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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

Capitalismo e política de comunicação: a TV digital no


Brasil1
César Ricardo Siqueira Bolaño2
Valério Cruz Brittos3

Resumo: O processo de implantação da televisão digital terrestre, no Brasil, é


paradigmático para o estudo das políticas de comunicação. A mudança de patamar
tecnológico ocorre no país sem a devida discussão, mantendo os radiodifusores sua
posição de privilégio histórico. Tal dinâmica insere-se no quadro de
redirecionamento da regulamentação, em favor de (ainda) maior liberdade dos
agentes privados, característica do capitalismo contemporâneo, articulado com o
projeto neoliberal. Diante disso, até o presente não se identifica uma perspectiva
de alteração do mercado midiático nacional, marcado pela concentração da
propriedade, critérios político-partidários, falta de controle público da
midiatização e ausência de um sistema não-comercial paralelo forte, problemas
que deveriam ser atacados neste momento, de transição tecnológica. Não obstante
a enorme dificuldade de levar adiante suas propostas (ou de enfrentar grandes
interesses), o Governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006) não tem repetido a
postura do Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), quanto à TV
digital.

Palavras-Chave: Economia Política da Comunicação. Políticas de Comunicação.


Comunicação e Capitalismo.

1. Introdução
O caso da implantação da televisão digital terrestre (TVD), no Brasil, é paradigmático
para o estudo das políticas de comunicação no país. Tendo em vista o atraso histórico do
mercado midiático nacional, marcado pela concentração, privilégios político-partidários, falta
de controle público dos processos de publicização e ausência de um sistema não-comercial
paralelo com força junto ao público, estes problemas deveriam ser atacados justamente neste
momento, de transição tecnológica. Como um conjunto de tópicos essenciais ao

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “<Economia Política e Políticas de Comunicação>”, do XVI
Encontro da Compós, na UTP, em Curitiba, PR, em junho de 2007.
2
Professor no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) e no
Departamento de Economia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: <bolano@ufs.br>.
3
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (UNISINOS). E-mail: <val.bri@terra.com.br>.

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funcionamento televisivo, envolvendo concessões, equipamento e conteúdos, terá que ser re-
regulamentado, na passagem para o digital, há um motivo claramente provocador da
rediscussão da TV brasileira. No entanto, até o momento isto não aconteceu, apesar do Brasil
ser governado por um partido historicamente identificado com o espectro de esquerda, o PT.
Esta timidez política, contudo, não significa que o Governo Luiz Inácio Lula da Silva
(2003-2006) venha repetindo integralmente a postura do Governo Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002), quanto à televisão digital, que consistiu numa hesitação, própria de seu
partido, o PSDB, sem avançar para um investimento na tecnologia nacional, em acordo com
outros países emergentes. O Governo do PT chegou a propor alguns avanços na área,
consubstanciados no Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), que mobilizou o
conhecimento científico nacional, recebendo mais de R$ 4 milhões de recursos públicos. No
entanto, tem faltado ao atual Governo força para, independentemente da pressão empresarial,
especialmente na área de mídia, levar adiante seus projetos. Assim é que o SBTVD foi
esvaziado, em prol da adoção do padrão japonês, assim como a Lei do Audiovisual e o
Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) não foram levados adiante pelas críticas recebidas.
Centradas na televisão digital terrestre e na TV pela internet, as novas tecnologias
audiovisuais não conduzem a uma superação do atual período histórico do mercado televisivo
brasileiro. Esses movimentos articulam-se com a ampliação quantitativa de opções ao
receptor, viabilizada, em parte, pela alteração tecnológica, que redunda, por outro lado, em
acirramento da luta competitiva. Desencadeiam-se, assim, movimentos estruturantes que
afetam a televisão e os demais meios de comunicação. As respostas estratégicas das empresas
brasileiras do setor têm redundado numa crise de endividamento (cujo ápice já passou), a
qual, naturalmente, as fragiliza economicamente no momento em que altos investimentos
serão necessários para a digitalização da TV. Contudo, os operadores televisivos têm
renovado sua força política, fazendo valer suas posições na arena de negociações com o
Estado, sendo o modelo digital definido pelo país o da preferência dos radiodifusores.

