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Prefácio 3
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Curso de Alta Virtuosidade e Interpretação Musical de 1941
Gabriel Fauré 72
A Música Espanhola 99
Anedotas 155
2
PREFÁCIO
“Já que a guerra não lhe permite voltar à França, traga seus ensinamentos
também a este país que a viu nascer. Precisamos criar pianistas” ao que
acrescentou Tagliaferro... “e também criar um público para ouvir esses
pianistas”.
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seu público cativo. O sucesso de suas palestras é fruto de uma longa
experiência na carreira de virtuose e da sua vocação de professora.
Aprendendo também com os alunos, adverte para o uso da “técnica como meio
a serviço da música”, para a busca da pureza do estilo, da descoberta
harmônica, da arte do pedal e das vibrações sonoras.
Em 1956, a pedido dos alunos de Paris, ministra na Salle Pleyel, tendo como
modelo seus cursos públicos no Brasil, aulas intituladas “As cores na harmonia”;
“sem colorido a música torna-se monótona”, dizia Tagliaferro.
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ABERTURA DAS COMEMORAÇÕES
DO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO
DA PIANISTA MAGDA TAGLIAFERRO
DISCURSO PRONUNCIADO PELA
PROFESSORA ESTHER DE FIGUEIREDO FERRAZ
15 DE JUNHO DE 1993
Explico o porquê de minha designação para tão honrosa tarefa, quando muitos
entre os aqui presentes, alguns mesmo seus ex-alunos e hoje consagrados
pianistas, melhor do que eu fariam a louvação que se espera de quem se refira
à grande “mestra do teclado”.
É que, nos idos de 1942, naqueles anos para mim dourados porque
correspondentes à fase de minha vida acadêmica, tive o privilégio de ser aluna
de Magdalena nas aulas que ministrava à Rua Bahia, na casa de Ana Esméria
Leite de Barros, tendo como assistentes as pianistas Georgette Pereira, Nellie
Braga e Menininha Lobo. E até hoje guardo como verdadeira relíquia o álbum
contendo as doze “Sonatinas” de Clementi, o texto básico sobre o qual recaíam
nossos exercícios diários de técnica onde a professora, em sua caligrafia
inconfundível, ao mesmo tempo nítida e imperiosa, anotava as falhas,
certamente numerosas, de minha hesitante execução.
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República. Pois mestra em sua arte, e mestra entre os mestres, como
francamente reconhecem quantos lhe acompanham a longa e luminosa
trajetória; mestra de gerações e gerações de jovens pianistas que, em
uníssono, lhe proclamam os dons de garimpeira de talentos, incentivadora de
vocações, impulsionadora de carreiras; mestra no grande magistério da vida,
que poucos terão sabido, como a senhora, fazer da existência uma
demonstração diuturna de fé, de coragem, de combatividade, de irresignação à
mediocridade e de incontida ambição no sentido de atingir sempre o melhor, o
mais puro, o mais perfeito, a senhora é, na verdade, uma grande educadora e,
a esse título, faz jus em grau superlativo à condecoração que dentro de
instantes passará a ornar-lhe o peito e – ouso crer – figurará, entre tantas que
já lhe foram outorgadas aqui e alhures, como uma das mais significativas, das
mais caras ao seu coração”.
É, pois, com intensa emoção que aqui venho dizer algumas breves palavras
sobre a vida e a obra dessa extraordinária artista que a crítica mundial
especializada, condensando numa expressão bastante significativa o
entusiasmo, o fervor com que lhe acompanhava o desempenho pianístico,
passou a designar como “a fada”, “a mágica” do teclado.
A premiada passou a ter como professores, a partir daí, entre outros, Alfredo
Cortot, de Piano, e Gabriel Fauré, de Harmonia, ambos empenhadíssimos em
que a nova aluna, verdadeiramente genial, fizesse uma carreira à altura de seus
méritos. E foi o que aconteceu, sendo certo que dentro de espaço de tempo
relativamente curto Magdalena começou a aparecer no noticiário da imprensa
européia, reservando-lhe a crítica especializada em tratamento verdadeira-
mente consagrador. “Magda Tagliaferro é a maior das pianistas atuais”,
proclama Louis Vierne, in Courrier Musical. “Essa maravilhosa fada do teclado
criou em torno de si todo um universo sonoro que é um encantamento
perpétuo”, afirma Stan Golestan, in Le Figaro. “Na arte prodigiosamente
cultivada de Magda Tagliaferro vive o espírito claro e puro da música francesa”,
assegura Heinrich Strobel, in Berliner Borsenkurier. “Uma técnica sem defeitos,
a serviço de um temperamento genial”, assim se pronuncia Aloys Fornerod, in
Tribune de Lausanne. “Uma finura de expressão e ao mesmo tempo um
domínio soberano da técnica”, diz o Tageszeitung de Viena. E assim por diante,
numa constante louvação convergente e cada vez mais entusiasta.
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pelo Ministère des Affaires Étrangères para se desincumbir de importante
missão: divulgar as obras dos compositores franceses contemporâneos. Estréia
triunfalmente em 1940, tocando no Carnegie Hall com a orquestra Filarmônica
de Nova York, regida por John Barbiroli. E percorre a seguir várias cidades do
país, sempre bem recebida, sempre louvada, sempre ovacionada, o que não a
impediu de retornar aos Estados Unidos apenas 39 anos mais tarde, em 1979,
nas condições que logo adiante serão mencionadas.
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Tagliaferro, em São Paulo e no Rio de Janeiro, e a instituição da Fundação
Magda Tagliaferro, responsável pela realização desta cerimônia.
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Em 1985, apresenta-se pela última vez com Orquestra Sinfônica (tendo como
regente Fábio Mechetti) no Teatro de Cultura Artística de São Paulo. E falece
no Rio de Janeiro em setembro de 1986, em plena primavera, sem sequer
perceber, num passeio de automóvel pela Cidade Maravilhosa, que lhe deixara,
afinal, de pulsar o coração. O brioso coração que lhe permitira, por quase um
século, viver a grande aventura da vida mergulhada na Arte, em contato
permanente com a Beleza. E vêm-me ao espírito as palavras com que encerra
sua biografia – Quase tudo – pequenina jóia de nossa literatura feminina:
“Chego ao porto sem fadiga, feliz como um barco que tenha longamente
navegado no belo”.
Ela própria nos dá a resposta quando, indagada sobre “o que é preciso para ser
um bom artista” assim respondeu, fornecendo ao argüente a seguinte e sábia
receita, em percentuais: “60% de talento, 30% de energia e perseverança no
trabalho e finalmente 10% de sorte”.
Pois que tinha talento, isso o tinha, e o fato saltava aos olhos de quem
possuísse olhos para ver, e penetrava nos ouvidos de quem os tivesse para
ouvir. Uma evidência que se impunha particularmente a seus mestres, desde o
pai, seu primeiro professor, até Fauré, Cortot e outros, que a tiveram como
aluna no Conservatório Nacional de Paris e desde logo lhe perceberam a
genialidade.
Que trabalhava como moura para alimentar esse talento, isso também é exato,
e é ela própria quem no-lo informa quando escreve, referindo-se ao quanto
precisou lutar par chegar a ser o que foi: “na verdade, minha carreira foi feita, se
assim posso dizer, à força dos meus punhos”.
Finalmente, que foi bafejada pela sorte, impossível negá-lo, pois possuía em
alto grau qualidades de espírito, de sensibilidade, de caráter, raramente
encontráveis numa só e mesma pessoa: a generosidade, o altruísmo, a
cordialidade, o senso do companheirismo, a capacidade de se aproximar do
“outro”, do ”próximo”, o otimismo, a alegria de viver, o charme enfim. Além do
que Deus a fizera bela, não apenas de traços mas sobretudo de porte, e isso
também tem seu valor, haja vista o que afirmava, carregando nas tintas, o poeta
doublé de músico que foi o nosso Vinícius de Morais: “beleza é essencial”...
Senhoras e Senhores
Quando alguém pretende estender a própria vida para além de seus limites
físicos, de maneira a permitir que sua obra permaneça e continue a beneficiar
terceiras pessoas, cria uma entidade, uma pessoa jurídica, que venha a ocupar
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o espaço deixado vazio em razão de sua ausência, de seu embarque naquela
nau em que se empreende a chamada “viagem de retorno”. Dar origem a essa
entidade corresponde de uma certa forma a permitir esse retorno, essa
permanência no mundo dos vivos ao qual, sabendo-nos embora mortais, nos
encontramos todos solidamente vinculados.
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CYCLE MAGDA TAGLIAFERRO 1996
AMBASSADE DU BRÉSIL A PARIS
EXPO “10 ANS SANS MAGDA”
Mesdames et Messieurs,
En fait, cette invitation a eté interpretée par nous, que répresentons la Fondation
Magda Tagliaferro au Brésil, comme une convocation. Et c’est avec le plus
grande enthousiasme que nous nous associons à tous ceux qui, comme une
grande famille, vennant de plusieurs continents, rendent hommage à leur
maître.
Voilà dix ans qu’elle est disparue. Au Brésil. À Rio de Janeiro. Et poutant, elle se
fait vivante dans nos mémoires, comme le symbole d’une nouvelle mentalité
musicale, révolutionnaire par sa technique, son interprétation créatrice et par les
couleurs de sa sonorité.
C’est ainsi que, dans la double intention de former l’élève et le public auditeur,
nous nous sommes lancés dans des activités comprenant la réalisation de
concours, de concerts et de “master classes”, celles-ci rendues possible grâce
au concours de professeurs invités, de renommée internationale, comme Flávio
Varani, Cristina Ortiz, Deisy de Luca, Silvia Tuxen-Bang, pour en citer quelques-
uns. Un vrai succès depuis 1993.
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Parallèlement, le besoin de préserver les einsegnements et l’histoire de Magda
Tagliaferro nous a menés à développer l’idée du Musée Biographique,
constituant ainsi la mémoire de son oeuvre enregistrée, écrite et filmée.
Les archives se sont enrichies de films vidéos faits à partir de ses concerts et
intervews pour la télévision et des commentaires de personalités du monde
musical sur sa carrière.
Nous avons encore des projets en voie de réalisation: prévue pour mars 1997:
édition en portugais du livre de son ancienne élève Asako Tamura, déjà publié
au Japon, visant à la divulgation de la technique pianistique systematisée par
Magda Tagliaferro et, encore, pour bientôt, la publication des conférences
qu’elle a proferées depuis les années 1940.
Tels sont nos défis et les résultats de nos efforts dans cette enterprise qui ne
cesse de nous pousser à aller plus loin, en cherchant à sensibiliser de nouveaux
sponsors et collaborateurs réunis autour de la confiance et de la foi dans
l’éducation par la musique.
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CICLO MAGDA TAGLIAFERRO 1996
EMBAIXADA DO BRASIL EM PARIS
EXPO “10 ANOS SEM MAGDA”
Senhoras e Senhores,
Desse modo, na dupla intenção de formar tanto o aluno como o público ouvinte,
dedicamo-nos às atividades que englobam a realização de concursos, de
concertos e de master classes, contando com a colaboração de renomados
professores internacionais, tais como; Flávio Varani, Cristina Ortiz, Deisy de
Luca, Silvia Tuxen-Bang, para citar alguns. Verdadeiro sucesso desde 1993.
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Paralelamente, a necessidade de preservar os ensinamentos e a história de
Magda Tagliaferro nos levou a desenvolver a idéia do “Museu Biográfico”,
constituindo-se, assim, na memória de sua obra gravada, escrita e filmada.
Temos ainda alguns projetos em curso, previsão para março de 97, da edição
em português, do livro de sua ex-aluna Asako Tamura, já publicado no Japão,
visando a divulgação da técnica pianística sistematizada por Magda Tagliaferro
e ainda, em breve, a publicação de suas palestras proferidas desde os anos 40.
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DISCURSO PROFERIDO POR
MAGDA TAGLIAFERRO
POR OCASIÃO DA CRIAÇÃO DA
FUNDAÇÃO MAGDA TAGLIAFERRO
La mission musicale à laquelle j’ai consacré ma vie est depuis un certain temps
destinée à léguer par mes enseignements aux jeunes le fruit de mon labeur et
de ma longue expérience dans la carrière de virtuose.
Ceux qui, une fois parvenus, à suite d’années d’effort, de travail e de sacrifice, à
mettre leur talent au point pour se présenter en public puis finalement gagner
leur vie, n’ont pas les moyens financiers pour le faire ou les relations qui
consentent à les aider.
Je souhaite donc :
Voilà concretisé le triple noble but que je propose à ceux qui, comme moi,
estiment que, si les jeunes sont le monde de démain, la musique, elle, est un
lien éternel entre les peuples, puisque son langage est international et par là-
même, le plus sûr et le plus direct rapprochement du coeur de l’humanité.
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DISCURSO PROFERIDO POR
MAGDA TAGLIAFERRO
POR OCASIÃO DA CRIAÇÃO DA
FUNDAÇÃO MAGDA TAGLIAFERRO
Espero portanto:
Eis aí, concretizada, a tríplice e nobre finalidade que eu proponho aos que,
como eu, acreditam que, se os jovens são o mundo de amanhã, a música, ela
própria, é um elo eterno entre os povos, já que sua linguagem é internacional e
por isso a mais segura e a mais direta aproximação do coração da humanidade.
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1
Discursos
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ENCERRAMENTO DO CURSO DE 1952
Desejo apenas anunciar que após a última obra a quatro mãos inscrita no fim
do programa desta audição, haverá um número extra!
Não me sendo possível tocar com cada um de vocês, escolhi a mais antiga das
alunas do Curso Infantil, que, aliás, passa no ano que vem para o Curso Juvenil
e que portanto se apresenta pela última vez nesta audição, a fim de
executarmos, juntas, duas composições de Gabriel Fauré para quatro mãos: a
“Berceuse” e “Mi-a-ou”, de “Dolly”.
Encerraremos pois este programa com essas duas obras, na execução de Lêda
Maria Maranhão e Magdalena Tagliaferro.
Dezembro de 1952
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ENCERRAMENTO DO CURSO DE 1946
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REUNIÃO COM SÁ PEREIRA
Em primeiro lugar, tinha ficado entendido que não haveria discurso, e foi
somente hoje à tarde, no momento de sair de casa, que soube dessa “traição”
de última hora.
Não posso alegar, por outro lado, que o professor Sá Pereira tenha permutado
seu discurso com o meu, pela simples razão que ele introduziu,
propositalmente, entre outras coisas que eu poderia ter dito, palavras de elogio
sobre o meu modesto trabalho que eu seria, naturalmente, incapaz de
pronunciar.
Por todos esse motivos, e já que não posso encontrar palavras que traduzam,
como eu queria, limitar-me-ei em dizer-vos meu profundo reconhecimento por
esta hora de afeto mútuo e por esta inesquecível manifestação de vossos
sentimentos para comigo.
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representativa da nossa elite artística e social, tantos verdadeiros e queridos
amigos.
A todos vós, por tudo quanto fazeis e ainda fizerdes, a fim de assegurar o êxito
dessa grande obra cultural no desenvolvimento da qual será sempre para mim
motivo de imenso orgulho ter modestamente contribuído, um grande, muito
grande obrigado!
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HOMENAGEM À MEMÓRIA DE JACQUES THIBAUD
Magdalena Tagliaferro no programa radiofônico França Eterna, em
comemoração ao segundo aniversário da morte do ilustre violinista.
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Boucherit, e pelo Sr. Philippe Thibaud, filho do grande Jacques Thibaud, sendo
secretários o Sr. Marcel Diamant-Berger e a violinista Denise Soriano, e sendo
tesoureiro o Sr. du Villars.
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Foi com ele que realizei a minha primeira tournée na Europa, pouco tempo
depois de me ter formado no Conservatório de Paris. Essa excursão artística,
de uma menina de 15 anos, no início da sua carreira, e de um violinista já
famoso, que abrangeu, entre outras, a capital e as grandes cidades da Rússia,
com programas de sonatas de Mozart, Beethoven e César Franck, estabeleceu
entre nós laços indestrutíveis de uma amizade sempre crescente, que foi se
enraizando cada vez mais e culminou com nossa estreita colaboração na banca
do Grande Júri do Concurso Internacional que ele fundou em 1943, juntamente
com Marguerite Long, Júri do qual ele, Thibaud, ainda participara ao meu lado,
seis semanas antes daquela pavorosa catástrofe do “Constellation”.
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dirigida a um artista – que não fosse do cinema – por seus fãs de todas as
partes do mundo.
Apesar de vivermos uma época bastante caótica, em que as emoções
violentas, pela freqüência dos acontecimentos, muitas vezes perdem o seu
caráter impressionante, o desaparecimento de Jacques Thibaud veio,
entretanto, chocar brutalmente as fibras mais profundas da nossa sensibilidade.
Ficou enlutado todo mundo da música, o público de todos os continentes, e
mais dolorosamente atingidos foram, além dos seus amigos mais íntimos, os
jovens violinistas de tantos países que perderam um amparo precioso, um
braço possante e pronto a auxiliá-los.
