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RBRH - Revista Brasileira de Recursos Hídricos Volume 6 n.

3 Jul/Set 2001, 143-147

A Aplicação de Técnicas Isotópicas ao Estudo de Fugas na


Barragem de Tapacurá, Pernambuco
Heldio Pereira Villar
Centro Regional de Ciências Nucleares e Escola Politécnica da Universidade de Pernambuco
R. Cônego Barata, 999 – Tamarineira – CEP 52110-120 Recife, PE - mnogue@nlink.com.br

Ricardo de Andrade Lima


Centro Regional de Ciências Nucleares
R. Cônego Barata, 999 – Tamarineira – CEP 52110-120 Recife, PE - ral@elogica.com.br

Antônio Celso Dantas Antonino


Departamento de Energia Nuclear da Universidade Federal de Pernambuco
Av. Prof. Luiz Freire, 1000 – Cid. Universitária – CEP 54740-540 Recife, PE - acda@npd.ufpe.br

Marco Otávio Alencar Menezes


Escola Politécnica da Universidade de Pernambuco
Pça. do Internacional, 455 – Madalena – CEP 50750-470 Recife, PE

Carlos Alberto Brayner de Oliveira Lira


Departamento de Energia Nuclear – UFPE
Av. Prof. Luiz Freire, 1000 – Cid. Universitária – CEP 54740-540 Recife, PE - cabol@npd.ufpe.br

Affonso Augusto Gusmão Vianna


Companhia Pernambucana de Saneamento
R. da Aurora, 777 – Boa Vista – CEP 50060-010 Recife, PE

Jefferson Viana Bandeira


Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear
R. Prof. Mário Werneck, s/n – Cid. Universitária – CEP 30123-970 Belo Horizonte, MG

Recebido: 25/01/00 - revisão: 14/08/00 - aceito: 10/05/01

RESUMO
Um estudo de possíveis fugas sob o maciço de concreto da barragem de Tapacurá (PE) foi realizado por meio
de técnicas isotópicas baseadas em isótopos estáveis ambientais. Para isso, é feita a comparação entre as concentrações
de isótopos estáveis (deutério, 18O e 13C) nas amostras de água coletadas a montante e a jusante da barragem. A análi-
se dos resultados encontrados mostrou que a água a montante da barragem tinha uma origem diferente daquela cole-
tada a jusante, indicando dessa forma a inexistência de fuga através da formação geológica da fundação da barragem.
Palavras-chave: fuga; barragem; isótopos.

INTRODUÇÃO creto, e duas barragens auxiliares, de terra, como


mostra a Figura 1.
Concluída em julho de 1973, a Barragem de Esse sistema de barragens foi construído
Tapacurá é uma obra do governo federal destinada sobre o rio Tapacurá, no município de São Louren-
a abastecer 40% da Região Metropolitana do Recife ço da Mata, cerca de 40 km a oeste do Recife. As
(o que corresponde a cerca de 1.200.000 pessoas) e, características físicas do sistema são mostradas na
paralelamente, controlar as enchentes periódicas Tabela 1.
que assolaram a capital de Pernambuco por várias Uma década após ter sido comissionada, a
décadas. A barragem em si é parte de um sistema barragem de concreto passou a apresentar sensível
compreendendo uma barragem principal, de con- percolação de água, tanto pelo sistema de drena-

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A Aplicação de Técnicas Isotópicas ao Estudo de Fugas na Barragem de Tapacurá, Pernambuco

BARRAGEM DE TAPACURÁ Tabela 1. Características físicas do sistema Tapacurá.

Característica Valor
Comprimento total da barragem de 252 m
concreto;
Comprimento total do dique fusível 128 m
BARRAGEM AUXILIAR 2 em terra;
Altura máxima da barragem de 35 m
concreto;
JUSANTE
Largura do coroamento da barragem 4,5 m
de concreto (trecho não-vertedor);
BARRAGEM AUXILIAR 1
Volume de concreto; 105 m3
RIACHO Volume armazenado na cota máxima 170´106 m3
BARRAGEM
PRINCIPAL (110 m acima do nível do mar);
FONTE
Volume armazenado na cota do 95´106 m3
vertedor central (cota 103 m);
Área máxima do reservatório; 1300 ha
Área do reservatório na cota 103 m; 970 ha
RESERVATÓRIO
DE TAPACURÁ Descarga máxima regularizada; 2,3 m 3/s
Capacidade máxima de fornecimento 20´106 m3/d

