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ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA

ESCOLA SUPERIOR DE POLÍCIA


CURSO ESPECIALIZAÇÃO EM DIREITO DE POLÍCIA JUDICIÁRIA

RODRIGO RONEI SOUZA DOS SANTOS

OS CONTORNOS DA AUTONOMIA FUNCIONAL DO DELEGADO DE POLÍCIA


FEDERAL EM FACE DO REGIME DA HIERARQUIA E DISCIPLINA

Artigo científico apresentado à Academia


Nacional de Polícia como exigência para a
obtenção do título de Especialista em Direito de
Polícia Judiciária, tendo como orientador o
Professor Doutor Sandro Lúcio Dezan.

Macapá-AP
2019
OS CONTORNOS DA AUTONOMIA FUNCIONAL DO DELEGADO DE POLÍCIA
FEDERAL EM FACE DO REGIME DA HIERARQUIA E DISCIPLINA

Rodrigo Ronei Souza dos Santos1

RESUMO

O Delegado de Polícia Federal desempenha função de destaque no cenário da


persecução penal, notabilizando-se por figurar como sujeito imparcial e compromissado com a
justiça dos fatos. Para o fiel desempenho de sua missão, a autoridade de polícia judiciária
federal pode contar com um espectro de prerrogativas, que a imunizam das interferências
internas e externas. Afigura-se como um dos principais instrumentos à disposição do Delegado,
para o pleno exercício de seu mister constitucional, a autonomia funcional, que lhe permite
instaurar inquéritos policiais, estabelecer linhas investigativas, fixar hipóteses criminais,
realizar indiciamentos, decidir sobre a representação judicial, correlacionar alvos e avaliar o
melhor momento de encerrar a fase policial persecutória. Contudo, no decorrer desse processo,
a autoridade policial está sujeita a se deparar com comandos imperativos emanados por
superiores hierárquicos, capazes de interferir negativamente no desenvolvimento natural do seu
trabalho, sob o obsoleto argumento de que, no órgão, vigora o regime da hierarquia e disciplina.
O presente artigo, desta forma, destina-se a analisar a compatibilidade entre o regime
hierárquico-disciplinar da Polícia Federal e a independência funcional do Delegado de Polícia
Federal, sob a perspectiva do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Hierarquia. Disciplina. Doutrina. Militar. Autonomia. Prerrogativa.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Hierarquia e disciplina na administração pública. 1.1. Noções gerais e


conceito. 1.2. O poder hierárquico e suas derivações. 1.3. Hierarquia administrativa: origem,
fundamentos e limites. 1.4. A hierarquia e disciplina no militarismo. 1.5. Hierarquia e disciplina nas
polícias judiciárias. 2. Autonomia funcional na Administração Pública. 2.1. Autonomia funcional:
conceito e importância. 2.2. Autonomia funcional nos órgãos envolvidos na persecução penal. 2.3.
Autonomia funcional da autoridade de polícia judiciária. 3. A autonomia funcional do Delegado de
Polícia Federal e sua incompatibilidade com a hierarquia e disciplina do órgão. Considerações finais.
Referências bibliográficas.

1
Delegado de Polícia Federal, Especialista em Direito de Polícia Judiciária.
INTRODUÇÃO

Concebida no século XVIII, a tripartição dos poderes ainda hoje irradia suas bases
às nações democráticas. O ideal iluminista de descentralização do poder e eliminação de
interferências indevidas pode ser traduzido, modernamente, como independência dos poderes
constituídos, distribuição de competências e atribuição de prerrogativas funcionais aos agentes
públicos que desempenham as atividades fundamentais do Estado.

Na persecução penal, as prerrogativas, com destaque à autonomia funcional,


proporcionam isenção e liberdade de atuação, blindando os principais atores do processo
(Delegados, Juízes, Promotores e Defensores) das despropositadas ingerências.

Embora, em sua essência, não sirva a esse propósito, a hierarquia tem potencial para
figurar como uma das formas de ultraje às prerrogativas funcionais. Ordens hierárquicas
despóticas, lastreadas em interpretações inapropriadas, são hábeis a interferir negativamente na
atividade persecutória, especialmente nos órgãos que, a exemplo da Polícia Federal, adotam em
suas normas o sistema hierárquico-disciplinar como base principiológica.

Por essa razão, o presente trabalho, lastreado em pesquisas bibliográficas e de


campo feitas pelo autor, pretende estabelecer alguns marcos divisórios entre a autonomia
funcional da autoridade de polícia judiciária federal e o regime hierárquico-disciplinar praticado
no âmbito da Polícia Federal.

Neste sentido, a primeira parte do estudo destina-se a demonstrar as principais


diferenças entre as formas de hierarquia existentes no serviço público brasileiro, ressaltando
suas origens e seus fundamentos.

Em seguida, far-se-á uma análise da autonomia funcional na Administração


Pública, com especial destaque à aplicação dela às atividades desenvolvidas pelos membros dos
órgãos envolvidos na persecução penal.

Por fim, serão apresentados os argumentos que demonstram que a hierarquia


existente na Polícia Federal se incompatibiliza com a autonomia do Delegado de Polícia
Federal, sendo, inclusive, referenciada de forma inapropriada nas leis que regem o
funcionamento do órgão.

3
1. HIERARQUIA E DISCIPLINA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

1.1. Noções gerais e conceito

Em razão fundamentar a estruturação dos órgãos que compõem a Administração


Pública, a hierarquia ocupa posição proeminente no Direito Administrativo, manifestando-se,
usualmente, como princípio organizativo e como poder, ou, na sua forma especial, como
doutrina.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro concebe hierarquia administrativa sob acepções


distintas, mas correlatas. Em primeiro lugar, hierarquia é princípio ou critério de organização
administrativa, caracterizado pelo escalonamento piramidal dos órgãos. Sob outro aspecto, é a
distribuição de competência, com maior ou menor possibilidade de controle do superior sobre
os subordinados. Por fim, é a relação pessoal de subordinação entre o superior e o seu
subalterno, “implicando um poder de dar ordens e o correlato dever de obediência”2.

Para José dos Santos Carvalho Filho, hierarquia significa “o escalonamento em


plano vertical dos órgãos e agentes da Administração, que tem como objetivo a organização
da função administrativa”3. Divergindo da doutrina majoritária, o autor não aceita conceituar
hierarquia como poder, por acreditar que o fenômeno encontra-se desprovido das prerrogativas
de direito público inerentes aos autênticos poderes administrativos4.

Discorrendo sobre o tema, o professor português Paulo Otero dispõe-se a resumir


as definições acima expostas, admitindo hierarquia administrativa como:

Modelo de organização vertical da Administração Pública, através do qual se


estabelece um vínculo jurídico entre uma pluralidade de órgãos da mesma
pessoa coletiva, conferindo-se a um deles competência para dispor da vontade
decisória de todos os restantes dos órgãos, os quais se encontram adstritos a
um dever legal de obediência.5

1.2. O poder hierárquico e suas derivações

Os autores que aceitam a hierarquia administrativa como poder da Administração,


consideram que o fenômeno se consubstancia por meio de seus subpoderes (ou poderes anexos).

