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CANTOS DE PASSARINHOS[1]

A Maria Rosita Salgado Góes e Gabrielle Dumaine,


in memoriam

1. INTRODUÇÃO
A Escola de Música da Universidade Federal da Bahia está completando
cinqüenta anos sem ainda ter posto em papel a sua filosofia. É preciso indagar o que ela tem
representado e
o que ainda não representa. Documentos e registros, principalmente os sonoros, que deveria
m ter sido preservados, muitas vezes não o foram, o que dá um tom de urgência e
de dificuldade ao esquadrinhamento.
1.1 À guisa de prelúdio: alguns dados do contexto
Os estudos sobre a Escola, certamente não podem se limitar a
uma visão interna, nem muito menos estática,
de estruturas, currículos, docentes, discentes, pessoal técnico e administrativo, grupos, equipa
mentos, instrumentos e instalações.
O movimento que finalmente alcançou música na Bahia, em 1954, pelas mãos de Hans
Joachim Koellreutter (Freiburg im Breisgau, Alemanha, 1915),
necessita ser inserido entre as tendências à modernização da sociedade e
da cultura brasileiras, particularmente baianas, que já vinham se processando
diferencialmente desde muito antes, em outros setores; talvez desde meados do século XIX,
no que tange à melhoria das condições urbanas e de saúde; desde 1922,
nas artes (efeitos escalonados e variados da Semana de Arte Moderna em São Paulo).
Os dados demográficos que colhemos entre os censos do IBGE de 1950 e de
2000 são estonteantes. O país, como um todo, passou de uma população de
51.941.767 habitantes, em 1950, para uma de 169.590.693[2], em 2000, praticamente
triplicando-a. O Município de Salvador, ao qual a Escola mais diretamente serviu, foi de
uma população de 417.235 habitantes, em 1950, inferior à atual do Município de Feira de
Santana (480.949 habitantes, em 2000), a uma congregação de
2.443.107 indivíduos, ainda mais mulheres do que homens, em 2000, quintuplicando-a em ape
nas cinqüenta anos. Grande parte desse acréscimo não se deve apenas a modificações
vegetativas das taxas de natalidade e de mortalidade, mas ao êxodo rural e
à atração dos pólos industriais que se iam implantando. Cidades como Salvador incharam e se
viram cercadas por cinturões de pobreza absoluta, ao seu derredor, e
de invasões entre seus antigos bairros.
É necessário que se estudem as audiências, que certamente mudaram
a olhos vistos, bem como os locais em que se
faz música, hoje em toda parte e em quantidade excessiva. Que se
procure saber como satisfazíamos ou não aos anseios de música das
diversas classes e etnias de nossa sociedade. Que se
avalie também o impacto revolucionário e cada vez mais acelerado das comunicações,
na própria concepção do lazer e do entretenimento,
o que facilmente escapa a músicos como eu.
Tão exaltado foi o sacerdócio da música e dos músicos aqui, nos anos de
1950, que nos impedia de vê-la como mercadoria e a nós próprios como obreiros. Havia uma
“missão” para o músico. Tocar em casamentos, nas boates que iam surgindo, em hotéis
e restaurantes não era bem visto pelos colegas. Certamente, para muitos, particularmente as
mulheres, música (piano, flauta, canto) ainda era cultivada como prenda doméstica. Não assim
para os homens, entretanto,
e cada vez menos também para as mulheres. Violão fora instrumento de boêmios e
seresteiros; estudá-lo, nem pensar, seria uma bravata. Mas Guilherme de Melo (1867-
1932), primeiro historiador de música no Brasil, já ensinara violão a
Heddy Cajueiro, jovem pioneira e moça da sociedade. Pode-se imaginar o que Heddy
terá sentido de surpresa e gratificação ao ver-se convidada a participar dos Seminários que se
iniciavam em 1954.
Em termos gerais, a escolha de instrumentos era,
e ainda é, matéria para um estudo sociológico e antropológico que ainda não se fez.
As geladeiras e eletrodomésticos, mais ainda os Volkswagen
da indústria automobilística que se iniciava na Era Juscelino,
tomavam precedência crescente sobre os pianos nos orçamentos e uso dos espaços.
Os pianos haviam aparecido na Bahia por volta de 1810 e alcançaram
o Recôncavo em canoa, assim como galgaram
as serras para chegarem em lombo de burro às cidades mineiras, vindos de outros portos.
O pianismo, em nível muito alto de qualidade e quantidade (pianolatria para Mário de
Andrade), chegou a suscitar iniciativas de desencorajamento, posteriores e malfadadas,
num propósito de diferenciação que forjasse instrumentistas de orquestra, particularmente de
cordas. Os metais eram produtos de bandas de corporações militares e
de orfanatos, como o São Joaquim.
Em meados de 1950 já se começava
a não ter espaço para os pianos nos apartamentos que iam surgindo, e
havia enorme dificuldade para içá-los, já que os elevadores e
as escadas não permitiam sua passagem. Deixara, por outro lado,
de ser peça de salão e mobília, para ser instrumento de trabalho.
Vi televisão pela primeira vez em 1952, no Rio de Janeiro,
o Repórter Esso. Ir a concertos, em Salvador, não era então uma operação limitada por proble
mas de segurança, transporte e competição com as novelas.
Os que tinham carro (relativamente poucos) saiam dos concertos e levavam namoradas
e colegas para serem servidos de milk-shake e bolinhos,
apreciando tranqüilamente a vista da Cidade Baixa, na tradicional Cubana que encimava
o Elevador Lacerda, na Praça Municipal.
Para não deixar de complementar os dados demográficos com alguns números recentes (1998)
sobre a vida musical de Salvador, é interessante se ter uma idéia dos que aqui se
consideram músicos, com veleidades profissionais[3]. O Guia Cultural da Bahia (Cf. BAHIA,
1998) arrola as seguintes categorias relacionadas à música: "Cantores" (cerca de 630),
"Músicos" (em torno de 1098), "Banda de Música / Filarmônica" (30),
"Conjunto Musical / Grupo Musical" (cerca de 80, grupos estes que chegam
a ter 27 componentes, freqüentemente não menos de 10 a 15 integrantes, cobrindo
uma variedade de gêneros e de destinos), "Coral" (78, no total,
distribuídos entre instituições de ensino, 18; empresas, 15; instituições religiosas, 14; oficiais, 1
3; independentes, 9; fundações, 5; hospitais, 3; e sindicatos, 1), "Grupo Carnavalesco" (120),
"Grupo de Capoeira" (95), "Grupo Folclórico" (34), "Orquestra" (11, duas
delas orquestras sinfônicas).
Na listagem de professores particulares de música constam 58 nomes, apenas. Mas isso não é
cifra muito superior à que se pode inferir do Almanach civil, político, e commercial
da Cidade da Bahia para o anno de
1845 (Cf. ALMANAQUE, 1988): em torno de 39, pelo menos.
Constam, com alguma duplicação: “Professores de Pianno”, 7 (dois italianos e Damião Barbosa
de Araújo[4] entre eles); “Affinadores”, 2; “Bandas de Musica de Barbeiros”, 3;
“Muzicos, Professores e
Compozitores”, 33 (Damião novamente citado, entre vários outros de reputação firmada, inclu
sive Domingos da Rocha Mussurunga[5] - não Moçurunga, como aparece
na Enciclopédia da Música Brasileira.).
Voltando aos dados recentes do Guia Cultural: no que concerne a "Instituições Promotoras
de Cursos e Oficinas Culturais" (79 ao todo), muitas delas são meras promotoras
de eventos, não efetivamente instituições de ensino.
Num leque eclético de opções (teatro, dança, bio-
dança, folclore, fotografia, culinária afro, artes plásticas, entre outras), algumas
incluem música (33). A isso se contrapõem
as universidades (2) que oferecem cursos regulares de graduação em música, com uma popula
ção estudantil já razoável em relação ao que foi
no passado, mas ainda assim pequena diante da demanda de outros cursos das
diversas áreas universitárias.
Numa avaliação sem dúvida subjetiva,
há nomes demais face ao ensino formal muito limitado, principalmente no que diz respeito à si
tuação da educação musical
na escola comum[6]. Verdade é que há situações de ensino informal a serem
consideradas, além de não haver uma correlação estreita entre talento e alfabetização
musical. Mas o mínimo que se pode sugerir como hipótese é que existe
uma defasagem entre a demanda por um ensino adequado (não se oferece o que se
pretende), seu acesso (não se chega lá) e as aspirações musicais
do povo de Salvador (quais serão?). A excepcional quantidade dos que se
consideram profissionais, ou que até mesmo talvez o sejam, conduz a
essa conclusão. Surpreendente também é o quinhão elevado do PIB
do estado consumido em atividades culturais,
a maioria das quais produto de profissionais desescolarizados.
1.2 Projetos
Há correntemente na Escola de Música um projeto de tese de doutorado centrado
na elaboração de sua história - uma história - a cargo da Profª Conceição
Perrone, docente e doutoranda. Co-orientada pelo Prof. Antônio Guerreiro,
do Departamento de História da FFCH, meu papel nesse projeto será mais de informante
do que de orientador, pelos mesmos problemas de distanciamento que terei aqui. Já se
pode agradecer a Conceição o que pôde salvar dos arquivos da Escola, condenados
irresponsavelmente à destruição num porão do Memorial dos Compositores.
Há também um soberbo trabalho de compilação minuciosa de documentos,
predominantemente de natureza hemerográfica, fruto da dedicação do Prof. Piero Bastianelli
e de seus talentos, inclusive de desenhista. Além de excelente músico,
foi desenhista do escritório de arquitetura de Diógenes
Rebouças. Certamente dará ampla cobertura ao aspecto da extensão da Escola, mas incluirá m
ais do que isto.[7] Sempre abusamos dele na elaboração de cartazes e capas de publicações
e outros materiais gráficos. Piero compila, classifica, organiza, segundo uma ótica própria,
creio que deixando que o material reunido
fale por si. Lamento não ter ainda uma cópia em mãos, que muito me ajudaria
a tirar as dúvidas.
Venho propondo que neste ano do cinqüentenário da Escola, se faça
uma série de gravações de depoimentos, vinhetas até que sejam, não apenas dos veteranos qu
e ainda sobrevivem, cada vez em menor número, mas também dos mais novos, inclusive de lei
gos e do público que a Escola atingiu. Esse artigo seria uma hipertrofia disso.
Em caráter de emergência, é fundamental que se
tente salvar o que resta do acervo de fitas gravadas em rolo ou cassete, que constitui
o verdadeiro registro sonoro e musical do que a Escola e, através dela, do que a vida musical
de Salvador em parte têm sido. Temos de produzir uma série histórica de gravações em CD,
focada nos compositores e nos intérpretes, mesmo que as condições técnicas de estúdio desej
áveis sejam inalcançáveis.
Seria proveitoso que os atuais estudantes tivessem noção do que os padrões de execução fora
m nas primeiras duas fases da Escola e se reencontrassem neles.
1.3 Dissonâncias e Consonâncias

