marcar, mesmo que ainda de forma tangencial, a ideia do “voto como adesão”,
elaborada por Heredia e Palmeira (2006).
2
O projeto Direito à Memória e à Verdade, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH)
promoveu, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a publicação de Retrato da
repressão política no campo – Brasil 1962-1985 – camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Participei da
empreitada ao lado de Marta Cioccari, como pesquisadora de conteúdo e redatora dos textos. Contamos ainda com
a ajuda de pesquisadores com longa trajetória de engajamento na reconstrução desta memória, dentre eles, Moacir
Palmeira (que supervisionou a pesquisa) e Leonilde Medeiros (CPDA/UFRRJ) tiveram importância chave. Caio
Galvão de França, então vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, participou da coordenação do
projeto de publicação e também trouxe importantes contribuições. Cf. Carneiro e Cioccari, 2010.

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armário, que ela só me mostraria por ocasião daquela minha revisita3. Mesmo assim, Zefa não
me falou do percurso político do irmão. Contou com detalhes o episódio do assassinato, “um
trem feio”, mas se calou quando eu pedi para ligar o gravador.
Diante da caixa guardada por D. Zefa, não podemos dizer que se trata de um apagamento
da memória, mas antes de uma forma particularmente cuidadosa de lidar com um acontecimento
vivido sob a imposição do silêncio. Nunca é demais lembrar que, à época do assassinato, o
próprio termo “camponês” era tido pela Ditadura Militar como perigoso, subversivo. O ponto
aqui é questionar sobre as implicações atuais deste silenciamento histórico, uma vez que, após o
Golpe de 2016, vemos ressurgir o contexto de acirramento da repressão e assassinatos de
lideranças dos movimentos sociais. Assim, a mensagem de Marco Feliciano surge aqui não como
alvo da análise, mas para explicitar o que motivou minha indagação sobre o processo de
descontextualização e captura de valores morais marcadamente importantes para aqueles povos.
Fora de Chapada Gaúcha, como no caso do livro produzido pelo MDA, Eloy é conhecido
como “Heroi dos posseiros”, mas nunca ouvi isto ser mencionado por lá. Embora exista na cidade
uma rua com seu nome, o engajamento político de Eloy, na memória de seus próprios parentes,
era no máximo narrado como uma “questão de cerca”. Muito pouco ou nada era mencionado
sobre sua atuação como sindicalista. A história que me fora contada em campo era outra: um
“causo delicado” que falava, afinal, de uma “morte feia”; “uma porqueira”. Os causos contados
desenrolavam-se em versões que diferiam pontualmente entre si, mas guardavam em comum a
extensa descrição dos pormenores do crime e a ênfase no fato de que Eloy tinha o “corpo
fechado”.
Esse silencio não significa que seus parentes deslegitimem o direito à terra de quem nela
trabalha, conforme defendia Eloy Ferreira. Nos Buracos, é comum ouvir frases como: “A terra
é o presente mais lindo que Deus deu pra nós!”, “Deus deu a terra e a semente pra nós trabalhar
nela!”. Esse valor da terra para trabalho, porém, raramente (ou quase nunca) era mencionado
quando narravam o crime contra alguém que foi uma liderança sindical reconhecida
nacionalmente. O que repetiam e enfatizavam inevitavelmente era o gesto concreto da destruição
de seu corpo, o sangue que saiu de sua cabeça arrebentada.
O que a narrativa da morte de Eloy nos contava através da destruição de seu corpo? Como
esta lógica de entendimento sobre as relações sociais pode servir à descontextualização de
avaliações morais, como no aconteceu no caso das mensagens de Whatsapp? Não se trata aqui

3
Perceberia mais tarde que, inversamente às minhas expectativas, a publicação do MDA/SDH tampouco circularia
entre os parentes e amigos: gerando entre esses não mais do que raros comentários, permanece hoje guardada junto
a outros objetos cuja evocação afetiva não convém expor diariamente. Muito diferentes foi a recepção à publicação
de minha tese, um estudo de comunidade sobre o Povo dos Buracos (Carneiro, 2015), que gerava constantes
comentários e conversas entremeadas a risadas, como constatei em minhas as visitas posteriores e também via
Facebook.