2
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. Forense, Rio de Janeiro, 2017, p. 20.
3
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Atlas. São Paulo, 2017, p. 76.
4
Ibidem, p. 75.
5
OTERO, Paulo. Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, Coimbra, 1992.
4
Conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, são poderes anexos da
Administração os seguintes:

(a) poder de comando, que o autoriza a expedir determinações gerais


(instruções) ou específicas a um dado subalterno (ordens), sobre o modo de
efetuar os serviços; (b) poder de fiscalização, graças ao qual inspeciona as
atividades dos órgãos e agentes que lhe estão subordinados; (c) poder de
revisão, que lhe permite, dentro dos limites legais, alterar ou suprimir as
decisões dos inferiores, mediante revogação, quando inconveniente ou
inoportuno o ato praticado, ou mediante anulação, quando se ressentir de vício
jurídico; (d) poder de punir, isto é, de aplicar as sanções estabelecidas em lei
aos subalternos faltosos; (e) poder de dirimir controvérsias de competência,
solvendo os conflitos positivos (quando mais de um órgão se reputa
competente) ou negativos (quando nenhum deles se reconhece competente), e
(f) poder de delegar competências ou de avocar, exercitáveis nos termos da
lei6.

O poder anexo de direção concede ao superior hierárquico a faculdade geral de


ingerência na atividade do subordinado, facultando ao administrador emanar comandos
vinculativos (ordens diretas ou instruções normativas), para impulsionar atividades, determinar
ou restringir o conteúdo de atos, ou fixar parâmetros interpretativos para determinada norma.
Segundo Otero, “através de comandos imperativos, o superior pode planificar, organizar,
comandar e coordenar toda a atividade administrativa dos seus subalternos” 7.

Além de emanar comandos, caberá, ainda, ao administrador fiscalizar a legalidade


e o mérito da atividade desenvolvida pelo subordinado. Nesse caso, examinará se as ordens e
as normas estão sendo cumpridas, a fim de corrigir os eventuais desvios de execução, podendo
“revogar, modificar ou suspender, total ou parcialmente, os atos praticados pelos
subalternos”8.

Delegar e avocar tarefas também fazem parte do rol. O administrador, com lastro
nesse subpoder, poderá repassar ao subordinado parcela de sua competência, por meio de ato
delegatório sob condição resolutiva, ou chamar para si algumas das competências do
administrado, em especial nos casos de “estado de necessidade administrativa”9.

Em caso de descumprimento de normas ou de decisões, o superior terá, ainda, a


faculdade de exercer seu poder punitivo, também conhecido como poder disciplinar, aplicando
ao infrator uma sanção, após processo que contempla contraditório e ampla defesa.

6
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Malheiros. São Paulo, 2013, p. 155.
7
OTERO, Paulo, op. cit., p. 111.
8
Ibidem, p. 137.
9
Estado de necessidade administrativa é a situação extrema, na qual o administrador lança mão de ações não
convencionais para evitar danos ou para reduzir seus efeitos.
5
O poder disciplinar, dessa forma, guarda forte relação com o instituto da hierarquia,
sendo dela indissociável10.

Sobre a questão, destaca José Afonso da Silva que:

Não se confundem, como se vê, hierarquia e disciplina, mas são termos


correlatos, no sentido de que a disciplina pressupõe relação hierárquica.
Somente se é obrigado a obedecer, juridicamente falando, a quem tem o poder
hierárquico. Onde há hierarquia, com superposição de vontades, há,
correlativamente, uma relação de sujeição objetiva, que se traduz na disciplina,
isto é, no rigoroso acatamento pelos elementos dos graus inferiores da pirâmide
hierárquica, as ordens, normativas ou individuais, emanadas dos órgãos
superiores11.

Nas Forças Militares, como se verá, a aplicação rígida dos poderes hierárquico e
disciplinar dá ensejo a uma forma especial de hierarquia administrativa, integrante de uma
doutrina12 específica.

1.3. Hierarquia: origem, fundamentos e limites

A hierarquia administrativa encontra raízes ideológicas no Direito Canônico13.


Segundo a doutrina religiosa, todo poder provém de um ser divino, que emana comandos
vinculativos por meio de um “escolhido”14. Tais ordens, se descumpridas, acarretam o
recebimento de um castigo.

Na Idade Média, período concebido sobre forte influxo da doutrina católica, o


monarca absoluto era esse ser superior escolhido por Deus, representando o topo da pirâmide
da Administração Pública e acumulando poderes supremos, que abarcavam a hierarquia.

Com o fim do sistema absolutista, após a Revolução Francesa, a hierarquia ganhou


nova fisionomia. Nasceu, assim, a ideia de desconcentração e limitação de poderes.

10
Conforme Otero, op. cit., p. 45 a 52, para a teoria monista, o subalterno que contrariou o comando imperativo
será, necessariamente, responsabilizado disciplinarmente, pois hierarquia e disciplina são faces da mesma moeda;
e, para a teoria contrária, a dualista, o poder disciplinar estaria desvinculado do poder hierárquico.
11
DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros. São Paulo, 2011. p. 774.
12
Segundo o site Significados, “doutrina” representa um “conjunto de princípios que servem de base a um sistema
(...). Está sempre relacionada à disciplina, a qualquer coisa que seja objeto de ensino...”
13
OTERO, op. cit., p. 303.
14
Segundo o site Origem da Palavra, o vocábulo “hierarquia” deriva do Latim “hierarchia”, que significa “divisão
de anjos por ordem de importância”. Há os quem entendem que o vocábulo tem outras origens, tais como: do
Grego “hierarkhia”: “comando de um alto sacerdote”; e da expressão “ta hierar”: “ritos sagrados”. A palavra dá
sentido de “organização de pessoas ou coisas por importância”.
6
O fundamento da hierarquia, nesse contexto, sofreu metamorfose, aproximando-se
dos princípios de índole democrática.

Atualmente, sobretudo nos países que adotam constituições dirigentes15, a


hierarquia ganhou nova fundamentação. O sistema hierarquizado não mais é empregado para
respaldar o poder supremo e desregrado do administrador, mas sim como princípio norteador
de ações que possibilitem a organização estatal, em busca da satisfação eficiente das
necessidades públicas. Esse é o caso do Brasil, que elegeu a estrutura hierarquizada dos órgãos
públicos como forma de concretizar as tarefas fundamentais estabelecidas pela Constituição
Federal.

Todavia, embora colabore para a concretização das metas estatais, esse sistema não
pode ser considerado em termos absolutos. Em algumas situações, a limitação da abrangência
da hierarquia é medida de validação do Estado Democrático de Direito.

Entre os poderes constitucionais, por exemplo, inexiste hierarquia, e sim uma


“equiordenação”16, em prol da preservação da repartição dos poderes e dos ideais democráticos.
Nenhum deles é capaz de subordinar os outros aos seus comandos, por serem independentes.

A atividade dos órgãos colegiados e dos consultivos também se situa dentre as


limitações ao modelo hierárquico.

