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Macapá-AP
2019
OS CONTORNOS DA AUTONOMIA FUNCIONAL DO DELEGADO DE POLÍCIA
FEDERAL EM FACE DO REGIME DA HIERARQUIA E DISCIPLINA
RESUMO
1
Delegado de Polícia Federal, Especialista em Direito de Polícia Judiciária.
INTRODUÇÃO
Concebida no século XVIII, a tripartição dos poderes ainda hoje irradia suas bases
às nações democráticas. O ideal iluminista de descentralização do poder e eliminação de
interferências indevidas pode ser traduzido, modernamente, como independência dos poderes
constituídos, distribuição de competências e atribuição de prerrogativas funcionais aos agentes
públicos que desempenham as atividades fundamentais do Estado.
Embora, em sua essência, não sirva a esse propósito, a hierarquia tem potencial para
figurar como uma das formas de ultraje às prerrogativas funcionais. Ordens hierárquicas
despóticas, lastreadas em interpretações inapropriadas, são hábeis a interferir negativamente na
atividade persecutória, especialmente nos órgãos que, a exemplo da Polícia Federal, adotam em
suas normas o sistema hierárquico-disciplinar como base principiológica.
3
1. HIERARQUIA E DISCIPLINA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
2
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. Forense, Rio de Janeiro, 2017, p. 20.
3
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Atlas. São Paulo, 2017, p. 76.
4
Ibidem, p. 75.
5
OTERO, Paulo. Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, Coimbra, 1992.
4
Conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, são poderes anexos da
Administração os seguintes:
Delegar e avocar tarefas também fazem parte do rol. O administrador, com lastro
nesse subpoder, poderá repassar ao subordinado parcela de sua competência, por meio de ato
delegatório sob condição resolutiva, ou chamar para si algumas das competências do
administrado, em especial nos casos de “estado de necessidade administrativa”9.
6
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Malheiros. São Paulo, 2013, p. 155.
7
OTERO, Paulo, op. cit., p. 111.
8
Ibidem, p. 137.
9
Estado de necessidade administrativa é a situação extrema, na qual o administrador lança mão de ações não
convencionais para evitar danos ou para reduzir seus efeitos.
5
O poder disciplinar, dessa forma, guarda forte relação com o instituto da hierarquia,
sendo dela indissociável10.
Nas Forças Militares, como se verá, a aplicação rígida dos poderes hierárquico e
disciplinar dá ensejo a uma forma especial de hierarquia administrativa, integrante de uma
doutrina12 específica.
10
Conforme Otero, op. cit., p. 45 a 52, para a teoria monista, o subalterno que contrariou o comando imperativo
será, necessariamente, responsabilizado disciplinarmente, pois hierarquia e disciplina são faces da mesma moeda;
e, para a teoria contrária, a dualista, o poder disciplinar estaria desvinculado do poder hierárquico.
11
DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros. São Paulo, 2011. p. 774.
12
Segundo o site Significados, “doutrina” representa um “conjunto de princípios que servem de base a um sistema
(...). Está sempre relacionada à disciplina, a qualquer coisa que seja objeto de ensino...”
13
OTERO, op. cit., p. 303.
14
Segundo o site Origem da Palavra, o vocábulo “hierarquia” deriva do Latim “hierarchia”, que significa “divisão
de anjos por ordem de importância”. Há os quem entendem que o vocábulo tem outras origens, tais como: do
Grego “hierarkhia”: “comando de um alto sacerdote”; e da expressão “ta hierar”: “ritos sagrados”. A palavra dá
sentido de “organização de pessoas ou coisas por importância”.
6
O fundamento da hierarquia, nesse contexto, sofreu metamorfose, aproximando-se
dos princípios de índole democrática.
Todavia, embora colabore para a concretização das metas estatais, esse sistema não
pode ser considerado em termos absolutos. Em algumas situações, a limitação da abrangência
da hierarquia é medida de validação do Estado Democrático de Direito.
15
De acordo com Gilmar Ferreira Mendes e Gustavo Gonet Branco (Curso de Direito Constitucional. Saraiva.
São Paulo, 2017, p. 72), as constituições dirigentes são aquelas que “traçam metas, programas de ação e objetivos
para as atividades do Estado nos domínios social, cultural e econômico”.
