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O DESPERTAR DA ESPIRITUALIDADE NAS CRIANÇAS

Entrada: Pensar, comunicar, dar e poder transcender o que é efémero, criando segurança interior, são os
pilares da espiritualidade, e daí a necessiade de desenvolver o nosso potencial afetivo, emocional e
relacional. Dotadas à partida de uma série de competências naturalmente ligadas à espiritualidade, as
crianças anseiam por desenvolvê-las, como um todo.

Ana Vieira de Castro

Não é uma religião nem uma moral, não é uma ciência, nem tão pouco uma teoria ou corrente intelectual.
De uma forma global, a espiritualidade «é uma força, uma energia que está dentro de cada indivíduo, e
que anseia por se exteriorizar, «não quer ficar escondida dentro das pessoas», diz Maria João Ataíde, que
foi professora na Escola Superior de Educadoras de Infância Maria Ulrique, e é especialista nesta área.
Esta dinâmica de emergência implica dois movimentos essenciais: no sentido interior, para dentro de nós,
o que nos leva a sondar «o mais fundo do nosso íntimo» e a conhecermo-nos, e um outro, para fora, em
direção ao outro, na expectativa de conhecer, também, o seu íntimo. Não se trata de um desejo de
superficialidade, mas de um encontro autêntico. Explicando melhor, todos nós, seres humanos, ansiamos
por este encontro profundo, todos desejamos partilhar o nosso íntimo com o outro e, em simultâneo,
conhecer o que ele realmente sente, sem disfarces. Quando este tipo de partilha íntima acontece, é sinal
de que construímos uma relação verdadeira. Este é, portanto, o cerne da espiritualidade: ter a possibilidade
de construir relações verdadeiras. Está ao alcance de nós realizar este desejo, e quanto mais cedo
percebermos isso, melhor.

As faces da mesma moeda. A «génese do anseio do outro», como Maria João Ataíde define a essência
da espiritualidade, pode ser experimentada, desenvolvida e vivida de mil e uma maneiras na nossa vida
diária, e a forma de o fazer é sentir que ela acontece, dando-nos conta do processo. Acontece na comunhão
profunda com o outro, claramente, e não é preciso que esse outro seja um amigo de sempre. Pode ser um
desconhecido com quem nos cruzamos, e que por segundos nos olha nos olhos, fazendo-nos sentir,
naquele preciso momento, uma sensação de compreensão súbita e mútua, o reconhecer fugaz de alguma
coisa que nos une, que nos aproxima. E depois, no minuto a seguir, essa pessoa já lá não está, mas deixou
para sempre em nós essa memória de reconhecimento, irmandade, união ou sentimento partilhado que
não tem nome, mas que nos apazigua a alegra profundamente. A partir dali, temos mais um «amigo» no
mundo, como se uma vela se tivesse acendido entre milhões de outras. O mesmo sentimento de
apaziguamento e satisfação imensa pode vir da contemplação de um campo de margaridas, de uma
madrugada fresca de Verão, ou do voo perfeito de um pássaro, do golpe de asas com que ele rasa o chão.
A sensação é de comunhão, de fusão com um todo maior em que por momentos nos sentimos fazer parte.
De fazer parte de uma ordem qualquer de que somos uma peça, e que nos dá um sentido profundo para a
nossa existência ali, naquele momento. Se pudermos partilhar este sentimento com alguém que vibre com
a mesma frequência que nós, a alegria expande-se, e o momento de espiritualidade aprofunda-se.

Fluxo de vida. Aquilo que faz do incentivo da espiritualidade uma coisa tão benéfica para todos nós é,
entre outras coisas, a possibilidade de voltar sempre a ela, principalmente em momentos de crise, e de
recorrermos aos recursos interiores que nos dá, como aceder ao prazer de conversar intimamente com um
amigo, de ler um livro que tenha significado para nós, passear na floresta, tomar um banho quente. E sentir
que tudo isso nos reconforta e nos dá forças e incentiva a encontrar novas respostas e saídas para o que
vivemos. O sentimento de espiritualidade reforça a ideia de que não estamos sozinhos, de que fazemos
parte de uma corrente eterna, sem princípio nem fim. Estamos ligados a esse fluxo de vida e, contudo,
somos nós próprios, únicos e gratos porque existimos e pertencemos. Pode parecer simples, demasiado
simples, mas estimular a espiritualidade, dar-lhe o valor que realmente tem na nossa vida, passará a fazer
a diferença, pelos benefícios enormes que acarreta.