No caso dos primeiros, a ressalva é empregada em razão da incompatibilidade


lógica entre hierarquia e princípio majoritário. A vinculação a comandos predeterminados, caso
assim fosse feito, esvaziaria a função do colegiado, pois significaria submeter a vontade dos
membros a um ser estranho ao grupo, simplesmente por este ser o superior hierárquico. Nem
mesmo o presidente do colegiado, quando desempata determinada questão, o faz em virtude de
ascendência sobre os demais, e sim para garantir o regular funcionamento do colegiado17.
Semelhante é a situação dos órgãos consultivos, que se incompatibilizam com a subordinação
a comandos vinculativos em razão de a atividade demandar espontaneidade e liberdade de
apreciação.

A atividade técnica também ganha destaque dentre às exceções à vinculação


hierárquica.

15
De acordo com Gilmar Ferreira Mendes e Gustavo Gonet Branco (Curso de Direito Constitucional. Saraiva.
São Paulo, 2017, p. 72), as constituições dirigentes são aquelas que “traçam metas, programas de ação e objetivos
para as atividades do Estado nos domínios social, cultural e econômico”.
16
OTERO, op. cit., p. 236.
17
Ibidem, p. 245.
7
Conquanto a hierarquia seja um dos principais instrumentos para a consecução
eficaz das metas estatais, ela não é o único mecanismo posto à disposição da Administração
com essa finalidade. Vale-se o Poder Público, também, de outras ferramentas, como a produção
de conhecimento técnico ou científico. A Administração, neste caso, seleciona servidores com
alto nível de capacitação em determinada área para, com liberdade intelectual, dirimir alguns
dos problemas que se afiguram como complexos. Citemos como exemplo a atividade
desempenhada pelos peritos. Aqui, também se situam as atividades dos juízes, promotores,
defensores e delegados.

1.4. A hierarquia e disciplina no militarismo

No militarismo, evidencia-se uma forma peculiar de hierarquia administrativa,


diferente daquela existente na Administração geral.

A hierarquia e a disciplina, nas instituições militares, são ensinadas e aplicadas de


uma forma específica. Conjugadas, constituem elementos fundamentais da “doutrina militar”,
definida por Adriana Kinoshita18, em sua dissertação de mestrado, como:

O conjunto de conceitos básicos, princípios gerais, processos e normas de


comportamento que sistematizam e coordenam as atividades das Forças
Armadas na nação. É o conjunto de normas práticas, uma ordem de
ensinamentos de caráter permanente, é um princípio.

A doutrina militar, da qual faz parte o regime hierárquico-disciplinar, é, portanto,


um processo de doutrinação gradual, por meio do qual o militar é ensinado, em seus
treinamentos, a confiar em seu superior hierárquico e a crer que a ordens dele devem ser
seguidas, por serem as mais corretas. É reforçado ao subordinado que, em certos momentos,
não há tempo para se avaliar ou se discutir as ordens, sob pena de comprometimento da missão
e da soberania nacional.

Nas instituições militares, para além do “rigoroso cumprimento das obrigações e


das ordens”19, exige-se do militar “uma adesão psicológica ao ideário militar”20, o que é
reforçado de forma exaustiva ao longo da carreira.

18
KINOSHITA, Adriana. Direitos Fundamentais e Juízo de Ponderação ante aos Princípios da Hierarquia e
Disciplina. Dissertação de Mestrado, IDP, 2010.
19
Cf. Art. 31, V, da Lei nº 6.880/1980 (Estatuto dos Militares)
20
LOUREIRO, Ythalo Frota. Princípios da Hierarquia e disciplina aplicados às instituições militares, extraído
de https://jus.com.br/artigos/5867/principios-da-hierarquia-e-da-disciplina-aplicados-as-instituicoes-militares.
8
Em razão disso, é manifesta a diferença entre a hierarquia civil e a militar.

Adriana Kinoshita, nessa linha, arremata que:

O traço marcante que distingue as Forças Armadas de outras instituições civis


é a sua militarização, ou seja, o enquadramento hierarquizado e disciplinado
de seus membros, dispostos em unidades armadas e preparadas para o combate,
detentores da coação impositiva e da força pública com que deve contar o
Estado para manter a unidade de seu povo e a independência de seu território.
E é por possuírem tal estrutura e organização que receberam a relevante e
ímpar missão constitucional de proteção da Pátria21.

No Brasil, os fundamentos da doutrina militar foram absorvidos pelo Exército no


contexto da Primeira Guerra Mundial. Militares franceses, vitoriosos, realizaram missão ao
Brasil, com o objetivo de difundir sua tecnologia de guerra e organizar as instituições.

Um dos pontos que mais preocupava a missão francesa era a hierarquia e a


disciplina praticadas pelo Exército nacional. Segundo os franceses, o sistema, apesar de
normatizado, encontrava-se desorganizado, e deveria ser aprimorado, para evitar
insubordinações22.

Naquela época, a normatização da hierarquia e da disciplina militares já era uma


realidade. A doutrina estava prevista no texto das primeiras constituições brasileiras23-24.

Na nova ordem constitucional, o sistema hierárquico-disciplinar militar


remanesceu. Em dois momentos, o constituinte fez remissão à doutrina. Em ambos, nos
capítulos relativos às forças militares. Nenhum órgão civil mereceu destaque similar, conforme
se vê abaixo:

Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares,


instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos
Estados, do Distrito Federal e dos Territórios25.

As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela


Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas
com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente

21
KINOSHITA, op. cit.
22
BELLINTANI, Adriana Iop. O Exército Brasileiro e a Missão Militar Francesa: instrução, doutrina,
organização, modernidade e profissionalismo (1920-1940). Tese de Doutorado em História. Instituto de
Ciências Humanas, UnB, Brasília, 2009.
23
Cf. art. 14 da Constituição Republicana de 1891 (“A força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites
da lei, aos seus superiores hierárquicos e obrigada a sustentar as instituições constitucionais”).
24
A primeira menção constitucional à hierarquia e à disciplina militares foi feita na Constituição de 1824, em seus
arts. 147, 150 e 179, X.
25
Cf. art. 42 da Constituição Federal de 1988.
9
da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem26.

O regime hierárquico-disciplinar militar também possui presença notável na


legislação infraconstitucional. De acordo com o Estatuto dos Militares, a hierarquia e a
disciplina constituem a base das Forças Armadas27. Seus conceitos estão suficientemente
definidos na lei.

Hierarquia, de acordo com a norma, consiste no “espírito de acatamento à sequência


de autoridade”28; e disciplina, por sua vez, caracteriza-se como a:

Rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas


e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu
funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento
do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo 29.

Para se ter noção da intenção da lei em servir de fundamento para o processo de


doutrinação dos militares, as palavras “hierarquia” e “disciplina”, assim como suas derivações,
figuram por cerca de 100 vezes no Estatuto dos Militares, que possui apenas 160 artigos. E
mais. A doutrina é tão fortemente empregada nas Forças Armadas, que é capaz de alcançar até
mesmo os inativos30.

Anderson Souza Daura, explorando a matéria, argumenta que:

Esta fixação clara e inconfundível dos princípios hierárquicos e disciplinares


como pilares de sustentação das Forças Armadas se deve ao fato de que as
atividades a que estão sujeitos os militares exigem completa e inequívoca
obediência. Suas atividades e os meios que empregam colocam-nos em
situações cotidianamente extremas, visando, em termos finais, à defesa da
Pátria, à garantia dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e por
iniciativa de qualquer destes, a lei e da ordem. Assim, em razão das próprias
características do serviço prestado, que em última análise pode até mesmo ser
exigido com o sacrifício da própria vida, não há como questionar que estas
Forças devem, para se sustentar e manter uma direção linear, exigir uma
especial disciplina e uma rígida hierarquia31.