16
OTERO, op. cit., p. 236.
17
Ibidem, p. 245.
7
Conquanto a hierarquia seja um dos principais instrumentos para a consecução
eficaz das metas estatais, ela não é o único mecanismo posto à disposição da Administração
com essa finalidade. Vale-se o Poder Público, também, de outras ferramentas, como a produção
de conhecimento técnico ou científico. A Administração, neste caso, seleciona servidores com
alto nível de capacitação em determinada área para, com liberdade intelectual, dirimir alguns
dos problemas que se afiguram como complexos. Citemos como exemplo a atividade
desempenhada pelos peritos. Aqui, também se situam as atividades dos juízes, promotores,
defensores e delegados.
18
KINOSHITA, Adriana. Direitos Fundamentais e Juízo de Ponderação ante aos Princípios da Hierarquia e
Disciplina. Dissertação de Mestrado, IDP, 2010.
19
Cf. Art. 31, V, da Lei nº 6.880/1980 (Estatuto dos Militares)
20
LOUREIRO, Ythalo Frota. Princípios da Hierarquia e disciplina aplicados às instituições militares, extraído
de https://jus.com.br/artigos/5867/principios-da-hierarquia-e-da-disciplina-aplicados-as-instituicoes-militares.
8
Em razão disso, é manifesta a diferença entre a hierarquia civil e a militar.
21
KINOSHITA, op. cit.
22
BELLINTANI, Adriana Iop. O Exército Brasileiro e a Missão Militar Francesa: instrução, doutrina,
organização, modernidade e profissionalismo (1920-1940). Tese de Doutorado em História. Instituto de
Ciências Humanas, UnB, Brasília, 2009.
23
Cf. art. 14 da Constituição Republicana de 1891 (“A força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites
da lei, aos seus superiores hierárquicos e obrigada a sustentar as instituições constitucionais”).
24
A primeira menção constitucional à hierarquia e à disciplina militares foi feita na Constituição de 1824, em seus
arts. 147, 150 e 179, X.
25
Cf. art. 42 da Constituição Federal de 1988.
9
da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem26.
26
Cf. art. 142 da Constituição Federal de 1988.
27
Cf. art. 14 da Lei nº 6.880/1980.
28
Cf. art. 14, § 1º, da Lei nº 6.880/1980.
29
Cf. art. 14, § 2º, da Lei nº 6.880/1980.
30
Cf. art. 14, § 3º, da Lei nº 6.880/1980.
31
DAURA, Anderson Souza. Princípios Hierárquicos na Polícia Federal. Trabalho de conclusão de curso
apresentado na Academia Nacional de Polícia. São Paulo, 2009, p. 19.
10
membros “comportamentos absolutamente afinados aos imperativos da autoridade, do serviço
e dos deveres militares, o que em regra não se exige do serviço público civil"32.
As Polícias Militares brasileiras, por serem auxiliares das Forças Armadas, adotam
sistema idêntico. Por todas, cite-se como exemplo o disposto no art. 2º da Lei nº 5.346/1992,
que dispõe sobre o Estatuto dos Militares do Estado de Alagoas:
32
MARTINS, Valmir Farias. O Papel da Cultura Organizacional “Milícia de Bravos” na ocorrência do
Assédio Moral – um Estudo na Polícia Militar da Bahia. Dissertação de Mestrado. Salvador-BA, 2006.
33
Disponível no site http://www.conselhodeseguranca.al.gov.br/legislacao/corpo-de-bombeiros-militar-de-
alagoas/Lei5346-estatudo.pdf
34
Valmir Farias Martins, op. cit., abona que: “O espírito militar é um conjunto de regras, ritos, signos, costumes
e tradições consolidadas ao longo da história e que caracterizam o ethos militar. Dessa forma, apesar de ter
algumas características próprias em cada local, a cultura militar é uniforme e guarda semelhanças comuns em
qualquer país”.
11
principal objetivo, uma indestrutível mentalidade guerreira, dentro da mesma
unidade de doutrina esposada pelo Exército”. (AZEVEDO, 1975, pág. 32).”35.