2. Capitalismo e Estado
Os fenômenos contemporâneos sintetizados em ascensão do papel da informação-
comunicação no processo produtivo, reestruturação das relações de trabalho e aceleração da
inovação tecnológica são traços do novo arranjo capitalista delineado a partir da década de
1970, em substituição ao que prevalecia desde o final da Segunda Guerra Mundial,

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caracterizado pela produção e consumo de massa, gestão planejada da economia pelos


monopólios públicos e privados, Estado fortemente intervencionista na atividade econômica,
proteção da relação trabalhista, modelos administrativos rígidos e atuação corporativa
centralizada e vertical. As dinâmicas que demarcam o planejamento, desenvolvimento,
circulação e consumo comunicacional na contemporaneidade inserem-se no período atual do
capitalismo, caracterizado pela mudança do papel do Estado, que se afasta da atividade
econômica direta, alterando e redirecionando a regulamentação, na linha de fortalecimento
dos mercados, com base em privatizações e desregulamentação. “Houve uma mudança
histórico-estrutural da natureza do capitalismo, resultando na crescente importância dos
mercados e atingindo as empresas dominantes, que tiveram de condicionar-se a disputar e
enfrentar-se em um número superior de praças” (BRITTOS, 2005, p. 133).
Há também retrocesso das políticas públicas de distribuição da renda, declínio da
produção em massa, em favor de estratégias de segmentação que se adequam à tendência de
exclusão, terceirização e flexibilização geral, referida tanto à maior liberdade de movimento
do capital, especialmente financeiro, graças às políticas econômicas neoliberais, quanto ao
emprego (quebra da rigidez da relação de trabalho, redundando em perda de direitos e
precarização), produção (sistemas mais versáteis, como o just-in-time e o conjunto das
inovações de processo conhecidas como modelo japonês) e consumo (com estratégias que
visam a sua maior dinamização por parte da população incluída). Nesta nova ordem mundial
(de praticamente todos os campos de atuação humana) a rearticulação concentra-se ainda
mais em torno de alguns poucos centros financeiros, de conhecimento e de informação.
O Estado, no sistema capitalista, é um garantidor das condições gerais necessárias ao
desenvolvimento que o capital individual não tem capacidade de suprir. O ente estatal produz
as condições externas necessárias à acumulação. Esta é a preocupação central da política
econômica em países capitalistas. No entanto, para que ele cumpra essa função, deve garantir
também a sua própria legitimidade diante da população, através de uma política social que
atenda aos interesses e às necessidades das amplas massas nacionais. É que a conquista e o
exercício do poder requerem negociação com os dominados, não sendo só imposição,
conforme o conceito gramsciano de hegemonia (GRAMSCI, 1989), variável em constante
reconstrução e que visa manter a supremacia de dominantes sobre dominados, de forma
mediada e relacional, repleta de negociações capazes de garantir a eficácia de objetivos.
Ocorre que, com a crise, a política social é a primeira a ser questionada, pois, no

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capitalismo, os mecanismos de apoio à acumulação não podem ser prejudicados e, no