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de analisar o discurso do pastor Feliciano, mas de explicitá-lo como trampolim para tais questões.
Em suma: como e em que arranjos se dá esse processo de captura da “política” pela “moral”?

2 – O corpo, a casa e a terra:

Nos Buracos, o corpo é matriz de significados sociais e é objeto de pensamento constante


do povo dos Buracos. Podemos entender que há ali uma “fisio-logia” que é também uma “sócio-
logia”4. Como sugere a expressão local “mexida de cozinha”, há um modo de intervenção e
movimento da mulher na cozinha que colocam em continuidade processos fisiológicos e sociais.
O “modo de comer e de conversar” é o que, nas elaborações que ouvia, definiam a noção de
“sistema”, termo utilizado para identificar uma unidade social e defini-la das demais, seja o
sistema de um povo, de uma casa, de uma família. Se o sistema é o mesmo que “modo de comer
e de conversar”, como formulam os buraqueiros, o sistema de um povo articula-se, em última
análise, ao sistema da casa, ou da cozinha metonimicamente.
A circulação de visitas é um bom exemplo: só se paga a visita a uma casa fazendo uma
visita de volta à casa de quem veio, explicam os buraqueiros. Essa troca lembra-nos o que
Nancy Munn (1992) formulou a respeito das transações do Kula vistas da perspectiva da casa:
a fama de um objeto trocado no circuito trobriandês depende do que se diz durante a negociação.
Assim, os objetos carregam o nome do dono, e permitem que este “vá além”. O valor máximo
da troca diz respeito a esta extensão espaço-tempo, que é a própria a memória – aquela que
fornece os meios para se “mover a mente do outro” e assim exercer poder. Não à toa, em época
de campanha eleitoral, o “tempo da política”, a visita à casa de famílias (sobretudo de famílias
numerosas) é a principal atividade de campanha dos candidatos a vereador. Deles, eu ouvia
sobre suas diversas estratégias e preocupações com os códigos de conduta numa visita: saber
chegar, não se demorar além do tempo, mas também não ser rápido demais, elogiar o de-comer,
não falar mal dos outros 5.
Quem é de casa, já entra pela cozinha e já vai se servindo do café... As chegadas mais
cerimoniosas, as chamadas “visitas”, ocorrem pela porta da frente. Os visitantes costumam se
ater sob o alpendre antes de entrar na sala e, só depois do convite, adentrar a cozinha, lugar por
excelência da prosa demorada, da criação de intimidade. E da criação das crianças. “Criança não
é pra ser criada nas casas dos outros”, ralham por exemplo as avós que criticam a criação recebida

4
A exemplo do que propuseram Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, em 1979, sobre as sociedades indígenas
sul-americanas, sugiro que há, nos povos dessa região, uma fisiológica dos fluidos corporais e dos processos de
comunicação do corpo que subjaz às variadas formas de qualificação das relações pessoais estabelecidas ali.
5
Estas evidências etnográficas do imbricamento entre as dinâmicas da casa e da política institucional encontra
eco na análise de Comerford (2003) a respeito da família e do sindicato.