A hierarquia e a disciplina militares, deste modo, são qualificadas, não encontrando


correspondentes no sistema dos servidores públicos civis em geral, o que impõe aos seus

26
Cf. art. 142 da Constituição Federal de 1988.
27
Cf. art. 14 da Lei nº 6.880/1980.
28
Cf. art. 14, § 1º, da Lei nº 6.880/1980.
29
Cf. art. 14, § 2º, da Lei nº 6.880/1980.
30
Cf. art. 14, § 3º, da Lei nº 6.880/1980.
31
DAURA, Anderson Souza. Princípios Hierárquicos na Polícia Federal. Trabalho de conclusão de curso
apresentado na Academia Nacional de Polícia. São Paulo, 2009, p. 19.
10
membros “comportamentos absolutamente afinados aos imperativos da autoridade, do serviço
e dos deveres militares, o que em regra não se exige do serviço público civil"32.

As Polícias Militares brasileiras, por serem auxiliares das Forças Armadas, adotam
sistema idêntico. Por todas, cite-se como exemplo o disposto no art. 2º da Lei nº 5.346/1992,
que dispõe sobre o Estatuto dos Militares do Estado de Alagoas:

Art. 2º A Polícia Militar do Estado de Alagoas, Força Auxiliar e reserva do


Exército, é uma instituição permanente, organizada com base na hierarquia e
na disciplina, subordinada administrativa e operacionalmente ao Governador
do Estado, incumbida das atividades de polícia ostensiva e da preservação da
ordem pública33.

Nessa senda, fácil perceber que o regime hierárquico-disciplinar, no militarismo,


faz todo sentido, em razão de ser uma doutrina secular e enraizada à cultura organizacional
militar34, tendo sido consolidada mediante processo histórico de aprendizagem e transmissão
de conhecimentos. É uma espécie de herança cultural, sedimentada em conjunto com outros
princípios orientadores do comportamento interno, tipificando a instituição perante a sociedade.

Sobre a inserção de fragmentos da cultura militar no contexto da Polícia Militar,


Martins acrescenta que:

Segundo Powell e Dimaggio (1991 apud COSTA; MEDEIROS, 2003, p. 72),


tal fenômeno isomórfico que gerou a associação entre o ethos militar e o ethos
policial decorre da força mimética, ou seja, quando há a imitação do modelo
organizacional em razão da criação de uma instituição a partir da outra. Assim,
houve a homogeneização entre a polícia e o exército, gerando uma
discrepância entre a cultura militar e a missão legal de polícia social, como
força para a preservação da ordem pública e do bem-estar coletivo, pois:
“Soldados enfrentam inimigos; policiais interagem com cidadãos”. (COSTA;
MEDEIROS, 2003, p. 70).
Devido à ausência dessa distinção no âmbito organizacional, a formação
humana sempre privilegiou o perfil de um egresso guerreiro, em detrimento da
formação de um policial cidadão. Apesar da existência de uma Academia
própria para a formação de oficiais policiais militares, não se introduziu um
modelo de formação centrado no ethos policial, como ficou claro desde logo
no discurso de inauguração da Academia de Polícia Militar da Bahia:
“Almejando a paz, pensando, porém, na guerra, criaremos nesta escola, como

32
MARTINS, Valmir Farias. O Papel da Cultura Organizacional “Milícia de Bravos” na ocorrência do
Assédio Moral – um Estudo na Polícia Militar da Bahia. Dissertação de Mestrado. Salvador-BA, 2006.
33
Disponível no site http://www.conselhodeseguranca.al.gov.br/legislacao/corpo-de-bombeiros-militar-de-
alagoas/Lei5346-estatudo.pdf
34
Valmir Farias Martins, op. cit., abona que: “O espírito militar é um conjunto de regras, ritos, signos, costumes
e tradições consolidadas ao longo da história e que caracterizam o ethos militar. Dessa forma, apesar de ter
algumas características próprias em cada local, a cultura militar é uniforme e guarda semelhanças comuns em
qualquer país”.
11
principal objetivo, uma indestrutível mentalidade guerreira, dentro da mesma
unidade de doutrina esposada pelo Exército”. (AZEVEDO, 1975, pág. 32).”35.

1.5. A hierarquia e disciplina nas polícias judiciárias

Em nítida tentativa de mimetizar a ideologia castrense, a doutrina da hierarquia e


disciplina foi inserida nos estatutos das Polícias Civis, sem o devido respaldo constitucional.

De acordo com Daura36, o regime hierárquico-disciplinar está previsto nos estatutos


das Polícias Civis de grande parte das unidades federativas, tais como: Alagoas, Espírito Santo,
Santa Catarina, Paraná, Ceará, Mato Grosso, Amazonas e Minas Gerais.

O art. 9º do Decreto-Lei nº 218/1975, que rege a Polícia Civil do Rio de Janeiro,


dispõe, por exemplo, que: “A função policial, fundada na hierarquia e na disciplina, é
incompatível com qualquer outra atividade, salvo as exceções previstas em lei”37.

Na Polícia Federal, a introdução da expressão “hierarquia e disciplina” nas normas


que regem o órgão coincidiu com o período da ditadura militar.

Eis o que Daura relata a respeito:

Cabe frisar que a influência militar, quase que exclusivamente do Exército,


sobre a estrutura e organização atual do órgão são inegáveis.
Os militares, oficiais superiores e alguns oficiais-generais do Exército,
dirigiram a Polícia Federal por longa data. Foram Diretores-Gerais,
Superintendentes Regionais, Diretores da Academia Nacional de Polícia etc.
Inclusive, em 1994, já sob a égide da Constituição Cidadã, visando extirpar
longa greve que se desencadeava na Polícia Federal, fora nomeado o coronel
do Exército, Wilson Brandi Romão, para assumir o cargo de Diretor Geral do
Departamento de Polícia Federal e Secretário Interino de Polícia Federal como
uma espécie de ‘intervenção militar’ na Polícia Federal38.

A Lei nº 4.878, de 1965, ainda hoje aplicada aos policiais civis da União e do Distrito
Federal, previu, em seu art. 4º, que: “A função policial, fundada na hierarquia e na disciplina,
é incompatível com qualquer outra atividade.”39.