Na celeuma atual causada pela necessária busca de uma democracia racial e social, no
Brasil, também no âmbito da Universidade,
o quesito mais difícil reside em conseguir conjugar mérito com democracia. Isso é sobretudo ta
refa da educação, mais ainda da educação pública de que somos parte, e só através dela
parece possível. Alguém recentemente acusou
a Escola de Música de ser “meritocrática, elitista, preconceituosa”, além da insinuação de racis
mo.
Sei pouco sobre as relações da Escola com as estruturas de poder. Seria colocá-la
num vácuo funcional, entretanto, se não existissem
(mencionaremos adiante funções e usos de música). Não pode deixar de ser meritocrática,
o que é
uma coisa, salvo definição em contrário que nos fizesse entender meritocracia como opção pel
o pior. Não deve ser elitista,
concordo, mas em relações sociais de conflito entre arte e sociedade tal ocorre.
A assimetria torna-se angustiante e crítica quando a sujeição do estético é o esmagamento
a que é
submetido pela ditadura do poder, pela dominância do interesse econômico e, em alguns caso
s, até mesmo pela distorção do educativo. Preconceituosa, possivelmente é, o que não é?
Uma insinuação de que fosse racista, entretanto, é absurda e não resiste
à mínima análise. Parte de nosso crescimento como músicos tem
sido, aliás, um aprendizado de como discutir ouvindo os outros, respeitando-
os, mesmo que não concordemos.
2. EXPOSIÇÃO

O processo de compor sonatas, a partir do Rococó, tornou-


se um passo na dramatização da música ocidental artística, opondo temas, de
uma forma ou de outra, mas dentro de um mesmo movimento. É possível que ajude
a organizar o meu discurso com o
do próximo e, quem sabe, deixar aqui elementos que possam ser úteis para a elaboração de
uma filosofia para a Escola e um código de ética que possa
se tornar uma disciplina essencial para os cursos de música. Isso é pretensioso e
deve entrar no tema das desculpas. A tentativa é de extrair das memórias contrapostas
(Exposição) e discutidas
(Desenvolvimento) alguns dos problemas mais sérios do período em apreço (1954-2004), nada
amenos, para repensá-los (Recapitulação) segundo bases cientificas e artísticas,
na medida do possível.

2.1 Um primeiro grupo de temas: em torno do eu


Minha vida não é tema. Logo a
descarto. Mas tem estado intimamente ligada à Escola de Música, tendo
sido seu primeiro aluno matriculado. Não há risco algum, entretanto,
de que confunda memória com autobiografia.
O que de fato pretendo aqui é refletir sobre problemas de música e, ao mesmo tempo,
se possível, lembrar alguns esquecidos dos primeiros anos da instituição.

2.1.1 E eu com isto?


Cláudio Veiga fala de “memória involuntária”. Nas páginas finais de Um estudante em Paris,
1950-1952, obra admirável em que equilibra evocação, a sensibilidade, a informação,
a lhaneza e uma infalível discrição, revela que não se valera
dos milagres dessa memória, como o fizeram Chateaubriand e
Proust, para a ressurreição do passado. A experiência do tempo em Proust, Cláudio
explica, lhe fora provocada por uma sensação gustativa; em Chateaubriand, por uma sensação
auditiva, o canto de um passarinho.
Sejam então “cantos de passarinhos” o meu assunto.
Passarinhos, se somos (sem queixa), na estima da sociedade brasileira,
recordo um deles: ave pequenina, heróica, incrivelmente tenaz, que o Prof. Fernando
da Rocha Peres viu comigo, esvoaçando e a defender seu ninho dos ataques de
uma cobra que se acercava. Não sei o desfecho. Isso ocorria
na mata, em algum lugar da Praia do Forte onde Fernando, representando
o Patrimônio Histórico e Artístico, em Salvador, e eu,
o antigo Conselho de Cultura, em tempos de prestígio, também tentávamos defender o venera
ndo Castelo da Torre e suas cercanias de um ataque de serpentes ainda mais letais:
o poder econômico predatório e cego. Era 1976.
Graças a esforços do Patrimônio e do Conselho se
conseguiu afastar a Linha Verde para uma distância bem maior dos que os
duzentos ou trezentos metros pretendidos no projeto original. Não se
pode dizer ainda qual será
o desfecho para a Praia do Forte e para o Castelo da Torre, vez que as pressões para um restau
ro impossível ainda continuam e as tentações de uma
Disneylândia Tupiniquim são irresistíveis.
Se um monumento de pedra e cal sobre um chão coberto de história pode estar assim tão vuln
erável, imagine-se o que ocorre com o patrimônio imaterial.