confronto, devem ser preservados. É claro que os mais fracos entre os trabalhadores e os
excluídos em geral serão os mais prejudicados pela crise, em função do avanço do
desemprego e da impossibilidade da continuação de uma política de Welfare State com a
mesma amplitude anterior, por causa do aperto fiscal. É nessas condições que o
neoliberalismo ganha força no debate econômico, em prejuízo do pensamento keynesiano até
então dominante. Com isso, fica prejudicado o movimento de conquista de adesão ao sistema,
ou de permanente construção da hegemonia, levando, no limite, a um abalo do próprio
capitalismo, cujas fragilidades ficam à prova, um problema de legitimidade que terá ser
tratado em médio e longo prazo, tendo a mídia um papel essencial nesse encaminhamento.
É justamente a política de redução dos gastos sociais e de enxugamento do Estado que
ideologia neoliberal respalda. Este acaba assumindo a aparentemente inesperada função de
organizar a sua retirada, definindo, através de suas políticas, quais os perdedores. Continua
assim o Estado sendo o lócus fundamental para a edificação da hegemonia, assumindo a
responsabilidade pelo sucesso ou fracasso na implementação do projeto neoliberal. É pura
fantasia, por conseguinte, a idéia de eventual supressão dos Estados nacionais, resultante da
globalização. O neoliberalismo é fundamentalmente uma ideologia característica da crise,
que colabora para seu aprofundamento, porque traz importantes argumentos a favor do
acuamento do ente estatal, defendendo, inclusive abertamente, a necessidade de aumento das
desigualdades sociais, encaradas como criativas, na medida em que estimulariam o trabalho.
Mas o neoliberalismo não oferece saída para a crise, tendendo a ceder espaço a ideologias
mais próximas do keynesianismo, quando estiverem repostas as condições para a expansão.
A onda neoliberal deriva do fato dos Estados nacionais serem obrigados a se submeter
às exigências do capital internacional, do capital financeiro, do capital que se globaliza.
Nessas condições enfraquecidas, os Estados passam a disputar entre si os fluxos do capital
internacional que passa a ditar as regras do jogo. Na medida em que o Estado nacional se
enfraquece diante do capital globalizado, e dado que isso se traduz num determinado grau de
incapacidade de coordenação com vistas à saída da crise ou mesmo sua administração no
sentido de evitar desastres mais graves, vem imediatamente a questão da eventual construção
de algo como um Estado global, capaz de efetivamente garantir a estabilidade do sistema
frente às tendências destruidoras da concorrência entre os capitais individuais e os entes
estatais nacionais capitalistas. Como é sabido, até o momento tal perspectiva não evoluiu.

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Com seu poder reduzido diante dos capitais, que se globalizam mais intensamente, com
a liberdade permitida neoliberalismo, o Estado não se torna imparcial: ao contrário,
aproxima-se ainda mais dos interesses dominantes, reforçando o caráter de barreira à entrada
exercido pela regulamentação e contribuindo para a oligopolização dos mercados. A
exacerbação da globalização não elimina, portanto, as funções do Estado, que permanece
uma entidade viva, capaz de contemplar interesses e produzir sentidos, indispensável para a
acumulação de capital e mesmo proposições em rumo diverso. Mas agora são impostos
deslocamentos ao ente estatal, o qual mais diretamente relaciona-se com (e é influenciado
por) organismos e objetivos externos à realidade nacional, que necessariamente devem ser
considerados no processo de tomada de decisões, por todos os atores sociais.
Prevalece, então, uma espiral de desregulamentação, que se espraia entre quase todos
os mercados e atende aos objetivos maiores de desmantelamento do serviço público. Sem
embargo, isso não representa a supressão de toda a intervenção pública, mas a adoção de
novas modalidades de regulação, nas quais a posição do Estado, de supremacia, tende a ser
assumida pelos agentes privados. Isto não corresponde, necessariamente, à diminuição do
número de regras. Nos EUA, a “tarefa da FCC [Federal Communications Commission] de
predizer sua missão regulatória através da análise econômica tornou-se mais complexa em
uma época de rápida mudança tecnológica” (CORN-REVERE, 1993, p. 88). Até pela entrada
de novas tecnologias, o mercado audiovisual tem sido muito regulamentado, se bem que
muitas vezes primeiro é criado o precedente no caso concreto e só depois é editado o diploma
legal, como aconteceu no início dos sistemas televisivos pagos no Brasil, nos anos 1980.
Mas o debate acerca de políticas de comunicação permanece relevante, requerendo a
inclusão também dos tópicos cultura e educação, para que sejam criados vínculos com
referentes nacionais, locais e alternativos, construindo pontes para uma sociedade mais justa
e solidária e abrindo a possibilidade de projetos verdadeiramente não-hegemônicos, que
atinjam o imaginário dos cidadãos. Nesse sentido, Zallo (2003, p. 38, 39) reflete que uma
política cultural deve levar em consideração, dentre outros pontos: impulso à criatividade dos
atores sociais, sustentação da autonomia e proteção dos criadores e comunicadores, limitação
da concentração de capital, correção dos desajustes produzidos pelos mercados, promoção da
auto-organização dos usuários da cultura e da comunicação, redefinição dos sistemas de
apoio cultural, formulação de regras deontológicas e apoio às produções e valores culturais
de mérito não mercadológico. Tais medidas justificam-se porque a concepção de políticas de

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comunicação de forma instrumental, unicamente como uso da mídia, está superada.

