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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS

INSTITUTO GOIANO DE PRÉ-HISTÓRIA E


ANTROPOLOGIA
GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA
ARQUEOLOGIA HISTÓRICA II

DENEGRINDO A ARQUEOLOGIA

Professora:Ms. Cristiane Loriza Dantas

Alunos:
Beatriz Dias da Silva
Lucas Renan Lobato Lima da Silva

GOIÂNIA, Dezembro de 2015


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
INSTITUTO GOIANO DE PRÉ-HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA
GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA

DENEGRINDO A ARQUEOLOGIA

Trabalho apresentado a Professora Ms


Cristiane Loriza Dantas, como requisito parcial para
conclusão da disciplina Arqueologia Histórica II do
curso de Graduação em Arqueologia da Pontifícia
Universidade Católica de Goiás.

GOIÂNIA, Dezembro de 2015


DENEGRINDO A ARQUEOLOGIA

Beatriz Dias da Silva


Lucas Renan Lobato Lima da Silva
______________________________________________________________________
Denegrir
v.t.d e v.pron. Obscurecer ou obscurecer-
se; fazer ficar mais negro ou escuro.
Reduzir a transparência de; manchar-se.
Figurado. Denegrir; manchar a reputação
ou difamar: ela denegriu-se com o rumor;
certos comportamentos denegriram sua
imagem.
(Etm. de + negr /negro/ + ir)
______________________________________________________________________

QUAL QUE É A DESSA TAL DE ARQUEOLOGIA DA DIÁSPORA


AFRICANA?

Muito se fala dentro da arqueologia sobre a possibilidade de dar voz aos


silenciados, da criação de meios para que não só a história do vitorioso seja conhecida. A
arqueologia da diáspora africana talvez seja um dos tipos de arqueologia que melhor
exponha a capacidade, não necessariamente de dar voz, mas sim de ouvir a voz de grupos
subalternos, neste caso específico: a “voz” dos africanos e afro-brasileiros escravizados.

O termo diáspora africana refere-se à dispersão mundial de povos africanos e seus


descendentes como consequência da escravidão e outras migrações voluntárias ou
involuntárias para fora do continente africano (Singleton e Souza 2009; Funari 2007).
Sendo assim, o objetivo geral da arqueologia da diáspora africana no Brasil é a
compreensão dos impactos e inter-relações dos deslocamentos forçados (Souza 2013) de
cerca de quatro milhões e meio de africanos para o território Brasileiro (Curtin 1969,
Curto and Lovejoy 2004:11 apud Souza 2013), delineando a diversidade de identidades
culturais que os escravos forjaram na América, circunscrevendo os espaços de formação
das comunidades escravas e os distintos universos multiculturais construídos (Ferreira,
2011).
A partir disso são traçados os objetivos específicos para obtenção de panoramas
mais abrangentes a respeito dos processos sociais, políticos e econômicos ligados à
diáspora africana (Souza 2013). Ainda segundo Souza (2013), tais objetivos são
trabalhados dentro de dois tipos de abordagens:
 A abordagem afrocêntrica, focada na premissa de que os africanos
escravizados não foram despossuídos de suas práticas originais. Dentro desta
abordagem, os arqueólogos têm buscado evidências da manutenção e perpetuação de
práticas oriundas da Mama África.
 A segunda abordagem busca compreender e explicar a emergência de
novas práticas materiais e como foram construídas em meio ao contexto de
escravidão. Obviamente as referências ao contexto africano não são ignoradas. Essa
abordagem poderia estar relacionada ao conceito de crioulização que, segundo
Symasnky (2014),:
“(...) consiste em um processo que envolve
interações e trocas multiculturais que levaram a
novas formas culturais, buscando, desse modo,
incluir o efeito da experiência do Novo Mundo
sobre todos os grupos populacionais, inclusive os
euro-americanos. Tem sido reconhecido como
um processo simultaneamente cognitivo e
material, que leva à criação de identidades sociais
crioulas entre europeus e africanos, ao mesmo
tempo em que ocorre a adaptação às condições
econômicas, sociais e ecológicas do novo
contexto.”
Symansky, 2014. P. 173.