As fraturas são comumente sub-verticais ou sub-


horizontais, sendo as primeiras parcialmente pre-
enchidas com rochas intrusivas. São tipicamente
PONTOS DE COLETA DE ÁGUA PIEZÔMETROS
* PONTOS DE COLETA DE ÁGUA · PIEZÔMETROS observadas 4 a 8 fraturas por metro, o que favorece
a percolação da água, mormente nas seções onde o
Figura 1. Mapa do sistema de barragens do rio Tapacurá, intemperismo é mais acentuado. O solo residual na
mostrando pontos de coleta. Escala – 1: 25.000. região de Tapacurá apresenta quase sempre uma
espessura inferior a 3 m.
gem como através de fissuras no maciço de concre- O presente trabalho tem por objetivo o es-
to. O risco a que estariam expostas as populosas tudo de fugas na barragem de Tapacurá, PE, por
comunidades a jusante da barragem, levou os go- meio de técnicas isotópicas.
vernos federal e estadual a procurar meios para
recuperar estruturalmente a barragem e reduzir os MATERIAIS E MÉTODOS
vazamentos. Isso foi feito, por intermédio de con-
vênios, a partir de 1992. A análise isotópica em hidrologia
Foi então contratada uma consultoria espe-
cializada em recuperação de estruturas para anali- É sabido que diversos processos ambientais
sar o problema, propor soluções e fiscalizar a (evaporação, condensação, reações físico-químicas)
execução dos serviços no maciço de concreto. Ins- levam ao fracionamento de um elemento em seus
trumentos para monitorar a estabilidade da barra- isótopos constituintes. Como resultado, cada ele-
gem foram instalados. Em alguns meses foram mento apresenta uma “assinatura” característica
eliminados quase todos os vazamentos (restando dos processos que ele teve de atravessar. Isso acon-
apenas os de pequena monta). Em seu relatório, tece, por exemplo, com os elementos que compõem
porém, os consultores recomendaram que uma a água, não apenas o hidrogênio e o oxigênio, mas
investigação sobre possíveis fugas através da for- também aqueles que entram na composição dos
mação geológica sob a barragem fosse realizada. sais e dos outros compostos nela dissolvidos.
Essa formação, um migmatito Precambria- Na prática da hidrologia isotópica, as dife-
no de composição grano-diorítica próximo ao line- rentes concentrações dos isótopos de interesse para
amento de Pernambuco (zona de cisalhamento), a investigação são expressas na forma de um valor
apresenta foliações (mergulho 215° Az) e fraturas. d, definido, para cada isótopo, como o desvio em ‰

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relativo a um padrão denominado SMOW (Stan-


dard Mean Ocean Water, ou Padrão Médio da Água Campo magnético
do Mar) (Domenico e Schwartz, 1990; Faure, 1986).
Os isótopos mais comumente empregados Direção do movimento
em hidrologia são o deutério (D, ou 2H), o 18O e o
13C. As concentrações desses isótopos em uma a-

mostra são usualmente determinadas por espec- Força sobre a carga

trometria de massa, sendo a seguir o valor d


calculado segundo (Bowen, 1994):