A Lei nº 4.878, de 1965, ainda hoje aplicada aos policiais civis da União e do Distrito
Federal, previu, em seu art. 4º, que: “A função policial, fundada na hierarquia e na disciplina,
é incompatível com qualquer outra atividade.”39.
35
Idem, ibidem.
36
DAURA, op. cit., p. 42 a 82.
37
https://gov-rj.jusbrasil.com.br/legislacao/91538/decreto-lei-218-75, acessado em 23/10/2018, às 15h.
38
Daura, op. cit., p. 26.
39
http://www.planalto.gov.br/CCIVil_03/LEIS/L4878.htm, acessado em 23/10/2018, às 15:30h.
12
hierarquia e disciplina como “fundamento” da Polícia Federal. Segue a redação, atualizada pela
Lei nº 13.047/2014:
Quanto à manutenção desse sistema na Polícia Federal, há quem entenda42 ser isso
necessário, posto que, embora não voltada para a guerra, a atividade da instituição se assemelha
40
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9266.htm, acessado em 23/10/2018, às 18h.
41
DAURA, op. cit., p. 42 a 82.
42
Idem, p. 29.
13
à dos militares, em alguns aspectos, sobretudo nas situações de confronto armado, e, assim
sendo, precisa de obedecer a um regramento hierárquico para que a missão seja exitosa.
Ousamos discordar desse posicionamento. A essa altura deste trabalho, deve ter
ficado claro que existe uma nítida diferença entre a ideologia (ou doutrina) hierárquico-
disciplinar, aplicada sobretudo nas Forças Armadas, e a hierarquia organizacional que norteia
a Administração Pública em geral.
Dizer que um órgão como a Polícia Federal encontra sua razão de ser
(“fundamento”) na “hierarquia e disciplina” significa elevar, demasiadamente, uma ideologia
organizacional estranha à sua natureza – apropriada, entretanto para o militarismo, – ou dar
destaque inútil a um modelo que não lhe é exclusivo, já que a hierarquia e a disciplina civis
estão presentes em toda a estrutura do poder público.
14
2. AUTONOMIA FUNCIONAL NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Para que a Administração Pública consiga prestar seus serviços essenciais com o
máximo de eficiência, é imperioso que se enalteçam não apenas a cadeia de ordens e o
disciplinamento de pessoas, mas também a liberdade de pensamento e o conhecimento técnico.
43 Para Hugo Nigro Mazzili (Ministério Público. Editora Damásio de Jesus. São Paulo, 2005, p. 37), autonomia
funcional (garantia institucional) é a ausência de subordinação de um órgão estatal com relação aos demais, ao
passo que a independência funcional se afina com o exercício da atividade-fim dos membros de determinada
instituição para com seus pares. Entendemos, entretanto, que, em razão de possuírem a mesma carga de semântica,
os vocábulos “autonomia” e “independência” podem ser empregados como sinônimos.
44
Mazzili, op. cit., p. 36.
15
tomar decisões, “sem se ater a ordens de outros membros ou órgãos da mesma instituição”,
uma vez que, sob este aspecto, inexiste hierarquia.
45
Segundo a Lei nº 8.625/1993 (LOMP): Art. 1º O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis. Parágrafo único. São princípios institucionais do Ministério Público a
unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.).
46
O art. 4º da Lei Complementar nº 75/1993 (Lei Orgânica do MPU), por sua vez, dispõe que: “São princípios
institucionais do Ministério Público da União a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional”.
47
Cf. arts. 127, § 1º, e 134, § 4º, da Constituição Federal.
48 CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Missão da Polícia Judiciária é buscar a verdade e garantir
direitos fundamentais. Revista Consultor Jurídico, jul. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-
jul-14/academia-policia-missao-policia-judiciaria-buscar-verdade-garantir-direitos-fundamentais>.
16
Em virtude disso, embora não seja categórica a referência constitucional, assim
como acontece com o Ministério Público e com a Defensoria Pública49, encontra-se garantida
a independência funcional dos membros do Poder Judiciário e das Polícias Judiciárias.
Por não haver previsão expressa na Constituição e na legislação federal que rege a
atividade dos Delegados de Polícia, há quem entenda ser inexistente a autonomia funcional
desses profissionais50.