2.1.2 Desculpas e mais desculpas


Nem sempre conseguirei controlar a memória involuntária, uma coisa puxando
a outra. Escrever na primeira pessoa já é indício de subjetividade. A terceira é
alguma garantia de
neutralidade, própria para escritos acadêmicos. Por mais que tente, não consigo me livrar dos
adjetivos e dos advérbios. Como devoto da incerteza,
estou mais para dissertações do que para teses.
A única certeza que consegui em meus longos anos de estudo é a
de nada saber, particularmente a respeito de música e dos que a praticam, de
uma forma ou de outra. Escrever sobre isso seria um paradoxo, não o
fosse sob o ponto de vista da dúvida.
A prolixidade também merece reparo, mas é vício de musicólogo.Temos horror ao vazio e
queremos inserir um máximo de informações num mínimo de espaço, o que é um problema.
Profª Ana Cristina Tourinho, colega e amiga,
diz malvadamente a estudantes que não me perguntem a hora, pois direi como fazer o relógio.
Tem razão.
Além do que diz Cristina, ainda terei de justificar a procrastinação. Vêm logo à cabeça Sir
Donald Tovey, mestre da análise musical no século passado e o poeta Godofredo Filho.
O primeiro ganhou minha imediata estima quando confessou sentir sempre uma vontade irrep
rimível de consertar sua bicicleta, ao ter algo difícil a fazer. Tenho
“consertado bicicletas” por toda minha vida e acho que isso resulta de um perfeicionismo
inculcado pela formação de virtuose. O último, Godofredo, receio ter incentivado isso: “Não se
apresse em dar seus pareceres...!” Mas ao contrário desse meu mestre no Conselho de Cultura
, como o foram Diógenes Rebouças e Américo
Simas, seus pareceres demoravam, mas vinham perfeitos, prontos para serem
publicados. Jamais conseguirei sequer algo parecido,
ao tentar escrever sobre a Escola de Música, mesmo com os
cinqüenta anos de preparo. Não espere de mim, portanto, um leitor desavisado,
a capacidade de organizar o tempo decantado, nem a coerência e estruturação
devidas. São muitas
as memórias, muitos os anos, pouco o distanciamento, pouco o tempo disponível e,
no fim das contas, mesmo que tenha chegado à Academia Brasileira de Música,
a instituição que Villa-Lobos fundou, nunca tive
a audácia de me propor à Academia de Letras da Bahia, por mais que tivesse gostado.

2.1.3 Intróito “Sabe quem eu sou”

Simplesmente tentarei limitar o “sabe quem eu sou” ao mínimo para a


qualificação como informante. Recuo a 1952, logo se verá por que,
e ainda acrescento: exceto pelos treze anos de formação na Juilliard (1957-1966) e na UCLA
(1976-1981), nos Estados Unidos, nunca tive patrão que não fosse a Universidade Federal da
Bahia, na qual ainda continuo trabalhando voluntariamente há dez anos, por amor.
Mas certamente nada tive com a criação dos Seminários Internacionais, em 1954, embora já fo
sse aluno de Koellreutter, no Rio de Janeiro, havia dois anos. Tampouco fui
proponente direto do Seminários Livres de Música que principiou a
se institucionalizar logo em seguida, embora isto já me interessasse sobremodo e muito tivess
e lutado por ele.
Essa questão imediata do início é
disputada. Entre alguns estudantes que foram expulsos do venerando Instituto de Música, por
uma disputa que desconheço com a Direção, estavam Georgina Pinheiro de Lemos e Valdete
Cristina Fonseca, das quais teria partido a iniciativa de procurarem
o Magnífico Reitor Edgar Santos, o que fizeram. O recuo a 1952 não é
uma negativa disso, mas antes uma complementação, como se verá.
Não poder de todo dissociar a Escola de Música da minha vida não me dá
a ilusão de que essa vida seja de interesse para ninguém. Posso projetá-la
numa única folha de papel, engenheiro e artilheiro que fui, fundamentalmente músico (pianist
ae etnomusicólogo), numa literal parábola balística em que me vejo arremessado
no tempo, desde 1931, e onde assinalo os meus anos de servidão,
uma trajetória entre outras[8].
Talvez também importe receber crédito, a partir de
1966, particularmente no período tenebroso de 1968-
1969, como um dos pilotos do Seminários de Música, posteriormente Escola de Música e Artes
Cênicas, criada por efeito da Reforma Universitária do governo militar, da qual fui coordenador
e posteriormente diretor, até 1975. Pelo menos avanço a história.
A EMAC foi a fusão, à revelia de todos nós, de três escolas até então independentes:
o Seminários de Música (o “Livres” já havia sido retirado), a Escola de Dança e
a Escola de Teatro, as duas últimas também criadas por Koellreutter,
a intervalos de um ou dois anos uma da outra, sob a direção de Yanka Rudzka e de Martim
Gonçalves, respectivamente. A junção, nessa altura, foi a última alternativa que nos restou
à unificação, num Instituto de Artes único, de quatro unidades de ensino das artes da UFBA, de
perfis e histórias muito distintos, incluindo a centenária Escola de Belas Artes.
O curso de Arquitetura havia sido criado por volta de 1949, eventualmente mantendo
uma posição sui-generis, com um pé nas artes (Área V)
e outro nas engenharias (Área I). Com isso sofreu menos. As letras,
englobando estudos literários e lingüísticos (Área IV) foram
contempladas com um Instituto todo seu.
A combinação com Belas Artes não deu certo em experiências anteriores na Bahia
(com o antigo Instituto de Música)
e em Pernambuco. Para nós, com o respeito que a antiga unidade merecia,
temíamos ainda assim que funcionasse como uma pata de elefante que nos esmagasse. Note-
se que enquanto as escolas de arte eram fundidas, onde o poder político se concentrava,
na Universidade, as unidades se multiplicaram a ponto de
se ter departamentos com apenas duas disciplinas.
Os institutos básicos com os quais tentávamos nos aliar (eles face às unidades de ensino profis
sional), logo nos deixariam
de lado, particularmente na luta pelos regimes de trabalho de tempo integral que eram essenc
iais para a sobrevivência da Escola de Música e Artes Cênicas.
Lucrávamos também: finalmente tínhamos
uma representação nossa no Conselho Universitário e
no Conselho de Coordenação[9], embora um backlash incômodo e perigoso também nos ameaç
asse, fruto do período de fartura e do ressentimento que isso causara em outras unidades.

2.2 Um segundo grupo de temas: os outros, enfim

Mares verdadeiramente sombrios, da Revolução de


1964, nos cercariam então de delações infames e
de censura grotesca principalmente em torno de 1968 e 1969, já disse. Junto com Ernst
Widmer e Piero Bastianelli, tentávamos os três planejar, ao fim da tarde,
o que poderia ser o dia seguinte. Não raro, viaturas militares eram
o prenúncio da entrada de oficiais e praças que saiam
a abrir pianos e armários, em busca de material subversivo que nunca tivemos. Perdemos
(?) um de nossos alunos; um outro, de Teatro, foi
fichado em minha presença e sob meus protestos, num local da Censura. Mais tarde, o SNI
teria um posto montado num dos hospitais da Universidade. Se
a censura já estava algo abrandada (programas de música de câmara já não tinham
de ser liberados), a supervisão aumentara. Os papéis que por ali passavam
chegavam em cópia Termofax à mesa de
coordenadores ou diretores, com carimbo de sigilo. Não era possível trazer a delação à luz do
dia. A cópia Termofax protegia o delator porquanto o azul da assinatura no original, nela
desaparecia. Memórias de Smetak e de Nelson Araújo,
perseguidos sem razão... Denúncias, inquéritos...Silêncio sobre os infames... Lembrança de gen
te nobre... Tempos que não devem voltar.