C amostra - C SMOW
d= ´ 1000 (1) Figura 2. Força magnética atuante sobre uma carga
C SMOW positiva móvel, provocada pela aplicação de um campo
magnético perpendicular à direção do deslocamento.
Na Equação (1), C amostra e CSMOW são, res-
pectivamente, a concentração do isótopo escolhido onde q é a magnitude da carga, v sua velocidade e B
na amostra e no padrão médio da água do mar. A a magnitude do campo magnético atuante, cujas
análise por espectrometria de massa apresenta uma linhas de força formam um ângulo q com a direção
exatidão de ± 2 ‰ para o deutério e de ± 0,2 ‰ do deslocamento da carga. A força Fm é perpendicu-
para o 18O. lar tanto ao campo magnético quanto à direção do
deslocamento. Dessa forma, caso o campo magnético
seja dirigido perpendicularmente ao deslocamento
A espectrometria de massa da carga, esta executará uma trajetória circular, com
a força magnética fazendo o papel de força centrípe-
O emprego da análise isotópica em hidro- ta. Logo, o raio dessa trajetória circular é calculado
logia e outras aplicações está condicionado à identi- segundo (Kaplan, 1956; Tipler, 1995):
ficação e quantificação dos isótopos componentes
de um certo elemento químico. Como o comporta- p v2 mv
Fm = qvB sen =m \r = (3)
mento químico dos isótopos de um mesmo elemen- 2 r qB
to é virtualmente idêntico (posto que esse
comportamento está condicionado à estrutura da Fica evidenciado, a partir da Equação (3),
última camada de eléctrons, que é a mesma para que o raio de curvatura de diversas cargas de igual
todos os isótopos de cada elemento), investigações magnitude e velocidade, sujeitas ao mesmo campo
acerca da presença e quantidade desses isótopos magnético, irá variar linearmente com cada massa.
não podem ser feitas pelas técnicas químicas con- O espectrômetro de massa é um aparelho no qual
vencionais, como a espectrofotometria de absorção átomos são ionizados (adquirem carga elétrica posi-
atômica ou a cromatografia. tiva por meio de processos físicos que extraem des-
A grande diferença entre dois isótopos de ses átomos um eléctron), são acelerados em um
um mesmo elemento está em suas massas atômicas. campo elétrico até que atinjam uma certa velocida-
Assim sendo, o processo óbvio para separação de de, entrando finalmente em uma câmara evacuada
isótopos deve levar em conta essa diferença de onde atua um campo magnético perpendicular ao
massa. O diferente comportamento de átomos de seu deslocamento. As trajetórias dos íons são en-
massas diferentes é enfatizado num instrumento curvadas segundo suas massas e eles são a seguir
idealizado há mais de três quartos de século, o es- coletados por detectores de íons. A posição em que
pectrômetro de massa (Kaplan, 1956; Oldenberg e um íon é detectado é função de sua massa. A quan-
Holladay, 1971). tificação dos íons de um elemento permite então
O funcionamento do espectrômetro de que se estabeleça sua composição isotópica.
massa se baseia no princípio da força magnética
que é exercida sobre uma carga em movimento, Coleta e tratamento das amostras
indicada na Figura 2 (Romer, 1964).
Essa força Fm tem módulo dado por: Os pontos de coleta de amostras estão indi-
cados na Figura 1. A Tabela 2 descreve sumaria-
Fm = qvB sen q (2) mente as características desses pontos.

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A Aplicação de Técnicas Isotópicas ao Estudo de Fugas na Barragem de Tapacurá, Pernambuco

Tabela 2. Características dos pontos de coleta de Tabela 3. Análise isotópica – Valor d (em ‰) para
amostras. deutério e oxigênio-18.

Ponto Descrição Amostra dD d18O


A,B Reservatório; A 5,30 0,10
A1, A2, A3 Fontes e córregos a jusante da A1 -2,89 -2,00
barragem principal; A2 0,79 -1,40
B1 Fonte a jusante da barragem A3 1,54 -1,60
auxiliar, próximo à parede de B 4,90 0,20
concreto; B1 1,71 -1,50
G Galeria da barragem principal; G 4,74 0,08
P1, P2, P3, P4 Piezômetros construídos a jusante P1 0,07 -1,50
da barragem principal. P2 -0,82 -1,40
P3 -13,30 -3,21
As coletas foram realizadas ao longo de um P4 -7,18 -2,60
período de 20 meses, de maneira que todas as esta-
ções do ano foram cobertas. Em conseqüência, a ta da percolação da água do reservatório através do
repetição de coletas deixou de ser realizada nos maciço de concreto da barragem, foi determinada,
pontos A3 e B1, em virtude da baixa precipitação com os resultados das amostras desses três pontos
observada na estação seca. Ao mesmo tempo, como a média do valor d para o deutério e para o 18O na
o progresso da investigação apontava para uma
água do reservatório. Foi encontrado um dD igual a
grande semelhança nas características das amostras
4,98‰ e um d18O igual a 0,12‰. As discrepâncias
retiradas dos pontos A e B (dentro do reservatório),
encontradas nos resultados dessas amostras, tanto
as amostras de água do reservatório ficaram restri-
para o deutério como para o 18O, estão dentro das
tas às coletadas no ponto A.
incertezas analíticas esperadas.
Cada amostra era acondicionada em um re-
Os resultados acima foram superpostos à
cipiente estéril de plástico. Para as determinações
chamada “linha meteórica”, que descreve a relação
relativas ao teor de 13C, esses recipientes continham
entre dD e d18O para amostras ambientais. Essa
uma solução de NaOH de pH 12 à qual era adicio-
comparação está mostrada na Figura 3.
nada uma solução de BrCl2 (ou SrCl2) a uma con-
centração de 3 g/L. Obtinha-se dessa forma um Verifica-se de maneira inequívoca a discre-
precipitado, que era retirado com uma mangueira pância entre as relações dD/d18O para as amostras
no próprio local de coleta. do reservatório e as dos outros pontos de coleta, o
Todas as análises isotópicas para o 13C fo- que sugere que a origem da água nesses pontos
ram realizadas em seis amostras nos laboratórios difere daquela do reservatório.
da Agência Internacional de Energia Atômica
(IAEA) em Viena, Áustria. As análises de deutério e Carbono-13 (13C)
18O foram realizadas em onze amostras nos labora-