5
pelos netos. “Mãe é quem cria”, diz o dizer; “Panela que te criou não fura”, dizem às mães
quando querem que as filhas voltem a morar de junto delas.
A articulação entre o conhecimento culinário das mães e o conhecimento do sangue
(metonimicamente, do corpo humano) é operada com domínio pelas mulheres e seu vocabulário
de práticas rotineiras. O sangue pode ser, por exemplo, “apurado”, isto é, intensificado na
mistura, assim como ocorre na procriação feita por primos, parentes em geral, pessoas que têm
“um sangue só”, o sangue fica “grosso”, explicam-me e daí o motivo de doenças congênitas
serem mais frequentes nos filhos nascidos de casamentos entre parentes demasiadamente
próximos, como primos-irmãos. Igualmente, vê-se o caldo ser “apurado” no fogo brando, mode
engrossar.
De formas enviesadas, o escândalo entorno da exposição de arte queer, a tragédia de
Janaúba e as sete machadadas na cabeça de Eloy também traziam à cena confluências entre corpo
e sociedade:
“Diz’que nem com os tiros Eloy não morreu. Tiveram que dar sete machadadas na cabeça
dele, encontraram a cabeça de Eloy toda aberta, um buraco que dava pra ver tudo dentro. Aquele
sangue, aquele sangão grosso! Encontraram o pobre todo judiado! O criminoso foi lá e bateu
sete vezes pra abrir a cabeça de Eloy! Diz que só assim ele morreu, porque aí quebrou o encanto.
Da reza, que diz’que Eloy tinha o corpo protegido, tinha o corpo fechado”.
A única pessoa que rememorou o ocorrido com o sindicalista a partir da contextualização
da questão agrária foi Mundinho, então prefeito de Chapada Gaúcha pelo Partido dos
Trabalhadores. Além de sobrinho de Eloy Ferreira, Mundinho também havia sido presidente do
sindicato dos trabalhadores rurais. Em 2010, quando eu preparava a redação sobre Eloy para
constar na publicação do MDA, recorri a Mundinho, que então me enviou por escrito o seguinte
relato:
“Tenho lembranças vivas sobre Eloy Ferreira da Silva, pois desde criança cresci vendo
acontecer reuniões de sindicato. E uma das grandes preocupações de Eloy era a posse de terra,
pois na região toda estava acontecendo especulação de terras principalmente pelas
reflorestadoras que recebiam financiamento e incentivos fiscais, e precisavam de terra para
implantar projetos, principalmente de eucalipto e pinos. Essas terras quase na totalidade eram
devolutas e o Estado legalizava para as reflorestadoras, que compravam as posses dos moradores
antigos quase de graça, e ainda acontecia casos em que os posseiros eram lisonjeados a venderem
seus direitos de posse com falsas promessa de emprego nas firmas. (...) Quando resistiam, eram
ameaçados de perderem as terras e não receber nada, então muitas vezes vendiam obrigados,
por pressão, e se mesmo assim insistissem, a firma cercava toda a área e ‘adonava’, deixava o
morador em uma pequena área, que era insuficiente para plantar suas roças e criar suas criações

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gado e cavalo, isso aconteceu em todo o norte de Minas e resultou que estes moradores migraram
para as cidades, como São Francisco, Januária e outras; ou foram para os grande centros, Brasília
e São Paulo. (...).”
Por que esta prática, ainda tão recorrente, é tão pouco mencionada pelo povo dos
Buracos? Há por certo uma preocupação muito característica de evitar mal-querências.
Frequentemente, em tom de crítica velada, os buraqueiros me dizem que não querem maldizer
os gaúchos. Esses que, como contou Mundinho sem nomear os algozes, “adonavam” as terras
onde viviam e trabalhavam os povos da região. Os gaúchos chegaram no final dos anos 70 para
os empreendimentos modernizadores no campo, avançando sobre as terras devolutas até então
cobertas de cerrado. A vila dos gaúchos, pequeno povoamento que mais tarde se transformaria
em sede municipal, é vizinha à localidade dos Buracos, cujo povo, a poucos quilômetros do então
incipiente lugarejo, recebia os forasteiros em suas casas. Comiam aqui de dentro da nossa casa!,
rememoram eles hoje, enfaticamente.
Mas não é só a relação com os gaúchos que a narrativa sobre Eloy parece proteger. Há
também uma divisão interna ao povo dos Buracos, a que separa herdeiros e posseiros. O povo
leva o nome da Fazenda dos Buracos, comprada por João Gomes, que veio morar ali
acompanhado de sua esposa e mais outros dois casais, a irmã e o cunhado de João e, de outro
lado, o casal formado pelo irmão de sua esposa. Esses dois casais acompanhantes eram o que na
época se chamava “agregado”, ou seja, não tinha direito à propriedade da terra, apenas podiam
morar ali na condição de trabalhar para o dono. Sem herdar a terra, Mundinho e Eloy, assim
como as mulheres que não se casaram com descendentes de João Gomes, precisaram ir atrás de
outras terras, as terras devolutas.
Posteriormente, o reconhecimento do direito de posse por usucapião gerou algumas
tensões entre os parentes buraqueiros. Tensões essas que hoje se dizem solucionadas. No
entanto, elas reaparecem de tempos e tempos, como por exemplo na ocasião em que a Fundação
Palmares sondou a possibilidade do auto-reconhecimento como território quilombola e os
herdeiros foram terminantemente contrários. Reaparecem também sutilmente em conversas
subliminares. Por exemplo, quando os descendentes de agregados ressaltam que, ao longo das
gerações, as famílias se misturaram, casando-se entre si. Deste modo, hoje todos “tocam
parentesa”. No fim, “é um sangue só”, dizem eles, como que para calar as fofocas de conflitos
por lotes que eventualmente ocorrem entre os herdeiros e os posseiros.
O “sangue”, elemento tão vital quanto dramático, é o mote central na narrativa da morte
de Eloy, e reaparece agora com novas conotações: como símbolo do vínculo indelével do
parentesco. O sangue, o corpo e a relações da casa se sobrepõem à contextualização histórica da