Curioso notar que, mesmo sob a vigência da nova Constituição, o legislador


infraconstitucional, talvez de forma desavisada, editou a Lei nº 9.266/96, reafirmando a

35
Idem, ibidem.
36
DAURA, op. cit., p. 42 a 82.
37
https://gov-rj.jusbrasil.com.br/legislacao/91538/decreto-lei-218-75, acessado em 23/10/2018, às 15h.
38
Daura, op. cit., p. 26.
39
http://www.planalto.gov.br/CCIVil_03/LEIS/L4878.htm, acessado em 23/10/2018, às 15:30h.
12
hierarquia e disciplina como “fundamento” da Polícia Federal. Segue a redação, atualizada pela
Lei nº 13.047/2014:

Art. 2o-A. A Polícia Federal, órgão permanente de Estado, organizado e


mantido pela União, para o exercício de suas competências previstas no § 1º
do art. 144 da Constituição Federal, fundada na hierarquia e disciplina, é
integrante da estrutura básica do Ministério da Justiça.40

Mencione-se que, diferente do que ocorre no militarismo, as Leis nº 4.878/1965


9.266/96 mostraram-se despreocupadas em definir os conceitos, os fundamentos e as
especificidades do suposto regime implantado, limitando-se a citar a expressão “hierarquia e
disciplina” apenas uma vez.

Nos normativos internos da Polícia Federal, a doutrina da hierarquia e disciplina é


também disposta de forma tímida. Discorrendo sobre isso, Daura assentou que o regime:

Foi tratado em um conjunto de outros assuntos, que, salvo exceções, só


encontram eco nas atividades da Academia Nacional de Polícia, como
instrumento pedagógico a ser utilizado, nas suas impo e especialmente dirigido
a alunos, do que efetivamente direcionado a todos os policiais41

A Instrução Normativa nº 13/2017-DG/DPF, que disciplina as ações educacionais


realizadas no âmbito da Academia Nacional de Polícia, prevê que:

“As atividades desenvolvidas pela ANP estarão fundamentadas nos seguintes


princípios institucionais: I - ordem, hierarquia e disciplina”. E, a seguir, em capítulo
específico, conceitua esses elementos nucleares, classificando-os como valores institucionais.
Eis as definições:

Art. 137. A hierarquia e a disciplina, valores institucionais da Polícia Federal,


devem ser observadas pelos participantes/alunos desde o seu ingresso na ANP.
§ 1º Entende-se por hierarquia policial a ordenação da autoridade em níveis
diferenciados, escalonados em cargos, classes funcionais e funções.
§ 2º Entende-se por disciplina a rigorosa observância e o acatamento integral
das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam a organização
policial e coordenam seu funcionamento regular e harmônico.

Quanto à manutenção desse sistema na Polícia Federal, há quem entenda42 ser isso
necessário, posto que, embora não voltada para a guerra, a atividade da instituição se assemelha

40
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9266.htm, acessado em 23/10/2018, às 18h.
41
DAURA, op. cit., p. 42 a 82.
42
Idem, p. 29.
13
à dos militares, em alguns aspectos, sobretudo nas situações de confronto armado, e, assim
sendo, precisa de obedecer a um regramento hierárquico para que a missão seja exitosa.

Ousamos discordar desse posicionamento. A essa altura deste trabalho, deve ter
ficado claro que existe uma nítida diferença entre a ideologia (ou doutrina) hierárquico-
disciplinar, aplicada sobretudo nas Forças Armadas, e a hierarquia organizacional que norteia
a Administração Pública em geral.

Honestamente, não vemos razão alguma para tamanho destaque ao regime da


hierarquia e disciplina nos estatutos que regem a atividade da polícia judiciária.

Dizer que um órgão como a Polícia Federal encontra sua razão de ser
(“fundamento”) na “hierarquia e disciplina” significa elevar, demasiadamente, uma ideologia
organizacional estranha à sua natureza – apropriada, entretanto para o militarismo, – ou dar
destaque inútil a um modelo que não lhe é exclusivo, já que a hierarquia e a disciplina civis
estão presentes em toda a estrutura do poder público.

Esclareça-se que não se está aqui para negar a existência da hierarquia e da


disciplina enquanto poderes necessários à administração das polícias judiciárias. Todo órgão
deve, sim, ser escalonado verticalmente, para manter a organização e o foco. É o que ocorre em
toda a Administração Pública, inclusive no âmbito das instituições pautadas na independência
institucional (Ministério Público, Poder Judiciário etc.), onde existe hierarquia, cabendo a
gestão do órgão a quem desempenha a atividade-fim (juízes, promotores, procuradores...).

O sistema hierárquico-disciplinar não militar está implícito nos organogramas, e


não precisa ser destacado em qualquer norma como fundamento. Há outros valores, de maior
relevo, a exemplo dos princípios democráticos ou de justiça, que devem sustentar a existência
dos órgãos investigativos, e serem destacados como fundamentos da atividade policial-
investigativa.

Esse tema será melhor desenvolvido no último capítulo.

14
2. AUTONOMIA FUNCIONAL NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

2.1. Autonomia funcional: conceito e importância

Conforme se mencionou capítulos acima, embora seja necessária à Administração,


a hierarquia não possui aplicação irrestrita. Em determinadas situações, deve ela ser ponderada
e ceder espaço a valores de maior relevância, como consagração do Estado Democrático de
Direito.

A autonomia funcional (ou independência funcional)43, nessa perspectiva, irrompe


como uma das principais exceções ao princípio da vinculação hierárquica, já que com este se
incompatibiliza.

Para que a Administração Pública consiga prestar seus serviços essenciais com o
máximo de eficiência, é imperioso que se enalteçam não apenas a cadeia de ordens e o
disciplinamento de pessoas, mas também a liberdade de pensamento e o conhecimento técnico.

Não fosse assim, estariam esvaziadas de legitimidade as atividades persecutória,


acusatória e decisória. Delegados, promotores e juízes necessitam de independência intelectual
para exercerem seus misteres. Por isso, a delimitação de zonas imunes é medida de vital
importância.

2.2. Autonomia funcional nos órgãos envolvidos na persecução penal

Com o propósito de garantir a justiça dos casos apreciados pelo Estado, o


ordenamento jurídico penal brasileiro assegurou o livre exercício dos profissionais
comprometidos com a persecução penal.

Acerca do Ministério Público, sentencia Mazzili44 que a independência funcional


significa que, no exercício de sua atividade-fim, seus membros “gozam de independência para
exercer suas funções em face de outros membros e órgãos da mesma instituição”, podendo

43 Para Hugo Nigro Mazzili (Ministério Público. Editora Damásio de Jesus. São Paulo, 2005, p. 37), autonomia
funcional (garantia institucional) é a ausência de subordinação de um órgão estatal com relação aos demais, ao
passo que a independência funcional se afina com o exercício da atividade-fim dos membros de determinada
instituição para com seus pares. Entendemos, entretanto, que, em razão de possuírem a mesma carga de semântica,
os vocábulos “autonomia” e “independência” podem ser empregados como sinônimos.
44
Mazzili, op. cit., p. 36.
15
tomar decisões, “sem se ater a ordens de outros membros ou órgãos da mesma instituição”,
uma vez que, sob este aspecto, inexiste hierarquia.

A independência funcional dos membros do Ministério Público encontra acolhida


constitucional e legal. A Constituição Federal, em seu art. 127, destaca-a como princípio
institucional, reproduzido, inclusive, nas leis orgânicas da instituição45-46.

No âmbito da magistratura, o livre exercício da judicatura encontra previsão no art.


40 da Lei Complementar nº 35/1979 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN), que
assim dispõe: “A atividade censória de Tribunais e Conselhos é exercida com o resguardo
devido à dignidade e à independência do magistrado”.