3. Tecnologia e hegemonia
As tecnologias da informação e da comunicação (TICs) têm um papel fundamental no
processamento das lógicas capitalistas da atualidade, permitindo troca ágil de dados, maior
eficiência empresarial, funcionamento sincronizado de mercados, produção diversificada e
novas formas de consumo. Desta forma, são fundamentais na dinamicidade do sistema,
estando no bojo do funcionamento da Economia do Conhecimento, cuja questão central é a
passagem do conhecimento tácito ao codificado (FORAY, 2000) e onde o mito da
independência científica é finalmente superado. O lançamento constante de recursos
tecnológicos avançados, desencadeado no decênio de 70 do século XX e viabilizado pelo
avanço da microeletrônica, imbrica-se com as próprias alterações no interior do capitalismo,
em que a técnica está ligada à globalização (compreendida como o cume de uma trajetória do
próprio sistema, envolvendo mudanças estruturais modificadoras da totalidade social, tanto
quantitativa, quanto qualitativamente) e à adoção de políticas de liberalização e privatização.
A reflexão acerca da tecnologia e sua vinculação econômica e social deve ser embasada
não somente a partir do financiamento, concepção e desenvolvimento da pesquisa que conduz
à inovação. Devem ser considerados todo o processo de regulação e sua adoção num contexto
histórico marcado pela existência de agentes com diferentes capacidades de ação, em
conformidade com a racionalidade empresarial, mas sujeitos a pressões não hegemônicas.
Igualmente o consumo deve ser articulado nas avaliações acerca da formatação tecnológica,
na medida em que a inovação desenvolve-se também a partir de novas utilizações para um
mesmo bem ou o direcionamento para uma determinada potencialidade não explorada de um
produto já existente, num movimento em que o uso, pelos consumidores, é muito importante,
sendo por isso incitado e monitorado. Como é no domínio da interação entre usuário e
tecnologia que se pode modificar, substituir e inovar; cresce o papel dos departamentos de
atendimento ao consumidor das empresas e renova-se a função das pesquisas de mercado.
No caso dos sistemas de televisão, tudo expressa uma outra situação: surgimento de
novas possibilidades de transmissão televisiva, expansão das práticas mercadológicas na
produção e distribuição de conteúdos culturais, privatização de empresas estatais do setor,
ingresso de conglomerados financeiros e de outros ramos industriais na área, consolidação da
relação (de aprendizagem) do receptor com os meios, mudança nos padrões de

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regulamentação e aumento da concorrência intermídia. As opções de hoje, do tradicional


