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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES


CENTRO DE ESTUDOS LATINO AMERICANOS SOBRE CULTURA E
COMUNICAÇÃO

Podcasts literários no Brasil:


uma reflexão sobre o sensível partilhado na era do streaming

Keytyane Verônica da Silva Medeiros

Junho de 2019

Artigo científico para a avaliação final da


disciplina de Teorias da Cultura, ministrada
pelo Prof. Dr. Dennis Oliveira para a Turma
A do curso de Gestão de Projetos Culturais
Podcasts literários no Brasil: uma reflexão sobre o sensível partilhado na era
do streaming

Keytyane Verônica da Silva Medeiros¹

Resumo: Este artigo busca fomentar uma reflexão social, política e cultural sobre o
impacto que os podcasts literários tem ao propagar narrativas, símbolos e signos
literários por meio da linguagem auditiva. O artigo se desdobrará sobre as seguintes
perguntas: quais as narrativas partilhadas nestes podcasts? Quais reflexões sobre a
linguagem literária estes produtos culturais propõem e quais as barreiras que
derrubam ou levantam? Como os formatos destes podcasts podem impactar na
recepção e assimilação dos símbolos literários partilhados em cada episódio? Para
tal reflexão, utilizaremos da figura de lingagugem metomínia para analisar a parte
pelo todo, analisando episódios específicos para compreender a proposta geral dos
podcasts em questão, focalizando a atenção principalmente para o formato, os
agentes que os produzem e as leituras que fazem das narrativas apresentadas, bem
como a relação interessante e atualizada sobre o consumo de literatura por meio da
internet, privilegiando o formato auditivo no primeiro semestre de 2019.

INTRODUÇÃO
Este artigo busca fomentar uma reflexão social, política e cultural sobre o
impacto que os podcasts literários tem ao propagar narrativas, símbolos e signos
literários por meio da linguagem auditiva. O artigo se desdobrará sobre as seguintes
perguntas: quais as narrativas partilhadas nestes podcasts? Quais reflexões sobre a
linguagem literária estes agentes sociais propõem e quais as barreiras que
derrubam ou levantam por meio do formato podcast? Qual a natureza desses
podcasts, isto é, quem os articula, executa e distribui? Quais os formatos desses
podcasts (roteiro, entrevista, conversa com especialistas, narração) e como esses
formatos podem impactar na recepção e assimilação dos símbolos literários
partilhados em cada episódio? Quais os livros e narrativas abordados?

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Para isso, serão analisados episódios específicos de dois podcasts literários
brasileiros, são eles: “Folha de Rosto”1 e “Rabiscos”2. O desafio se constitui de
partida: é possível tomar a parte pelo todo na análise dos produtos culturais
citados? A complexidade de uma série de episódios, reflexões e personagens pode
caber na análise de um ou dois epsódios específicos? Assumindo as limitações
literárias e científicas do desafio, é necessário então pensar critérios mínimos que
levaram à seleção de tais produtos culturais como objeto de estudo.
A primeira razão é o número crescente de usuários com acesso à internet,
em especial entre o público mais velho, de 60 anos ou mais. Segundo dados do
IBGE 20183, existem 126,3 milhões de brasileiros com acesso à internet e entre
2017 e 2018, o número teve um aumento de 10,2 milhões de usuários. Se
comparada à pesquisa inédita realizada pelo Ibope4 e encomendada pela Revista
Piauí, em maio de 2019, cerca de 40% dos usuários de internet no Brasil já ouviram
algum podcast. O número representa cerca de 50 milhões de brasileiros e é
equiparado, proporcionalmente, ao número de usuários que nunca ouviu um
podcast ou nem sabe o que é ou do que se trata: 32% da população com acesso à
internet. O levantamento indicou que jovens e pessoas das classes A e B são os
mais interessados no formato. O Ibope entrevistou duas mil pessoas entre os dias
15 e 18 de janeiro. A margem de erro é de dois pontos percentuais.
Esse estudo demonstra que o formato segue em ascenção, tendo margem de
crescimento e exploração especialmente entre o público mais jovem, de 16 a 24
anos - e atualmente o mais assíduo, com 47% do público ouvinte que alimenta o
hábito semanalmente, seguido do público de 25 a 34 anos, dos quais 42% já ouviu
algum podcast. Essas faixas são essencialmente importantes, pois tem a
capacidade de gerar hábitos contínuos que atravessam gerações e que podem
impactar nos hábitos de consumo de podcast - e também de literatura - nos