Eis porque, nesta data, cabe aos músicos do Brasil e das Américas juntar o seu
pensamento comovido ao dos músicos da França e outros países do velho
continente, para recordar a memória do mestre deslumbrante e genial, do
amigo insubstituível, do artista incomparável, reafirmando em nosso coração e
em nosso espírito, o culto e a admiração pelo saudoso Jacques Thibaud,
“L’Enchanteur”.
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CURSO DE ALTA INTERPRETAÇÃO
E VIRTUOSIDADE DE 1941
INTRODUÇÃO
Senhoras, Senhores,
Caros Alunos,
O professor deu aos alunos cinco minutos, para examinar o centavo e resumir
as suas observações por escrito.
Eis aqui os fatos que o exame meticuloso e o espírito agudo dos estudantes
permitiu descobrir:
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7º As artes e a estética faziam parte da educação e da cultura, pois que a
moeda é desenhada com cuidado da forma e da beleza;
11º A religião dessa época era baseada sobre o monoteísmo quer dizer, sobre
a existência de um único Deus.
É verdade que a escritura musical não divulga mais do que a parte estrutural de
uma obra; mas, a moeda tampouco não revela, à primeira vista, todos os fatos
que acabo de vos enumerar, e que surgiram por força do raciocínio, da intuição,
do espírito dos estudantes da classe de sociologia, depois de terem
“interpretado” o sentido das inscrições e dos desenhos reunidos no cunho do
centavo.
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O segredo da boa interpretação musical não reside somente à mestria do
executante no domínio técnico, mas sobretudo nessa faculdade, nesse poder
que ele deve possuir, de dar vida à peça executada. As grandes obras de arte,
sob o impulso do espírito e da alma do intérprete que nelas se incorpora,
renascem assim, cada vez com mais potência e esplendor, e os que
conseguem dar uma vida nova a uma obra musical são verdadeiramente os
únicos que realizam a sua missão.
Sim, meus caros amigos, a carreira musical é uma missão, e o grande erro de
tantos intérpretes é justamente não se terem suficientemente compenetrado
desse preceito fundamental. No decorrer destas aulas, terei várias
oportunidades de expor-vos algumas idéias minhas sobre os múltiplos aspectos
dessa missão; porém, posso confessar-vos desde já que a finalidade deste
curso não é somente procurar abrir novos horizontes musicais aos jovens
artistas da nossa terra e revelar-lhes as qualidades de espírito, de
compreensão, de sensibilidade e todo o áspero trabalho que exige a arte da
interpretação. Minha maior ambição, minha profunda aspiração, ao ministrar
estas aulas, é conseguir ao mesmo tempo encaminhar os nossos jovens
executantes para a concepção verdadeira do que deve ser um ideal de artista.
Atingir essa sublimidade não é coisa fácil, mas, para poder vencer os
obstáculos, as dificuldades materiais, as ciladas que invariavelmente se
apresentam nesse caminho, é imprescindível convencer-se, desde o início, que
a carreira musical, seja a de virtuose ou de professor, é realmente um
“apostolado”. E, esse apostolado, essa missão elevada, só podem ser
cumpridos se essa carreira permanece colocada bem alto no domínio do
espírito, e se essa profissão se desenvolve constantemente num ambiente de
perfeita dignidade e de integridade absoluta, sem as quais não há grandes
artistas, mas somente comedores de notas ou cabotinos.
O fato, infelizmente tão freqüente, de ver intérpretes mutilarem uma obra, seja
na sua forma, seja na sua expressão, revela-se, então, como um verdadeiro
crime, crime que poderia ser evitado se o artista fosse sempre digno desse
nome e realmente consciente da sua responsabilidade e da sua missão. Essa
responsabilidade é evidente e indiscutível, e o intérprete que tem a audácia de
executar uma obra, antes de tê-la estudada a fundo, e antes de ter-se
impregnado das verdadeiras intenções do seu autor, assim como o que usurpa
o direito de deformá-la ou de amputá-la cometem um ato de vandalismo
imperdoável. Nisto, eles ficam sendo, o que poderíamos chamar, os gangsters
da música, e já que o Código Penal ainda não considera os seus delitos como
sendo puníveis pelos tribunais, é ao público, aos críticos musicais, ao tribunal
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dos desejosos de preservar intacto, o maravilhoso patrimônio artístico, e a
herança dos imortais compositores, é a nós todos, que incumbe o dever de
infligir a esses criminosos, sob a forma do desprezo o mais absoluto, a pena
que eles merecem.
..................................................
Tencionando dedicar, nas aulas da próxima série, duas preleções ao estudo
pormenorizado da “Interpretação Musical” em geral, e à realização prática de
árduo processo da “Interpretação Pianística”, limitarei hoje às observações de
conjunto que acabo de resumir esse meu primeiro esboço de tão importante
assunto.
Porém, a fim de pôr-vos desde já em contato com certos aspectos dos inúmeros
problemas que teremos de resolver, no decorrer destas aulas, dar-vos-ei agora
algumas ilustrações ao piano, escolhidas propositalmente entre obras
conhecidíssimas, as quais focalizarão no vosso espírito o papel primordial que a
interpretação deve desempenhar para nos permitir entrever a infinita beleza da
verdadeira expressão musical.
(imitação)
(Execução)
O caso dessa aluna, que não conhecia a diferença entre uma valsa e um
noturno, me lembra o exame de admissão ao Conservatório de Paris, ao qual
assisti há alguns anos e no decorrer do qual o diretor perguntou a um
candidato:
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Lá Bemol Maior, que ouvi – na mesma ilha – tocada como uma “Romança sem
Palavras”, é mais ou menos assim:
(imitação)
No entanto, sabeis que essa Polonesa, chamada de “Heróica”, deve ser tocada
com majestoso entusiasmo, e evocar as maiores proezas guerreiras, isto é,
(Execução)
(Imitação)
Em vez de que é tão mais simples tocar essa obra, realmente “Expressivo”
executando-a apenas conforme está escrita, com simplicidade:
(Execução)
Tocar apenas como está escrito. É curioso que seja este o ponto mais fraco de
tantas interpretações. E os executantes que omitem ou acrescentam tão
inesperadamente notas, pausas, inflexões ou pedais, nem sempre podem
invocar a anedótica desculpa do trombone da orquestra de Richter.
– Mas, maestro, esta nota existe sobre minha partitura, responde o trombone.
– Deixe ver esta música, grita Richter, pouco convencido.
– Era apenas uma mosca, maestro, disse ele meio aterrorizado, e acrescentou
com perfeita candura: “e no entanto, eu a executei”.
(Imitação)
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(Execução)
Acho bom pôr aqui um ponto final, pelo menos para hoje, a estes exemplos que
poderiam vos levar a pensar que a música está em perigo de vida !
Ministério da Educação
Rio de Janeiro, abril de 1941
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ENCERRAMENTO DO CURSO DE INTERPRETAÇÃO
E ESTÉTICA MUSICAL DE 1942
Senhoras, Senhores,
Meus Caros Alunos,
Numa revista de arte que recebi há alguns dias, de Nova York, um musicólogo
norte-americano, fazendo sinopse de meticulosas estatísticas e de anos de
estudo pormenorizado, chega à conclusão que, nos Estados Unidos, dentre a
minoria da população que ouve música, em geral, seja através do rádio, nos
cinemas, nas salas de concerto, em gravações ou sob qualquer outra forma,
setenta por cento prestam atenção exclusiva à música e às canções populares,
enquanto que dez por cento, apenas, manifestam certo interesse no que
chamamos de música pura; e esse, impiedoso estatístico acrescenta que,
desse minúsculo conjunto, dois por cento, apenas, tomam parte ativa no
movimento musical, tocando, cantando, estudando ou ensinando música fina.
Sim, meus caros amigos, a calorosa acolhida que fizestes a esta nova fórmula
de divulgação musical que estou procurando propalar através do Brasil, o valor
indiscutível das execuções ouvidas neste palco e o crescente interesse e apoio
que demonstrastes pela vossa assídua e numerosa presença, desde o início
destas aulas, constituem a prova irrefutável de que a compreensão da música
pura não é reservada, em São Paulo, apenas a uma pequena minoria de
privilegiados e que, ao contrário do que tanta gente acredita, não é preciso ser
escolhido pela Providência para entender, para sentir essa música e para tirar
dela a máxima alegria e a mais vibrante emoção. E se a esplêndida
repercussão destas aulas nos meios musicais desta capital é para mim motivo
da mais legítima e profunda satisfação, essa projeção traz também a
confirmação deste curso corresponder a uma imperiosa necessidade, e não
posso deixar de expressar aqui ao Excelentíssimo Senhor Fernando Costa,
dignamente representado aqui pela sua Excelentíssima Senhora, meu sincero
apreço pelo esplêndido impulso que sua feliz iniciativa permitiu realizar nesse
domínio inexplorado na nossa terra, até a efetuação dos meus cursos do Rio e
de São Paulo.
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A imprensa vos anunciou que esta aula encerra o Curso de Interpretação e
Estética Musical, iniciado no mês de maio, que foi ministrado em vinte aulas,
todas públicas etc. etc., e vou talvez causar certa decepção aos dentre vós que
esperam ouvir as palavras que costumam proferir na ocasião de todo
encerramento. É que, para mim, esta vigésima aula do nosso curso, longe de
pôr termo a qualquer ciclo arbitrário ou efêmero, representa, bem pelo contrário,
uma inauguração: a abertura prática e definitiva de um novo caminho, a pedra
angular de um edifício talvez muito mais alto que todos os arranha-céus que
embelezam esta cidade, e cujo objetivo é aproximarmo-nos, todos, músicos ou
ouvintes, da divina verdade que a música irradia quando conseguimos penetrar
os seus segredos e imbuir-nos da sua incomparável e comovedora beleza.
Não vejo consagração mais evidente desse preceito fundamental do que todas
as horas que tive a alegria de passar convosco neste templo de arte e de
estudo, culminando na solenidade que vos reúne hoje. Existe, porém, mais
ampla tarefa para nós, não somente na exaltação da fé de todos os que se
dedicam à carreira musical, mas, também, na preservação do patrimônio que
acabamos de adquirir aqui. E para conseguir esse fim, incumbe a nós todos o
dever de impedir que se propalem falsos sacerdócios e de lutar para a
formação de apóstolos, convencidos da missão confiada ao artista verdadeiro, e
dignos, por sua vez, de levarem a boa semente.
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quais, alguns estarão em breve, em condições de cooperar ativamente na
concretização do nosso elevado objetivo.
Como sabeis três dos pianistas participantes serão escolhidos para serem
convidados a tocar, cada um num concerto com orquestra, a convite do
Departamento Municipal de Cultura. Os nomes dos três laureados, que vão
depender da apuração das notas consecutivas à última audição de hoje, serão
divulgados oportunamente na imprensa. Espero também poder anunciar em
breve os nomes dos novos pianistas a serem convidados a tocar no Rio de
Janeiro conforme o programa de intercâmbio musical que iniciou este ano, o
qual já permitiu a três pianistas desta capital atuarem na Escola Nacional de
Música no curso patrocinado pelo Ministério da Educação e a quatro pianistas
do Distrito Federal serem ouvidos neste palco.
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ENCERRAMENTO DE CURSO DE 1944
Senhoras, Senhores,
Meus Caros Alunos,
Não resta dúvida que, cada ano, cada grupo de aulas vem estreitar e consolidar
ainda, os laços de recíproca compreensão e confiança que nos unem, e afirmar,
com crescente eloqüência, a nossa fé na elevação e difusão da verdadeira
cultura musical, e, também, a nossa fé no futuro dos jovens e novos talentos
musicais, que essas aulas permitem revelar e afirmar.
Conto com vocês, meus caros alunos, para que, durante esse intervalo de
alguns meses, e até o reinício das aulas no ano vindouro, seja reservado todo o
tempo necessário ao estudo assíduo das novas obras que ouviremos e
comentaremos, certa que essas execuções e a escolha que fizerem de obras
cada vez mais importantes e de maior alcance e responsabilidade revelarão,
como foi o caso este ano e nos anos precedentes, novos e sensíveis
progressos, possibilitando desse modo, a uma nova turma de executantes, o
ensejo de se apresentar em breve em concertos e recitais, tanto no Rio, como
em São Paulo e no interior.
Desejando-vos a vós todos, e ao meu caro e fiel público, boas férias e todas as
felicidades no ano vindouro, digo-vos, pois, até muito breve, e mais uma vez um
grande, muito grande, obrigado!
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ÚLTIMA AULA
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ABERTURA DO CURSO DE
ALTA INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1948
Minhas Senhoras,
Meus Senhores,
Meus Caros Alunos,
Visitando, há alguns dias, este Auditório onde estão sendo efetuadas obras que
virão ainda embelezar e ampliar este palco, lembrei-me do trocadilho que se
deve ao famoso escritor francês Jean Cocteau, o qual comentando os perigos e
os exageros do desenvolvimento musical contemporâneo escreveu numa
revista de arte:
Jean Cocteau tem absoluta razão em querer ver, pendurados nas ruas e nos
edifícios, cartazes chamando a atenção do público, e mormente da juventude,
sobre essa necessidade primordial de preservar o magnífico patrimônio deixado
por gerações de ilustres compositores e de garantir também o futuro da arte
sonora pondo-a ao abrigo dos perigos que a ameaçam.
Não me foi dado ainda o número de inscrições dos ouvintes deste ano, mas já
sei que passou de 1500 e não duvido que este venha a atingir 2000 antes do
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fim do curso, sendo essa a demonstração mais eloqüente do interesse
despertado por essas aulas, que muito me sensibiliza e pelo qual faço questão
de lhes agradecer nessa aula inaugural, assegurando-lhes que não pouparei os
meus esforços para manter e elevar ainda o nível atingido por esse ensino cuja
repercussão até os mais diversos e longínquos recantos do nosso grande Brasil
e também no estrangeiro vem provar quanto a iniciativa do Ministério da
Educação e Saúde corresponde à verdadeira necessidade.
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ENCERRAMENTO DO CURSO DE
ALTA INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1948
O deslocamento para o Novo Mundo das atividades e dos valores musicais que
foram, durante tantos séculos, o apanágio exclusivo da Europa, constituirá, sem
dúvida, um dos aspectos marcantes da história do movimento musical do século
vinte.
39
Nesse último plano, convém lembrar que, mesmo nos Estados Unidos, não
existem exemplos de um Curso Público de Piano contar com 2.000 ouvintes
inscritos como é o caso do nosso Curso de Alta Interpretação Musical, que, em
São Paulo onde realizo curso similar no Teatro Municipal, alcançou 2.700 o
número de inscrições desde o terceiro ano de existência.
Agrupando cada ano no seu âmbito novas plêiades de executantes que vêm,
progressivamente, se colocar entre os mais apreciados da nossa jovem
geração de pianistas, pondo-os, graças às suas execuções realizadas neste
palco, em condições de enfrentar com êxito público, esse terrível juiz que
decidirá em grande parte da carreira do nosso virtuose, pondo ao mesmo tempo
o público em condições de usar com critério do seu senso crítico e fazer assim
obra realmente construtiva, promovendo junto ao Governo Brasileiro e aos
representantes dos países estrangeiros a concessão de bolsas de estudos e
prêmios de viagem que virão ampliar a bagagem artística do jovem concertista
e auxiliá-lo na sua luta e nas suas conquistas, estreitando pelo contato
permanente com as personalidades mais destacadas do mundo musical, dentro
e fora do Brasil, os laços culturais com outros países da Europa e da América, o
Curso de Alta Interpretação Musical constitui, hoje, apreciável patrimônio para o
país e granjeia no estrangeiro o maior prestígio, graças ao êxito alcançado por
cada um dos representantes, seja em concursos ou nas atuações em público.
Convém lembrar a esse respeito que o nosso aplaudido e talentoso pianista
Homero Magalhães acaba de chegar em Paris, tendo sido premiado com uma
bolsa de estudos de um ano, concedida pelo Governo Francês, em recompensa
das suas brilhantes atuações neste Curso, e tendo também recebido do
Ministério da Educação o mais valioso apoio para a feliz realização dessa
viagem.
40
Serão conferidos, conforme o valor das execuções, os progressos realizados e
o conjunto de notas obtidas por cada um, três categorias de diplomas:
Enfim, os pianistas do Curso de São Paulo que tiverem atuado, mesmo uma só
vez no Curso do Rio, serão contemplados com um diploma somente no caso da
sua execução nesta capital coincidir com o período mínimo de dois anos de
participação no curso realizado em São Paulo, o qual se enquadra no programa
de divulgação musical organizado pelo Ministério da Educação e Saúde.