televisual aberto às perspectivas da TVD, consubstanciam-se em formatos tecnológicos,
evidentemente, mas se relacionam com o quadro de mudanças econômicas, políticas e
culturais mais amplas. “Apesar de acelerado nas décadas finais do século XX, o processo de
inovação tecnológica, no sistema televisivo, deve continuar intenso” (BOLAÑO; BRITTOS,
2004, p. 44). Mais do que necessidades do consumidor, tal incremento visa, em grande parte,
preceitos industriais de acelerar a obsolescência dos equipamentos e forjar sua troca.
Esta evolução tem como ápice a digitalização da TV, especialmente a de transmissão
terrestre, por seu alcance social e participação bastante privilegiada no mercado publicitário.
Os novos sistemas buscam a elevação da taxa de interatividade entre espectador, televisor e
operadora, reunindo conteúdos tradicionais e elementos próprios da internet, na busca de
complementos à programação tradicional. Tratam-se, destarte, de dispositivos tecnológicos
em mercados capitalistas, sendo uso alternativo uma questão de subversão, moldada pelos
agentes sociais, que sempre podem pressionar atores econômicos e Estado, e não uma
vocação natural. Os dispositivos digitais com base televisiva poderiam constituir-se em
elementos estratégicos, do ponto de vista técnico, ao lado da garantia de um adequado canal
de retorno, para a inclusão, devendo oferecer as mais amplas possibilidades, não de criação
de oferta de serviços exóticos supersofisticados para seduzir o público consumidor já
incluído, mas fundamentalmente daqueles voltados para a inclusão das grandes massas aos
benefícios da digitalização, oferecendo as mais amplas soluções interativas.
As decisões consoantes ao sistema tecnológico televisual brasileiro deveriam ter
sucedido um amplo debate, visando definir o que o país pretende de sua futura TV digital:
consagrar o (falido) modelo das comunicações brasileiro, de concentração da propriedade e
ausência de controle público, ou avançar para uma solução democrática, que permita a
absorção da criatividade ligada à diversidade da cultura brasileira e avançar de fato no
processo de inclusão digital. A opção de inclusão digital, pouco consagrada nas opções do
país, de qualquer forma não poderia ficar restrita à criação de redes, sem a contrapartida de
conteúdos atraentes à maioria da população. Ao lado da baixíssima base educacional para
interação com o computador e, ainda mais, com mídias como o livro, outro tópico a ser
enfrentado, no processo de universalização da internet (mais uma expectativa otimista do que
uma perspectiva real, ante os rumos do capitalismo em sua terceira fase), é o preço.
A migração para o patamar digital, por parte dos consumidores finais, deve ocorrer

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paulatinamente, inclusive porque a lógica de inclusão própria das tecnologias que marcaram
o período anterior do capitalismo não se faz presente na atualidade. Por mais que se reduzam
os preços do conversor, qualquer inversão a mais, neste momento, no Brasil, mais do que
nunca, se mostra difícil, para uma população historicamente marcada pela pobreza, acentuada
pelo desemprego. Além do mais, o uso do conversor prevê a continuidade do mesmo receptor
analógico, o que não permite o aproveitamento de todo o potencial da digitalização.
Concomitantemente, chamar de inclusão a possibilidade do público de adquirir um aparelho e
dispor de sua funcionalidade é uma redução, não havendo definição de formas de
financiamento da produção alternativa, garantia de conteúdos que contemplem a diversidade
cultural ou a determinação de criação de conselhos sociais de controle das concessões.
O modelo alternativo – até agora não viabilizado – não pode partir dos imperativos da
valorização e da concorrência, mas da necessidade de satisfazer as tão amplas carências das
vastas populações dos países do Terceiro Mundo. Isso implica o reconhecimento da
existência de uma pluralidade de interesses, relativos a consumidores, emissoras e outros
setores da indústria brasileira, o quais, para serem atendidos, devem implicar num cenário
formatado com lógica social distinta da do velho modelo da TV de aberta, oposto, sobretudo,
ao horizonte hegemônico de exclusão pelos preços e de controle oligopólico dos mercados
culturais. Depende de opções históricas, portanto, aproximar a digitalização da televisão de
um mecanismo de aceleração das diferenças sociais e da exclusão sociais ou de um projeto
gerador da maior rede de banda larga digital popular e gratuita, com capacidade de recepção
de informação multimídia, agregando valor econômico e social à TV e tornando realidade a
convergência com outras mídias. A segunda opção significa inclusão digital e agregação de
novas aplicações domésticas, não tendo sido incorporado no modelo brasileiro, até agora.
Para que a TVD se traduzisse em efetiva inclusão digital, um novo padrão de
desenvolvimento que tome a inclusão digital como parte e como estratégia para a inclusão
social em geral deveria ter precedido a preocupação com o modelo de negócio. Melhor
dizendo, a definição do padrão de tecnologia digital a ser adotado no país deveria ter sido
norteada pela idéia de um modelo de serviço (BRITTOS; BOLAÑO, 2005, p. 52). Por isso,
os movimentos sociais insistiram na imperiosidade de que a pauta fosse invertida, inclusive
com o estabelecimento (político) primeiro de que públicos atingir, quais serviços implantar
prioritariamente e como financiar. Depois disso é que deveriam ter sido feitos os testes mais
definitivos com os padrões, a partir de uma agenda de tarefas que os sistemas deveriam

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desenvolver com qualidade próxima da excelência. Ante isso, não há como projetar, em curto
prazo, a subversão da situação característica das comunicações no Brasil, caracterizada
precipuamente pelo predomínio dos interesses privados sobre os públicos.