As defensorias públicas também mereceram atenção especial da Constituição


Federal, que assim menciona: “são princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade,
a indivisibilidade e a independência funcional...”47.

Nas polícias judiciárias, a independência funcional também encontra guarida, como


a seguir se verá.

2.3. Autonomia funcional da Autoridade de Polícia Judiciária

A independência funcional dos atores da persecução penal é prerrogativa que se


sobressai por garantir que a justiça prevaleça no âmbito criminal, sem pressões ou favoritismos.
De modo diametralmente oposto, as ações hierárquicas para o direcionamento do processo
investigatório constituem afronta ao Estado Democrático de Direito.

Sobre o tema, Hoffmann evidencia que:

A independência funcional do Delegado de polícia, mais do que uma


prerrogativa do cargo, traduz uma segurança do cidadão, no sentido de que não
será investigado por influência política, social econômica ou de qualquer outra
natureza, sendo tratado sem discriminações benéficas ou detrimentosas.48

45
Segundo a Lei nº 8.625/1993 (LOMP): Art. 1º O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis. Parágrafo único. São princípios institucionais do Ministério Público a
unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.).
46
O art. 4º da Lei Complementar nº 75/1993 (Lei Orgânica do MPU), por sua vez, dispõe que: “São princípios
institucionais do Ministério Público da União a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional”.
47
Cf. arts. 127, § 1º, e 134, § 4º, da Constituição Federal.
48 CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Missão da Polícia Judiciária é buscar a verdade e garantir
direitos fundamentais. Revista Consultor Jurídico, jul. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-
jul-14/academia-policia-missao-policia-judiciaria-buscar-verdade-garantir-direitos-fundamentais>.
16
Em virtude disso, embora não seja categórica a referência constitucional, assim
como acontece com o Ministério Público e com a Defensoria Pública49, encontra-se garantida
a independência funcional dos membros do Poder Judiciário e das Polícias Judiciárias.

Por não haver previsão expressa na Constituição e na legislação federal que rege a
atividade dos Delegados de Polícia, há quem entenda ser inexistente a autonomia funcional
desses profissionais50.

Em razão dessa preocupação, encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados


um Projeto de Emenda Constitucional (PEC 293/2008) que tenciona alterar o art. 144 da
Constituição Federal, para atribuir, explicitamente, aos delegados de polícia a prerrogativa da
independência funcional. O projeto, atualmente, encontra-se na Comissão de Constituição e
Justiça da Casa Legislativa51.

Enquanto se aguarda pela aprovação da emenda, é viável defender que as


autoridades de polícia judiciária, estaduais e federais, dispõem de independência no exercício
de sua atividade-fim, sobretudo em decorrência da lógica do sistema de persecução penal.
Vejamos:

No tocante às atividades desenvolvidas pela Administração Pública, como já se


mencionou, existem somente duas vias: a da hierarquia e a da independência.

As tarefas sujeitas à hierarquia são de controle total do hierarca, podendo ele,


livremente, por meio de comandos imperativos (ordens e normas), determinar, supervisionar,
direcionar, delegar, revisar, avocar, decidir e encerrar, em razão do poder legal e integral sobre
seu mérito. Nesse sistema, caso o servidor resolva, deliberadamente, descumprir as ordens do
seu superior, sujeitar-se-á a uma punição disciplinar.

Por outro lado, determinadas competências de índole intelectual situam-se em uma


zona de isolamento, não sendo atingidas pela hierarquia administrativa, mormente em virtude
do grau de importância para a Administração Pública. Essas são as tarefas sujeitas à autonomia
funcional.

49
De modo geral, a autonomia (ou independência) funcional, quando expressa, encontra-se inserida na
Constituição Federal ou em normas que compõe o regime jurídico administrativo dos membros de uma
organização, surgindo como prerrogativa institucional ou pessoal.
50
Conforme a ADI 5.579, ajuizada pelo Ministério Público Federal, a “prerrogativa de independência funcional,
além de esdrúxula para as funções, são incompatíveis com o poder requisitório do Ministério Público”.
51
Cf. em https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=409032
17
A atividade desenvolvida pelos Delegado de Polícia, nessa senda, é mais adequada
ao sistema da autonomia funcional, já que não é de controle do superior hierárquico. E o
respaldo disso é a importância do inquérito policial para a persecução penal.

As autoridades de polícia judiciária, estaduais e federais, no Brasil, são as


responsáveis pela condução do inquérito policial, investigação preliminar afinada com os ideais
do Estado Democrático de Direito e essencial ao funcionamento da justiça penal. Neste
procedimento, o delegado de polícia, profissional com formação em Direito, preside as
apurações, utilizando-se de conhecimentos jurídicos e dos recursos policiais e tecnológicos de
que dispõe, para desvelar delitos e organizações criminosas. Sua atuação isenta, no inquérito
policial – semelhante à do magistrado, no processo – garante aos investigados, às vítimas e às
testemunhas os direitos fundamentais básicos, sem se descurar do seu dever primordial, que é
reprimir o crime, reunindo as provas que aproximam o julgador da reconstrução real dos fatos.

A responsabilidade do Delegado é, nesse ponto, incalculável. A dimensão do


inquérito policial situa-se para além daquela disseminada pela doutrina tradicional, centrando-
se em ideais democráticos, e assentando-se como o principal instrumento de elucidação dos
delitos, especialmente daqueles cometidos por organizações criminosas, que envolvem, por
vezes, autoridades do mais alto escalão da República52.

Retratando essa nova realidade, arrematam Sannini e Hoffmann:

Assim, a finalidade do procedimento preliminar não deve ser vislumbrada sob


a ótica exclusiva da preparação do processo penal, mas principalmente à luz
de uma barreira contra acusações infundadas e temerárias, além de um
mecanismo salvaguarda da sociedade, assegurando a paz e a tranquilidade
sociais.
Essa investigação preliminar deve ser feita com forte respeito aos direitos
fundamentais estampados na Constituição da República, evitando ao mesmo
tempo o excesso punitivo contra o investigado e a proteção insuficiente da
sociedade, daí porque a chamamos de devida investigação criminal
constitucional. Isso significa que a investigação criminal deve desenvolver-se
com a observância dos valores e princípios constitucionais, buscando o
necessário equilíbrio entre garantismo e efetividade na primeira fase da
persecutio criminis.53

52 Citem-se, como exemplos, os inquéritos policiais instaurados em face dos ex-Presidentes da República Lula e
Michel Temer.
53
NETO, Francisco Sannini & CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Independência funcional é
prerrogativa do delegado e garantia da sociedade. Artigo publicado no site Conjur, em 02 de junho de 2016.
18
O Estado-investigação está concentrado nas mãos do seu legítimo presentante: o
Delegado de Polícia. Por isso, é salutar que sua atividade intelectual esteja a salvo das
interferências internas e externas.

As Polícias Civis de alguns Estados54, antecipando-se, contam com a previsão legal


da independência funcional do Delegado de Polícia. O art. 149 da Lei Orgânica da Polícia Civil
do Estado do Amapá55, por exemplo, contempla-a, da seguinte maneira:

O Delegado de Polícia goza de autonomia e independência no exercício das


funções de seu cargo, sendo inviolável pelas opiniões que externar, ou pelo
teor de suas manifestações procedimentais, com seus atos somente podendo
ser revistos pelo Poder Judiciário, podendo ainda requisitar, diretamente, de
entidades públicas ou privadas, informações, documentos, exames e perícias,
necessários à instrução de procedimentos policiais, observando o princípio
constitucional da legalidade.