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Acessado em: 30/05/2019 às 10h
https://margens.com.br/2018/10/02/margens-estreia-podcast-literario-rabiscos/
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Acessado em: 30/05/2019 às 9h45
https://open.spotify.com/show/2QCJeusguAf3dV5TEwtbzl?si=NSssqkVXTG-ahqfwzmnmag
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Acessado em: 30/05/2019 às 9h
https://www.valor.com.br/brasil/6033817/ibge-brasil-ganha-10-milhoes-de-internautas-em-apenas-um-
ano
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Acessado em: 30/05/2019 às 9h26
https://piaui.folha.uol.com.br/quatro-em-cada-dez-internautas-ja-ouviram-podcast-no-brasil/

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próximos anos. ​“O que a pesquisa mostra é o potencial dos podcasts. E, se nos
basearmos na tendência de outros países, é um grande potencial”, segundo Márcia
Cavallari, CEO do Ibope Inteligência, que coordenou o estudo.
Outro critério importante para a escolha do tema e que foi confirmado com a
pequisa do Ibope já citada é a complexidade da cadeia de emissão e distribuição
dos podcasts nas plataformas digitais. No Brasil, atualmente, 42% dos ouvintes de
podcast ouvem os conteúdos utilizando o Youtube, seguidos de 32% que ouvem
podcasts no Spotify. As duas empresas, estadunidenses, juntas, alimentam 74% do
mercado podcaster no Brasil, deixando evidente a concentração de informações na
mesma plataforma. O que suscita questionamentos sobre a indústria cultural da
música e das gravadoras que com o advento da internet e dos canais de streaming,
tem vivido períodos de turbulências intensas com relação aos direitos autorais,
lucratividade e formato, uma vez que historicamente o seu produto cultural - isto é, o
monopólio dos artistas e da reprodução de suas obras - foi abalado pela tecnologia
e pela revolução das redes sociais e digitais. Estamos produzindo conteúdo para
quem e por quê concedemos o direito de reprodução e lucro para uma empresa
multinacional?
Esta questão nos leva ao terceiro e último critério de escolha: o conteúdo. Os
podcasts que aqui chamo de “literários”, isto é, podcasts cujo o tema central são os
livros e a literatura trazem uma particularidade para a podosfera: a possibilidade de
falar sobre um livro ou uma narrativa de diversas formas, podendo desde entrevistar
o autor da obra até reinterpretá-la por meio de uma narração ou interpretação,
fazendo uma leitura específica e única para cada obra abordada nos podcasts. Essa
releitura auditiva das narrativas - biográficas e/ou criativas - pode ou não auxiliar na
disseminação de ideias, conceitos, valores e subjetividades de um dado grupo
social para outro, partilhando assim, um sensível comum aos produtores e ouvintes
de podcast. Neste sentido, a inovação ao abordar a obra literária em formato de
áudio desperta outras narrativas a serem partilhadas, tais como músicas de fundo,
personagens e autores anteriores, contextualização sócio-histórica da obra,
oferecendo entretenimento, informação e cultura de forma didática e acessível.

OS PODCASTS, A LITERATURA E O SENSÍVEL PARTILHADO

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Segundo John B. Thompson, em ​Ideologia e Cultura Moderna​, o conceito de
cultura moderna consiste em interpretar a realidade a partir de contextos
socialmente estruturados e no caso da cultura moderna, fruto da lógica capitalista
de fruição de bens simbólicos, buscando a circulação, expansão e reprodução de
símbolos e signos culturais. O autor formula uma “concepção estrutural de cultura”,
e oferece uma

caracterização preliminar dessa concepção definindo a “análise cultural”


como ​o estudo das formas simbólicas - isto é, ações, objetos e expressões
significativas de vários tipos - em relação a contextos e processos
historicamente específicos e socialmente estruturados dentro dos quais, e
por meio dos quais, essas formas simbólicas são produzidas, transmitidas e
recebidas. (​ THOMPSON, 1990, p. 181)

Neste sentido, os podcasts possuem formas simbólicas catalogadas pelo


autor como intencionais, convencionais, estruturais, referenciais e contextuais
(THOMPSON, 1990), que variam de acordo com a natureza, o objetivo e os agentes
que produzem os podcasts. Serão analisados aqui os podcasts “Folha de Rosto”,
realizado e dirigido pelo jornal O Povo, principal jornal do Ceará (1) e “Rabiscos”, de
produção independente e focado em literatura marginal (2).
No caso do podcast “Folha de Rosto” #405 (publicado em 07/05/2019), cuja
direção editorial é da Editora Dummar6, com o título “Como Nasceu a Literatura
Brasileira”, a intencionalidade e a conveção estão presentes desde a escolha do
principal autor a ser trabalhado no programa, o escritor José de Alencar, à escolha
dos convidados, especialistas em romances brasileiros do século XIX. A narrativa
do programa destaca o pioneirismo de José de Alencar ao escrever romances
brasileiros, sem problematizar os esteriótipos sociais criados pelo autor ao retratar
especialmente indígenas e mulheres do Brasil. A intenção de reforçar o papel de
José de Alencar como o “pai da literatura brasileira” fica ainda mais evidente quando