41
DIPLOMA DE APROVEITAMENTO
• ANO DE 1941
• ANO DE 1942
• ANO DE 1943
Alice Hansen
Altino Pimenta
Margarida Araújo - com distinção
• ANO DE 1944
• ANO DE 1945
• ANO DE 1946
• ANO DE 1947
Eliane Fayni
Yolanda Antonello
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• ANO DE 1948
Elsa Guillon
Helena Pachachewsky - com distinção
Henriqueta Penido Monteiro
Inez Ribeiro
Jenny Perelman - com distinção
Raymunda Vianna Magalhães
• ANO DE 1942
Maria Augusta Menezes de Oliva
Rodolfo Frish (São Paulo) - com distinção
• ANO DE 1943
Não houve Diploma de Aperfeiçoamento Artístico
• ANO DE 1944
Maria Dirce Rodrigues de Almeida (Piracicaba)
• ANO DE 1945
Lúcia de Salles Penteado (São Paulo) - com distinção
• ANO DE 1946
José Magalhães Graça - com distinção
• ANO DE 1947
Lourdes Gonçalves - com distinção
Maria Lúcia Gregori (São Paulo)
Marina Ramalhete
Mary Benaion
• ANO DE 1948
Aleida Ferrari da Silva - com distinção
Hebe Araújo de Mattos
Letícia Delamarre - com distinção
Maria Adelaide Moritz - com distinção
Maria Aparecida Prista - com distinção
Maria Lúcia de Faria Pinho - com distinção
Myrian Freire de Castro
Wally Freire de Souza - com distinção
Wanda Latini
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DIPLOMA DE ALTA INTERPRETAÇÃO MUSICAL
• ANO DE 1942
Isabel Mourão (São Paulo)
Oriano de Almeida
• ANO DE 1943
Julinha Wagner Cohin
Neusa França de Almeida
• ANO DE 1944
Heitor Alimonda
Ylara Gomes Grosso
Vera Cruz Pientznauer
Zeila São João (São Paulo)
• ANO DE 1945
Menininha Lobo (São Paulo)
• ANO DE 1946
Não houve Diploma de Alta Interpretação Musical
• ANO DE 1947
Célia Zaldumbide
Homero Magalhães
• ANO DE 1948
Nellie Braga
E, agora, resta-me agradecer aos meus queridos alunos e aos meus caros e
fiéis ouvintes pela comovedora expressão do seu apreço, dirigida em nome dos
pianistas participantes pela Sra. Maria Lúcia de Faria Pinho e em nome dos
ouvintes pela Srta. Nelly Wanderley.
Sinto-me realmente lisonjeada, mas acho que não mereço tantos elogios. Se é
verdade que esteja me dedicando, de todo o coração e com todos os recursos
ao meu alcance, às edificações de uma obra considerada como sendo de alto
valor educativo, que tem tido certa repercussão no movimento musical de minha
44
terra, é simplesmente porque considero ser o meu dever procurar devolver ao
Brasil tudo o que lhe devo e guiar a nossa talentosa juventude no caminho que
escolhi. Vossa cooperação da feliz realização dessa tarefa, vossa compreensão
e vosso afeto são, para mim, a fonte de uma das maiores satisfações da minha
carreira e sou eu que lhes fico grata por ter tão bem sabido me compreender e
auxiliar.
Agradeço particularmente aos meus alunos e ouvintes pelas lindas flores que
me enviaram, ficando realmente sensibilizada com a atenção dos ouvintes
deste curso que tão gentilmente se uniram para me oferecer este presente que
não duvido seja lindíssimo.
Enfim, desejo expressar publicamente aqui toda a minha gratidão ao Exmo. Sr.
Prof. Clemente Mariani, pelo valiosíssimo e constante apoio que me tem
demonstrado em tudo o que se refere à organização dessas aulas e graças ao
qual o nosso curso tem alcançado resultados tão positivos, hoje concretizados
nos diplomas que vêm tão justamente coroar o nosso trabalho.
Muito obrigada, prezado Dr. Leal da Costa e Dr. Paulo Fontes, pela sua tão
preciosa e constante colaboração.
Um grande abraço para todos vós, e... até o ano que vem.
45
ABERTURA DO DÉCIMO CURSO DE
ALTA INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1950
Essa alegria me permite, aliás, esconder a profunda emoção que sinto diante
de vossa calorosa acolhida e de todas as provas de afeto e amizade que me
foram dispensadas, desde o meu desembarque há quinze dias no aeroporto,
que continuo recebendo diariamente e pelas quais quero expressar-vos toda a
minha gratidão.
Por falar neste assunto, posso acrescentar que eu, também, tenho trabalhado
bastante... e bastante!
46
• O Concerto com a Orquestra da Societé des Concerts du Conservatoire, na
regência de André Cluytens, no qual interpretei o Concerto de Reynaldo
Hahn;
e mais tarde:
assim como:
47
Isso, sem falar nos diversos concertos na rádio, nas atuações de caráter
especial, tal aquele inesquecível recital organizado no Grande Salão da
Academia Francesa, em Paris, em comemoração do terceiro aniversário da
morte de Reynaldo Hahn, no qual toquei, entre outras, composições daquele
autor para dois pianos, que tenciono apresentar este ano aqui, em primeira
audição.
Eis, entre tantos outros, alguns dos temas que mais ocupam, hoje em dia, as
diversas correntes do mundo musical europeu, e que as próximas aulas me
darão certamente o ensejo de desenvolver diante de vós, pelo menos em parte,
na medida das composições a serem ouvidas neste Auditório, para que cada
um, possuidor dos elementos necessários a um tal julgamento, cheque,
individualmente, nas conclusões mais compatíveis com seus anseios e sua
própria natureza.
48
Pianístico Internacional de Varsóvia que reuniu na banca algumas entre as
maiores sumidades dos 19 países aí representados, assim os inúmeros
contatos pessoais que tive com jovens estudantes de música, alunos e
concertistas, ansiosos de corresponder à expectativa em torno de seus nomes,
enfim, toda a minha experiência pessoal desses últimos meses de pesquisa
nesse campo, me levam a uma conclusão imperativa: tudo o que esses jovens
têm demonstrado nas suas apresentações em público não é apenas a natural
consagração do talento, mas, também, não o esqueçamos, o fruto de muito
trabalho, de árduos esforços e de uma absoluta continuidade e disciplina no
estudo.
No decorrer de uma longa palestra com o Diretor Geral das Relações Culturais,
Sr. Toxe, lembrei-lhe a possibilidade de ser criada, pela França, uma bolsa de
estudos, reservada unicamente aos pianistas participantes deste curso, bolsa
que seria disputada em concurso entre os que obtivessem o Diploma de Alta
Interpretação Musical. Podem avaliar a minha satisfação quando o Sr. Toxe,
que muito se interessou pelo nosso trabalho e que revela o maior desejo de
estreitar o laço cultural entre os nossos dois países, me declarou estar de
acordo com o meu projeto e que ficava estabelecido que a Embaixada da
49
França no Rio de Janeiro instituiria anualmente este prêmio. Parece-me
desnecessário insistir sobre o estímulo e o benefício que representará tal bolsa
para os nossos jovens pianistas, que terão a oportunidade de conhecer de perto
uma verdadeira fonte de Arte e Cultura.
Com tudo que acabo de expor, não me parece, pois, excessivo adiantar, numa
alteração um pouco audaciosa das palavras da Santa Escritura, que a esta
Magdalena talvez “muito será perdoado pelo muito que trabalhou… ”.
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2
Palestras sobre
História da Música
51
52
A ESCOLA MODERNA FRANCESA
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Berlioz, Liszt e Schumann –, revelou, repentinamente, uma inspiração profunda,
uma dignidade e um conjunto de qualidades técnicas, que consagraram
Gounod, como um grande compositor e um músico verdadeiro. Ele teve, antes
de tudo, o mérito excepcional de ter podido se apaixonar pela grande música,
numa época marcada por preocupações tão fúteis, e, se é difícil considerá-lo
como um precursor pelas suas inovações, no domínio musical ou dramático,
esse grande mestre foi sem dúvida um precursor, por ter restaurado com a arte
da melodia um ideal abandonado e por ter tomado a direção de um movimento
de renascença, que devia levar a música, dramática e sinfônica até um nível
digno da antiga tradição.
Jules Massenet herdou do fervor que o grande público manifestara por Gounod.
Esse técnico prestigioso deixou, ao mesmo tempo que algumas maravilhosas
obras-primas, tais: Werther e Manon, numerosas outras obras, que refletem
demasiadamente sua preocupação de agradar e de conquistar o público.
Mesmo assim essas óperas ou outras composições conservam o encanto e as
felizes inspirações, que elevaram Massenet, durante algum tempo, ao apogeu
do proscênio musical.
54
incompreensível, cacofônico, feio e enfadonho” – é assim que a crítica francesa
o descrevia – causou durante 50 anos a divisão da opinião pública, entre dois
campos nitidamente desiguais e opostos, até que a tenacidade de uma minoria
e os esforços de Lamoureux, culminando na representação do Ouro de Reno
na Ópera de Paris, em 1909, conseguiram despertar o delirante entusiasmo do
público e quase transformar em adoração o ódio manifestado até então, para
com Wagner e sua obra.
55
do seu filho a possibilidade de se expandirem, no ambiente o mais propício, não
hesitou em fechar o seu banco, e em se fixar em Paris, onde César, depois de
assíduos estudos de fuga, de contraponto e de composição, foi admitido, em
1837, no Conservatório Real. Ele tirou o seu prêmio de piano, no primeiro ano,
depois de um concurso singular e memorável, cuja história merece ser contada.
56
escreveu, no início desse período, música exclusivamente religiosa, dedicando
a maior parte desse tempo à grande obra que devia imortalizá-lo: Les
Béatitudes. Essa magnífica epopéia musical, em oito partes e um prólogo,
escrita para soli, coto e orquestra, e somente acabada em 1879, constitui um
dos mais grandiosos monumentos da música sagrada, e pode ser comparada,
em beleza, grandeza e inspiração, aos mais célebres oratórios de Bach e de
Haendel. Esses oito cantos que são oito poemas, proclamando a beatitude
prometida pelo Cristo à humanidade sofredora, reúnem um misticismo ideal,
uma ternura de efusão e um fervor quase primitivo, aos recursos de uma
técnica que é, ao mesmo tempo, a mais clássica e a mais inovadora.
A primeira audição desse oratório, que teve lugar na própria casa de César
Franck, foi assinalada pela incompreensão total dos seus convidados.
Apresentada por Colonne, quatorze anos mais tarde, essa obra foi recebida
com glorioso entusiasmo; infelizmente César Franck já falecera, três anos
antes.
A Sonata para Piano e Violino, escrita para Isaye, que foi executada com
grande êxito, durante a tournée desse ilustre violinista através o mundo, foi
talvez, para Franck, a primeira fonte de alegria a respeito das suas
composições.
Não é exagerado afirmar que o único triunfo pessoal ao qual Franck teve a
felicidade de assistir se realizou somente seis meses antes de sua morte.
Foi na audição do seu Quarteto para Cordas, em 1890, que esse extraordinário
fenômeno se produziu. Depois de ter-se convencido que era o próprio autor que
o público homenageava tão delirantemente, César Franck, cumprimentando a
assistência, disse em voz baixa, a um dos diretores da Sociedade Municipal
que patrocinara esse concerto, que era esse, o seu primeiro verdadeiro êxito, e
acrescentou: “Será que o público já começa a me compreender?”. Ele tinha
então mais de 68 anos!
Essa felicidade devia ser muito breve. Poucos meses depois dessa
consagração, um estúpido acidente de ônibus, agravado por uma pleurisia, pôs
fim a essa existência tão humilde quanto maravilhosa. Poucos dias antes de
falecer, ele insistira em ser transportado até o seu órgão, na Basílica de Santa
Clotilde, a fim de completar a registração dos seus três grandes ”Corais”, que
ele deixou, da mesma forma que Bach, como supremo testamento musical.
A obra de César Franck o coloca no plano dos maiores músicos do seu século.
Entre suas composições para piano, o Prelúdio, Coral e Fuga e o Prelúdio, Ária
57
e Final, que tive o ensejo de tocar neste teatro há alguns dias, exemplos da
mais impecável estrutura musical, realizam num espírito inteiramente novo, os
felizes efeitos da tonalidade, com recursos puramente pianísticos, do órgão, e
conseguem, com uma rara perfeição, a justaposição dos profundos sentimentos
humanos e da majestosa irradiação divina.
58
CÉSAR FRANCK
VARIAÇÕES SINFÔNICAS
PARA PIANO E ORQUESTRA
César Franck, a cuja longa e fecunda carreira dediquei uma preleção inteira,
numa das aulas do Curso de 1941, escreveu apenas cinco grandes obras para
piano, das quais três, consideradas como ocupando um lugar de honra entre as
supremas obras-primas de toda a literatura pianística, são suficientes para
colocar esse compositor entre os maiores expoentes da música pós-romântica e
moderna: Estas três composições, bem conhecidas de vós todos, são: o
Prelúdio, Coral e Fuga, as Variações Sinfônicas para piano e orquestra, e o
Prelúdio, Ária e Final, para piano solo.
59
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE
E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1943
CÉSAR FRANCK
PRELÚDIO, FUGA E VARIAÇÃO
60
CÉSAR FRANCK
VARIAÇÕES SINFÔNICAS
PARA PIANO E ORQUESTRA
61
Foi exatamente cinco anos após a primeira audição dessa obra que César
Franck, ao atravessar uma rua em Paris, foi atropelado por um ônibus.
Caberá agora ao Sr. Caio César Pagano interpretar para nós essas Variações
Sinfônicas ficando o segundo piano, que substituirá a orquestra, a cargo da
professora Nellie Braga.
62
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE
E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1941
CAMILLE SAINT-SAËNS
Criado por sua mãe e por uma tia pianista, que pusera as mãos do menino
sobre o teclado, ao mesmo tempo que ele começava a falar, Saint-Saëns aos
cinco anos tocava em público, no salon da Sra. Violet, uma “Sonata para piano
e violino” de Beethoven, inventava lindas melodias para as quais improvisava o
acompanhamento ao piano, e procurava nas partituras de Mozart (Don
Giovanni entre outras), que decifrava sem o menor erro, o verdadeiro recreio
para seu espírito.
63
Saint-Saëns exerceu durante duas gerações inteiras, a mais benéfica influência
sobre seus alunos, entre os quais: Gabriel Fauré, meu ilustre mestre, André
Messager, Eugéne Gigout, assim como sobre a evolução musical francesa em
geral.
64
enfim pela eloqüente peroração realizada magistralmente com a intervenção do
órgão.
Os seus Concerti para piano, para violoncelo, para violino, dos quais alguns
vieram a ser o cavalo de batalha de tantos virtuoses, nos revelam até que grau
de perfeição Saint-Saëns aprofundara o estudo de cada um dos instrumentos
para os quais ele escrevia, além de uma escritura impecável, viva e engenhosa,
e de uma mestria técnica absoluta.
Saint-Saëns soube apreciar o gênio de Liszt que era muito seu amigo, e
conseguiu, numa forma um pouco diferente, apresentar aos parisienses, uma
sucessão de “poemas sinfônicos” que são verdadeiros modelos desse gênero
de produção musical, e que obtiveram, como Le Rouet d’Omphale, Phaeton, La
Danse Macabre, La Jeuneusse d’Hercule, e tantos outros, um êxito triunfal.
65
mais leve, porém cheias de invenção, de ironia, de encanto e de vida, e
também de sátiras veementes, contra todos os que não o souberam
compreender, cujo efeito foi, infelizmente, aumentar o número dos seus
inimigos.
Com tudo isso, devemos hoje reconhecer que a música de Saint-Saëns é uma
das mais felizes construções do espírito. Mesmo se a sua obra revela
raramente essa emoção profunda, que, como dizia Beethoven “vem do coração
para alcançar outros corações”, é indiscutível que esse compositor genial nos
deixou em todos os domínios obras maravilhosas das quais algumas apenas
seriam suficientes para imortalizá-lo e colocá-lo entre os maiores músicos da
escola moderna.
66
REFLEXÕES SOBRE A VIDA
E A OBRA DE MEU EMINENTE MESTRE:
GABRIEL FAURÉ
Gabriel Fauré tinha quatro anos apenas, quando o seu pai foi nomeado diretor
da Escola de Montgauzy. Nos majestosos plátanos e magnólias que rodeiam o
austero edifício, no deslumbramento primaveril das cerejeiras e das macieiras,
no esplendor da paisagem que descortina de todos os lados desse jardim
encantado, a poesia do mundo se revela espontaneamente a esse menino.
67
sem grandiloqüência, sem artifícios sonoros, tudo o que ele sente, transpondo
instintivamente, no plano musical, sua ardorosa vibração pessoal e procurando
apenas, na sua música, como ele mesmo nos dirá mais tarde, respeitar essa
regra imutável: “fazer pouco barulho, porém sempre dizer alguma coisa!”.