Tais abordagens não são excludentes e sim complementares. A partir da


existência dessas duas vertentes é evidenciada uma das perguntas da arqueologia da
diáspora africana: como se davam as estratégias de manter/transformar elementos
culturais? Sendo que essa transformação funcionaria como uma resposta à interação de
diferentes povos africanos inseridos em outro contexto, mas também ao contexto em si,
quando se trata da vida nos engenhos e senzalas, sob o controle de um senhor.

A LIBERDADE ENTRE PAREDES

Agostini (2008) define uma dessas estratégias como conceito de “espaços


liminares”, espaços que são negociados em momentos de liminaridade, espaços de
contestação e de mudança em potencial. Souza (2011), ao estudar o Engenho de São
Joaquim, um engenho no estado de Goiás datado de 1800, encontrou alguns dos espaços
liminares ao escavar o interior das senzalas.

O objetivo da pesquisa de Souza (2011) era entender como as relações passadas


no interior das senzalas se estabeleceram a partir do espaço físico da propriedade e do
perfil de seu senhor, Joaquim Alves.

Com o uso de dados documentais e arqueológicos a localização e a feição das


senzalas foram compreendidas. As senzalas eram formadas por dois longos pavilhões
com as dimensões aproximadas de 150 e 50 metros, formando um ‘L’ invertido,
localizados em frente à sede da fazenda. Tais pavilhões, de acordo com informantes que
viram suas ruínas no início do século XX, possuíam divisões internas que se acredita que
serviam para dividi-los em cubículos de 5 x 5 metros. A construção dessas estruturas, de
acordo com viajantes que por lá passaram no século XIX, era feita a mando de Alves,
obviamente porque dessa forma:

“Fugia do seu controle [das pessoas


escravizadas] a decisão de escolher a forma e
feição das suas habitações, bem como o uso de
técnicas ou materiais particulares. Eles também
não podiam lançar mão de estratégias que lhes
permitia escapar do controle e da ordem impostos
pelo proprietário. Quando viviam em uma
pequena vila de cabanas por eles construídas (...)
tinham inúmeras possibilidades em termos de
áreas de circulação. Tinham melhores chances
também para criar pequenos domínios de área
privada e setores que escapavam ao campo
supervisão visual dos senhores e feitores, já que
esse tipo de organização podia criar áreas cegas
para o supervisor (...). Nas senzalas pavilhão, por
outro lado, os escravos viam-se encapsulados.
Contavam com pouquíssimas áreas de circulação e
com poucas possibilidades para gerenciar suas
áreas deconvivência. Viam-se ainda muito mais
expostos à supervisão visual.”

Souza, 2011. P. 86.

Entretanto, o registro arqueológico revela os espaços liminares quando são


comparados os dados provenientes de dentro e fora das senzalas. Na área imediatamente
exterior às senzalas, o terreiro, a incidência de material arqueológico foi de 1 vestígio por
m², enquanto no interior das senzalas a incidência foi em média de 70 fragmentos por
m², chegando até mesmo a 300 fragmentos por m² em uma das áreas escavadas.

A baixa quantidade de material arqueológico presente no terreiro do Engenho


São Joaquim, de acordo com Souza (2011) seria devido ao fato de que Joaquim Alves
era, segundo cronistas, extremamente preocupado com a limpeza e ordem de sua
propriedade, então muito provavelmente a limpeza das áreas exteriores às senzalas era
imposta aos escravizados.

Todavia, no interior das senzalas, onde Alves não conseguia monitorar todas as
ações de seus escravos, a limpeza possivelmente fugia ao seu controle. A norma
estabelecida era subvertida e os escravos viviam de acordo com as normas de suas
próprias culturas, na medida do possível. Souza (2011) infere que essa “sujeira” presente
nas habitações poderia tratar-se de uma “desordem positiva” (Douny 2005 apud Souza
2011), o entendimento de que a sujeira, a desordem, seria um sinal de vida.

Mesmo em um espaço altamente normatizado, os indivíduos escravizados que


residiam na Fazenda de São Joaquim foram capazes de estruturar lugares de modo que
suas necessidades fossem atendidas a partir de seus próprios referenciais. Assim
exercendo uma forma de poder diferente do “poder sobre”, que tem como base a
autoridade e força, mas sim o “poder para” (Souza, 2011), onde os indivíduos possuem a
capacidade de significar e transformar seu mundo material e social, produzindo e
reproduzindo práticas culturais.

LIMITAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS E A VÁLIDADE DE UMA


ARQUEOLOGIA DA DIÁSPORA AFRICANA

As primeiras escavações de Senzalas no Brasil foram realizadas, ainda na década


de 1990, por Lima, Bruno e Fonseca, que escavaram a Fazenda São Fernando, em
Vassouras, Rio de Janeiro. A pesquisa seguia os moldes dos trabalhos de arqueologia da
escravidão norte-americanos, possuindo orientação marxista, e buscava elementos
materiais da vida dos escravizados com o objetivo de estudar as práticas socioculturais
desenvolvidas sob a opressão (Symansky, 2014).

Desde então, todas as escavações de senzalas parecem seguir o mesmo modelo


buscando os mesmos resultados. A busca da agência, das áreas liminares, variedade de
cultura material, entre outros. Essa seria uma das limitações dos estudos diaspóricos
dentro da arqueologia? Segundo Sigleton e Souza (2009):

“A adoção do termo ‘diáspora’ na


arqueologia [...] ainda não produziu estudos nos
quais o conceito constitui um quadro analítico
dentro do qual as experiências de deslocamento,
vínculos comparativos com outros grupos da
diáspora africana, ou teorias da diáspora e os
discursos são examinados. Tais deficiências no uso
da diáspora como uma ferramenta heurística em
estudos arqueológicos, no entanto, não diminuem
o valor da arqueologia nos estudos diaspóricos. A
Arqueologia contribuiu para a compreensão das
experiências históricas dos povos da diáspora
africana e como essas experiências foram vividas.”

Sigleton e Souza, 2009. P. 449.

Mesmo com as limitações da arqueologia, por meio dela é possível conseguir


inúmeras informações a respeito das práticas e processos socioculturais através dos
estudos de senzalas, quilombos, cemitérios, cultura material e religiosidade dos africanos
e afrodescendentes escravizados. Apesar de que tal vertente ter um enorme potencial
político, altamente utilizado em países como Cuba e Estados Unidos por movimentos
negros (Ferreira 2009, Singleton e Souza 2009, Symansky 2014), no Brasil o patrimônio
decorrente desse tipo de pesquisa arqueológica não parece ser buscado pela própria
população afrodescendente com vistas à apropriação (Lima 2013), pelo menos não da
forma que os pesquisadores esperam.

Talvez o que falte para a arqueologia ser de fato denegrida, para que se torne uma
ferramenta política, seja sua apropriação por movimentos negros, ou ao menos o
desenvolvimento de trabalhos colaborativos junto às comunidades afrodescendentes, e
não apenas de intelectuais e líderes religiosos. E que tais indivíduos não façam parte
somente nas fases de análise e interpretação dos resultados, mas que seja realizado um
trabalho de fato multivocal, onde tanto os pesquisadores quanto os membros da
população, religiosos e estudiosos façam parte de todas as etapas do projeto, inclusive do
planejamento de estratégias de apropriação do patrimônio.

CONCLUSÃO

A diáspora africana tem sua história pautada tanto na violência como na


resistência, fosse física ou através da manutenção de práticas socioculturais, sendo essas
iniciadas com os primeiros contatos entre europeus e africanos no século XV. É inerente
ao conceito de diáspora africana o caráter transcultural (Gilroy 2001 apud Ferreira 2011),
uma vez que se refere a um momento de interação entre distintas culturas africanas,
europeias e indígenas. Tais interações produziram identidades culturais posicionais e
contextuais, híbridas e moventes (Bhabha 1994, Hall 1996 apud Ferreira 2011).

É exatamente esse caráter transcultural que é buscado dentro das pesquisas


arqueológicas da diáspora africana através dos estudos bioarqueológicos, estudos da
paisagem, da cultura material, entre outros. Para que assim seja exercido o “caráter
‘democrático’” do registro arqueológico (Souza, 2011), através do qual, junto a diversos
outros fatores, possam ser descontruídos alguns conceitos que se encontram
profundamente enraizados no senso comum, como o termo “escravo”.