O Estado de São Paulo, também vanguardista, garantiu a prerrogativa dos


Delegados de Polícia, alterando a Lei Complementar nº 1.152, de 25 de outubro de 2011, para
acrescentar dispositivos contempladores da autonomia funcional das autoridades policiais,
conforme abaixo:

§ 1º - São garantias institucionais da carreira de Delegado de Polícia a


independência funcional e a irredutibilidade de vencimentos. (NR)
§ 2º - A independência funcional é garantida pela autonomia intelectual para
interpretar o ordenamento jurídico e decidir, com imparcialidade e isenção, de
modo fundamentado. (NR)56

Em total situação de atraso, a normatização da independência funcional dos


Delegados não avançou na esfera federal.

Houve apenas uma singela tentativa de inclusão da prerrogativa no texto da Lei nº


12.830/201357, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia.
Contudo, o dispositivo legal recebeu veto jurídico, por se entender que, da forma como foi

54
As Polícias Civis do Amapá, São Paulo, Rio Grande do Norte, por exemplo, já possuem esse tipo de previsão.
55
Lei nº 0883, de 23 de março 2005. Disponível no site: http://www.al.ap.gov.br.
56
Cf. em https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei.complementar/2011/alteracao-lei.comple-mentar-
1152-25.10.2011.html
57
A redação original da lei previa que: “§ 3º O delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo
com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade.”.
19
escrito, “poderia sugerir um conflito com as atribuições investigativas de outras
instituições”58.

Na Polícia Federal, também não há menção expressa à prerrogativa nas leis federais
que regem o cargo. Nem mesmo os seus normativos internos deram importância a isso.

Ainda assim, não há como negar que a autonomia funcional dos Delegados de
Polícia Federal existe e encontra sua ratio na lógica do sistema, com o devido respaldo dado
pela Constituição Federal59, pelo Código de Processo Penal60 e sua Exposição de Motivos61,
pela Lei nº 12.830/201362 e pela Lei nº 9.266/199663.

Ora, se todos os demais atores da persecução penal (juízes, membros do Ministério


Público e defensores públicos) possuem independência funcional, por qual motivo a autoridade
de polícia judiciária, que preside o mais importante instrumento de investigação criminal do
país, não haveria de ter? Não há razão convincente para se estabelecer uma exceção, já que o
Delegado também figura como um dos principais atores do sistema penal.

3. A AUTONOMIA FUNCIONAL DO DELEGADO DE POLÍCIA FEDERAL E SUA


INCOMPATIBILIDADE COM A HIERARQUIA E DISCIPLINA DO ÓRGÃO

Como modelo organizacional e como poder geral da Administração, a hierarquia


figura na totalidade do serviço público, posto que qualquer órgão administrativo deve possuir
um ordenamento, como imperativo do princípio administrativo-constitucional da eficiência.

Todos os órgãos públicos, no Brasil, inevitavelmente, devem possuir servidores


com competência para decidir sobre tarefas administrativas, tais como o controle de horário,
assiduidade, produtividade, folha de pagamento, diárias, viagens e licença. As ordens dos
superiores, nesses casos, devem ser obedecidas, sob pena de responsabilização disciplinar, a
não ser que constituam ilegalidades.

58
Cf. Mensagem de veto prevista em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Msg/VEP-
251.htm
59
Cf. art. 144, §1º, IV, da Constituição Federal.
60
Cf. art. 4º do Código de Processo Penal (CPP).
61
Cf. Item IV da Exposição de Motivos do CPP.
62
Cf. art. 2º da Lei nº 12.830/2013.
63
Cf. art. 2º-A, parágrafo único, e art. 2º-B, da Lei nº 9.266/1996.
20
Por esse motivo, o escalonamento piramidal64 e a distribuição de competências, na
Polícia Federal, estão previstos no regimento interno do órgão65, sendo compatíveis com o
modelo praticado pelo Poder Executivo Federal.

Sem embargo, a atividade de polícia judiciária merece tratamento diverso por


espelhar incumbência que demanda liberdade intelectual, consoante conclui Anderson Souza
Daura:

Logo, ninguém poderá determinar que a autoridade policial no trâmite de sua


investigação entenda haver ou não indícios da prática de crime pelo
investigado, ou que haja ou não elementos para se representar por uma prisão
provisória, ou, ainda, se deve ou não findar as diligências apuratórias e relatar
o inquérito policial. Fixa, sabiamente, a referida norma que a subordinação
hierárquica, disciplinar, operacional e organizacional se faz presente em
termos administrativos, pois apesar de ter autonomia de consciência e de
manifestação de pensamento no exercício de sua profissão, este agente público,
autoridade policial, está inserido administrativamente em uma organização
pública armada da qual depende e lhe dá suporte...66

Na mesma linha, é o magistério de Hofmann e Sannini:

A independência funcional afasta a hierarquia funcional entre integrantes da


carreira de delegado de polícia, que se limita ao aspecto administrativo, em
nada afetando o controle interno perante a Corregedoria de Polícia na
fiscalização do respeito ao ordenamento jurídico (sem adentrar no mérito das
decisões)67.

Qualquer tentativa de interferência hierárquica nos trabalhos investigativos do


Delegado de Polícia Federal deve ser considerada ilegal, por invadir a esfera de autonomia da
autoridade, devendo a conduta do superior, a depender da dimensão da ilegalidade por ele
praticada, ser apurada pelos órgãos e setores de controle interno e externo.

De modo análogo, as corregedorias da instituição, por serem expressão do poder


hierárquico, devem limitar sua atuação à verificação do cumprimento das formalidades legais
do inquérito, tais como: controles de prazos prescricionais e de tramitação na esfera policial,
acompanhamento das regras de distribuição e de competência material da Polícia Federal e
controle de erros formais.

64
No Judiciário, os juízes comandam o órgão; no Ministério Público, seus membros; nas defensorias, de igual
forma; e, nas polícias judiciárias, os Delegados de Polícia, membros do órgão, são seus comandantes, por lógica
e simetria.
65
Cf. Portaria nº 155, de 27 de setembro de 2018, publicada em http://portal.imprensanacional.gov.br/web/
guest/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/45573009/do1-2018-10-17-portaria-n-155-de-27-de-
setembro-de-2018-45572868
66
DAURA, op. cit., p. 67-68.
67
NETO, Francisco Sannini & CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Op. cit..
21
Quanto às orientações expedidas pelas corregedorias e pelos setores integrantes da
administração do órgão a respeito de temas investigativos, apesar de extremamente relevantes
para a padronização do órgão, devem elas ser feitas em caráter meramente sugestivo, com toda
cautela para não serem interpretadas como imposições. As correições, por exemplo, espelhar
essa linha de apelo à padronização, respeitando sempre a autonomia investigativa do Delegado.