Meu primeiro contato com Gabriel Fauré se deu no dia em que me apresentei
ao Concurso de Admissão ao Conservatório de Paris, do qual ele fora nomeado
diretor. Eu tinha treze anos, acabava de chegar do Brasil e estava bem longe,
naquela ocasião, de suspeitar o importante papel que iria desempenhar em
toda minha formação artística, esse senhor tão simples e delicado, que presidia
o imponente júri, e que eu tinha visto de longe, poucos dias antes, em frente à
porta daquela célebre instituição, para a qual convergiam então todas as
minhas esperanças. Quando fui chamada para tocar, na sala onde estava
reunido o imponente júri, tive que passar bastante perto da mesa da diretoria,
antes de chegar ao piano, procurando reprimir a todo custo minha emoção, sob
a aparência a mais hermética. Não pude deixar, todavia, de ouvir o breve
comentário que Gabriel Fauré que presidia a bancada fez a meu respeito ao
68
seu vizinho, o ilustre pianista Harold Bauer: “Aquela menina, disse Fauré, deve
tocar muito bem! Eu já constatei que os candidatos que têm como ela aquele
olhar de soslaio tocam, geralmente, muito melhor do que os outros”. Fiquei,
pois, bastante desnorteada quando, após ter tocado doze ou quinze compassos
da Terceira Balada de Chopin, fui interrompida pela campainha do Presidente,
que era o sinal convencional para significar ao executante que os seus juízes já
haviam ouvido bastante. Saí daquela sala num estado de absoluto desespero,
convencida que o júri me achara imperfeitamente preparada, e ouvindo, no
inesperado toque de campainha, a minha irremediável condenação.
Foi logo no início do ano letivo, algumas semanas depois da minha admissão
ao Conservatório, que tive, inesperadamente, minha primeira conversa com
Gabriel Fauré. Meu professor Antonin Marmontel, para cuja classe fora
designada, estava encerrando uma de suas aulas quando, após ter
insistentemente batido à porta, um contínuo entrou e disse, em alta em
pomposa voz: “O Senhor Diretor manda chamar: la petite brésilienne. Devo
confessar que, se durante o trajeto entre a minha classe e a sala da diretoria, o
meu coração deu sinais de profunda perturbação, não era somente devido à
honra de ser recebida pelo genial autor de Promethée, chegado naquela época
ao auge da celebridade, mas também, ao temor de eu ser admoestada por
Deus sabe que travessura minha. Essa entrevista, no entanto, na qual eu falei
do Brasil e das lindas hortênsias da minha cidade natal, e Gabriel Fauré, da
música, que era sua única linguagem, foi a primeira de muitas e muitas outras,
em que iam sempre crescendo o meu entusiasmo e o meu fervor por esse
músico excepcional de quem me tornei, desde então, dedicada discípula e
incondicional admiradora.
Da sua índole humorística e do seu gosto da fantasia que Fauré nunca deixou
transparecer nas suas composições, e constituem talvez faceta menos
conhecida do seu caráter, encontramos significativa ilustração, na autêntica
história que ele gostava de nos contar, a respeito da primeira execução em
público do admirável Sexto Noturno. Visivelmente impressionada pela
extraordinária pureza de sentimentos que dimana dessa obra, uma senhora que
se julgava bastante entendida e provavelmente à espera de uma resposta
69
sensacional, perguntou ao mestre, nos bastidores da Sala de Concerto, qual
era o céu luminoso que inspirava essas harmoniosas páginas. “Acredite ou não,
minha senhora, respondeu o autor, idealizei o Noturno num dia de chuva ao
atravessar o túnel do Simplon, no trem que me trouxe da Suíça o ano
passado!”.
A música de Gabriel Fauré! Quem podia defini-la, melhor do que ele mesmo,
com essas poucas palavras escritas à sua mulher, depois de compor o primeiro
Quinteto (em 1906): “tenho a impressão, escrevia ele, que a minha música
ainda não está ao alcance de todos”.
70
ilustres, tocaram ou regeram sucessivamente algumas das suas imorredouras
composições.
71
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E
INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1941
Ciclo de Palestras sobre a História da Música
Terceira Série
Entre as recordações da minha infância, uma das mais belas, e que deixaram
em mim, para sempre, a mais profunda impressão, são as horas de encanto e
de emoção artística que tive a felicidade de passar ao lado desse genial
animador da Escola Moderna Francesa: Gabriel Fauré, meu ilustre mestre.
É verdade que a música fala uma linguagem universal que todos podem
entender, e que passa por cima de todas as fronteiras. É incontestável, porém,
que esse modo de expressão com Gabriel Fauré, canta o pensamento de um
músico que se acha forçosamente enraizado, pelo seu coração e seu espírito,
pela sua educação e sua ascendência, na terra na qual foi criado, no país e na
época aos quais ele pertence. Se Mozart não tivesse nascido em Salzburg, e
vivido em Viena, ele não teria escrito o mesmo Don Giovanni nem o mesmo
Cosi Fan Tutte, e se Wagner soube tão maravilhosamente exteriorizar, em
Tristan et Isolde, sua paixão por Mathilde Wesendonck, não é unicamente a
esse sentimento ou ao seu gênio, mas também ao seu atavismo, aos poetas, e
à filosofia que inspiraram sua juventude, e à essência da Alemanha daquela
época que se deve essa prodigiosa ópera.
72
magnificamente a linguagem musical da sua terra, com uma obra de grande
pureza artística que prolonga a mais bela tradição francesa, mesmo quando ele
parece afastar-se dela. Efetivamente, Fauré compreendeu que, em matéria de
música, “inovar” podia às vezes ser sinônimo de redescobrir o que estava
esquecido, restituir um tesouro perdido, ou, simplesmente, tornar acessíveis,
por meio de uma linguagem mais adequada, tantas belezas que certas formas
arcaicas não permitem perceber. Se as novas harmonias que Fauré inventou
são tão originais que marcam inconfundivelmente suas composições, é
interessante notar que sua obra nos lembra, muitas vezes, os antigos mestres
do fim da Idade Média, enquanto os adoráveis arabescos das suas melodias
despertam o eco adormecido dos velhos cânticos orientais do século 16.
Essa ponte espiritual que Fauré lançou para ligar uma época tão distante com
as aspirações do mais recente modernismo, esse milagre realizado pela fusão
dos poetas da Grécia Antiga e da música dramática contemporânea, no mesmo
desejo e no mesmo ímpeto de liberdade, constitui, a meu ver, a característica
essencial de seu gênio.
Na escola de Música Religiosa Niedermeyer, onde ele foi admitido aos 9 anos,
Fauré estudou ao mesmo tempo com Messager e Gigou. Sua grande ambição
era de vir a ser organista e, quando um certo dia, passeando com um dos seus
camaradas em cima da Butte Montmartre, Fauré lhe disse brincando e
mostrando os magníficos monumentos da Capital: “Você terá a Igreja de St.
Augustin! Eu terei a da Madeleine” ele não podia imaginar que isso se
realizaria.
Foi durante seus árduos estudos nessa escola que Fauré se imbuiu do sentido
profundo da música “eclesiástica”, ao mesmo tempo que ele se apaixonava pela
obra de Mozart, curioso contraste que devia ser uma das originalidades do seu
gênio. Saint-Saëns, que foi seu mestre antes de vir a ser seu grande amigo,
revelou a Fauré a música de Schumann e de Liszt, e levou-o à Alemanha na
época da encenação de Samson e Dalilah, em Weimar. Mais tarde, Fauré
falando do seu mestre, para o qual ele sempre conservou uma infinita gratidão,
dizia: “É a ele (Saint-Saëns) que devo tudo!”. Maravilhosa palavra que honra
tanto o aluno quanto o professor, que suscitou um tal elogio.
Fauré escreveu uma grande parte da sua obra para vozes, piano e
instrumentos de música de câmara. Foi somente mais tarde que ele abordou a
música dramática. Ele gostava, aliás, tão pouco do trabalho da instrumentação,
que não hesitou em confiar a dois dos melhores alunos a orquestração de
algumas obras-primas, entre as quais, uma composição para canto que veio
enriquecer o repertório dos concertos sinfônicos: L’Horizon Chimérique.
73
Os primeiros sucessos de Fauré foram obtidos na composição dessas
encantadoras melodias: La Chanson du Pêcheur, Lydia, Aprés un Rêve,
Mandoline, Les Berceaux, e dessas ternas e sutis harmonizações dos poemas
de Paul Verlaine, que o consagraram como um dos renovadores do Lied na
França, ao mesmo tempo que Ernest Chausson e Henri Duparc. À antiga
Romança de Gounod ou de Massenet, Fauré substituiu uma obra vocal, na qual
o canto, a prosódia e o comentário se juntam para criar, como o fez Schumann,
uma harmoniosa obra de conjunto.
Evitando o uso de títulos sugestivos, que Debussy devia mais tarde tornar tão
popular, Fauré compôs uma imponente obra para piano e música de câmara,
entre outros: numerosos noturnos, dois quartetos para piano, dois quintetos, um
quarteto para cordas, duas sonatas para piano e violino, uma para piano e
violoncelo, a redução para piano da sua célebre Balada para Piano e Orquestra,
o brilhante Thème et Variations, etc. ...., conjunto maravilhoso no qual dominam
a riqueza e a originalidade harmônica, a nobre grandeza, a graça poética e a
sutil elegância que dão a toda a sua música esse imorredouro perfume!
Ele exigia, antes de tudo, dos seus alunos, a pureza da forma, a ciência do
vigoroso desenvolvimento, indignando-se com o desejo de brilhar, e ambição do
sucesso que, segundo ele mesmo dizia, “sempre levam os músicos às piores
concessões”.
Nas suas aulas, nada de solene ou de dogmático, nada que pudesse intimidar o
executante, o qual sempre encontrava essa deliciosa familiaridade, essa cordial
camaradagem, pelas quais todos o amavam.
Com modéstia, seu desdém da glória, numa época em que os mais medíocres
conseguiam fazer tanto barulho, prejudicou notavelmente a carreira desse
compositor, conhecido sobretudo pelas suas melodias, e que não fazia o menor
esforço a fim de impor ao grande público suas obras mais importantes.
Sua carreira foi tão modesta quanto sua pessoa, e se Fauré, rodeado somente
pela admiração dos verdadeiros músicos e pelos intelectuais, adquiriu em
numerosas ocasiões, no decorrer da sua longa existência, a convicção absoluta
que suas obras iriam crescendo na compreensão do público e que um dia o
74
mundo lhe faria justiça, isso não impede que ele tenha pago essa certeza com
tantos desgostos, tantas dúvidas, e mesmo tantas humilhações.
Apesar de seus últimos anos terem sido marcados por uma surdez, talvez mais
trágica ainda do que no caso de Beethoven, pois essa se manifestava por
perturbações que falseavam a percepção dos sons, Fauré soube, como Mozart,
dominar qualquer grito de revolta, e ficar, até o seu último fôlego, mestre de si
mesmo, e digno da maior admiração pelo seu indomável gênio!
75
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE
E INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1951 – 5a Aula
Foi, efetivamente, Fauré o primeiro a revelar aos músicos da sua época, que o
enriquecimento e o desenvolvimento daquela escritura, só poderiam resultar
dos progressos da harmonia, já que, no plano do “contraponto” era difícil
encarar qualquer meio de exceder o grau de absoluta perfeição atingido por
Bach, ao passo que eram necessárias repetidas e constantes inovações no
plano do “mecanismo harmônico” a fim de ampliar um vocabulário sempre
julgado insuficiente pelos compositores para traduzir todos os seus
pensamentos e seus sonhos.
Outro grande mérito de Gabriel Fauré foi ter realizado essa obra milagrosa,
quase que com o único recurso da escritura pianística, ao invés de Debussy e
Ravel que, para captar semelhantes graduações e matizes, tiveram de recorrer
à orquestração. Ele não pensava orquestralmente e, confinou-se em
instrumentar, sempre com simplicidade e às vezes com o auxilio de um ou outro
dos seus discípulos, aquelas obras que pareciam exigir intervenção orquestral,
o que se deu, por exemplo, com a célebre Balada, a Fantasia e Dolly, todas
essas escritas originalmente para piano, quatro mãos ou dois pianos.
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Quando Fauré recorreu à voz humana para concretizar seu devaneio, foi
também ao piano, e ao voluptuoso envolvimento da linha melódica, que ele
pediu para traduzir diretamente o sentido íntimo do poema, deixando quase
sempre o pianista ultrapassar a cantora na interpretação do texto. Mais de cem
melodias, escritas entre os quinze e setenta e sete anos e abrangendo os mais
diversos poemas, de Théophile Gautier e Victor Hugo até Verlaine e Baudelaire,
imortalizaram, desse modo, numa infinita variedade de acentos e sensações um
gênero estritamente pessoal. Situado a meio caminho do Lied e da romança e
ensejando ao seu autor o perfeito congraçamento da encantadora linha
melódica com as profundas volúpias de uma sensibilidade harmônica sem igual,
o estilo faureano consegue esgotar, com alguns compassos apenas, todo o
conteúdo de sonho e de infinito, do poema que o inspira.
Voltando a sua esplêndida eclosão pianística que reúne, entre outras obras
primas, treze barcarolas, treze noturnos, quatro Valses-Caprices, três
Romanças sem Palavras, uma lindíssima Mazurka, o monumental Tema com
Variações, os cadernos de Dolly e da Fantasia, dir-vos-ei que toda essa
produção encarna, com absoluta espontaneidade, as qualidades de discrição,
gosto e requinte do modesto compositor que sempre se recusou em admitir o
avassalamento da sua arte a um efeito de estilo ou a qualquer fim que não
fosse integralmente musical, limitando-se a expressar, fielmente, o magnífico
canto interior da sua genuína inspiração.
Talvez permaneça verdadeira, por algum tempo ainda, a definição que o próprio
Fauré deu, numa carta à sua mulher, depois de compor o Primeiro Quinteto (em
1906) a quem ele escrevia: “Tenho a impressão que minha música ainda não
está ao alcance de todos!”
As páginas admiráveis reúnem sob esse título (que quer dizer Bonequinha, em
português), seis quadros singelos chamados respectivamente
Berceuse
Mi-a-ou
Le Jardin de Dolly
Kitty Valse
77
Tendresse
Le pas espagnol
78
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E
INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1941
Ciclo de Palestras sobre a História da Música
Terceira Série
Aliás, o caminho já fora aberto por Gabriel Fauré cuja obra tive a oportunidade
de esboçar na minha última preleção, e que foi um dos primeiros, com a
introdução dessas harmonias que lhe são tão próprias e com a sua
remodelação da técnica sonora, em descobrir esses horizontes que seus
discípulos e seus sucessores souberam tão maravilhosamente explorar.
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muito pouco com sua educação e deixava o menino vadiar, passear, dançar
com seus pequenos camaradas e colecionar borboletas, em lugar de forçá-lo a
freqüentar a escola primária com regularidade.
Aos nove anos, sua madrinha, que morava no sul da França e que gostava
muito dele, convidou-o a passar as férias na sua residência em Cannes, onde
ele começou a estudar piano com um italiano chamado Gerutti, o qual nada
percebeu de notável nas atitudes pianísticas do seu aluno.
Em 1873, isto é, apenas dois anos mais tarde, Debussy era admitido no
Conservatório de Paris. Gabriel Pierné, que pertencia à mesma turma, o
descrevia do modo seguinte:
“Esse rapaz esquisito os surpreendia com sua execução, que era ainda mais
singular do que a sua pessoa. Não sei se era por falta de jeito ou por timidez,
mas ele se arremessava literalmente sobre o teclado, forçando todos os efeitos!
Ele parecia tomado de uma espécie de raiva contra o instrumento,
arrebentando-o com gestos violentos e impulsivos, e soprando barulhentamente
ao executar os trechos. Às vezes defeitos iam se atenuando, e ele obtinha
então efeitos sonoros de uma admirável suavidade e de uma inesperada
doçura. Com esses defeitos e essas qualidades, sua maneira de tocar sempre
deixava uma impressão estranha e muito particular”.
80
longínquas, dizia dele, no primeiro ano dos seus estudos: “Ele não parece
gostar muito do piano, mas ele gosta muito de música”. Esse julgamento
estava, aliás, completamente errado, no que tange à primeira parte, pois,
Claude, bem pelo contrário, gostava intensamente do instrumento do qual ele
veio a ser um dos magos mais perturbadores. Todavia, ele trazia, no
aproveitamento dos recursos pianísticos, uma personalidade demasiadamente
audaciosa para não chocar um professor tão conservador.
Isso nos explica, pelo menos até um certo ponto, que Debussy não tenha
conseguido tirar, ao se apresentar ao concurso no primeiro ano, senão um
segundo accessit. Ambicionando, como todos os alunos, o primeiro prêmio, ele
se apresentou novamente, no ano seguinte, tirando apenas um primeiro
accessit. No terceiro ano, o júri decidiu que sua execução da Sonata 111 de
Beethoven não merecia recompensa nenhuma. Debussy, mais teimoso do que
nunca, se apresentou no ano seguinte, pela quarta vez, com a Sonata em Sol
Menor de Schumann; ele conseguiu apenas tirar um segundo prêmio e chegou
à amarga conclusão que não podia, com o que todos chamavam “seus
defeitos”, aspirar à mais alta recompensa.
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cheia de beleza e de encanto, ele voltava a Paris, único lugar onde podia
realmente trabalhar a seu gosto, e seguir o curso natural da sua inspiração.
Nessa capital, a influência dos escritores e dos poetas se revelou muito mais
forte sobre Debussy que a dos músicos, dos quais – com a exceção de Paul
Dukas, Vincent d’Indy, Chausson, Pierné e Emmanuel – ele não gostava.