2.2.1 1952: catalisadores, agentes, patronos e a geléia real

Magdalena Tagliaferro (1894-1986), pianista de grande brilho e de contagiante personalidade,


realizou aulas públicas na Secretaria de Educação, em novembro de 1951, onde hoje está
o Museu de Arte da Bahia, no Corredor da Vitória. O mandato de Dr.
Otávio Mangabeira (1886-1960) no governo da Bahia (1947-
1951) já terminara. Político honrado, honesto, coerente e correto, passara a residir no Hotel da
Bahia, onde era constantemente visitado por correligionários e admiradores. Junto a ele,
formando outro círculo, de senhoras, D. Esther Mangabeira, figura austera e de gosto apurado,
encorajava jovens pianistas a tocarem para ela, no salão superior do Hotel. A Bahia inteira se
sentia civilizada e honrada pelo exemplo de seus dirigentes, até mesmo quando o suicídio de
Vargas nos surpreendeu, em 1954,
provocando breve agitação na Cidade e ameaças para o Hotel da Bahia.
Havia homens do povo ao mesmo tempo comunistas e exaltados getulistas.
A obra do Secretário de Educação do Governo Mangabeira, Anísio Teixeira (1900-
1971), um grande baiano de Caitité, ainda perdurava. Em 1952 tornara-
se diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), então no Rio de Janeiro.
Trouxera para Salvador um músico americano, pianista, Marshall
[10]
Levins e com este, segundo creio,
a compra do primeiro piano de cauda inteira de concerto que o poder público na Bahia teria
realizado, um Baldwin, talvez antes mesmo que a Sociedade de Cultura Artística da Bahia
[SCAB] tivesse adquirido o dela, algo que não afirmo com certeza.
A SCAB é outra instituição que precisa ser estudada. Alexandrina Ramalho, sua criadora,
cantora lírica, chegou a contar com quatro mil associados, tendo
de realizar dois concertos por artista visitante, no período em que os recitais ocorriam
no salão do Instituto Normal, no Barbalho. Lembro
de um piano de meia cauda (?) que lá havia, de
uma fábrica Brasil desde há muito desaparecida. A SCAB
entraria em declínio à proporção que a Universidade passasse
a oferecer recitais e concertos também de alto nível, sem ônus, e em local mais accessível,
o Salão Nobre da Reitoria.
D. Alexandrina passaria então a realizar seus saraus também na Reitoria, permitindo-
nos abrir as portas para quem lá quisesse comparecer.
Efeitos negativos não são só os que relaciono com a SCAB: ao
importarmos até mesmo técnicos de afinação e reparo de pianos,
contribuíamos para tirar do mercado um grupo de técnicos, geralmente pessoas de cor parda
ou preta, altamente confiáveis e educadas (Sr. Mário Marques, Sr. Ribas, entre outros) e
de razoável formação artesanal. Até alguns pianos fabricaram em suas oficinas. Eventualmente
, cessadas as vacas gordas, nos encontraríamos sem uns e sem os outros.
Mas retornando ao fio: tendo sido selecionado e participado das aulas de alta interpretação de
Magdalena, com alguns outros pianistas baianos (Maria Manso, Lia Hasselmann, entre eles),
viria uma bolsa solicitada por ela a Anísio
Teixeira, pelo INEP, para que fosse estudar no Rio de Janeiro. Ali me esperava uma decepção:
ao chegar, Magdalena viajara, como sempre fazia, e fui confiado
a um assistente, jovem paraense que me dava aulas na Casa do Estudante do
Brasil, onde ele vivia. Em vão tentou ensinar-me as “bolinhas de borracha”, os “martelinhos”,
os “arrancos de cotovelo” que eram parte da “técnica”, mas isto é outra história. Passaria
a ir a São Paulo, mensalmente, para tomar aulas com Joseph
Kliass, discípulo de um discípulo de Liszt, outro que a ENCICLOPËDIA esqueceu.
Ativamente presente nas aulas públicas, talvez as organizando, Maria Rosita Salgado Góes
(1920-1999) nos estimulava todo o tempo. A próxima memória que tenho, ainda em 1952, foi
de uma viagem aérea em que Rosita seguia conosco para o Rio de Janeiro, ela e
uma razoável leva de pianistas. Não sei como teríamos ouvido falar dos Cursos Internacionais d
e Férias de Teresópolis, patrocinados pela Pró-Arte, presidida por D. Maria Amélia de Rezende
Martins, e pela Casa e Jardim, de Theodor Heuberg. Se não tivesse sido
Rosita, não sei quem poderia ter sido. Íamos, portanto, ao primeiro encontro com H. J.
Koellreutter e daí, um novo mundo.
Vários dos pianistas da Bahia eram alunos de Conceição Bittencourt,
do Instituto de Música, dileta e talentosa ex-aluna de Sílvio Deolindo Fróes.
Susana Bandeira de Melo e de Ivone Lemos, ambas já falecidas, eram suas alunas.
Edson Bandeira de Melo, de quem já era amigo fraterno e também colega de caserna e
de namoros, já nos havia precedido de vários meses,
no Rio de Janeiro. Fora estudar com Tomás Terán, professor de Arnaldo Estrela e
de outros grandes pianistas brasileiros. Edson seguiria
dali para Paris, onde estudaria com Doyen, estando hoje radicado em Recife.
Sempre tive grande admiração por Conceição
Bittencourt, que inclusive me ouvia vez por outra tocando
a dois pianos com Edson, também seu aluno, mas devo tudo o que me tornei aos desvelos de
Sylvia de Souza, a segunda mãe que tive. Uma dissidência entre Zulmira Silvany, sua mestra, e
Fróes, afastou D. Sylvia do Instituto, por tê-la acompanhado. Foi também professora de Carlos
Veiga, Carlinhos, que desde criança demonstrava grande talento e por quem D. Sylvia
nutria franco entusiasmo. Tornar-se-ia excelente regente, trompetista e
percussionista, nome conhecido nacionalmente, mas rebelde por natureza, o que o
levou talvez a afastar-se dos Seminários.
Os Cursos Internacionais de Férias de Teresópolis me virariam completamente a cabeça,
entrando num período de aprendizado, mas de muita confusão, que só cederia
à objetividade de Sebastien Benda, a partir de 1954, na
Bahia, pelo que lhe tenho imensa gratidão.
Embora o “mergulho” definitivo só viesse mais tarde, a indecisão se complicou a partir de
Teresópolis. Explico: em Salvador, as condições do Instituto de Música e
da Escola Nova de Música, esta fruto de outra dissidência, desta vez com Pedro Jatobá (1895-
1948), homem de excelentes cabedais desenvolvidos inclusive na
Alemanha[11], não encorajavam rapazes de classe média,
de formação secundária completa e capacidade para vencer um vestibular eliminatório severo,
como os que ocorriam para os cursos e carreiras favoritas
de engenharia, medicina e direito, entre outras razões de natureza social e cultural,
a enveredar por um curso de música, visando
uma formação profissional. Hoje, graças à dignidade que minha geração conquistou, já não se
considera “esquisito” o moço menino que toca piano. Bem,
há exceções em toda parte. Comigo, o problema se resolveu,
no Colégio Marista em que estudava, quando Gildo Guimarães Sales me irritou
o suficiente para que quebrasse o guarda-chuva em suas costas. Dizia-
se que alguém era “bonitinho” de um professor,
no sentido de que era “protegido”, isto com as implicações que fossem. Um pouco mais velho
do que eu e bem mais alto, recebi
de troca um murro no nariz de que resultou algum sangramento, preocupação para Gildo, e
uma amizade que temos até hoje. Ingressei dessa maneira no clube dos machões.
Havia aqui uma demanda represada de pessoas que almejavam um ensino musical
de alto nível, sem dúvida, mas que as instituições de então desencorajavam. A possibilidade
de suporte financeiro e organizacional de uma universidade federal, então rica, e
a vontade de um Magnífico Reitor de notável espírito renascentista, Prof. Dr.
Edgar Santos, já citado, dariam ao mentor do movimento Música Viva condições difíceis de
serem
duplicadas, quer no Rio de Janeiro e em Teresópolis, quer na Escola Livre de Música em São Pa
ulo.
Negar o papel de catalisador do Koellreutter na música brasileira é
uma temeridade que não cometerei. Por mais controvertido que seja o nosso fundador, há
duas eras, AK e DK, na história da música brasileira.
Rosita, temperamento generoso e impulsivo, às vezes difícil, logo se
deixou envolver pela atmosfera de Teresópolis. Participava de tudo, liderando o grupo da
Bahia, ao qual se acrescentaram, entre outros, os talentos de
Gerardo Parente, cearense como a própria Rosita, discípulo de Ester Salgado, em Fortaleza,
esta uma distinta pianista e pedagoga de formação no exterior e parenta de
Rosita. Nossa líder tentou domar até Theodor Heuberg, missão realmente difícil,
se possível. Logo se tornaria o braço direito de Koellreutter, seguindo-
o para a Escola Livre de Música, da rua Sergipe
271, em São Paulo, por ele fundada também em 1952 e da qual seria diretor até 1958.
É para mim inconcebível que Rosita não tivesse
tido parte ativa na organização dos Seminários Internacionais de Salvador, em 1954. Aqui esta
va, nos cursos, ensinando Teoria e Análise Musical e participando
das discussões. Infelizmente, como não raro ocorreu na história dos Seminários,
esgotada sua utilidade, ou até se tornado incômoda, foi afastada
de todo, sem qualquer reconhecimento. Alie-
se isso ao seu papel pioneiro na Educação Musical na Bahia, e
teremos aqui uma injustiça que urge reparar.