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Acessado em: 30/05/2019 às 10h45
https://open.spotify.com/episode/3pNEcEPQtG66t6SyaCXikC?si=YyIOQixKRNKQk137m-HMXg

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Acessado em: 31/05/19 às 9h53.
http://blogs.opovo.com.br/editoradummar/tag/podcast-folha-de-rosto/

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os especialistas mencionam o caráter nacionalista das obras de Alencar e a sua
preocupação, como autor, de declarar independência simbólica de outros países e
adotar símbolos nacionais próprios, reforçando o mito da criação do estado nação.
Os entrevistadores e especialistas reforçam assim o mito de fundação do Brasil,
validando a obra e a narrativa sem criticá-las abertamente, cumprindo com uma das
funções centrais dos grandes jornais nacionais (ABRAMO, 2009), e com isto,
auxiliando na assimilação de um mito fundador da pátria, fundamentado em uma
narrativa linear, sólida e construída sobre o passado real (HALL, 1992).
O podcast independente “Rabiscos” em seu episódio #237 (publicado em 12
de março de 2019), por sua vez, convida a poeta indígena Márcia Kambeba para
conversar e falar sobre seu primeiro livro de poesias, “Ay Kakyri Tama: Eu moro na
cidade”. A poeta e geógrafa é uma mulher indígena da etnia Omágua Kambeba, do
Amazonas, e seu livro nasce após a conclusão do seu mestrado. Mais uma vez, a
intencionalidade do podcast - analisado aqui como fenômeno cultural - se faz
presente de saída: com o formato de conversa conduzida por perguntas norteadas,
realizada por telefone, os entrevistadores pedem que a poeta leia um poema de sua
obra logo após a sua apresentação. O poema escolhido foi “Índio eu não sou”, no
qual a poeta refuta o nome dado pelos brancos aos povos indígenas no momento
de sua chegada ao território brasileiro e no qual também narra parte do processo de
ocidentalização da cultura brasileira, a fim de com isso, construir um consenso
nacional em torno da ideia de “brasilidade”, uma nacionalidade que exclui a cultura e
os saberes indígenas, segundo a geógrafa.
Ao longo do programa, a poeta questiona as formas simbólicas
convencionais (THOMPSON, 1991) que atrelam a imagem dos indígenas brasileiros
como uma unidade esteriotipada, preguiçosa e “atrasada socialmente”. A poeta não
apenas refuta estas convenções sociais sobre os povos indígenas como oferece
leituras próprias a cerca da identidade cultural de seu povo, os Omágua Kambeba.
Além disso, as perguntas versam sobre a arte como resistência política, o papel da
poesia indígena no atual contexto de retrocessos de direitos territoriais, espirituais e
políticos das populações indígenas e sobre educação e linguagem. Ainda que

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Acesso em: 28/05/2019 às 12h53
https://open.spotify.com/episode/3CopFnONtv6iazy1LEJHds?si=ejIExu-RQNuTfqixfpMT8A

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ambos os podcasts abordem temáticas que se interrelacionam, tais como literatura
brasileira, cultura indígena e esteriótipos culturais, as diferenças entre eles são
estruturais como formas simbólicas, fruto de naturezas distintas para questões
fundamentais para esta análise, tais como: agente produtor do podcast (1),
diferenças entre os formatos escolhidos, isto é, entre conversa conduzida e
entrevista-perfil (2) e intencionalidade (3) do podcast literário como um todo.
Enquanto o podcast “Folha de Rosto” se atém a temas comuns ao meio
literári, tais como diversidade, mercado editorial e polêmicas sociais como prisão,
psicanálise e erotismo, o podcast “Rabiscos” volta o olhar para a literatura
contemporânea, para o reconhecimento de novos talentos e novos formatos
literários. Ambos no entanto, buscam, à sua maneira, desconstruir paradigmas
sociais e culturais que permeiam nossos tempos, tais como a ideia de escravidão,
literatura como expressão de resistência de identidades e política. Para realizar esta
análise é preciso tomar como princípio a ideia de que o podcast é tanto um
fenômeno de nossos tempos e dos atuais modos de consumo capitalista, como um
produto cultural da era do streaming. Ainda segundo Thompson (1991),

os fenômenos culturais, deste ponto de vista, devem ser entendidos como


formas simbólicas em contextos estruturados e a análise cultural - deve ser
vista como o estudo da constituição significativa e da contextualização
social das formas simbólicas.​ ​(THOMPSON, 1990, p. 181)