Efetivamente, sua maior alegria em palestrar com os numerosos amigos que
tinha no mundo literário, e particularmente com Pierre Louys, o qual, com a
mais encantadora cordialidade, se encarregara de aperfeiçoar a educação
artística incompleta do jovem compositor, e lhe proporcionou sob todas as
formas, em todos os momentos e até seu glorioso apogeu, o mais precioso e
indefectível amparo!
Falando mais tarde desses amigos tão dedicados, com os quais ele devia
sempre manter a mais íntima colaboração, Debussy dizia: “Verlaine, Mallarmé,
Laforgue me traziam novas sonoridades. Projetando sobre suas palavras uma
luz nunca vista até então, e empregando meios desconhecidos dos poetas das
gerações precedentes, elas conseguiam dar à matéria verbal os mais
inesperados efeitos de sutileza e de força. Concebendo os versos e a prosa
como se fossem músicos, e rodeando esses versos e essa prosa de um
verdadeiro carinho de músicos, eles combinavam, do mesmo modo que os
músicos o teriam feito, as imagens e sua correspondência sonora”.
Foi nessa atmosfera – favorável como a de uma estufa à eclosão de uma flor
delicada –, nesse ambiente sincero e original, que o talento e o gênio de
Debussy se desabrocharam.
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Foi um poema de Mallarmé que inspirou esse magnifico e sutil poema sinfônico
Prélude à l’Après-Midi d’un Faune, obra que nos revela um Debussy
inteiramente libertado das influências passadas, e uma linguagem musical
inédita, que tantos músicos deviam mais tarde procurar imitar.
No que diz respeito à música de piano, Debussy soube captar sua verdadeira
beleza antes de procurar inová-la. É por isso que, para bem interpretá-la, deve-
se procurar penetrar seu segredo, ler essa música com inteligência, e descobrir
as suas claridades sonoras com a arte de um pintor. Tocando ao piano as obras
de Debussy, o intérprete deve fazer abstração da velocidade pianística
“habitual” e procurar reproduzir esse conjunto de claridades, essa fluidez, essa
transparência, esse som suspirado, essa doçura, e, também, passar sem
transição aos acentos da mais veemente energia, do mais sombrio vigor,
diversidade tão característica do seu estilo. É essa prestigiosa palheta, e a essa
estupenda imaginação que devemos entre tantas outras obras: as duas
Arabesques, a Suite Bergamasque – o “Prélude”, “Sarabanda” e “Toccata”,
Estampes que reúne três peças muito conhecidas: “Pagodes”, “Soirée de
Grenade”, “Jardins sous la Pluie”; as duas séries de Images, das quais
“Poissons d’Or” e “Reflets dans l’Eau” são os mais tocados. Falar-vos-ei numa
próxima aula da visão exótica e deslumbrante revelada por essa maravilhosa
obra-prima: L’Isle Joyeuse, que analisarei também ao ponto de vista
interpretativo. Conheceis todos os dois volumes de Préludes, que reúnem em
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vinte e quatro obras, a quintessência da volúpia sonora, e descrevem com
recursos originais de uma incomparável variedade, a grandeza e o mistério da
natureza, o espírito e a fantasia, os perfumes evocadores, as paisagens e as
impressões imponderáveis de um mundo imaterial, rodeado por esse encanto
indefinível que a música sabe exalar quando baseada sobre o sentimento
poético. Enfim, Children’s Corner que nos divulga as influências inglesas das
quais Debussy soube tirar um tal proveito e os Doze Estudos, nos quais o
compositor desenvolveu com tanta mestria todos os recursos da técnica
pianística.
Das suas obras vocais, inspiradas pelos poemas mais raros, a esse compositor
requintado que os soube cantar novamente com tanto amor, citarei somente:
Proses Lyriques, Ariettes Oubliées, Chansons de Bilitis, essas últimas sobre
poesias de Pierre Louys, Trois Ballades de François Villon, e esse admirável
conjunto de melodias inesquecíveis que mereciam ser enumeradas uma por
uma.
Numa carta que ele escrevia a Pierre Loys em 1895, isto é, no início apenas da
sua prodigiosa carreira, encontramos a seguinte e tão comovente profecia: “Eu
estou trabalhando em certas coisas que serão somente compreendidas pelos
netos do vigésimo século! Somente essas futuras gerações poderão constatar
que os antigos ídolos da música eram em realidade, tristes esqueletos, cobertos
por um véu que não deixava perceber a verdadeira expressão musical”.
Felizmente, Debussy não teve que esperar tanto para que o mundo lhe fizesse
justiça, e aclamasse o homem que transformou a própria noção da música, para
abrir um horizonte talvez ilimitado ao material inteiro da expressão musical.
Não é exagero afirmar que sua influência é e será ainda mais geral, mais
profunda e mais fecunda do que a do wagnerismo. O fato é que não existe hoje
em dia um só jovem compositor de valor, na Europa, que escreva como se
Debussy nunca tivesse existido!
84
CURSO DE APERFEIÇOAMENTO E
INTERPRETAÇÃO DE 1940 – 5º AULA
Senhoras, Senhores,
Ora, em realidade, a apelação “música moderna” não significa nada mais que o
fato de pertencer à nossa época ou ao nosso século. Seria, por conseguinte,
mais correto denominá-la: música “contemporânea”, o que pouparia a certas
pessoas muitas desilusões na perseguição do estranho e do inédito!
Tanto em música, como em pintura ou qualquer outra arte, não existe só uma
escola moderna. Há um mundo entre, por exemplo, a concepção musical de um
Reynaldo Hahn, inspirado na forma pelo clássico-romantismo, ou de um
Richard Strauss, inteiramente wagneriano, e a concepção de um Hindemith,
geométrico percuciente, ou de um Darius Milhaud de quem conheceis o
constante intento de sonoridades inéditas e inesperadas.
85
Grande número de compositores, depois de Couperin, se absteve, quase por
completo, de empregar este meio de aclarar-nos sobre as significações das
suas inspirações.
Acontece, com freqüência, um autor dar a uma das obras um título ao qual ele
não presta a sua real significação.
É por isso que, salvo no caso de uma indicação bem determinada do autor, eu
considero que as evocações sugeridas pelos títulos são o direito exclusivo do
intérprete.
Gabriel Fauré, que não era particularmente um descritivo, e cujo gênio faz mais
apelo às emoções interiores, consentiu raramente livrar, pelos seus títulos, o
verdadeiro sentido das suas inspirações. Seria talvez unicamente por pudor?
Afinal não o creio! Tive o grande privilégio de conhecê-lo muito, e, antes, atribuo
esse fato ao respeito que Fauré professava para com a liberdade da concepção
alheia. (Confesso-vos que Fauré era um homem encantador. Durante uma
tournée que fizemos juntos, na França, tocando a sua famosa Balada para dois
Pianos, nada o divertia mais que ver-me descascar as laranjas à moda da
nossa terra, deixando somente o centro da fruta no garfo).
Debussy, ele, fez inteiramente sua a fórmula do título sugestivo, e isso com real
maestria. Na sua produção para piano, os dois livros de Prelúdios, com doze
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prelúdios em cada um, são um flagrante significativo do título evocador! Poderia
citá-los todos: Brouillards, Feuilles Mortes, Les Fées sont d’Exquises
Danseuses, Ondine, Feux d’Artifices, La Fille aux Cheveux de Lin, Les Collines
d’Anacapri etc. etc. Cada um deles é uma pedra preciosa da grande obra-prima
que estes dois livros representam.
Não garanto, todavia, que o título seja meio infalível de facilitar a compreensão
dos textos em geral.
Em todos os casos, para certa música futurista, somos bem felizes, de ter um
título sobre o qual apoiar-nos, pois que, sem ele, não poderíamos nem mesmo
adivinhar a significação de notas tão abracadabrantes quanto multiplicadas.
Acrescento, aliás, que nesse caso é freqüente, apesar do título, que não
estejamos mais adiantados!
Ao meu ver, nada é pior, no que diz respeito à interpretação, que a indiferença.
Mais vale ainda enganar-se, porém agir, o elemento vida, sobretudo na música
moderna, sendo absolutamente primordial.
87
estreada em Paris em 1902. Com essa obra, Debussy trouxe ao teatro lírico
uma nova orientação, um estilo novo, tanto na melodia vocal como no
comentário orquestral que cresce e decresce com tanta poesia, segundo a
intensidade da ação cênica, envolvendo as vozes num ambiente sonoro,
culminante no quarto ato, com os recursos de uma estética discreta e refinada
que representa o maior contraste com a concepção wagneriana.
Que dizer da sua música para orquestra que não levasse a palestrar
infinitamente!
(Anedota)
Debussy – humorista quanto poeta, penetrou com rara felicidade a maior parte
dos segredos da natureza da qual ele tinha uma compreensão admirável.
Todos os ruídos ou sussurros que ela espalha, Debussy os transformava em
harmonias.
De fato, a qualidade que, em música mais o comovia, ele a definiu como segue:
É muito disso que é feita toda a sua música, tantas vezes e extraordinariamente
comentada, porém, sem embargo, nunca se conseguirá determinar de todo,
porque não se define o indefinível!
Não é assim tão simples descrever verbalmente essa Catedral, com o seu
aspecto grave e grandiosamente sombrio na qual o jogo de sonoridades dos
sinos, longínquos ou próximos, estabelece uma atmosfera fervorosa.
Palavras estas minhas bem fracas diante de uma obra tão magnificente!
Os outros prelúdios e as outras peças que serão tocadas agora vos trarão mais
uma confirmação de que Debussy permanece, sem dúvida, o compositor que
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mais libertou a música das fórmulas já totalmente exploradas e o inovador
incontestável dos sentimentos e das exteriorizações musicais deste século.
Apesar de que muitos dentre vós acham, provavelmente, que durante estas
minhas aulas eu monopolizei o piano ao ponto de não permitir quase aos
participantes desse curso de tocarem, e atendendo ao pedido que me foi feito,
vos tocarei, como despedida até a semana próxima, uma das peças de
Debussy que escolhi para vós entre as eleitas do meu coração: L’Isle Joyeuse.
89
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E
INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1941
Ciclo de Palestras sobre a História da Música
Terceira Série
Os célebres Jeux d’Eau, também escritos nessa primeira época, já nos levam a
uma atmosfera libertada de influências alheias, e magistralmente evocada,
tanto pela escritura duma original fantasia, quanto pela sutil e sensível poesia
do desenho melódico. As quintas e as quartas que flutuam com tanta beleza
sobre os transparentes arpejos da mão direita, as fluidas harmonias que
envolvem tantas sonoridades originais para reproduzir a brilhante vivacidade
das águas que surgem e das gotas que caem, enfim a frescura da poesia,
milagrosamente contida numa forma quase clássica, explicam que esse
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deslumbrante “Capricho” seja hoje em dia a obra pianística mais popular de
Ravel e a que melhor satisfaz a maioria dos virtuoses.
Foi também a Espanha que inspirou a primeira obra escrita por Ravel
diretamente para Orquestra: Rapsodie Espagnole, na qual, segundo um dos
seus biógrafos, o compositor, “sorridente geômetra do mistério, soube dosar,
sobre as balanças mais certas e mais sensíveis, os imponderáveis da
substância sonora”, assim como L’Heure Espagnole, poema sinfônico
alucinante de espírito e da mais infinita variedade.
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Ravel era já ilustre. Porém, ele alcançou verdadeiramente a popularidade com o
Boléro. De um dia para o outro, ele se tornou o favorito do grande público, com
essa única frase, dó, si, dó, ré, dó, si, lá, dó, dó, lá, dó, que as crianças
assobiavam nas ruas de Montmartre e nos arredores de Paris, e que o rádio e o
gramofone difundiram com uma fulgurante rapidez, só atingida até então, pela
glória das estrelas do cinema. Essa obra sinfônica, de uma mestria tão
desconcertante, estreada em 1928 por Ida Rubinstein, no Teatro da Ópera de
Paris, foi aliás tanto criticada quando idolatrada por esse ritmo obsedante da
dança espanhola, realizado sem o auxílio de castanholas, nem dos outros
instrumentos, geralmente empregados nesse gênero de evocação, que vai
crescendo até a violência, sem qualquer modificação rítmica, e que acaba numa
rasgão realmente alucinante.
A Valsa, outra obra sinfônica, escrita também naquela época, se assinala por
uma concepção nitidamente diferente das suas Valsas de 1910, e deixa
adivinhar a catástrofe que transtornou o mundo para criar uma Europa nova.
Enfim, a Sonata para Piano e Violino, o Duo para Violino e Violoncelo, L’Enfant
et les Sortilèges, assim como numerosas outras obras vocais, entre as quais
seu “canto” supremo, Don Quichotte à Dulcinée, escrito em 1934, três anos
antes da sua morte, terminam a enumeração, muito rápida, e forçosamente
incompleta, das composições mais distintivas desse grande músico.
Dir-vos-ei somente, encerrando esse meu esboço da sua obra, que o gênio
lúcido e requintado de Ravel, a perfeição da sua escritura, sua intensa e
misteriosa poesia e sua engenhosa fórmula pianística constituem os mais
irresistíveis títulos da sua glória, e explicam sua profunda influência sobre os
músicos da sua época, mesmo fora da França e da Europa.
A única coisa que faltou a Ravel, para igualar a Debussy, diante da história e do
mundo, foi, talvez, não ter sido o primeiro!
_______________
92
Diante do número de executantes a serem ouvidos nestas duas últimas aulas,
do Curso deste ano, tenho que encurtar a preleção de hoje, e também a da aula
de sexta-feira, e deixar para um curso ulterior, o estudo da Música Moderna nos
outros países da Europa. Eu teria desejado encerrar o esboço da Escola
Moderna, à qual dediquei as preleções desta terceira série, com um breve
estudo de conjunto, através da Rússia, da Hungria, da Itália, da Áustria, da
Espanha, e tornar salientes as tendências e as realizações musicais dos vários
países, do mesmo modo que o fiz para a Alemanha e a França.
E aos que podem ainda pensar que a música já chegou ao seu apogeu, e que
será difícil a futuros criadores abrirem um caminho glorioso, depois de gênios
como Beethoven, Chopin ou Debussy, lembrarei somente a profecia de
Théophile Gautier, que dizia ao seu filho, há mais de 80 anos:
“Meu caro filhinho, nunca deixes alguém dizer que uma arte qualquer veio a ser
esgotada pelo gênio de qualquer homem! Depois de Shakespeare, escreveram-
se ainda obras dramáticas e teatrais; depois de Victor Hugo, compôs-se versos
franceses; e depois de Beethoven, ainda se inventou música! Richard Wagner
que admiras, e que eu fui o primeiro em revelar à França, será ainda superado
em ousadia, e teus filhos o julgarão arcaico! Não esqueças que o espírito
humano é lento e rebelde, e que o mundo, mais cedo ou mais tarde, acaba
admirando e elogiando o que durante anos procurara destruir. Olha com
respeito uma pintura que a gente qualifica de insensata, escuta até o fim a
música que assobiam, lê até a última linha o livro ridicularizada pela crítica, e
lembra-te!! Artista, fala sempre segundo o impulso da tua consciência, e deixa
tua alma aberta a todas as manifestações imprevistas da arte... Beethoven foi
vilipendiado, Schumann foi tratado de bárbaro bêbedo, Wagner veio a Paris
arriscando sua vida. Porém a música é imortal, e todos os músicos até hoje,
foram apenas precursores!”
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PRELEÇÃO DE MAGDALENA TAGLIAFERRO
RELATIVA ÀS OBRAS DE
REYNALDO HAHN E DARIUS MILHAUD
Antes de iniciar as execuções para dois pianos com as quais encerraremos este
turno de aulas, dir-vos-ei algumas palavras dos dois autores, cujas obras serão
ouvidas hoje, tratando-se não somente de compositores que se acham inscritos
pela primeira vez no programa das audições deste Curso, mas também de
obras que ouvireis em primeira audição integral no Brasil.
REYNALDO HAHN
As cinco valsas que ouviremos hoje em primeira audição fazem parte de uma
importante obra escrita para dois pianos, intitulada Le Ruban Dénoué e
nitidamente representativa dessa sensibilidade, desse sentido poético, e dessa
graça elegante que ele soube defender até sua morte – em 1947, época em
que atuava como Diretor da Ópera de Paris.
DARIUS MILHAUD
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diplomata Paul Claudel sob cujas ordens Milhaud atuava no Rio quem lhe
forneceu o libreto das mais importantes entre as suas obras dramáticas.
Quando voltou à França em 1919 após ter colhido no Brasil os temas de várias
composições, entre as quais os três cadernos de obras intituladas Saudades do
Brasil, assim como os das três peças que ouviremos hoje, reunidas sob o título
de Scaramouche, Darius Milhaud, desempenhou relevante papel no famoso
Grupo dos Seis ao qual aderiram Honegger, Georges Auric, Germaine Taillefer
e Jean Francix, cuja obra reveste-se do cunho de Erik Satie no plano musical e
de Jean Cocteau na forma estética.
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O MOVIMENTO ROMÂNTICO
FRANZ LISZT
Os poucos instantes dos quais ainda disponho não me permitem esboçar nem
uma parte infinitesimal do que desejaria dizer-vos a respeito da existência
excepcional e da obra admirável de Franz Liszt.