Neste ponto, antes de uma abordagem mais geral dos problemas, e tendo
Koellreutter nos deixado em 1962, é bom que se pergunte: é a Escola de Música de hoje e
o Seminários de ontem ainda a mesma escola? Poderiam ser?
Deveriam ser? Como assim? Em que se assemelham? Em que diferem?

2.2.2 Velhos e não tão velhos preconceitos

A começar pelos problemas, aos quais terei de ir e voltar, neste relato,


pouparia tempo dirigindo o leitor interessado
a um estudo mais detido, feito como prelúdio à implantação do doutorado em Música da
UFBA[12]
No artigo “Música, Músicos e Musicólogos” trato de conceitos sobre música e de problemas,
dividindo estes em duas categorias amplas, sem pretender esgotá-los, pois são muitos e nume
rosos os seus disfarces:

a) Problemas internos, alguns removíveis, outros talvez da essência do processo musical,


incluindo ênfase no produto, desescolarização, alienação, “sacralidade”, esta vista de
uma variedade de ângulos: do desconhecimento dos universais empíricos,
dos conceitos filosóficos de música, dos usos e funções, ao da diversidade dos perfis;
b) Problemas externos, oriundos dos paradoxos da cultura brasileira em relação às artes,
da lavagem cerebral no sistema formal de ensino, de supostos melómanos e de burocratas.

Diante das centenas de culturas musicais existentes,


de literatura de música e literatura musical inesgotáveis, mesmo que as limitemos
à música artística ocidental, de teorias de música milenares, a “justificativa” que se
segue como penúltimo item do artigo é sobretudo uma confissão de humildade face ao que de
sconhecemos; advertência em relação à necessidade de rigor nos métodos de pesquisa, partic
ularmente de prudência nas generalizações e nos aspectos comparativos; exigência de converg
ência das linhas de pesquisas inicialmente para as músicas brasileiras, expandindo-
as subseqüentemente.

Os objetivos definidos, item final, são cinco:

1. Observar, registrar, classificar, concreta e isentamente, o que se faz nas


diversas culturas musicais brasileiras;
2. Apreender o significado dessas músicas, ou seja, compreender por que se faz o que se
faz;
3. Estudar os sistemas musicais existentes no país;
4. Comparar esses sistemas com os que praticamos;
5. Ampliar esses limites gradativamente para as culturas musicais subsidiárias e, progressiva
mente, para as culturas musicais do mundo.

Trata-se de um vasto programa, um manifesto à sua maneira, dedicado a uma


musicologia brasileira que ainda se confessa em fase filológica. Expando
o sentido do último termo para o de uma crítica de
“textos”, estes também com sentido adaptado à linguagem musical,
de excertos dessa língua escritos ou orais,
de qualquer extensão, que constituam um todo unificado.

Seria suficiente comparar um manifesto do tipo acima com o


do movimento Música Viva (1946)[13], do qual Koellreutter
foi protagonista, oito anos antes da realização dos Seminários Internacionais de Música, em Sal
vador (1954), que marcariam o início das atividades musicais de ensino e
de extensão na então Universidade da Bahia.
O Grupo Música Viva já desde 1944 punha em prática as idéias do introdutor do dodecafonism
o no Brasil (c. 1949),
elaboradas em torno do poder da música como linguagem universal (confundia-se universalis
mo com cosmopolitismo), em reação às correntes nacionalistas que a precederam e
tolhiam, com base fortemente marxista (música e as artes como superestrutura de
uma base material que deveria refletir). Por divergências internas já definhava desde 1949 e se
dissolveria no ano seguinte. Não apenas havia uma reação pró-nacionalista,
representada fortemente por Camargo
Guarnieri, contra o dodecafonismo, mas também as idéias sobre “progressismo”
difundidas pelo Manifesto de Praga, de cunho ideológico, eram desencorajadas.
O Seminários Livres de Música - mudanças de nome e
de estrutura à parte, além da eterna questão da concordância gramatical[14] - ainda seria
uma extensão do Música Viva, a meu ver. Lá estão as raízes
de um radicalismo talvez oportuno mas que, felizmente, se
atenuaria, bem como de um cosmopolitismo antinacionalista que não era novo, embora aliena
nte. Às sucessivas gerações de compositores nacionalistas, na história da música brasileira, se
interpunham tendências cosmopolitas de outros compositores, desde longo tempo.
É bom lembrar também que o nacionalismo musical brasileiro não deve ser definido como o
fazem
os verbetes de dicionários de música, como o uso intencional de temas populares identificávei
s, regionais, nacionais, folclóricos, em obras sinfônicas. Isso, que não pode ser negado de todo,
se aplica mais a uma visão européia superficial, de fora para dentro, de
colonizador para colonizado, pela qual nem o Hino Nacional Brasileiro[15] seria
nacionalista. Visto daqui, de dentro, não é interessante confundir um programa de
nacionalização de nossa música com o nacionalismo político.
A primeira observação a ser feita é que o nacionalismo musical brasileiro nunca foi contra ning
uém, mas a favor de nós próprios, mesmo nos tempos de Villa-Lobos, do Canto Orfeônico e
da ditadura de Vargas. Merecia antes ser visto como o direito que um povo tem de
se reconhecer em sua própria música, o que me parece relevante.[16]
Nosso longevo Sílvio Deolindo Fróes (1865-1948), por exemplo, da mesma geração de Alberto
Nepomuceno (1864-1920) e de Alexandre Levy (1864-1892), estes dois nacionalistas,
representava o pólo oposto, assim como o fizeram antes Henrique Oswald (1852-1931) e
Leopoldo Miguez (1850-1902), ambos de tendência cosmopolita, européia.
Villa-Lobos (1887-1959), rebelde quanto ao roteiro de nacionalização
da música brasileira proposto por Mário de
Andrade, tinha gênio suficente para dispensar qualquer tutela, tornando-
se ele próprio um ícone da música nacional, como a concebeu.
A Bahia
musical, entretanto, reacionária, não se tinha deixado atingir sequer pelos efeitos da Semana d
e Arte Moderna de 1922, não antes dos meados da década de 1950, de chofre, com a vinda de
Koellreutter. Tal não ocorrera, entretanto, com os poetas e escritores baianos, logo atentos à
renovação, em torno da revista Arco e Flecha, entre os quais Carlos Chiachio, Eugênio Gomes,
Godofredo Filho e Carvalho Filho. Talvez as artes plásticas dominadas por notáveis pintores aca
dêmicos, da ordem de um Presciliano Silva, entre outros, tivessem também tido
de esperar pela geração de Mário Cravo, Genaro de Carvalho e Carlos Bastos, da ambientação
do Anjo Azul, mas nem assim tanto quanto os músicos o fizeram em sua defasagem.
Questões de mudança musical e sua relação com mudança cultural não são simples.
Pode haver uma sem a outra, e vice-versa. A mudança musical, do ponto de vista de John
Blacking, tem de ocorrer no sistema musical. “Meras inovações relatadas como mudanças
podem estar completamente dentro do sistema musical, e
daí não serem exemplos de mudança, mas de variação inovativa”, diz ele, e acrescenta: “Music
is the art of flexible non-change”[17] (1995:
164). Não creio que seja este o caso do dodecafonismo, mesmo que seja meramente uma técn
ica de organização do atonalismo e, supostamente explicado como uma conseqüência lógica d
o cromatismo exacerbado, o que não é.
A geração sob influência de Koelreutter, da qual fui parte, sem perspectiva histórica suficiente,
julgava que a música do século XX seria uma decisão entre neoclassicismo,
de um lado (Hindemith, Stravinsky) e dodecafonismo, de outro.
A dúvida maior era entre ser Webern
o músico do futuro, ou alguém que ainda viria. Quando Stravinsky, à maneira dele, aderiu
ao dodecafonismo, celebrou-se isto na Escola, com regozijo.
No fim das contas, com o passar do tempo, não foi nem um, nem outro:
o ecletismo parece ter ganhado a contenda e seu nome, na Bahia, foi Ernst Widmer.