4. Concentração e inclusão
A falta de debate público e priorização dos interesses empresariais, onde o modelo de
negócios predominou sobre o modelo de serviços, conduziu à adoção pelo Brasil, em 29 de
junho de 2006, do padrão TV digital ISDB (Integrated Services Digital Broadcasting), de
origem e propriedade japonesa. No sentido amplo do termo, o debate não se realizou. As
brechas apresentaram limitam-se às audiências e consultas públicas e aos novos lugares
criados, como o Conselho de Comunicação Social, do Congresso Nacional, sendo conhecidas
as limitações de todas essas possibilidades, por sua própria natureza e pela condição
econômica e cultural de acesso do brasileiro médio. Ao lado disso, as emissoras televisivas
atuaram de forma totalmente irresponsável, resumindo a questão entre manter a televisão
aberta como gratuita ao telespectador ou não, quando o problema é mais amplo e, na base,
estava a possibilidade de ampliar o número de agentes participantes desse mercado. Além do
mais, é sabido que, mesmo quando não há pagamento direto pelo consumidor, este paga o
anúncio publicitário, cujo custo é embutido no preço dos produtos em geral.
A batalha das operadoras de TV foi, em síntese, pela preservação do uso total e do
controle das redes de distribuição do espaço de 6 MHz do espectro eletromagnético, que
detinham a partir das concessões analógicas. A questão é que, com a digitalização, há uma
multiplicação da capacidade desse espaço, que no sistema analógico, tanto VHF4, quanto
UHF,5 permite colocar no ar apenas uma programação. No modelo digital, os 6 MHz podem
transportar uma programação em alta definição, quatro programações na definição standard e
dados ou soluções mistas, que reúnam conteúdos televisivos e dados em geral. As grandes
redes pressionaram e conseguiram que o modelo brasileiro consagrasse que cada canal faça a
gestão de sua própria distribuição, detendo as antenas e demais equipamentos necessários e,
evidentemente, arcando com os custos da passagem da transmissão analógica para o digital
(embora pleiteiem financiamento público para isto). A solução é de difícil operacionalização
para as pequenas emissoras, tendo em vista o alto custo que isso significa.
A insistência pela manutenção do controle total sobre a distribuição dos 6 MHz levou a
4
Very High Frequency (VHF), freqüência muito alta, que vai dos tradicionais canais 2 a 13.
5
Ultra High Frequency (UHF), freqüência ultra-alta, compreendendo os canais situados de 14 a 69.

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um fechamento de questão em torno do padrão japonês e, correlatamente, a uma rejeição à