Nascido numa pequena aldeia húngara, em 1811, dois anos mais tarde que
Chopin e Mendelssohn e um ano depois de Schumann, numa época de apogeu
romântico e instrumental, Liszt foi, indiscutivelmente, o mais cintilante, o mais
realista, o mais magistral dos músicos de sua época.
Aos nove anos, Liszt estudava com Carl Czerny, enquanto que Salieri, o último
professor de Beethoven, lhe ensinava a composição e a harmonia. Seus
triunfos diante do público vienense, dois anos depois da sua chegada nesta
capital, não lhe apreciam uma consagração suficiente; seu grande desejo, sua
profunda ambição, era ser ouvido pelo grande Beethoven.
Alguns dias depois, entre as 4.000 pessoas que assistem ao seu grande
concerto do Esdoutensaal, Liszt, cumprimentando o público, reconhece
Beethoven, sentado bem perto, nas primeiras filas. Tremendo pela primeira vez,
Franz olha a fisionomia imponente de “Gênio de Bonn”, ataca a primeira peça,
e, dominando sua emoção, executa, com a mais rara mestria e fantástica
virtuosidade, o Concerto de Hummel, assim como uma das suas próprias
fantasias. Mal ele tinha acabado, no meio do delirante entusiasmo dos
96
fragmentos vienenses, Beethoven, apressando-se ao palco, abraça o menino e
lhe dá um beijo sobre a fronte. Essa homenagem do venerado mestre foi mais
cara a Liszt que todos os elogios e os superlativos que os jornais do dia
seguinte dedicaram à sua glória nascente.
Liszt não atingira 13 anos quando seu pai o leva para a França. Os salões de
Paris logo se abrem diante desse jovem, esguio e aristocrático, que tocava com
tanto brilho e que improvisava com tanta facilidade, achando o meio de
apresentar cada vez um programa diferente. Londres o acolhe com o mesmo
carinho, e o rei George IV recebendo-o no Palácio de Windsor lhe expressa sua
admiração, não somente pela perfeição das suas execuções, mas também pela
riqueza das suas idéias.
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em detrimento do lado verdadeiramente musical. Liszt, além de um grande
técnico, foi também um poeta, e dou-vos como prova a primeira parte da
“leggerezza” aliás intitulada por ele mesmo: Caprice Poétique; o Rêve d’Amour;
tantas frases da Grande Sonata em Si Menor; muitas das peças dos três
volumes de Anos de Peregrinação; as Harmonias Poéticas e Religiosas etc. etc.
Efetivamente, a maior parte das obras de Liszt são guiadas pela poesia, sob
todas as formas, lírica, serena, religiosa ou apaixonada; porém, o
temperamento aristocrático e altivo do seu autor o leva ao mesmo tempo a certa
grandiloqüência e mesmo a uma hipertrofia da ênfase e do sentimento
dramático, o que, às vezes, traz alguma confusão na interpretação dessa obras,
cheias do mais belo e patético romantismo.
Após ter dedicado os vinte últimos anos da sua vida ao serviço da Igreja, na
ordem dos Franciscanos, após uma das carreiras mais extraordinárias e uma
existência inspirada de quatro grandes preceitos: servir o próximo, o amor, a
bondade, a generosidade, o abade Liszt morreu deixando atrás de si, além da
sua obra incomparável, toda a sua fortuna que constava de sua batina, de
alguma roupa branca, e de sete lenços!
98
A MÚSICA ESPANHOLA
99
mundial, as ambições desse país ficaram saturadas com a paixão do
catolicismo, fornecendo desse modo à Santa Sé o mais formidável auxílio, o
qual se concretizou na intensa atividade política de Carlos V e Felipe II, e,
sobretudo, na dominadora personalidade de Inácio de Loyola, cujo papel
histórico é bastante conhecido, e a quem o nacionalismo espanhol deve sua
íntima fusão com o poderoso universalismo de Roma.
É por essa razão que a cultura espanhola não pode ser separada da sua
história religiosa, levando inevitavelmente qualquer estudo das artes e das
letras desse país às portas da Igreja Católica.
Apesar dos mouros terem ocupado a Espanha até o fim do século XV, a
influência mourisca, ao contrário do que muita gente acredita, não
desempenhou nessa longa e progressiva evolução, papel realmente
fundamental. Lembremo-nos do aristocrático senso da forma e da ostentação,
oriundo do feudalismo e do cavalheirismo da Idade Média; lembremo-nos da
nobreza da palavra, do caráter poético e da notável habilidade retórica, que
assinalam qualquer manifestação da arte espanhola; lembremo-nos, enfim, que
a tendência oriental à ornamentação, foi sempre matizada na Espanha, por um
incontestável realismo, conforme o vieram demonstrar a implantação do estilo
barroco e tantas outras concretizações artísticas.
Foi somente na primeira metade do século XIV, que o humor espanhol, com as
picarescas fábulas e novelas do poeta Juan Ruiz, recebeu sua consagração no
100
palco, enquanto que os “Cancioneros” estendiam sua influência à fidalguia e à
corte.
Juan del Encina, que ocupou os mais altos cargos na corte da rainha Joana de
Castilha, e junto ao papa Júlio II, e empreendeu a viagem até Jerusalém, a fim
de celebrar sua primeira missa na Igreja do Santo Sepulcro, foi, sem dúvida, o
mais notável dos poetas-compositores da sua época, impondo-se com invulgar
mestria, pela frescura da sua inspiração no gênero “pastoril”, pela sua verve
mordaz e uma espécie de maliciosa candura, não desprovida de certa ironia.
Enobrecidas e transformadas pela sua ciência e seu pensamento requintados,
as composições desse grande artista, criador do drama nacional espanhol, se
assinalam pelo seu gosto e sua elegância, até nas mais singelas “eglogas”
como, por exemplo nessa encantadora poesia pastoril dialogada, e entrecortada
por trechos musicais, intitulada “Del escudero que se tornó pastor”, ou numa
outra fábula do mesmo caráter, “De los pastores que se tornáron palaciegos”.
(Palaciegos é a palavra espanhola equivalente a cortesão.)
O cenário da primeira dessa obras nos apresenta uma linda pastora entre seus
dois namorados, um escudeiro a serviço de um rico senhor, e um pobre pastor.
Ao contrário do que acontece geralmente nos poemas e nos contos de fadas, a
moça resolve casar com o primeiro dos pretendentes, tendo ele, o escudeiro,
renunciado ao seu cargo e desistido de voltar à cidade. No meio do enredo, os
versos são interrompidos pela parte musical, de uma graça cativante, que
consta de uma sucessão de canções e de danças, encerrando-se a
composição, com um atraente “Villancico”, sorte de canção amorosa e
encomiástica, com sutil acompanhamento ao alaúde.
101
encantadora poesia, e o contraste entre a vida senhorial e campestre, evocado
com picante humor e espírito.
Foi o reinado dos Reis Católicos que inaugurou, na última parte do século XV,
essa era de maravilhoso e inigualado esplendor, que ia se prolongar até a
metade do século XVII. O casamento de Ferdinando e Isabel reuniria as duas
coroas de Castilha e Aragão, poucos anos antes da tomada de Granada, que
pôs, em 1492, quase toda a Península Ibérica, sob o mesmo cetro real. A
descoberta da América, um dos mais importantes acontecimentos da história
universal, realizou-se, também, no mesmo ano, iniciando a maravilhosa era da
expansão colonial da Espanha, que culminou na conquista de um império sobre
o qual o sol jamais deixava de brilhar.
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universal do catolicismo, e conseguiram ao mesmo tempo manter nas suas
composições o tradicional e autêntico espírito espanhol.
103
PALESTRA SOBRE LUDWIG VAN BEETHOVEN
Assim sendo, não vou esboçar uma biografia longa e completa. Todavia, nunca
me parece desnecessário relembrar que esse portentoso compositor foi a última
e apoteótica encarnação do classicismo musical, até nos abrir caminho às
primeiras eclosões do Romantismo.
Nós todos sabemos quanto o ambiente pode influir e para sempre se gravar
num cérebro infantil. O fato de ter, em criança, vivido ao lado de um pai
alcoólatra e de uma mãe tuberculosa não pôde deixar de influenciar o caráter, o
humor e a saúde dessa criatura excepcional. No entanto, não resta dúvida que
Beethoven tenha sido escolhido pela Providência como mensageiro da Divina
Verdade entre os eleitos marcados milagrosamente para tornar este Universo
mais ameno, mais nobre e grandioso, para, enfim, aliviar com a beleza da sua
arte, no mundo das sonoridades, a tristeza e a ânsia de tantos corações.
Para bem compreender e penetrar a sua obra, convém não olvidar que
Beethoven tomou contato com a vida através da aflição e da angústia, e que
seu gênio se desabrochou no meio de uma sucessão ininterrupta de
sofrimentos, motivos talvez pelos quais, ele veio a doar à humanidade uma tão
profunda mensagem, já que sabemos que a dor enaltece as almas generosas.
Ora, Beethoven recebera de Deus um coração elevado e, na firme visão de um
nobre ideal assim como no legítimo valor, esse artista genial conseguiu, em boa
hora, encontrar a razão de ser, senão a consolação de uma existência
sobrecarregada de sofrimentos.
104
Sabemos que, pessoalmente, Beethoven só deu títulos a duas das suas
Sonatas: a Patética e a Appassionata, e todas as outras denominações foram
inscritas pelo seu primeiro editor, à revelia do compositor.
Desejo dar-vos a prova de como desde a sua segunda sonata, a opus 13, a
Patética, Beethoven conseguiu transpor um profundo sentimento de bela
serenidade, cortado na parte mediana por uma frase um tanto dolorosa. Vou
ilustrar estas minhas palavras tocando-vos o Adagio Cantabile da Sonata
Patética.
(Execução)
São dois os Trios para Piano, Violino e Violoncelo, encomendados pelo Príncipe
Lichnowsky nos quais ele indicou op. 1, que deviam marcar para as gerações
futuras, o verdadeiro início do primeiro período dessa fecunda e gloriosa
produção, que revela, ao mundo musical, a vigorosa e vitoriosa eclosão desse
gigantesco talento.
Durante muitos anos, a ninguém disse que zoavam-lhe os ouvidos dia e noite;
nem mesmo aos amigos mais caros; porém, suas faculdades auditivas, apesar
de vários tratamentos sugeridos por eminentes especialistas, iam
enfraquecendo numa inexorável progressão, e não podendo mais ocultar sua
enfermidade, Beethoven procurou fugir do mundo.
Aos trinta e um anos, esse músico, pobre e condenado a viver da música, deve
renunciar a esconder seu angustiante segredo, e, numa carta escrita a seu
grande amigo Wegeler, encontramos essa dolorosa confissão:
“Vivo numa existência miserável! Há dois anos que estou evitando qualquer
companhia, por ser-me impossível conversar. Estou surdo! Se tivesse outro
ofício, ser-me-ia ainda possível, mas, no meu caso, é uma situação terrível e
desesperadora. Que dirão disso os meus inimigos, cujo número não é
105
pequeno? No teatro, devo colocar-me bem junto à orquestra, para entender o
ator. Se fico um pouco distante do palco, não ouço os sons dos instrumentos e
das vozes. Quando falam suavemente mal percebo! Quando gritam não tolero!
Tenho, constantemente amaldiçoado a vida e o mundo ... Plutarco me levou à
resignação! Quero, se for possível enfrentar o destino, mas, há momentos em
que sou a mais lamentável das criaturas de Deus ... Resignação! Que triste
refúgio para mim! E é entretanto, o único que me resta!”.
O mesmo Dr. Wegeler nos conta que Beethoven foi também vítima, durante
essa época, de outro gênero de moléstia: a do amor! Ele se apaixonava a todo
instante. Sonhava com felicidades, logo seguidas de derrotas e de amargos
sofrimentos.
Seus amores, todavia, parecem ter sido sempre de uma grande pureza, seja
por causa das suas idéias bastante intransigentes sobre a santidade desse
sentimento, ou pelo fato de nunca ter ele sido amado como o sonhara.
“Não existe coisa mais bela, escrevia ele, do que se aproximar da divindade, e
de difundir seus maravilhosos raios sobre a humanidade.”
Ele devia pagar duramente essa momentânea doçura do destino. Esse amor o
fez perceber, ainda mais, a miséria da sua enfermidade e as condições
precárias da sua vida, que tornaram impossível o casamento com o qual
sonhara.
106
no coração, num coração que sofre, ruge, ama e finalmente triunfa na sua luta
contra o Destino.
Foi este o único momento da sua vida em que ele esteve prestes a sucumbir, e
a crise desesperada que Beethoven atravessou nos é revelada pelo seu
inesquecível “Testamento de Helligenstadt” que o compositor mandou aos seus
irmãos, com a seguinte inscrição: “Para ler e executar depois de minha morte”.
Cada vez que, numa palestra sobre Beethoven, cometi a imprudência de citar
integralmente esse grito de revolta e de dor pungente, não pude conter a minha
emoção e desatei em público num pranto tal, que sempre me deixou
estarrecida, não querendo me expor hoje à mesma inconveniência, limitar-me-ei
em citar-vos apenas algumas linhas desse memorável documento.
“Até aquela grande coragem que me sustinha se dissipou, escrevia ele nesse
testamento. Dê-me ó Providência, ainda uma vez, um dia só de verdadeira
felicidade! Há quanto tempo que o som profundo da alegria me é totalmente
estranho! Quando, oh! meu Deus, poderei encontrá-la? Nunca? Não! Isto seria
demasiadamente cruel!”
Felizmente para a música, sua natureza poderosa não se resignava cair e essa
força colossal, essa energia sobre-humana, fizeram-no adotar uma profunda
filosofia que encontramos no terceiro período da sua obra. Foi com um olhar
confiante e calmo que vai além das estrelas que ele se resignou ao inevitável.
No entanto, sua saúde piorava dia a dia, além da surdez que se tornara
completa. Já nos seus últimos anos, ele se servia, dizem, de uma vareta da
qual uma extremidade era colocada na caixa do seu piano e a outra, entre seus
dentes. Quando compunha usava desse meio para ouvir!
107
É realmente comovente constatar como a crença em Deus lhe permitiu resistir
aos implacáveis golpes da mais amarga fatalidade, e operou nesse gênio
prodigioso, o que se pode qualificar de verdadeiro milagre!
Era o projeto de toda sua vida e ele conseguiu finalmente realizá-lo com a Nona
Sinfonia, intitulada: “Sinfonia, com um coro final, sobre a alegria”.
Foi só nos seus últimos anos de vida que Beethoven atingiu a essa realização,
mas com que grandeza!
Que conquista pode igualar a glória desse esforço sobre-humano, essa vitória
do Espírito?
Foi esse infeliz, esse pobre, esse enfermo, esse solitário, o próprio sofrimento
feito homem, a quem o mundo recusou a alegria, que criou, ele mesmo a
“Alegria” para doá-la à Humanidade!!!
108
3
Análise
109
110
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E
INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1951
Johan Sebastian Bach, que foi talvez o mais representativo dos mestres da
Escola Alemã e que, conforme o dizia um dos seus biógrafos, “procriava suas
cantatas semanais, assim como os seus 22 filhos, para a maior glória de Deus”,
ciente que essas cantatas iam ser executadas uma só vez, e incorporando, no
entanto, em cada uma delas o mesmo fervor, a mesma fé e a mesma ciência da
escritura musical que caracteriza toda a monumental produção.
111
convites para o casamento do rei Filipe III (em 1599) a menção de “uma viagem
à cidade de Tampico par ali dançar a “Chacona”.
Na língua basca (vasconça), a palavra chacona quer dizer “bonita” o que não
parece realmente se aplicar a esse tipo de dança meio selvagem, apaixonada e
até desenfreada descrita por Cervantes como “uma torrente de mercúrio que
sobe e desce no corpo da dançarina”.
112
BEETHOVEN
Concerto op. 73, em Mi Bemol
Este concerto foi escrito por Beethoven em 1809, durante aquele fecundo
período em que nasceram as imortais Sinfonias, as “Ouvertures” de Fidélio,
Leonora, Coriolan, Egmont e outra importante produção orquestral, e em que as
composições para piano só, após as famosas 32 Variações, se limitaram a três
sonatas, entre as quais a do “Adeus”, que tivemos o ensejo de estudar e
comentar numa aula do curso de 1941.
Naquela época, e apesar das dificuldades que a situação política instável criara
no país, Beethoven conhecera alguns anos de verdadeira e confiante felicidade,
convencido que sua ardorosa paixão pela imortal bem amada, Teresa de
Brunswick, encontraria um eco no coração daquela nobre e linda moça. É aliás
por esse motivo que o caráter doloroso, melancólico ou trágico, que assinala
tantas composições anteriores, quase desaparece por completo nas obras
escritas durante este período, sendo o Concerto em Mi Bemol antes de tudo um
acento triunfal, uma epopéia expressada musicalmente, para exteriorizar ao
mesmo tempo sua íntima felicidade, e os profundos sentimentos que ligavam o
compositor à sua terra adotiva.