3. DESENVOLVIMENTO

Poderia ter pensado em termos de uma sonatina, o que dispensaria


o desenvolvimento. Alguns pensamentos de Mário de Andrade (1893-1945), sobre o que é
previsível ou não, vêm a propósito. Mário é produto de um conservatório,
o terceiro mais antigo do país[18]. Graduou-se no Conservatório Dramático e Musical
de São Paulo em 1917, depois de ter cursado seis anos. Não consta
nenhuma outra graduação na biografia do polígrafo brasileiro, ao que saiba, o que não o
impediu de se tornar o primeiro representante da musicologia comparativa no Brasil. Não é
a eficiência o que se
questiona nos conservatórios. Herdeiros de instituições de caráter assistencial que recuam
ao século XVI, na
Itália, literalmente orfanatos nos quais crianças recebiam treinamento especial em música par
a serem empregadas em coros de igreja e, mais tarde, em ópera, o ensino segregado
de música e de músicos encontra aí seu modelo. Isso tem hoje exceções, embora a
segregação ainda ocorra, em graus variáveis.
Mário, que não cito literalmente, fez comentários mordazes a respeito dos músicos e
de aspectos sociais da música que reconhecia. São bem conhecidos: “se Palestrina tivesse
nascido no Brasil seria natimorto.” Falando da atuação do grande mestre Luigi Chiafarelli
(1856-1923), mas falando de si mesmo diz: “Pegaram os vinte dedos de Guiomar Novaes e
Antonieta Rudge e o resultado é musicólogo” (citação não literal). Chiafarelli,
estabelecido em São Paulo desde 1883, ali ensinou por mais de
quarenta anos, professor de pianistas como Francisco Mignone, Guiomar Novaes, Antonieta
Rudge e Souza Lima, e também fundador do Conservatório Dramático e Musical onde Mário
estudara.

3.1 Uma tentativa de periodização

Há muito de imprevisível nas questões de música que escapam


a qualquer tipo de determinismo. Tenho sugerido que a Escola de Música da UFBA, que já vai
entrando pela sua quarta geração, tenha passado por três fases, ou períodos. Abre-se agora,
no limiar de um milênio, para uma quarta etapa em que a mudança cultural e musical se
acelerou de tal maneira que não temos perspectiva alguma
do que será sua música. Talvez haja mesmo música em excesso, em toda hora e lugar, mas isto
é matéria para futurólogos.
Os marcos da periodização, aqui proposta para revisão, são necessariamente
a criação dos Seminários Internacionais (julho de 1954, embora recuasse a 1952); a
reforma que nos atingiu em cheio em 1968/1969; e a instituição da pós-graduação em 1990,
o que nos dá vãos de aproximadamente quinze e vinte anos, respectivamente, para os
cinqüenta anos da instituição.
Qualquer periodização é uma construção abstrata para facilitar o acompanhamento da
continuidade e da mudança que constituem
a história. Raramente os períodos são cortes a facão no tempo, sendo
os cruzamentos inevitáveis. Não são tampouco uniformes: alguns aspectos presentes no centr
o se diluem e misturam nos extremos.

3.2 A primeira escola


A primeira escola é estruturalmente uma hochschule alemã
do século XIX[19] (nenhuma ofensa pretendida) voltada para a modernidade radical,
moderada apenas em parte pela contenda com os virtuoses. Cheguei
a ouvir um comentário sério de um colega compositor (Cozzella) que me ouviu estudando
as Trinta e Duas Variações de Beethoven: “Você ainda toca isto?” Para o próprio Koellreutter,
algumas vezes consumado fechador de janelas,
“A ópera teve dois momentos: quando nasceu com o Orfeo de Monteverdi
e quando morreu com Pelléas et Mélisande, de Debussy”. Passaram-
se muitos anos antes que um professor de História da Música conseguisse ensinar ópera na Esc
ola, ainda mais a do século XIX. Quanto ao estudante, fechava
os ouvidos antes de saber do que se tratava.
A escola de Koellreutter não parece ter sido muito produtiva para os compositores, na
Bahia: dois porém devem ser lembrados: Nikolau Kokron e Milton
Gomes, este iniciado diretamente no dodecafonismo. Lindembergue
Cardoso não parece ter estudado composição com ele, mas com Widmer[20].
A impressão que tive ao rever o Seminários brevemente, em 1959 (afastei-
me em 1957, como disse), ano em que Lindembergue ingressara, era de que estava
no auge dos recursos no que diz respeito à Orquestra Sinfônica, possivelmente ao Madrigal, e
à importação de músicos, professores e técnicos estrangeiros.
Não tenho noção clara da estrutura do Seminários, nessa época. Parece-me que o Koellreutter
decidia tudo. Havia grupos mais ou menos fortes que se confrontavam, às vezes manipulados.
Os choques não raro eram levados à Reitoria e a decisão (incluindo a degola) acabaria
resultando da queda-de-braço. Estudantes terminavam por se envolver. Constituímos,
Georgina Pinheiro de Lemos (1927-2004), recentemente falecida (25 de junho), Hildebranda
Fonseca Kateb, Sylvio Pinheiro (ambos também finados) e eu, um primeiro diretório da Escola,
se bem que não me lembro de jamais ter havido uma eleição para isso. Éramos
chamados pelo Koellreutter para nos falar de questões sérias, pelo menos para nós que quería
mos e lutávamos pela sobrevivência da Escola. Numa dessas feitas, logo nos primeiros meses,
comovido, nos anunciaria que estava deixando os Seminários por motivos pessoais,
o que felizmente não ocorreu. Nem tudo que ouvíamos, evidentemente,
pode ser divulgado sem indiscrição, mesmo nada havendo de revelações estarrecedoras.
Eram grupos fortes os Benda, suíços, músicos excelentes:
Sebastien, pianista, que se casaria com Luzia do Eirado Dias, secretária da Escola;
Lola, violinista que estudara com Flesh, na Inglaterra; e a admirável D. Dora,
violista, idosa, cheia de energia e sabedoria, que ouvira
de perto o Quarteto Joachim, um dos mais famosos do mundo, antes de 1907.
Devo muito aos três mestres. Do lado oposto, Pierre
Klose, também suíço, pianista, bom acompanhador e camerista
(havia acompanhado o tenor Hugues Cuenod); Gabrielle Dumaine, francesa,
cantora, Premier Prix do Conservatório de
Paris, em Solfejo, ouvido e erudição musical extraordinários, podia cantar em quartos de tom e
conhecia os compositores contemporâneos europeus muito bem.
A Madame Dumaine se encantou com a Bahia e se atirou
ao ensino com inquebrantável energia. Dizia-me: “Manuelzinho, você não sabe quanto o
invejo, você tem tanto o que aprender...” Completava o grupo Damiano Cozzella, de São Paulo,
de quem todos gostávamos muito. Excelente professor de matérias teóricas, era aluno avança
do de Composição do Koellreutter, que por uma razão ou outra não lhe dava trégua.
Fernando Santos, pianista e futuramente percussionista, estudante de piano naquela altura,
compartilhava de um apartamento com os professores citados. Logo passamos a chamá-lo de
Fernandô, porque a influência francesa tomara conta dele.
Fernando, sempre ranheta e muito íntegro, é outra saudade.
Presto aqui uma homenagem especial a Gabrielle Dumaine. Poucos terão se dedicado
à Escola tanto quanto ela. Mas não foi tão prudente quanto deveria ter sido.
Deixando livros, músicas e outros bens de sua propriedade aqui, foi a
Paris em férias. Lá receberia seu bilhete azul, nunca mais voltando.
Morreria pouco tempo depois, tendo escrito a
Sylvio Pinheiro uma carta comovente em que nos pedia que fizéssemos justiça à sua memória.
Menos feliz conosco foi Cyro Monteiro
Brizola, também já falecido. Professor de Teoria, Harmonia e Contraponto, antecedera a
Cozzella no posto. O professor das matérias teóricas
ficava permanentemente aqui, assim como os professores de instrumento.
Koellreutter vinha mensalmente de São Paulo, hospedando-se no Hotel da
Bahia, durante sua permanência. Ocorriam então as aulas de Regência, de Flauta,
de Composição, as classes coletivas de Análise, “História”, conferências e
as aulas individuais de Harmonia e Contraponto, que no meu caso e
de outros continuavam. Em suma, as coisas se
intensificavam com a sua vinda, não que o grupo Benda deixasse margem para ócio, sempre co
m cursos paralelos sobre temas específicos e tampouco a Dumaine. Cyro,
ignoro por que razão, não podia admitir que um exercício de Harmonia ou Contraponto estives
se correto. Passava
a julgar incapacidade dele não poder detectar quintas e oitavas paralelas, ou falsas relações, n
os trabalhos que corrigia. Isso ocorria com todos, e acabou
substituído em função do desajuste.
A aliança inseparável do ensino de música com a extensão foi
o acerto principal da primeira fase. Já havia interesse na educação musical
e em iniciação musical de crianças,
na instituição, mas também um sério equívoco na idéia de que a iniciação de um número restri
to de crianças as levasse eventualmente aos cursos superiores.
Praticamente não havia pesquisa, e as tentativas de integração cultural nunca foram além de
uma ou outra conferência esparsa. Uma delas, de Curt Lange, entretanto, me abriu
os olhos para um passado brasileiro que não sabia que existisse,
o repertório mineiro do final do século XVIII, erroneamente chamado de Barroco Mineiro