Alguns de nós entram naturalmente em contacto com este aspeto do nosso ser, outros desconhecem-no
profundamente, outros ainda começam a desenvolvê-lo quando são confrontados com uma crise de vida.
Às vezes, a espiritualidade recupera-se ao longo de um trabalho terapêutico, em que reencontramos o fio
à meada da nossa vida, e ela passa a ter um sentido específico. A importância desta «descoberta» ou
redescoberta, é um aviso seguro de que podemos transformar a insatisfação e o medo em sentimentos bem
melhores. Na cadeia familiar, os filhos são os primeiros a beneficiar disso, primeiro porque os pais ficam
mais felizes, e depois, porque eles próprios começam a ser estimulados, ouvidos, olhados com mais
atenção, a ganharem tempos de tranquilidade e a divertirem-se mais, e de uma forma ainda mais
despreocupada. E na alegria, o eu, a alma ou aquilo que nos habita, expande-se e cria raízes.

Vida falível. Nos dias que correm, a ideia de intimidade, possibilidade de relação verdadeira, encontro
profundo, partilha e proximidade são expressões que soam estranhas no vocabulário no mundo dos adultos
muitas vezes intelectualmente esclarecidos e, não raro, bem sucedidos. Poderíamos apontar várias razões
para essa estranheza. Uma delas é a superficialidade em que decorrem as relações, outra, o culto das
aparências, e mais uma ainda: medo. Medo de confiar, de amar, de acreditar nos outros e de sair lesado
por isso. Medo de viver, em geral. Não admira, portanto, que os «amigos de verdade» rareiem e sejam
escassos aqueles com quem podemos ter «um desabafo, ou fazer uma pergunta difícil», como sublinha
Maria João Ataíde. Para piorar as coisas, descobrimos cada vez mais frequentemente que «a vida é
falível». Tão falível que, de um dia para o outro, os universos que julgávamos seguros, desabam como
castelos de cartas. Esse desmoronar apanha de surpresa sobretudo aqueles que jogaram toda a sua vida
num só objetivo, que «puseram todos os ovos no mesmo cesto» e que, a uma certa altura, deparam com
um momento na vida em tudo falha ou percebem que a sua realidade «segura» já não lhes chega. «A
pressa com que vivemos, a quantidade de coisas que desejamos, aquilo que valorizamos, não têm a ver
com as nossas mais profundas necessidades». Muito menos com a preparação para morte, de que hoje
tudo nos separa, mas com quem teremos, inevitavelmente, um encontro certo. O problema é que, embora
julguemos controlar as circunstâncias, na verdade elas escapam-se-nos por entre os dedos ao mais pequeno
desequilíbrio. Daí a necessidade da descoberta e uso dos recursos que a espiritualidade nos oferece,
encontrando um centro que nos enraíze e estruture, e que simultaneamente nos dê o sentimento de pertença
a uma ordem maior.

Reencontrar o caminho. Grandes crises levam-nos ao fundo poço, mas podem também levar-nos a
inverter o caminho, e começar a fazer perguntas. Quem sou, para onde vou, que sentido tem o que faço?
A superficialidade já não nos chega para acalmar os anseios que trazemos dentro de nós. Daí a necessidade
de voltar a encontrar um sentido para a nossa vida, o que passa por desenvolver a espiritualidade em nós,
e nos nossos filhos. Dotados de espiritualidade natural, na medida em que possuem, à partida,
características inatas para contemplar, confiar, acreditar, imaginar, brincar, partilhar sem reservas,
entender a essência verdadeira das coisas, sentir e compreender os outros mesmo sem palavras, intuir os
ambientes, dar e ajudar com generosidade, amar e ser amadas, as crianças sofrem as consequências do
agitado mundo dos adultos, com todas as perturbações que elas implicam.

Hoje, cabe-nos mais do que nunca, cultivar conscientemente o desenvolvimento das capacidades
originais, que passarão a desempenhar um papel central nas sociedades modernas. Umas das vias reais é,
justamente, estimular a vida interior das crianças, o que lhe facilita o acesso ao sentimento interior de
segurança, que age como uma âncora. Através dele, as crianças sentem que não estão sozinhas, mas
ligadas a um universo maior, que são amadas pelas pessoas, e que há um sentido final na vida. Finalmente,
reagem ao afeto e à atenção dos adultos, que são modelos da sua consciência moral e espiritual, criando
com eles intimidade que os ajuda a florescer e a amadurecer como um fruto. Tal como a inteligência,
cognitiva ou emocional, a espiritualidade pode e deve ser desenvolvida através do desenvolvimento da
sua vida interior, o melhor instrumento de que podem dispor para sobreviver no mundo de hoje. A tarefa
não é difícil, porque, no seu interior, o mundo é fecundo, onde cai uma semente, germina com toda a força
e vigor. Cabe-nos, a nós pais, e aos educadores, plantar-lhes as sementes de tudo o que dá verdadeiro
sentido e satisfação à vida, destacando o valor e o respeito na relação com os outros.

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