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luta pela terra. A simbologia do sangue parece assim ser um fator chave para pensar a força do
discurso moral sobre os corpos e os povos dessa terra.

3 – Sociedade, sangue e comida: o mal da rheuma

Nos Buracos, a imagem do corpo envolve uma moralidade específica quando se associa
à comida. A ideia de “sangue forte”, sadio, associa-se à de um “povo forte”, “unido”, coeso.
Assim, a saúde da sociedade, isto é, de um povo forte, é como a de um corpo forte, o que para
os buraqueiros pode não significar o mesmo que os termos nos fazem supor à primeira vista.
Afinal, a qualidade de um “sangue forte”, portanto sadio, tende a se aproximar da de um
“sangue grosso”. Contudo, por ser grosso, o sangue pode se tornar “remoso”, isto é, propício à
doença. Em suma, a mesma qualidade de um corpo saudável, ao ser levada ao extremo, torna o
corpo vulnerável, “fraco”. Assim, a comida forte é desejável em certa medida: é preciso comer
carne, mas há de ser comedidamente – comer carne todo dia faz mal.
O assunto do sangue é dos que mais rende conversa entre o povo dos Buracos: o sangue
virou, afinou ou engrossou e ficou remoso. Foi um de-comer que fez mal, não deu bem. A pessoa
é “sangue ruim” mode a raça que puxou. Ou é fraca mode a doença.
Qual alimento é ou não remoso, para quem, por qual razão, se foi a combinação com
outro alimento, se foi cisma ou se o problema é mesmo a qualidade do sangue da pessoa - o que
foi, como foi? Todos têm seus causos contados para defender uma ou outra hipótese. O próprio
“sistema” é, em suma, constituído pelo jogo da contingência. Uma “comida forte”, por exemplo,
é muito necessária a um corpo sadio, mas provoca graves problemas quando ingerida em corpos
tornados vulneráveis por motivos determinados – resguardo, cansaço, estômago vazio, raiva,
fraqueza, tristeza, etc. Um mesmo alimento pode ser, assim, considerado saudável (“faz bem”)
ou remoso (“faz mal”), dependendo da pessoa e da situação. Mulheres menstruadas ou em
período de resguardo, por exemplo, são particularmente vulneráveis.
Klass Woortmann (2008) faz observações similares às minhas em um artigo panorâmico
sobre a classificação de alimentos, corpos e pessoas, conforme a oposição quente/frio, análoga
à forte/fraco. Colhendo dados de pesquisas em várias regiões do Brasil e boa parte da América
Latina, o autor lembra que a palavra “reima” é possivelmente derivada de rheuma, que também
designa “mau gênio”. “É uma ‘qualidade’ do alimento que o torna ofensivo para certos estados
do organismo e em certos momentos da vida da pessoa” (WOORTMANN, 2008). O importante,
escreve o autor, é que há um modelo classificatório, e está sempre referido ao organismo
humano. De uma combinação equilibrada, depende a harmonia universal, num jogo ao um só
tempo fisiológico, sociológico e cósmico.