3.3 A segunda escola

A segunda etapa da Escola já se prenuncia, a meu ver, em 1966. De retorno de Nova York, a
encontrei, no dizer de um diretor da época,
“justificável apenas pelo trabalho empresarial que realizava”. Excelente instrumentista,
o ensino, ao que parece, não lhe apetecia nem o considerava importante.
Havia informado ao Dr. Harrison, antes de 1963, na Rockefeller,
de que o Seminários que visitaria era uma das melhores escolas de música do Brasil, quiçá da
América Latina. Não o
entendi, quando de retorno me pediu explicações pela informação que lhe dera. Via agora, em
1966, o que resultara de uma administração indiferente ao ensino e de uma ênfase exagerada
na extensão (concertos, recitais, serviços) dele dissociada.
Os recursos fáceis também haviam
desaparecido. Parte expressiva dos antigos alunos era de bolsistas que vinham
de todos os pontos do Brasil. Ao retornarem,
tinham criado movimentos semelhantes em seus estados de origem e
as bolsas que trariam seus conterrâneos a Salvador também tinham
escasseado. Ainda vinham, atraídos pelos mestres importantes que aqui se
radicaram, mas em menor número. Escola de alcance mais reduzido, quase local,
lutando bravamente, descobrira-se
o interior como fonte de extraordinários estudantes, oriundos de bandas. Estão entre eles,
Lindembergue Cardoso (1939-1989), que já citei, Jamary Oliveira (1944) e Fernando Cerqueira
(1941), mas não eram os primeiros.
Fernando Santos, também já mencionado, aluno dos primeiros dias,
teve um mestre de banda como pai. Nem os últimos, basta lembrar Fred
Dantas, entre outros. Sucursais no interior foram criadas em Feira de Santana
e em Itabuna, mas não puderam ser mantidas pela Universidade.
Não havia no Brasil noção clara do que fosse nível superior e, assim sendo, eram
admitidos estudantes (e alguns docentes) sem formação secundária e
o devido preparo musical.
A primeira regulamentação federal nesse sentido só viria por volta de
1969, com a definição de modalidades, currículos mínimos, durações e enquadramentos
dos cursos superiores de música, pelo Conselho Federal de Educação.
A regulamentação profissional de uma carreira, no Brasil, resulta
de um trabalho compartilhado entre Ministério do Trabalho, para reconhecimento dos campos
de atuação,
e Ministério de Educação, para definição dos mínimos requeridos para a formação dos profissi
onais desejados. No Conselho Federal de Educação o relator foi o Ministro Clóvis Salgado,
a quem devemos ser gratos.
Visitou pessoalmente a Escola para nos ouvir e solicitar subsídios, assim como também contam
os com o apoio do Dr. Roberto Santos que posteriormente seria nosso Reitor.
A despeito do empenho de ambos,
de que sem dúvida lucramos, alguns defeitos sérios ainda decorreriam da
contaminação imposta pela Lei Nº 3.857, de 22 de dezembro de
1960, com sua gratuita hierarquização da carreira superior do músico que regulamentava[21].
Coube aos coordenadores e assessores de Widmer, que assumira
a direção da instituição após um conflito entre seu diretor e a Reitoria,
uma reestruturação duríssima que reduziria um corpo discente dito de
trezentos estudantes de graduação (como?), a apenas 33.
O critério para o nível superior (e acesso a bolsa) era um mero exame final de teoria elementar
, sem consideração da percepção e, ainda menos,
da execução, sem mencionar curso secundário completo.
Essa escola reagiu bem, tomou rumo, normalizou um fluxo pequeno, mas regular, de
graduados de bom nível, o que não ocorria anteriormente, reanimou-se. Procurou raízes que a
sustentassem. Durante toda a primeira fase, a escola havia
fornecido apenas quinze certificados. Esses certificados não eram diplomas correspondentes a
graus e nem sequer eram registrados pela própria UFBA.
O ecletismo de Widmer e
o talento de seus alunos fizeram crescer um importante Grupo de Compositores da
Bahia, que se impôs nacional e internacionalmente. De uma escola de executantes,
passávamos a ser uma escola de compositores.
Definidos os currículos mínimos, foi-
se capaz de estabelecer novos currículos plenos e currículos de adaptação, em que se
definiram dois blocos essenciais. O das tutoriais, arcaico mas necessário,
das matérias principais com seus complementos, ensino fincado em carisma e competência de
tutor e tutelado. O ensino integrado da literatura e da estruturação
musical, também cercado de reforços,
uma inovação pedagógica importante e subseqüentemente imitada, seria introduzido no
Brasil como segundo bloco. Prega-
se aqui a necessidade de um ensino criativo das gramáticas convencionais,
reconstruídas não como formulários rígidos e
de aplicação mecânica, mas à base das obras que a justificaram. Ainda estudante da Juilliard,
havia estagiado no programa de Literature & Materials, como TA (Teaching
Assistant), sob supervisão de Norman Lloyd, Thomas Hardy, Arnold Fish e William
Bergsma, entre outros. Era responsável por classes remediais de Ear Training, de Music History
e tinha de estar “on tap”,
o que significava ter de substituir em curto prazo os compositores e professores de
L&M que porventura tivessem de faltar, entre eles alguns do porte de Vittorio Giannini e
Vincent Persichetti.
Widmer e Jamary foram aqui totalmente receptivos à implantação do programa integrado.
Na realidade, se trouxe a experiência de fora, o ajuste e
a implantação foram inteiramente deles. Nosso LEM foi confiado predominantemente
a compositores na suposição de que mesmo que fossem maus teóricos (não necessariamente
o caso), seriam pelo menos criativos. Houve
alguma resistência, sempre sob a perspectiva de que embora ensinando
as gramáticas separadamente se estaria
possibilitando ainda uma integração de conhecimentos que de fato não ocorria.
Houve também alguém de visão bastante estreita que acreditava ser o
LEM um ardil para empregar compositores.
Ainda assim não se conseguiu introduzir o terceiro bloco, o bloco das integrações como o
chamo, aqui em sentido mais amplo, com as demais áreas de conhecimento, o que libera
o músico das cafuas. Pelo menos, através de optativas e eletivas se abriu
a Escola de Música para os universitários, e a Universidade para os músicos. Não se
deixou ainda o conservatório inteiramente para trás, mas a Escola e seus departamentos se
aproximaram
do que deveria ser um ideal de um moderno ensino universitário de música, mais para o padrã
o americano, no caso, o que nos facilitaria os ajustes para a pós-graduação concebida
de acordo com esse modelo.
Mudanças muito profundas, portanto, caracterizam esse período que seria
de total reestruturação administrativa, curricular, docente e discente, no sentido de uma
normalização que não implicasse em qualquer tipo de engessamento
das estruturas. Nem sempre, entretanto, isso foi possível, como pode ser o caso do Madrigal e
da Orquestra, ainda sem solução satisfatória.