Dado que os fenômenos culturais para Thompson (1991) têm um caráter


simbólico, é possível recorrer à ideia de sensível partilhado de Jacques Rancière
(2000) para compreender o impacto social e político de cada uma das leituras
sobre a cultura indígena oferecida em cada um dos podcasts. Para Rancière
(2009), a política se ocupa do que é visto e do que pode ser visto e utiliza para isso
regimes estéticos próprios. Por “estética”, o autor compreende um regime de
identificação e pensamento das artes, uma articulação própria entre os modos de
fazer, a visibilidade do fazer e as teias de relações entremeadas nessa junção de
forma e experiência. Com isso, a estética torna-se também política. Neste sentido,
é no regime poético da linguagem - seja ela visual, cênica ou mesmo auditiva,

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como no caso dos podcasts - que a mimésis, como figura de linguagem, torna-se o
princípio pelo qual se inclui nas narrativas estéticas os sistemas de representação
política, de valores e subjetividades vigentes, a fim de com isso, torná-los visíveis
tanto para quem produz a linguagem artística quanto para quem a consome.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No caso da cultura indígena, abordada de formas tão diferentes em ambos os
podcasts apresentados, tanto a ausência de crítica aos estereótipos formados pela
obra “Iracema”, de José de Alencar quanto a romantização da cultura indígena
como verdadeira cultura subalterna e popular (CANCLINI, 1985) na obra de Márcia
Kambeba são polos perigosos de um mesmo sensível partilhado: a de que os
indígenas não têm espaço no Brasil, nem ontem e nem hoje.
No entanto, com a possibilidade tecnológica da internet, das narrativas
identitárias e da produção de conteúdo descentralizada - ainda que a distribuição
dos podcasts esteja vinculada à poucas empresas multinacionais e participem da
formação de uma cultura transnacional - apenas hoje é possível para as
populações urbanas, afastadas das comunidades indígenas, ouvir a história dessas
populações e aldeias em primeira pessoa, sem floclorização ou desdém.
Como afirma a poeta e geógrafa Márcia Kambeba no episódio #23 do
podcast Rabiscos, a tecnologia chega às aldeias para auxiliar na transmissão de
conhecimentos históricos e ritualísticos dos povos indígenas, não apenas para
subverter o consumo cultural local com informações de cunho eurocêntrico, por
exemplo. Há séculos estes povos transmitem seus sistemas de valores, com o
auxílio de suas próprias ferramentas estéticas, tais como linguagens, cantos,
pinturas e rituais, por exemplo.
Neste sentido, Rancière (2009) ainda sugere que o modo de ser das artes,
isto é, sua origem e seu destino final, definem um regime ético para a linguagem,
trazendo à tona o ​ethos dos indivíduos e das coletividades. Dessa forma, é preciso
lembrar que a narrativa em primeira pessoa, especialmente no formato de áudio,
aproxima emissor e receptor, encurtando os desvios possíveis da comunicação e
criando no outro, “espaço cognitivo” para o reconhecimento da diversidade e da
diferença. É a partir dessa capacidade de assimilação das diferenças e da

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diversidade que é possível alterar valores, subjetividades e sensos compartilhados
numa determinada esfera política, social e cultural. De acordo com Rancière
(2009),

as artes nunca emprestam às manobras de dominação ou de emancipação


mais do que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que
têm em comum com elas: posições, movimentos de corpos, funções da
palavra, repartições do visível e do invisível. E a autonomia de que podem
gozar ou a subversão que podem se atribuir repousam sobre a mesma
base. ​(RANCIÈRE, 2009. p. 26)

No caso das populações indígenas brasileiras, sob o risco de novo genocídio


no atual contexto político, é urgente conhecer sua cultura e seus sistemas de
valores para mantê-los vivos, perservados e em diálogo com o restante das outras
culturas brasileiras. Iniciativas culturais que se propõem ao diálogo e à construção
coletiva de novos sensíveis tendem a auxiliar nesta importante missão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMO, Perseu. Padrões de Manipulação da Grande Imprensa. 1ª ed. São Paulo:


Fundação Perseu Abramo, 2009.
CANCLINI, Nestor G. Cultura transcional e culturas populares no México. Bogotá:
Instituto para a América Larina (IPAL), 1985.
FOLHA DE ROSTO Podcast. Jornal O Povo: Fortaleza, 2019.
HALL, Stuart. ​A identidade cultural na pós-modernidade. 12ª ed. São Paulo:
Lamparina, 2014.
THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. ​São Paulo: Editora 34, 2009.
RABISCOS Podcast. Margens: Poços de Caldas, 2019.

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