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Tudo o que se ingere tem acesso privilegiado ao funcionamento do sangue, à vida que
este viabiliza. Por outro lado, se comida anima o corpo, guarda também a força de matá-lo. A
concretude, a objetividade e o caráter prosaico do ato de comer contrastam com esta dimensão
tão vital, íntima e arriscada da comida. É esta ambiguidade que parece promover comicidade aos
assuntos relativos a comida. Nela está o reconhecimento de prazeres e desprazeres ao mesmo
tempo compartilhados e inconfessáveis; dois sentidos contraditórios para um só signo. O duplo
sentido está presente nas brincadeiras rotineiras de conotação sexual e também nos versos de
folia. Por exemplo: eu subi no pé da lima, chupei lima sem querer, abracei o gai [galho] da lima
pensando que era você; eu subi na mandioqueira pra comer beiju de massa/eu sou fina no ciúme
e danada na pirraça...
Em suma, a comida de todo dia, necessária à manutenção do corpo forte garante a saúde
dada por Deus, mostrando o esforço diário que este espera da gente – tal qual pais e mães esperam
de filhos e filhas. Dar o de-comer é, neste sentido, receber a bênção Divina. Por outro lado, a
mexida de cozinha, ao explicitar esta abençoada atuação sobre o corpo humano, guarda em seu
próprio gesto uma “mexida” sobre o que, por bem, deveria ser animado por Deus. Assim, as
práticas femininas carregam uma ambiguidade moral, uma força que pode tender para o bem ou
para o mal. Mas isto não as coloca como moralmente condenáveis. O que se reforça, ao contrário,
é o valor de seu inesgotável trabalho doméstico.
Pela perspectiva feminina, a rotina doméstica é um esforço responsável, a um só tempo,
pela produção de sociabilidade na casa e de risco nos corpos e relações, sendo este silenciado
ou tornado piada, porém nunca eliminado das variabilidades imprevistas, quiçá danosas,
efetuadas na interação entre pessoas, sangue e comida. É neste sentido que se torna possível,
analiticamente, traçar uma linha de continuidade entre a movimentação de uma dada cozinha,
ou seja, o sistema agenciado em torno de uma mulher em particular, e o que as/os buraqueiras/os
chamam de “sistema do povo”, ou seja, o que nós cientistas sociais chamaríamos “sistema
social”6.
Busquei inicialmente repensar as narrativas sobre o assassinato político de Eloy a partir
desta lógica do sistema da casa. A mexida de cozinha, e sua dubiedade tão característica na
maneira com que as pessoas dos Buracos avaliam moralmente as relações sociais que elas
observam e vivenciam parecem orientar suas relações com os gaúchos. Esses merecem o

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Importante não confundir esta argumentação com a clássica questão colocada por Sherry Ortner (1979) – “estaria
a mulher para a natureza assim como o homem está para a cultura?”. Ao contrário, trata-se aqui de um
embaralhamento (ou seria um rearranjo?) entre os dois polos desse “grande divisor”. Em certa medida,
aproximamo-nos da elaboração de Lévi-Strauss (1969) sobre a circulação de mulheres, palavras e comidas como
constitutiva de toda estrutura social. Porém, sem entrar na já alentada acusação contra esta análise, no que ela
promoveria uma alienação da agência feminina (cf. RUBIN, 1975), a abordagem aqui inverte o eixo a partir do
qual a circulação se mostra: as mulheres, fixas em suas cozinhas, são as regentes da circulação de prosa e comida,
isto é, a circulação de todo um povo.

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respeito de qualquer vizinho, a despeito de uma oposição evidente na ocupação histórica
daquele território. Minha pergunta de fundo é: como um povo tão afeito a brincadeiras de duplo
sentido é capturado pelo moralismo radical de Marco Feliciano? Não tenho respostas. De toda
forma, não se trata aqui de modo algum da tentativa de apontar uma “essência reacionária”
desses povos. É justo o contrário. Proponho uma investigação que siga as pistas etnográficas
do sistema buraqueiro: se o mal gênio da rheuma depende da contingência de certas
combinações, quais combinações são estas no presente momento, articulando escalas locais e
nacional? Esta é a pergunta que por ora deixo com vocês.

Bibliografia

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WOORTMANN, Klaas. Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano e pessoas,


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