49
De modo geral, a autonomia (ou independência) funcional, quando expressa, encontra-se inserida na
Constituição Federal ou em normas que compõe o regime jurídico administrativo dos membros de uma
organização, surgindo como prerrogativa institucional ou pessoal.
50
Conforme a ADI 5.579, ajuizada pelo Ministério Público Federal, a “prerrogativa de independência funcional,
além de esdrúxula para as funções, são incompatíveis com o poder requisitório do Ministério Público”.
51
Cf. em https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=409032
17
A atividade desenvolvida pelos Delegado de Polícia, nessa senda, é mais adequada
ao sistema da autonomia funcional, já que não é de controle do superior hierárquico. E o
respaldo disso é a importância do inquérito policial para a persecução penal.
52 Citem-se, como exemplos, os inquéritos policiais instaurados em face dos ex-Presidentes da República Lula e
Michel Temer.
53
NETO, Francisco Sannini & CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Independência funcional é
prerrogativa do delegado e garantia da sociedade. Artigo publicado no site Conjur, em 02 de junho de 2016.
18
O Estado-investigação está concentrado nas mãos do seu legítimo presentante: o
Delegado de Polícia. Por isso, é salutar que sua atividade intelectual esteja a salvo das
interferências internas e externas.
54
As Polícias Civis do Amapá, São Paulo, Rio Grande do Norte, por exemplo, já possuem esse tipo de previsão.
55
Lei nº 0883, de 23 de março 2005. Disponível no site: http://www.al.ap.gov.br.
56
Cf. em https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei.complementar/2011/alteracao-lei.comple-mentar-
1152-25.10.2011.html
57
A redação original da lei previa que: “§ 3º O delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo
com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade.”.
19
escrito, “poderia sugerir um conflito com as atribuições investigativas de outras
instituições”58.
Na Polícia Federal, também não há menção expressa à prerrogativa nas leis federais
que regem o cargo. Nem mesmo os seus normativos internos deram importância a isso.
Ainda assim, não há como negar que a autonomia funcional dos Delegados de
Polícia Federal existe e encontra sua ratio na lógica do sistema, com o devido respaldo dado
pela Constituição Federal59, pelo Código de Processo Penal60 e sua Exposição de Motivos61,
pela Lei nº 12.830/201362 e pela Lei nº 9.266/199663.
58
Cf. Mensagem de veto prevista em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Msg/VEP-
251.htm
59
Cf. art. 144, §1º, IV, da Constituição Federal.
60
Cf. art. 4º do Código de Processo Penal (CPP).
61
Cf. Item IV da Exposição de Motivos do CPP.
62
Cf. art. 2º da Lei nº 12.830/2013.
63
Cf. art. 2º-A, parágrafo único, e art. 2º-B, da Lei nº 9.266/1996.
20
Por esse motivo, o escalonamento piramidal64 e a distribuição de competências, na
Polícia Federal, estão previstos no regimento interno do órgão65, sendo compatíveis com o
modelo praticado pelo Poder Executivo Federal.
64
No Judiciário, os juízes comandam o órgão; no Ministério Público, seus membros; nas defensorias, de igual
forma; e, nas polícias judiciárias, os Delegados de Polícia, membros do órgão, são seus comandantes, por lógica
e simetria.
65
Cf. Portaria nº 155, de 27 de setembro de 2018, publicada em http://portal.imprensanacional.gov.br/web/
guest/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/45573009/do1-2018-10-17-portaria-n-155-de-27-de-
setembro-de-2018-45572868
66
DAURA, op. cit., p. 67-68.
67
NETO, Francisco Sannini & CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Op. cit..
21
Quanto às orientações expedidas pelas corregedorias e pelos setores integrantes da
administração do órgão a respeito de temas investigativos, apesar de extremamente relevantes
para a padronização do órgão, devem elas ser feitas em caráter meramente sugestivo, com toda
cautela para não serem interpretadas como imposições. As correições, por exemplo, espelhar
essa linha de apelo à padronização, respeitando sempre a autonomia investigativa do Delegado.