113
orquestra, voltamos à atmosfera apaziguada e transparente, seguida pelo ritmo
heróico do “tempo” e a cadência escrita aliás pelo autor.
114
BEETHOVEN
SONATA OPUS 78, EM FÁ SUSTENIDO MAIOR
1º Tempo
Apesar de não ser incluída entre as prediletas do grande público, a Sonata op.
78, em Fá Sustenido Maior, escrita por Beethoven em 1809, era muito
apreciada pelo próprio compositor, que dizia a Czerny: “Fala-se muito da
Sonata em Dó Sustenido Menor (a que chamamos hoje impropriamente, aliás,
de “Sonata ao Luar”). Escrevi, entretanto, melhor do que isso. Assim, a Sonata
em Fá Sustenido Maior é outra coisa”.
Quem negará a beleza da frase inicial, desse “Adágio”, concretizada pelo genial
compositor, em quatro compassos apenas, os quais não mais aparecerão no
decurso da obra, que constituem, porém, tão melódico prelúdio à terna e pura
atmosfera do “Allegro”, e ao seu primeiro tema, quase lírico e tão
profundamente expressivo. O segundo tema do “Allegro”, que deve ser tocado
num tempo discretamente rubato, pode ser comparado pela suavidade do
início, ao som de uma flauta longínqua, animando-se todavia com os arabescos
de um elemento já ouvido anteriormente, e deixando perceber na atmosfera,
certa ameaça de perturbação. Essa aparente agitação logo vem se desfazer,
aliás, com a reexposição dos temas iniciais.
115
É primeira parte dessa Sonata, que ouviremos agora, na interpretação da
senhorita Eliane Carvalho de Azevedo.
116
BEETHOVEN
SONATA OP. 81
“O ADEUS, A AUSÊNCIA, O RETORNO”
Para só falar da sua música de piano, temos disso uma prova irrefutável com as
trinta e duas sonatas, todas irmãs, porém de uma tal diversidade, tanto no
espírito como na forma. A “Appasionata”, tão característica da impetuosidade e
da paixão tempestuosa levada até o seu paroxismo; a Sonata op. 53, chamada
erroneamente de “Aurora”, tão cheia de frescura e de mistério; a sonata op. 27
n.º 2, que uma tradição igualmente errada costuma designar sob o nome de
“Luar”, e que o próprio Beethoven intitulou: “Quasi una Fantasia”; a comovedora
Opus 110, sem dedicatória nenhuma, talvez porque o genial compositor podia
só dedicar a si próprio essa transposição sonora da mais íntima convulsão da
sua vida; a Sonata op. 111, cuja potência de expressão dramática é precursora
do estilo wagneriano, etc. etc. todas imbuídas dessa genialidade, desse poder
emotivo e convincente que foram raramente igualados, sobretudo na forma
musical, sempre um pouco severa, da sonata.
(texto incompleto)
117
BEETHOVEN
SONATA OP. 27, N.º 2
Escrita em 1801, isto é, cinco anos após a aparição dos primeiros sintomas de
surdez, essa sonata é o reflexo por um lado da angústia do compositor diante
dos progressos da sua enfermidade, por outro, das alternativas de angústia,
esperança, revolta, ternura e desespero, que lhe inspirou seu amor por
Giulietta.
.....................................................................
Como já disse além da, já marcada e anunciada para amanhã, sábado incluirão
a audição de mais uma participante da seção de arte vocal e, na seção de
piano a execução do Prelúdio, Ária e Final, de César Franck, do Concerto n.º 5
de Beethoven, para piano e orquestra, do Concerto em Mi Bemol Maior, para
piano orquestra de Liszt e, ainda, a análise interpretativa da sonata
“Appassionata” de Beethoven.
(Texto incompleto)
118
BEETHOVEN
SONATA OP. 53
“AURORA”
Desde o início, com a primeira oitava na mão esquerda, essa introdução nos
mergulha em pleno mistério.
Há um frêmito interior, uma emoção contida nas pausas da mão direita, que não
podem ser descritas, só podemos senti-los como um belo e nostálgico canto de
violoncelo – mas logo o mistério lhe apaga a voz e no grave começa a lenta
descida para a harmonia que prepara a entrada do “Rondó”.
Para cantar a natureza em festa, Beethoven não fez mais do que ouvir o seu
próprio coração.
119
BEETHOVEN
SONATA OP. 31 N.º 2
COMENTÁRIOS
Segue, como segunda parte, um dos mais nobres e dos mais elevados
“adágios” beethovenianos. Esta peça exala (irradia) um perfeito sentimento de
calma e de paz, que traz com certeza, pelo menos momentaneamente, a
serenidade na alma dolorosa do pobre Beethoven, sempre tempestuoso ou
perturbado.
Para o final, Beethoven serviu-se do tema de uma sua melodia intitulada Für
Elise. Este final se desenvolve um pouco como um moto perpétuo, prestando
essa continuidade rítmica a cometer um gravíssimo erro ao qual não escapam
até grandes pianistas, que tocam esse “Allegretto” como se fosse um “Presto” e
sem nenhuma intenção musical. Esta concepção dá a impressão de se ouvir
apenas um estudo de técnica, produzindo assim um efeito desastroso, e vai
inteiramente contra a vontade de Beethoven, o qual, repito, inscreveu
“Allegretto” o que permite cantar a frase inicial desse desenho tão encantador.
120
BEETHOVEN
SONATA OP. 90 EM MI MENOR
Após a “Sonata do Adeus”, op. 81, escrita em 1810, que era a vigésima sexta,
dessa prodigiosa série de obras-primas pianísticas, Beethoven se dedicou
durante quatro anos, sobretudo à composição de música sinfônica e música de
câmara, sendo desse período (de 1810 a 1814) a sétima e a oitava sinfonias,
Egmont, a Sonata para piano e violoncelo op. 96, o Quarteto nº 11 e vários
Lieder.
A Sonata op. 90, em Mi Menor, inscrita nas execuções de hoje, foi composta
em 1814, ano em que Beethoven dividia a sua existência entre Viena, onde
passava o inverno e a estação de águas, onde, em meio a tratamentos e
cuidados médicos, compunha sempre em contato estreito com a natureza.
121
A extraordinária beleza do refrão cheio de ternura, quietude e confiança no
destino, só pode corresponder às ressonâncias de um coração feliz, o que vem
nos confirmar que, apesar da sua enfermidade, apesar dos seus terríveis
sofrimentos físicos e morais, Beethoven conseguia às vezes encontrar a
felicidade e cantá-la numa expansão de lírica ternura, para doá-la aos seus
contemporâneos e às sucessivas gerações que prestam desde então,
incondicional homenagem à sua prestigiosa memória.
122
BEETHOVEN
SONATA OP. 90, EM MI MENOR
COMENTÁRIOS
A senhorita Menininha Lobo vai certamente nos dar uma fiel execução deste
preceito.
123
BEETHOVEN
SONATA OP. 57
Exemplo 1
Exemplo 2
Exemplo 3
Exemplo 4
Exemplo 5
A modulação que segue tem por finalidade preparar a entrada da segunda idéia
desta Sonata, transmitindo-nos uma sucessão de acentos angustiosos,
agitados, pungentes, que o autor procura reprimir, ou pelo menos acalmar, num
expressivo rallentando:
124
Exemplo 6
Aqui nasce a segunda idéia, que não é outra coisa senão a intervenção do
primeiro tema, exposto desta vez na tonalidade de lá bemol maior, o que nos
incitaria a evocar o nobre Próspero, da Tempestade de Shakespeare, numa
expansão mais serena e acolhedora:
Exemplo 7
Essa quietude terá, aliás, de curta duração, sendo logo entrecortada por
expressiva e dolorosa inflexão que parece quase uma lamentação:
Exemplo 8
Exemplo 9
Exemplo 10
Exemplo 11
Exemplo 12
Exemplo 13
125
Aqui, o apelo do Destino se faz ouvir novamente, num rallentando que deve ser
cuidadosamente graduado.
Exemplo 14
Exemplo 15
O tempo escasso de que dispomos hoje me obriga a limitar esta parte da minha
análise às linhas essenciais.
A indicação do próprio autor, “Andante con Moto”, deveria ser entretanto ser
encarada como uma advertência destinada a evitar excessiva rigidez na
conservação do andamento e autorizando uma imperceptível aceleração na
segunda variação para chegarmos a uma aceleração mais aparente, na terceira
variação.
Exemplo 1
Exemplo 2
126
Exemplo 3
Exemplo 4
Hans von Büllow costumava dizer aos virtuoses que atacavam este movimento
com excessiva velocidade que não se tratava de um exercício de ginástica, mas
sim uma composição musical embebida de paixão, possivelmente concebida
durante uma tempestade noturna.
A impetuosidade desse "Alegro", que foi aliás escrito por Beethoven, antes das
outras partes da Sonata, justifica a narração de Ries, segundo o qual, durante
longo passeio, o mestre cantava e gritava coisas incoerentes, voltando à casa
em seguida para se por ao piano e submeter, durante duas horas, o
instrumento à rude prova da primeira versão deste final.
Exemplo 1
Exemplo 2
Exemplo 3
Exemplo 4
127
Exemplo 5
Exemplo 6
Exemplo 7
Exemplo 8
Três notas apenas, dó, fá, lá, repetidas quatro vezes na mão esquerda e
entrecortadas de outra sucessão de duas notas, são o suficiente, nessa
vertiginosa peroração, para Beethoven nos afirmar, com incisiva segurança, a
inelutável soberania do pensamento.
Exemplo 9
128
ROBERT SCHUMANN
SONATA OPUS 11, EM FÁ SUSTENIDO MENOR
1. PRELEÇÃO
Schumann adorava Clara Wieck, a qual, por seu lado, retribuía carinhosamente
esta grande paixão. Ele poderia, pois, ser muito feliz! Sim, muito feliz, se não
fosse o pai dela, que era ao mesmo tempo o professor do jovem músico. O
senhor Frederico Wieck, orgulhoso de ter uma filha tão linda, tão moça – ela
tinha apenas 15 anos naquela época – aclamada como um verdadeiro prodígio
e já considerada pelos seus dotes excepcionais como sendo uma grande
artista, não achava digno de tão maravilhoso conjunto de talentos e
possibilidades um simples compositor, apenas um principiante nessa ingrata e
árdua carreira, e que era aliás, mais conhecido como jornalista. E o professor
Wieck, em absoluto, não gostava de jornalistas! Ele fez então, a partir do dia em
que Schumann teve a ousadia de pedir Clara em casamento, todo o seu
possível e até o impossível para contrariar e impedir essa união,
despercebendo que sua vaidade e sua teimosia eram suscetíveis de
comprometer a felicidade de dois seres escolhidos pelo destino para se
compreenderem e se amarem, conforme os acontecimentos que seguiram
vieram confirmar.
Foi assim que se passaram cinco anos, durante os quais Clara usou, em vão,
todos os argumentos ao seu alcance, súplicas, carinho, desespero e até
ameaças, sem conseguir todavia que o seu pai abandonasse sua intransigente
atitude. Nesse período, Schumann, passando por alternativas de terrível
abatimento e transbordante entusiasmo, prosseguia numa carreira que, apesar
do seu trágico e prematuro desfecho, aos quarenta e seis anos do genial autor,
129
devia se assinalar como uma das mais fecundas e originais de todo o
romantismo musical.
Cartas como estas são, aliás, bastante raras. Longe de procurar impressionar
sua noiva com ardorosas declarações e frases banais ou frívolas, como é a
regra quase universal entre namorados, Schumann confiou ao piano as
expansões às vezes estranhas, porém sempre sinceras e espontâneas,
reveladoras de uma inesgotável fantasia, dos ímpetos de um desejo indomado,
e também de uma mórbida languidez, aliada ao mais intenso amor da natureza,
sendo todos esses sentimentos imbuídos do notável senso poético, distintivo da
maioria das suas composições.
130
Concerto sobre os Caprichos de Paganini, que formam o opus 10, e a grande
Sonata op. 11, em Fá Sustenido Menor, ao estudo da qual será reservada toda
a segunda parte desta preleção.
Não vejo introdução mais adequada a este estudo do que a opinião expressada
por Franz Liszt, na Gazeta Musical de Leipzig, no ano que se seguiu à
publicação dessa obra, isto é, em 1836.
131
É talvez por essa razão que o comum dos mortais passa friamente ao lado de
uma grandiosa criação artística, sem perceber a gloriosa mensagem que ela é
destinada a nos transmitir, como é, por exemplo, o caso da Sonata em Fá
Sustenido Menor, cuja individualidade, cujo encanto e cuja novidade na
expressão nem sempre foram avaliados tanto quanto mereciam, tendo essa
admirável composição levado muitos anos antes de ser verdadeiramente
compreendida e antes de alcançar a popularidade que granjeia hoje em dia.
132
os Filisteus, denominação que reunia os seus contemporâneos que Schumann
e seus colegas consideravam como inimigos do progresso e da verdadeira arte.
Desde o princípio da sua carreira, Schumann sentira quanto as diversas facetas
da sua própria natureza reagiam de maneira variável, diante do mesmo
indivíduo, da mesma obra de arte, ou do mesmo pensamento, filosófico ou
amoroso, e foi com o objetivo de expressar toda essa diversidade de emoções,
com amor liberdade e exatidão, que ele inventou um grupo inteiro de
personalidades, para atuarem como membros da sua sociedade imaginária, e
das quais se destacavam dois tipos nitidamente opostos: Eusebius,
concretização da sua índole sonhadora, melancólica e sentimental, e Florestan,
que personificava o lado impulsivo, apaixonado e humorístico do seu próprio
caráter.
Quando a Sonata op. 11 foi executada pela primeira vez, os que ignoravam a
existência desses dois personagens, surgidos da fantasia de um cérebro em
que a excentricidade alternava com o mais íntimo sentimento poético, não
conseguiram captar logo no início como sendo envolvida de certo mistério.
Como podereis constatar, nosso conhecimento do nostálgico Eusebius e do
tempestuoso Florestan se revelará de um valioso auxílio na nossa tarefa de
desvendar esse pretenso mistério, e focalizar toda a beleza, a unidade e a
potência significativas dessa composição, que marca indiscutivelmente uma
data histórica em toda a evolução da Sonata, desde Kuhnau e Filipe Emmanuel
Bach, até Ravel, Paul Dukas e os mestres contemporâneos.
2. ANÁLISE AO PIANO
1. Allegro Vivace
133
Sentimos desde o princípio a presença de Eusebius, sendo a poderosa
intensidade revelada na apresentação da sua imagem inicial, obtida graças à
maravilhosa precisão do desenho rítmico.
Eis o solene e grandioso início dessa Introdução.
Exemplo 1
O elemento doloroso e intenso desse tema vem logo a ser substituído por um
sentimento mais meditado. Eusebius não pode esquecer que ele é, antes de
tudo, de uma natureza terna e afetuosa.
Exemplo 2
Eusebius não procura tampouco ocultar que essa confissão é apenas o prelúdio
e a preparação à inefável expansão amorosa.
Exemplo 3
Exemplo 4
Com isso, se termina a Introdução cuja arquitetura lembra o átrio que precedia
a entrada dos templos antigos, e que os romanos construíam em frente às suas
basílicas, a fim de que os fiéis tomassem o tempo de meditar, antes de penetrar
na igreja. Do mesmo modo, essa introdução incita à meditação, e prepara
perfeitamente o ambiente para o verdadeiro início da Sonata.
Exemplo 5
Exemplo 6
134
Exemplo 7
Tendo chegado ao paroxismo desse fervoroso apelo, que culmina numa frase
ofegante, em que Florestan sintetiza os transbordos da sua alma apaixonada.
Exemplo 8
Exemplo 9
Inicia-se aqui com uma frase de sublime beleza e encanto, escrita na tonalidade
de Lá Maior, o Segundo Tema deste “Allegro”. Estes acordes suscitam
naturalmente ao nosso espírito a imagem da suprema felicidade com a qual
Schumann sonhava, imagem que se torna mais realística ainda com o
minucioso desenvolvimento dessa frase, e os acentos emotivos que vêm findar
essa página admirável, exalando a frescura e a quietude de um coração feliz.
Exemplo 10
Exemplo 11
Exemplo 12
Exemplo 13
O “Allegro” encerra-se, enfim, com a mesma frase sublime que vos toquei agora
há pouco, escrita, porém, desta vez na tonalidade de fá sustenido menor, a qual
introduz nessa comovente expansão um elemento de profunda melancolia. Esta
frase, proferida agora, num estado de espírito bem diferente, exala uma tal
nostalgia, que podemos interpretá-la como sendo o triste chamamento à
realidade após um lindo sonho, e do qual o autor duvida que ainda possa voltar.
Exemplo 14
135
inigualada sensibilidade do autor esse estado de alma, denominado
schumanniano, por ser tão diferente de todos os outros transportos até hoje no
plano sonoro.