modulação européia. Pelo padrão europeu, DVB (Digital Video Broadcasting), um único
operador de rede por localidade ficaria encarregado de transmitir os conteúdos de todas as
emissoras. De um lado, permitia que parte dos 6 MHz de cada estação atual fosse destinada
para a transmissão de conteúdos alternativos. De outro, desoneraria os pequenos canais do
alto investimento de compra dos equipamentos para transmissão digital. O operador de rede
teria que ser regulamentado e fiscalizado para não se envolver ou vetar conteúdos, assim
como para que praticasse preços compatíveis. Isso representaria partilha de poder, daí
mobilizando os grandes operadores televisivos contra esta opção. Tal modelo não significa
compulsoriamente a cobrança pela recepção, pois, da mesma forma que hoje as emissoras
bancam o custo de transmissão, poderiam arcar com o pagamento ao operador de rede.
Tanto o modelo japonês quanto o europeu permitem transmissão para dispositivos em
movimento (telefones celulares e aparelhos instalados em veículos de transporte de todos os
tipos), mas o primeiro trabalha com a chamada segmentação espectral, possibilitando que um
mesmo canal de 6 MHz divida sua difusão. Como o projeto da Globo é transmitir a mesma
programação com três definições de imagens diferentes – para televisores de alta definição,
para receptores convencionais com conversores acoplados e para aparelhos móveis – sua
preferência e pressão política é pelo padrão japonês. Com o padrão europeu isso também
poderia ser feito, mas, como requereria mais de um canal, teria que entrar o operador de rede.
No DVB, um canal tem que ser usado de uma só forma, alta definição, definição padrão
(standard) ou para receptores móveis (low). A saída é reunir cada forma de transmissão nos
mesmos canais, o que não pode ser feito por um mesmo programador, mas pelo operador de
rede, pois este disporia de todos os espaços do espectro para disponibilizar aos usuários.
O tema digital reverberou minimamente em 2006, a partir da iminência do anúncio do
padrão e do modelo de negócios a ser adotado no Brasil, com empresários divididos em torno
essencialmente dos padrões japonês e europeu, já estando há mais tempo descartado o norte-
americano – Advanced Television System Committee (ATSC) –, pelo mau desempenho
demonstrado nos testes feitos no Brasil, resultado que confirmou as dificuldades enfrentadas
em seu próprio país de origem, os Estados Unidos. É interessante destacar que houve uma
fissura entre o empresariado nacional. De um lado, os principais radiodifusores uniram-se em
torno do padrão japonês, especialmente na reta final. De outro, as empresas de
telecomunicações defendiam a modulação européia, que permitia a entrada desse segmento

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no negócio. No meio, os fabricantes de equipamentos, com predomínio do capital


estrangeiro, também se dividiram, alinhados com o padrão representante do país de sua sede.
As Organizações Globo foram as principais defensoras do ISDB, mas, ao fim, as
grandes redes alinharam-se em torno da proposta japonesa, especialmente quando ficou mais
acirrada a cisão no âmbito (TV e telefonia). Com isso, houve uma reaglutinação dos
operadores televisivos ao redor da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão
(Abert), em outubro 2006, tendo por base um acordo que redundou em mudança dos
estatutos, ampliando o número de cadeiras no conselho superior para Record e SBT. Os
problemas na Abert estão intimamente relacionados com a conjuntura de crise setorial vivida
desde o final dos anos 90 do século XX, quando a liderança da Globo no seu interior passou a
ser mais contestada. Seu cume transcorreu em fevereiro de 2004, quando o presidente da
Record, Dennis Munhoz, enviou renúncia ao cargo de vice-presidente da entidade, por
discordar de documento reivindicando financiamento público para pagamento de dívidas de
empresas de comunicação (CASTRO, 2004). A recomposição da Abert mostra como, no seio
dos capitais, os desalinhamentos são ocasionais e os interesses maiores, convergentes.
Enquanto as emissoras televisivas tentavam (e conseguiram) impor seus interesses,
várias organizações não governamentais entraram no debate e o Congresso Nacional, que se
manteve distante da temática ao longo de quase todo o processo, chegou a promover algumas
audiências públicas sobre a temática. Os movimentos sociais buscam influenciar no debate
através das seguintes entidades, a seguir expostas em ordem alfabética: Articulação Nacional
pelo Direito à Comunicação (CRIS Brasil), Associação Brasileira de ONGs (Abong),
Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), Associação Mundial de Rádios
Comunitárias (Amarc), Associação Nacional de Técnicos em Artes e Espetáculos (Aneate),
Coletivo Brasil e Comunicação Social (Intervozes), Congresso Brasileiro de Cinema (CBC),
Centro de Cultura Luis Freire (CCLF), Conselho Federal de Psicologia (CFP), Executiva
Nacional dos Estudantes de Comunicação (Enecos), Federação Nacional dos Jornalistas
(Fenaj), Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Instituto Nacional
de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc), Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)
e Sindicato de Pesquisadores em Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (SintPq).
Não tendo a mobilização dos movimentos sociais ecoado junto ao governo, o propósito
de pluralismo na decisão acerca da TV digital ficou representado com a ação civil pública
contra o decreto que estabelece o padrão a ser seguido pelo Brasil, ingressada pelo Ministério