Austin (1970 apud Marcondes 2004) diz que quando examinamos que palavras
devem ser utilizadas, em que situação, não estamos apenas analisando as palavras e seus
significados, mas sim a realidade sobre a qual falamos ao utilizar tais palavras. Dessa
forma, pode-se dizer o termo escravo reduz o ser humano a um ser que não decide e não
tem consciência sobre sua própria vida, sendo totalmente passivo e submisso, “SER
escravo”. Já o termo escravizado “modifica a carga semântica e denuncia o processo de
violência” (Harkot-de-la-taille e Santos, 2012), evocando as relações de poder entre duas
ou mais pessoas e principalmente expondo a arbitrariedade dessa condição, “Se ESTÁ
escravizado”.

De acordo com Latour (2012) toda ciência é também um projeto político, sendo
assim, a arqueologia da diáspora africana no Brasil enquanto projeto político busca a
compreensão dos impactos e inter-relações do deslocamento forçado dos africanos para
o território nacional, para que aqueles que pesquisam e se interessam pelo assunto
possam olhar com mais atenção para a escravidão, seu legado e implicações no tempo
atual (Souza, 2011).

REFERÊNCIAS

AGOSTINI, C. 2008. Espaços estruturais e espaços liminares na ordem


escravista: um estudo dos espaços construídos por africanos e adrodescendentes no
complexo cafeeiro do século XIX. In: TERRA, C. G. & ANDRADE, R. D. (eds.)
Coleção Paisagens Culturais: materialização da paisagem através das manifestações
sócioculturais. UFRJ/EBA, Rio de Janeiro.

DE CARVALHO, Patrícia Marinho. 2011. A Memória Da Paisagem: Estudos


De Arqueologia Da Diáspora. Anais do XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências
Sociais: Diversidades e (Des)Igualdades. Universidade Federal da Bahia, Salvador.

FERREIRA, Lucio Menezes. 2009. Arqueologia da escravidão e arqueologia


pública: algumas interfaces. Vestígios: Revista Latino-Americana de Arqueologia
Histórica, v. 3, n. 1, p. 7-23.

FERREIRA, Lucio Menezes. 2011. Sobre o conceito de arqueologia da diáspora


africana. Métis: história & cultura, v. 8, n. 16.

FUNARI, P. P. 2007. The archaeologicalstudyoftheAfricanDiaspora in Brazil. In:


OGUNDIRAN, A.; FALOLA, T. (Eds.). Archaeology of Atlantic Africa and the African
Diaspora. Bloomington: Indiana University Press. p. 355-371.

HARKOT-DE-LA-TAILLE, Elizabeth; DOS SANTOS, Adriano Rodrigues.


2012. Sobre Escravos E Escravizados: Percursos Discursivos Da Conquista Da
Liberdade. Anais do III III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III
SIDIS): Dilemas e Desafios na Comtemporaneidade. UNICAMP, Campinas.

LATOUR, B. Reagregando o social – uma introdução à Teoria do Ator-Rede;


Ed. EDUFBA-EDUSC, Salvador – Bauru, 2012.
LIMA, Tania Andrade. 2013. Arqueologia como ação sociopolítica: o caso do
Cais do Valongo, Rio de Janeiro, século XIX. Vestígios, Revista Latino Americana de
Arqueologia Histórica, v. 7, p. 177-204.
MARCONDES, Danilo. Filosofia Analítica – passo-a-passo; Ed Jorge Zahar, Rio
de Janeiro, 2004.

SINGLETON, Theresa; DE SOUZA, Marcos André Torres.


2009.ArchaeologiesoftheAfricanDiaspora: Brazil, Cuba, andthe United States.
In: Internationalhandbookofhistoricalarchaeology. Springer New York. p. 449-469.

DE SOUZA, Marcos André Torres. 2011. A vida escrava portas adentro: uma
incursão as senzalas o Engenho de São Joaquim, Goiás, Século XIX. In: Revista
Maracanan, v. 7, n. 7, p. 83-109.

DE SOUZA, Marcos André Torres. 2013. Introdução: Arqueologia da Diáspora


Africana no Brasil. In: Vestígios, Revista Latino Americana de Arqueologia Histórica,
v. 7, 2013.p. 7-19.

SYMANSKI, Luís Cláudio P. 2014. A arqueologia da diáspora africana nos


Estados Unidos e no Brasil: problemáticas e modelos. Afro-Ásia, n. 49, p. 159-198.

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