2. ÁRIA
A “Ária”, que constitui a segunda parte desta sonata, reúne algumas páginas
entre as mais belas da literatura do piano. Apesar da indicação do próprio
Schumann, que escreveu à margem do manuscrito: “Senza Passione”, isto é,
sem paixão, esta canção de amor extasiado, transmitida por intermédio do
suave Eusebius à adorada Chiarina, é caracterizada, na realidade, pelo mais
apaixonado abandono. É verdade que essa paixão se mantém relativamente
calma, em lugar de se exibir ruidosa e abertamente, dirigindo-se neste caso aos
recantos mais sensíveis e profundos da nossa alma, e incitando-nos à mais
séria meditação.
Exemplo 1
Exemplo 2
Exemplo 3
3. SCHERZO E INTERMEZZO
Exemplo 1
136
que é quase em forma de valsa. Ao executar este trecho, impõe-se ao nosso
espírito a intromissão de Eusebius no meio das evoluções de Florestan.
Exemplo 2
Exemplo 3
Exemplo 4
Exemplo 5
Essa parte intermediária foi também aproveitada para preparar a última parte
deste “Scherzo”, com a repetição do tema já ouvido. Seria um erro considerar a
repetição de algumas frases desta sonata como um sinal de pobreza, sobretudo
numa obra de tamanha importância. Beethoven, cuja autoridade musical não
era mais contestada na época de Schumann, usava freqüentemente da
repetição dos temas, por intermédio da qual ele soube, aliás, levar a arte da
variação ao seu apogeu.
Exemplo 6
4. FINAL
Exemplo 1
137
Assistimos em seguida, como no Carnaval, às amáveis reverências das
elegantes dançarinas.
Exemplo 2
Exemplo 3
Exemplo 4
Exemplo 5
Exemplo 6
Exemplo 7
Exemplo 8
Exemplo 9
Exemplo 10
Esse nostálgico sonho nos conduz a uma frase surda e misteriosa, para voltar
novamente ao ponto de partida.
Exemplo 11
Schumann parece ter um pouco abusado aqui dos seus dons geniais no
desenvolvimento das frases musicais, e na transposição dos temas,
multiplicando as repetições de tal modo que a maioria dos intérpretes desta
138
sonata acham-se obrigados de introduzir um corte importante na execução
deste último tempo. Para os desejosos de estudar esta obra com o objetivo de
tocá-la em público, indicarei aos que vierem me procurar com sua música, nos
bastidores, no fim da aula, o corte mais adequado, o qual permite aliviar essa
execução, sem prejudicar a perfeita unidade, e ao normal encadeamento dos
temas.
Exemplo 12a
Exemplo 12b
Este corte, que é aliás o único permitido, reduz de três a quatro minutos a
duração total dessa execução.
Exemplo 13
Exemplo 14
139
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E
INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1951
Numa carta que ele escreveu em 1839, isto é, no ano em que foi editada a
Fantasia op. 17, que ouviremos hoje, encontramos esta frase significativa em
que Schumann esclarece um dos aspectos marcantes do seu conceito
pianístico.
“Minha música, diz ele, deve patentear os rastros das lutas que estou
enfrentando para conseguir a minha querida Clara.”
140
Sabemos, efetivamente, que Schumann não se conformou com a resposta
negativa do professor Wieck (com quem ele estudava) e a quem ele pedira a
mão da sua filha Clara, nem todas as manobras arquitetadas por esse pai
irredutível, para afastar aquele “pretensioso” compositor, o qual sofreu cinco
anos de vexames e humilhações antes de recorrer à corte real de Leipzig que
finalmente autorizou o seu casamento.
“Essa obra não é outra coisa senão um longo e desesperado grito de amor que
dirijo a você”.
141
ruína momentânea do seu amor; o segundo, a provável correlação com a glória
e a conquista, e confiando à terceira parte o caráter de estático devaneio e de
infinito mistério de uma noite estrelada, toda penetrada de ternura e de amor.
142
CURSO DE ALTA VIRTUOSIDADE E
INTERPRETAÇÃO MUSICAL DE 1944
MAURICE RAVEL
Sonatine
Seu pai, que era engenheiro e grande amador de música, encaminhou para o
estudo de piano e de harmonia o menino que até os seus doze anos não
revelara nenhum dos dotes precoces que foram o apanágio de tantos famosos
compositores. Apesar de ele não ter sido o mais brilhante aluno da sua classe
no Conservatório de Paris, Maurice Ravel soube, aos vinte anos, evidenciar
com suas primeiras obras, uma lúcida e ousada individualidade, a qual devia
atingir maior desenvolvimento ainda sob a esclarecida orientação do seu ilustre
mestre Gabriel Fauré.
Antes de chegar, porém, ao lugar de destaque que ele ocupa, hoje em dia entre
os protagonistas da música moderna, Ravel teve, do mesmo modo que a
maioria dos inovadores em todos os ramos da atividade humana, que enfrentar
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árdua e prolongada luta contra uma crítica injusta, contra a oposição acadêmica
e oficial, e também contra a indiferença do público ainda refratário a uma
música que desobedecia, aparentemente, a todas as regras e tradições.
Os célebres Jeux d’Eau, também escritos nessa primeira época, já nos levam a
uma atmosfera libertada de influências alheias e magistralmente evocada por
uma escritura de original fantasia, e também pela sutil e sensível poesia do
desenho melódico. As quintas e as quartas que flutuam com tanta leveza sobre
os transparentes arpejos da mão direita, as fluidas harmonias que envolvem
sonoridades tão originais na evocação da água, enfim, a frescura de uma
poesia milagrosamente contida numa forma quase clássica, explicam que esse
feérico e deslumbrante “Capricho” seja atualmente a obra pianística mais em
voga de Ravel e a que melhor satisfaz a grande número de virtuoses.
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Debussy, Ravel já atingira um grau de perfeição que ele mesmo conseguiu
dificilmente superar nas suas composições ulteriores.
O título Sonatine leva alguns intérpretes a cometer o erro de encarar essa obra
como se se tratasse de uma sonata fácil. Na verdade, a palavra sonatine
significa apenas que os elementos constitutivos da “sonata” acham-se, neste
caso, condensados numa composição um pouco mais curta e geralmente
reduzida a três tempos. Clementi, Kühlau, Haydn e Mozart escreveram
numerosas sonatinas, podendo também as Sonatas op. 49 e op. 79 de
Beethoven serem incluídas nessa categoria, assim como algumas sonatas da
escola contemporânea, cujos temas e desenvolvimentos vêm freqüentemente
ser reunidos nessa forma musical essencialmente condensada.
Oriunda, como sabemos, da antiga “Suíte” de danças, a “Sonata”, após ter sido
marcada por notável evolução que Beethoven levou ao seu apogeu, volta com
Ravel às antigas tradições dos cravistas franceses, encerrando-se assim, até
um certo ponto, um magnífico ciclo ao qual o repertório pianístico deve algumas
das suas imorredouras obras-primas.
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O efervescente Final, escrito em estilo de “Toccata”, faz reviver, num ritmo
impetuoso e quase veemente, o canto ingênuo do primeiro tempo, cujas
reminiscências se encontram também flutuando em alguns compassos
vagarosos de Minueto. Esse final, resplandecente e cheio de vida, exterioriza
uma profunda alegria interior, que acusa a cintilante descida de acordes em tom
maior, justapostos até chegarem à rutilante tonalidade em fá sustenido maior e
ao rápido crescendo que encerra, como se fosse um verdadeiro relâmpago
sonoro, essa rica e efervescente evocação.
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4
Textos
Incompletos
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Na verdade, esta placa constitui uma homenagem à cultura da juventude
paulista, que estabeleceu neste Teatro um recorde mundial que não me parece
ter sido suficientemente divulgado. Efetivamente, nenhum Curso Público de
Interpretação Musical, seja no Conservatório ou na Escola Normal de Paris, ou
nas outras capitais da Europa ou dos Estados Unidos, tem conseguido reunir
um número de alunos e ouvintes tão imponente quanto em São Paulo, onde as
inscrições chegaram a mais de 2700, no último ano da realização do nosso
Curso, o que representa cinco ou seis vezes mais do que o maior número de
ouvintes alcançado em Cursos similares em outras partes do mundo.
Este troféu cabe pois, em toda eqüidade, aos estudantes de música e ao culto
público desta capital, que espero rever em breve, dentro de poucos meses, na
volta da tournée artística que vou empreender na Europa e nos Estados Unidos,
e com quem espero aperfeiçoar a obra de divulgação musical à qual me
dediquei e continuarei me dedicando, mais certa agora do que nunca, que o
nosso povo, a nossa juventude, justificam e sabem corresponder a esse
esforço.
Fico-lhes sinceramente grata por esta tão carinhosa homenagem e pelas lindas
palavras que Paulo Batista Pereira proferiu em nosso nome, e encerrarei essas
palavras dizendo-vos apenas: Até muito breve!, e assegurando-vos que durante
a minha curta ausência da minha terra guardarei fielmente em meu coração
mais essa recordação da vossa amizade e do vosso apreço!
Temos hoje entre nós um ouvinte particularmente distinto que aqui saúdo com
grande prazer: o jovem e já eminente pianista francês, Charles Lillamand – por
muito tempo perdurará na nossa memória entre outras, a sua magistral
execução do Concerto de Ravel para a mão esquerda.
Aproveito, pois, o ensejo da sua presença aqui, para assinalar-vos que Charles
Lillamand teve o generoso pensamento de se oferecer para realizar um recital
em benefício de obras brasileiras e francesas de assistência à criança.
Concerto esse que terá lugar no próximo sábado, 21 de agosto, às 21 horas, no
Teatro Municipal.
Não duvido um instante que diante do valor do recitalista e a nobre causa que
essa iniciativa beneficiará, todos vós tenhais a peito (?) não somente de
comparecer pessoalmente a esse concerto como também de contribuir à maior
propaganda possível a fim de que o Municipal se encontre repleto para essa
noitada onde se conjugarão uma arte elevada e a caridade humana.
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Meus caros amigos,
“Pode Vossa Excelência me explicar porque o nosso jovem orador parecia tão
instável sobre as suas pernas, durante a linda homenagem que me foi
prestada?”
“Mas como?, respondeu o príncipe com evidente surpresa! Será que a senhora
ainda não conhece a tradição do nosso país?”
“Pois fique sabendo, minha cara senhora, que numa reunião pública seja que
se trate de um ágape, ou de qualquer outra festividade, cada vez que uma
pessoa toma a palavra, ela o deve fazer, ficando sobre um só pé,
permanecendo nessa posição, até o fim da sua palestra. Essa regra, disse o
Emir, constitui um meio realmente infalível, para termos a certeza de um
discurso não ser comprido demais!”
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Agradeço de todo o coração essa inesquecível homenagem e todos os que
colaboraram na sua tão feliz realização, contando que me seja dada em breve a
alegria de recebê-los todos na minha casa de Campos do Jordão, onde a
esplêndida toalha de mesa que vocês me ofereceram está a espera de outro
ágape, para o qual lhes reservo outro “show”: o espetáculo da natureza, num
lugar privilegiado e quase supraterrestre, onde poderemos também, como hoje,
conhecer momentos de verdadeira felicidade e mútua compreensão.
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Anedotas
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ANTON RUBINSTEIN
Estava de saída, há alguns dias, do hotel onde estou morando para vir aqui, no
Auditório, quando uma senhora se aproximou de mim. Ela se apresentou, me
confiou que ela também morava no mesmo hotel, que ela me ouvia todos os
dias, de manhã e de tarde, estudando durante horas seguidas, e acabou
perguntando:
“Uma coisa eu não compreendo, dona Magdalena! Como é que uma pessoa tão
inteligente, uma virtuose tão ilustre, que tem tocado, como a senhora, no mundo
inteiro, ainda precisa estudar o piano?”
– A senhora compreenderia logo, dizia ele: Quando fico um dia sem estudar eu
bem percebo! Quando fico dois dias, o público não deixa de reparar! Se eu ficar
três dias sem estudar acho que até a senhora acabaria percebendo!”
“Então, mestre, perguntou ela depois da audição tão esperada, o que é que o
senhor me aconselha fazer?”
VON BÜLOW
“Corra dizer à sua mãe de não perder esta ótima oportunidade de deixar o
Wagner e de se casar depressa com Brahms!!”
Talvez não conheceis a curiosa definição que o mesmo Hans von Bülow dava à
“Fuga Instrumental”. Ele chamava a Fuga assim: Peça de música no decorrer
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da qual os executantes saem uns depois dos outros, enquanto que os ouvintes
saem todos de uma vez!”
MASSENET
Massenet era perseguido por certa marquesa cujo salão musical, em Paris,
tinha grande renome. No entanto, Massenet, com a sua diplomacia habitual
sempre conseguira se livrar dos múltiplos convites dessa grande dama – até
que, um dia ele não pôde deixar de responder a essa senhora, que ao
encontrá-lo lhe disse: “Caro maestro! A sua data, para vir na minha casa será a
minha! Escolha! Que lhe pareceria combinarmos uma festinha para a terceira
quinta-feira do mês que vem?”
“Tem talento, é certo, mas procura demais agradar ao público, enfim, não
gosto!”
“O senhor não sabe, que quando perguntei a Reyer o que ele pensava do seu
talento ele foi muito menos elogioso que o senhor!”
GOUNOD
Napoléon III que era muito distraído perguntava com freqüência às pessoas
que, no entanto, ele muito conhecia: “Como é que você se chama?
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A quinta, ou sexta vez, que o Imperador fez esta pergunta ao já célebre
compositor Gounod, este lhe respondeu tranqüilamente: “Continuo me
chamando Gounod, majestade!”
BRAHMS
Ao que Brahms lhe respondeu: “Ah! meu velho! Que sorte você tem”.
ROSSINI
Depois de ter ouvido essa peça, Rossini bancando o homem distraído disse ao
rapaz: “Que quer que eu lhe diga, meu caro amigo, a respeito dessa
composição! Eu penso, simplesmente que teria sido preferível que o tio tivesse
escrito a “Marcha” e que o sobrinho tivesse falecido!!
BACH
Uma das mais divertidas que ouvi, há alguns anos no sul da França, e que
podeis aliás adaptar a qualquer outro compositor ou homem ilustre, é a
seguinte.
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Tive, aliás, a honra de ser apresentado a esse famoso compositor e ele foi tão
gentil comigo que veio até em acompanhar à estação onde devia embarcar pelo
trem das 7:45 h.
Não me conte histórias respondeu outro amigo, não posso crer que seja
verdade.
– Simplesmente, meu caro, porque o trem das 7:45 h foi cancelado há mais de
duas semanas!
O QUARTETO CAPET
(São Paulo, 12 de junho 1942)
O mais engraçado é que, como tantas outras anedotas, essa história fez a volta
da Europa, e chegou um dia aos ouvidos da tal embaixatriz, a qual com ar de
superioridade disse ingenuamente: “Imaginem, meus caros amigos, o que
contam por aí, que eu andei dizendo ao Quarteto Capet, como eu não soubesse
que um quarteto é composto por seis músicos!!!”
SAINT-SAËNS
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Duas cantoras da alta roda ensaiavam com o ilustre compositor Saint-Saëns,
um dueto escrito por ele, que deveriam cantar numa festa de caridade. As
vozes eram bastante lindas, porém, reinava demasiada “independência”, no
compasso das parceiras, até que Saint-Saëns, um pouco irritado, perguntou:
“As senhoras podem me dizer, por favor, qual das duas é que devo seguir?”
Outra vez, uma jovem senhorita, muito tímida fazia a sua estréia numa reunião
mundana, cantando uma melodia de Saint-Saëns, e por cúmulo de
imprudência, acompanhada pelo próprio compositor.
Mal inicia a Lurdinha a sua aula de piano, a professora tem de interromper para
atender a um chamado telefônico.
– Ora, ela já tem três meses de estudo e “faço gosto” que toque alguma coisa,
nem que seja popular ...
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– Olhe, eu dei à menina algumas explicações, segundo o método pelo qual
estudei; a senhora não acha que assim, com a sua orientação e com a minha,
vai muito melhor e mais depressa?
E durante a aula, verifica-se a completa desorientação da aluna, que não sabe
como haver-se ante solicitações contrárias.
A formação musical vai a par, por determinação deles, com vários outros
estudos, pois a Xandoca deve ter aulas de sanfona (perdão, harmônica), dança,
trabalhos, sapateado, violão, sem falar da escolaridade do curso primário ou
secundário, ao qual a criança não pode fugir, nem das “obrigações sociais”,
também indispensáveis, pois a criança de hoje tem sua roda de amigos,
recebe-os e é por eles recebida (ocasião em que os pais não devem estar
presente), regalando-se então com sorvetes e coca-cola ...
Em outros casos, a mamãe parece que tão-somente suporta que a filha estude.
Diz ela: “Estudar, para quê? Eu também estudei, e afinal acabei deixando tudo
com o casamento”.
Por isso, repetimos, a educação da criança começa pela educação dos pais.
Escolhido o professor no qual depositam confiança, sejam coerentes, e
continuem ... confiando. Mas não interfiram, não queiram “ajudar”, porque o
resultado será exatamente oposto àquele que pretendem.
O Estado de S. Paulo
Quinta-Feira, 7 de abril de 1955, p. 6
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