O Delegado de Polícia Federal sem poder de comando sobre sua investigação não
é autoridade policial, e sim um mero executor, que, a rigor, nem precisaria da formação técnico-
jurídica e do treinamento que possui. Se o chefe ou o corregedor, mesmo sendo também um
delegado, manda na investigação, a tarefa de investigar pode ser acometida a qualquer servidor.
A nosso ver, o motivo não é outro senão o apego exagerado a uma doutrina não
pertinente à natureza do órgão, com a intenção de militarizá-lo.
68
Cf. item 1.4.
22
A postura rígida de antes foi, gradativamente, sendo suavizada pelo respeito
especial às garantias fundamentais e pelos demais postulados inerentes ao Estado de Direito.
O Delegado de Polícia Federal não necessita de ser guiado por princípios aviltantes,
que sugerem interferência, rigidez e temor, e sim por aqueles que sugerem liberdade de atuação,
para o melhor enfrentamento das organizações e facções criminosas, integradas até mesmo por
membros da própria corporação69.
A nosso sentir, o realce dado à hierarquia e à disciplina nas normas que regem o
funcionamento do órgão serve apenas ao propósito de impor o medo e disfarçar eventuais
práticas ilegais a serem cometidas por superiores hierárquicos contra delegados, e destes contra
integrantes de outras classes.
Embora não seja generalizada essa prática, já que na Polícia Federal, de modo geral,
prevalece a ética, não é difícil de serem encontrados relatos de Delegados que se sentem
aviltados em suas prerrogativas funcionais por atos de superiores hierárquicos, o que foi
constatado pelo autor, em sua vivência como policial, e em pesquisa de campo realizada para o
desenvolvimento do presente artigo70.
69
Cf. https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/pf-afasta-diretor/
70
Conforme pesquisa de campo realizada pelo autor, no período de 29 de novembro a 18 de dezembro de 2018,
com Delegados de Polícia Civil e Federal.
23
para outro Delegado desprovida de fundamentação; exigência de comunicação, prévia ou não,
dos principais atos da investigação.
Interessante mencionar que quase todos os delegados apontaram que esses atos
incidiram, concretamente, na sua atividade investigativa. E o mais grave: a maioria dos
delegados submetidos à pesquisa revelou que já se sentiu compelido a praticar algum ato
contrário à sua autonomia funcional, em razão de ordem de superior hierárquico ou de
corregedor de polícia, a fim de evitar assédio moral ou punição disciplinar.
Por outro lado, a pesquisa também demonstrou que a autonomia funcional é bem
acolhida pelas autoridades de polícia judiciária, sobretudo em decorrência da importância do
Delegado para o sistema de persecução penal e da compatibilidade da prerrogativa com o
Estado Democrático de Direito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
24
Mais que isso. A expressão “hierarquia e disciplina” prevista nas normas como
“fundamento” da Polícia Federal deve ser suprimida. Longe de lastrear a atuação do órgão,
essas palavras só traduzem interferência, dependência e temor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
25
MARTINS, Eliezer Pereira. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua processualidade.
São Paulo: Editora de Direito Ltda, 1996.
MAZZILI, Hugo Nigro. Ministério Público. Editora Damásio de Jesus, 3ª ed., São Paulo, 2005.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Malheiros. São Paulo,
2013.
MENDES, Gilmar Ferreira & BRANCO, Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional.
Saraiva. São Paulo, 2017.
Mensagem de veto, prevista em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2013/Msg/VEP-251.htm
MUNIZ, Jacqueline. A Crise de Identidade das Polícias Militares Brasileiras: Dilemas e
Paradoxos da Formação Educacional. Security and Defense Studies Review. Vol. 1.
Winter 2001. Págs. 177/197. http://www.ndu.edu/chds/journal/PDF/Muniz-final.pdf -
acesso em 21/06/2004.
OTERO, Paulo. Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, Coimbra Editora, 1992.
PEREIRA, Eliomar da Silva. Introdução ao Direito de Polícia Judiciária, Volume 1. Editora
Fórum, Belo Horizonte, 2019.
SANNINI NETO, Francisco & CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Independência
funcional é prerrogativa do delegado e garantia da sociedade. Artigo publicado no site
Conjur, em 02 de junho de 2016.
26