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Público Federal (MPF), em Belo Horizonte, no dia 21 de agosto de 2006. O principal


argumento do MPF, para embasar a ação, foi que o padrão escolhido seria o mais caro para o
consumidor, mas tal compreensão não foi abraçada pela Justiça, tanto que, no dia 30 do
mesmo mês, o pedido de liminar foi negado (LIMINAR contra decreto da TV digital é
negada, 2006). Diante disso, a transmissão digital na televisão aberta brasileira começa em
2007, sendo o projeto das emissoras, de começar a pelas principais cidades brasileiras,
coincidente com o do governo, o que é justificado pelo potencial mercadológico dos grandes
centros urbanos. A transmissão digital já tem data marcada (sempre passível de antecipação):
dezembro de 2007, na região metropolitana de São Paulo, conforme cronograma oficial,
liberado em outubro de 2006, que estabelece os demais prazos de transição.

6. Considerações finais
A TV digital amplia o conceito de televisão, mas a oportunidade deveria representar
também um uma ampliação qualitativa, trazendo lógicas não comerciais e novos conteúdos,
inclusive alguns não tradicionais do sistema televisivo, no modelo da internet, com
possibilidades de uso para tele-educação e tele-governo. Contudo, o grau de abertura para
soluções não-mercadológicas deve ser muito baixo, como tem sido até agora projetado, não
obstante o processo de regulamentação continue em curso e a formatação da televisão digital
dependendo de outros fatores, como incorporação por parte dos diversos agentes envolvidos,
o que pode estimular a ação estratégica da sociedade. De qualquer forma, já é sabido que, na
sua estréia, em 2007, a televisão digital não contará com canal de retorno definido, nem o
middleware que permita a interatividade, o que, desde já, limita seu uso. Tal quadro deve
mudar ao longo do tempo, com a agregação de outros equipamentos e possibilidades.
No que tange ao Governo Lula, o desafio de seu segundo mandato é restabelecer a
unidade das telecomunicações, editando uma legislação que democratize o setor. A dispersão
regulatória no âmbito comunicacional em geral prejudica a integração dos diferentes pontos
da cadeia de valor. É fundamental equacionar a questão, visando à desconcentração e o
desenvolvimento do potencial criativo do brasileiro, que pode ser estimulado através de
legislação que incentive a produção externa (quando a própria emissora contrata uma
produtora e financia o projeto), associada (conjunta entre realizadores nacionais e a TV) e
alheia (aquisição dos direitos de exibição de um produto previamente realizado). Só não é o
caso de alterar a Constituição Federal, porque o pouco que traz de avanço tem sido

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regulamentado com dificuldade (como o Conselho de Comunicação Social, só instalado em


2003) ou não foi aplicado (a exemplo do dispositivo que estabelece percentuais mínimos de
regionalização da programação cultural, artística e jornalística e da produção independente).
Por fim, como hipótese para futuros estudos, pode-se refletir que a baixa ação
regulamentadora do governo petista, quanto à democratização dos processos midiáticos,
enquadra-se numa lógica já tradicional no partido, de não agressão às grandes indústrias
culturais, pouco captada antes de sua ascensão no Executivo Federal. Apesar de sua origem e
propósitos iniciais, o PT não investiu na criação de uma mídia forte, ainda que possuísse
recursos, ante o volume de contribuições que recebe de seus filiados. É desnecessário afirmar
que a gestão de algumas poucas mídias não representaria radical mudança no fazer
jornalismo e entretenimento, mas poderia, com a competência dos quadros intelectuais
tradicionalmente reunidos na sigla, implicar no acréscimo de novas pautas e abordagens, com
repercussões na agenda do cidadão. Esta postura, que significa o assentimento em comunicar-
se com o público através de companhias privadas, é parte do processo de subordinação
capitalista, agora identificado na falta de ousadia para enfrentar os grandes dramas nacionais,
do mercado comunicacional ao financeiro (ambos cada vez mais próximos).

Referências

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