O Delegado de Polícia Federal sem poder de comando sobre sua investigação não
é autoridade policial, e sim um mero executor, que, a rigor, nem precisaria da formação técnico-
jurídica e do treinamento que possui. Se o chefe ou o corregedor, mesmo sendo também um
delegado, manda na investigação, a tarefa de investigar pode ser acometida a qualquer servidor.

Cabe, ainda, outra reflexão: se a hierarquia administrativa é modelo que independe


de previsão específica, pois está presente na estrutura de qualquer órgão, qual a razão para
tamanho destaque à expressão “hierarquia e disciplina” na legislação específica e nas normas
internas atinentes à Polícia Federal?

A nosso ver, o motivo não é outro senão o apego exagerado a uma doutrina não
pertinente à natureza do órgão, com a intenção de militarizá-lo.

Como tivemos oportunidade de mencionar, a hierarquia e a disciplina, enquanto


princípios edificadores de uma doutrina, encontram guarida apenas no militarismo, em especial
nas Forças Armadas, que valoriza o sistema de ordem e disciplinamento, para salvaguardar
interesses alusivos à defesa da pátria68. Não por outro motivo a Constituição Federal fez
remissão específica a esse sistema, próprio dos militares.

Um trabalho de doutrinamento gradual é feito com os integrantes dessas forças,


metodologia essa que não guarda correspondência com o que acontece na Polícia Federal, que
não possui, em sua cultura organizacional, um sistema de continências, de patentes, de punições
sumárias e, até mesmo, de encarceramento para descumpridores de ordens e normas.

No passado, especialmente na época do regime ditatorial implantado em 1964, o


realce ao sistema hierárquico-disciplinar pode ter feito algum sentido para a Polícia Federal. Na
atualidade, esse regime que se deseja manter já não mais encontra sustento ideológico.

A atividade da polícia judiciária sofreu uma ressignificação, diante da nova ordem


constitucional, merecendo notoriedade princípios maiores.

68
Cf. item 1.4.
22
A postura rígida de antes foi, gradativamente, sendo suavizada pelo respeito
especial às garantias fundamentais e pelos demais postulados inerentes ao Estado de Direito.

Mais adequado do que se sustentar que a Polícia Judiciária da União se funda na


“hierarquia e disciplina” é assegurar que o órgão encontra seu alicerce no “Estado Democrático
de Direito”, princípio que consagra interesses de maior relevo, como a verdade, a justiça, a
imparcialidade, a liberdade de pensamento crítico, a garantia de direitos fundamentais, o
respeito à tripartição dos Poderes e à repartição de competências, dentre outros.

O Delegado de Polícia Federal não necessita de ser guiado por princípios aviltantes,
que sugerem interferência, rigidez e temor, e sim por aqueles que sugerem liberdade de atuação,
para o melhor enfrentamento das organizações e facções criminosas, integradas até mesmo por
membros da própria corporação69.

A nosso sentir, o realce dado à hierarquia e à disciplina nas normas que regem o
funcionamento do órgão serve apenas ao propósito de impor o medo e disfarçar eventuais
práticas ilegais a serem cometidas por superiores hierárquicos contra delegados, e destes contra
integrantes de outras classes.

Embora não seja generalizada essa prática, já que na Polícia Federal, de modo geral,
prevalece a ética, não é difícil de serem encontrados relatos de Delegados que se sentem
aviltados em suas prerrogativas funcionais por atos de superiores hierárquicos, o que foi
constatado pelo autor, em sua vivência como policial, e em pesquisa de campo realizada para o
desenvolvimento do presente artigo70.

Durante a aplicação do questionário, os entrevistados identificaram as seguintes


formas de ultraje à sua autonomia funcional: ordem de superior hierárquico ou de corregedor
de polícia para instauração de inquérito policial, contra o entendimento fundamentado da
autoridade policial; normas internas (instruções, memorandos-circulares etc.), estabelecendo o
modo de investigar determinado fato concreto; ordens diretas de superior hierárquico ou de
corregedor regional estabelecendo a linha de investigação que o delegado deve seguir;
divulgação de conteúdo das investigações sem o consentimento da autoridade policial que a
conduz; distribuição de inquérito policial mediante critérios subjetivos (ex: capacidade
intelectual ou perfil profissional do Delegado de Polícia); redistribuição de inquérito policial

69
Cf. https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/pf-afasta-diretor/
70
Conforme pesquisa de campo realizada pelo autor, no período de 29 de novembro a 18 de dezembro de 2018,
com Delegados de Polícia Civil e Federal.
23
para outro Delegado desprovida de fundamentação; exigência de comunicação, prévia ou não,
dos principais atos da investigação.

Interessante mencionar que quase todos os delegados apontaram que esses atos
incidiram, concretamente, na sua atividade investigativa. E o mais grave: a maioria dos
delegados submetidos à pesquisa revelou que já se sentiu compelido a praticar algum ato
contrário à sua autonomia funcional, em razão de ordem de superior hierárquico ou de
corregedor de polícia, a fim de evitar assédio moral ou punição disciplinar.

Vivenciam-se também situações em que o gestor, pessoalmente ou por servidor de


sua equipe, impõe a maneira de condução da investigação, o número de alvos a serem
investigados, o tipo de representação judicial, o momento para a deflagração da operação e o
grau de maturidade para encerrar a investigação, em desacordo com a linha imaginada pelo
delegado presidente do inquérito.

Por outro lado, a pesquisa também demonstrou que a autonomia funcional é bem
acolhida pelas autoridades de polícia judiciária, sobretudo em decorrência da importância do
Delegado para o sistema de persecução penal e da compatibilidade da prerrogativa com o
Estado Democrático de Direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda existe espaço para o aprimoramento do sistema de investigação criminal


brasileiro. A sociedade e a comunidade jurídica, com frequência, discutem esse processo, e
anseiam pelas medidas que serão adotadas.

Contudo, o reconhecimento das prerrogativas funcionais do Delegado de Polícia


precede esse debate, pois sequer existe apuração penal válida caso seu principal responsável se
encontre ceifado dos mecanismos de blindagem funcional.

Por isso, é inconcebível que, em qualquer fase do processo de condução da


investigação – e até mesmo em situações precedentes, como na lotação do Delegado – o regime
da hierarquia e disciplina, inadequado à atividade de polícia judiciária, prevaleça sobre a
autonomia funcional dos Delegados de Polícia Federal, sobretudo se o único fundamento disso
for a previsão do regime nas normas regentes da Polícia Federal, sem argumento mais
consistente.

24
Mais que isso. A expressão “hierarquia e disciplina” prevista nas normas como
“fundamento” da Polícia Federal deve ser suprimida. Longe de lastrear a atuação do órgão,
essas palavras só traduzem interferência, dependência e temor.

A nosso sentir, os fundamentos legitimadores da atividade desempenhada pela


polícia judiciária da União, que devem ser exaltados, são outros, mais nobres e adequados à
realidade atual, tais como a busca da verdade e da justiça, bem como a preservação dos direitos
e garantias fundamentais.

A militarização da Polícia Federal, por meio da manutenção de práticas e de


fundamentos antiquados, apenas dificulta o reconhecimento da importância da atividade
desempenhada pelo Delegado de Polícia Federal, bem como de sua autonomia funcional.

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