tórios do Centro de Estudos e Experimentação de


Os estudos relativos à concentração do isó-
Obras Públicas (CEDEX) em Madri, Espanha.
topo 13C em águas visam principalmente estabele-
cer a origem dos solutos carbonatados presentes
RESULTADOS (Domenico e Schwartz, 1990). Um valor típico em
águas superficiais para o d(13C) é de –8,5‰. Os
Deutério (2H) e oxigênio-18 (18O) resultados obtidos para as seis amostras analisadas
estão mostrados na Tabela 4.
A Tabela 3 mostra os resultados obtidos pa- Como se pode observar, os valores para as
ra o valor d para o deutério e o oxigênio-18. Os amostras dos pontos A e G (que são de água do
valores são apresentados em ‰. reservatório), são bastante similares entre si e ao
Como os pontos A e B ficam dentro do re- valor médio considerado para águas superficiais.
servatório e o ponto G é na galeria da barragem As quatro outras amostras apresentaram um d13C
principal, de maneira que a água aí existente resul- bem mais negativo, o que indica que o radical

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de escassos recursos hídricos, isso pode ser


6
de fundamental importância para a outorga
4
de mananciais.
A3 B1 Reservatório/G
2
A2
0 P1
P2 AGRADECIMENTOS
-2 A1
D(0/00)

-4
O presente trabalho foi realizado dentro do Pro-
-6
P4 grama ARCAL (Arreglos Regionales Cooperativos
-8
Linha meteórica para la Promoción de la Ciencia y la Tecnologia
-10
Nucleares en America Latina) XVIII da Agência
-12
P3 Internacional de Energia Atômica, ao qual os auto-
-14
-3,5 -3 -2,5 -2 -1,5 -1 -0,5 0 0,5
res agradecem o importante apoio recebido.
d 18O( 0/00)

REFERÊNCIAS
Figura 3. Comparação entre as relações dD/d18O para
diversas amostras e a linha meteórica.
BOWEN, R. (1994). Isotopes in the Earth Sciences, Chapman
& Hall, Londres, 647 p.
Tabela 4. Análise isotópica – Valor d (em ‰) para 13C.
DOMENICO, P. A. e SCHWARTZ, F. W. (1990). Physical
and Chemical Hydrogeology, Wiley, New York, 842 p.
Amostra d13C FAURE, G. (1986). Principles of Isotope Geology, Wiley,
A -8,94 New York, 589 p.
A1 -18,18 KAPLAN, I. (1956). Nuclear Physics, Addison-Wesley,
Reading, 770 p.
G -9,59
OLDENBERG, O. e HOLLADAY, W. (1971). Introdução à
P1 -17,30
Física Atômica e Nuclear, Edgard Blücher, São Paulo,
P2 -14,02 371 p.
P3 -15,16 ROMER, A. (1964). The Restless Atom, Dover, New York,
198 p.
HCO3- dissolvido é biogênico e não devido ao equi- TIPLER, P. (1995). Física – volume 3, Guanabara Koogan,
líbrio com o gás carbônico presente na atmosfera, Rio de Janeiro, 340 p.
como aparentemente é o caso para as outras duas
amostras. Fica, assim, confirmada a hipótese pela The Application of Isotopic Techniques to the
qual a água dos córregos, fontes e piezômetros a Investigation of Leaks at the Tapacurá Dam,
jusante da barragem principal não é a mesma do
Pernambuco
reservatório.
ABSTRACT
CONCLUSÕES
An investigation of the possible leaks under Ta-
· A origem da água a montante da barragem pacurá Dam’s main concrete body was carried out using
foi diferente daquela coletada a jusante, in- isotopic techniques based on environmental isotopes. For
dicando dessa forma a inexistência de fuga this purpose, concentrations of stable isotopes (deute-
através da formação geológica da fundação rium, 18O and 13C) in samples collected upstream and
da barragem. downstream from the dam were compared. The analysis
· Embora tenha essa sido a primeira aplica- of results showed that water upstream and downstream
ção da análise de isótopos estáveis em hi- from the dam came from different sources. This fact sug-
drologia na Região Nordeste do Brasil, gested that there were no leaks through the geological
parece evidenciada a viabilidade de seu formation under the dam’s foundations.
emprego em estudos de fugas de barra- Key-words: leaks; dam; isotopes.
gens.
· A técnica se mostrou suficientemente preci-
sa para permitir também a determinação da
origem de águas subterrâneas; numa região

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