3.4 A terceira escola


Em 1990, depois de muita relutância e preparo (já se discutía o assunto desde 1976), abriu-
se finalmente a Escola de Música para a pesquisa científica, completando
o trinômio clássico de pesquisa, ensino e extensão, interligados. Esta é a fase atual. Mantém-se
a ênfase no fazer música e na reflexão sobre música, mas instrumentando o pós-graduando
das quatro áreas de concentração disponíveis (etnomusicologia, educação musical, composiçã
o e execução) para um conhecimento da realidade, no limite do possível.
O impacto da pós-graduação na graduação foi imediato e é com ânimo redobrado que se
vêem estudantes baianos, de outros estados e do exterior freqüentando e
animando nossos cursos.
O virtuosismo entre os pianistas pode ser estimulado: um retorno ao tudo ou nada dos velhos
tempos, controlado pela reflexão, para os que puderem e quiserem. As classes de violão, de
clarinete, de trompete,
de flauta produzem ótimos instrumentistas, alentados pela competição sadia. Canto melhorou
bastante, embora ainda às voltas com o problema de
se criar uma escola brasileira de canto ajustada à fala brasileira. Composição se
mantém em bom nível. Como sempre, necessitamos
de professores de cordas, mas temos estudantes promissores.
Na graduação, grande número de estudantes nos vêm da chamada música popular,
uma questão conceitual que teremos de abordar com maior clareza e prudência.
Esperam algo que não sabemos exatamente o que seja, mas é óbvio que uma nova reforma
curricular
é necessária para ajuste de conteúdos que certamente podem ser alargados. Mas até que pont
o se poderá perscrutar o futuro?

3.4 Preparação na dominante em busca do futuro

Pelo que venho dizendo, passo a tentar responder às perguntas formuladas sobre a instituição:
A meu ver há uma unidade nesse desenvolvimento,
uma grande marcha, mesmo que as feições tenham
mudado como devem mudar. Ainda somos
uma instituição voltada para o novo, para o experimento, mas tentamos fazer a ponte com o p
assado, sem radicalismos. Não estamos tanto para os modelos baseados nas ciências exatas
de que Koelreutter tanto gostava: ontem a teoria dos quanta, anos depois o
“imprevisível e paradoxal” de que o ouvi falar num encontro da ANPPOM na Uni-Rio.
A influência provável seria do “princípio da incerteza” ou da indeterminação, do físico e
filósofo alemão, Carl Werner Heisemberg (1901-1976) que deslocara a idéia de
causalidade que a Física clássica, newtoniana,
estabelecera como paradigma desde o século XVII. Ainda temos professores, como Jamary Oliv
eira e Pedro
Kroeger, perfeitamente capazes de lidar com problemas complexos de matemática e
de Informática em Música.
Sokal e Bricmont (1999), ambos professores de Física, falam
de abusos da terminologia científica e de extrapolação arriscada de idéias mal entendidas
das ciências naturais para as ciências sociais. Além do risco, é nas ciências sociais e
nas ciências humanas que mais provavelmente iremos de encontro ao homem e
às suas obras, sem desumanizá-los. Chegávamos a Jean Gebser[22] e à psicologia profunda de
Jung, com Koellreutter, especulando-se sobre os estados da consciência humana, do
adimensional, ao mágico, ao mítico, ao mental e ao integral que não entendíamos.
De fato, nos primeiros anos nem sequer chegávamos
ao estudo de um mínimo de história da música ocidental como qualquer um entenderia.
As leituras na Biblioteca não eram incentivadas. O radicalismo fechava janelas, em vez de abri-
las. Possivelmente, Sergio Magnani nos trouxe
a primeira antologia histórica de música, em gravação, adquirida na Itália, obra de divulgação.
Os estudantes ainda teriam de esperar pelos anos em que me incumbi
do ensino de história da música, para juntarem antologias históricas com gravações correspon
dentes de bom nível, em que Paulo Lima colaborou, uso corrente e obrigatório de dicionários
musicológicos para fixação do vocabulário técnico, sua percepção e
o reconhecimento das técnicas e estilos em testes auditivos, além de um mínimo de
relacionamento da música com os contextos, para o que muitas leituras de bons textos eram
necessárias.
Resumindo: houve bons momentos, mas não é justo o mito de
uma época de ouro que ficou para trás.
4. RECAPITULAÇÃO

É tempo de rever as coisas. Numa sonata do Rococó, não seria momento oportuno para
sugerir novos dramas, mas para reconciliá-los. Beethoven mudaria tudo isso. Aqui irei dos
temas amenos a alguns assustadores, para serem evitados.
4.1 Revendo os preconceitos
Corre por aí uma idéia genérica de que músicos não falam: músicos tocam. De que músicos
sentem: não pensam. De que músicos são complicados, entenda-se: confusos. São tolices que
nos ameaçam e que nos põem à mercê de cartolas, como ocorre com jogadores de futebol.
Alguns músicos falam demais. Outros sentem demais. A nenhum deles pode faltar a reflexão,
como deve ser também o caso dos jogadores. A educação brasileira, ainda assim, trata menos
mal a educação física do que a artística.
4.2 Sobre os músicos
Somos naturalmente de vários perfis e pensamos algo diferentemente uns dos outros, de
acordo com o que somos[23]. É claro que para mim, musicólogo, são estes os mais perspicazes.
Diz Jamary, entretanto, homem circunspecto, coerente e brilhante (de quem não recebi
autorização para citar e, pior ainda, exagerando as cores), que musicólogos olham para trás.
Trata-se de absoluto desconhecimento de causa. Para ele, casado com uma educadora muito
ilustre, Dra. Alda Oliveira, os educadores musicais são os que olham para frente. Pode ser
amor ou medo. Sendo compositor dos melhores, penitencia-se dizendo que os compositores
olham para dentro, para si mesmos. Nada resta para os executantes, seria injusto pensar,
senão não olhar.
4.2.1 Tocantes, não falantes
Nada mais desagradável, em nossa tradição de música artística ocidental, do que o músico
superemotivo que, em vez de executar música, executa suas próprias emoções, sem filtragem,
sem reflexão, sem disciplina. Isso pode acarretar além de um desvio de personalidade e
conduta, um descarrilamento estilístico considerável na interpretação de obras.
Há uma tendência de estetas em colocar tal ênfase no belo, que se esquecem do útil. Faz-se
música sempre para algum fim. Na Escola de Música, ao contrário da de Belas Artes, creio, não
temos tido muito lugar para a Estética. Somos todos oleiros e, talvez por isto, não gostemos de
que nos digam como devamos fazer o pote.
Com imenso respeito ao saudoso e mui ilustre mestre Romano Galeffi, profundo conhecedor
de Benedetto Croce, a atitude esquiva dos músicos pode lhe ter parecido irreverente, até
hostil, o que nunca foi o caso. Mas gostaríamos de uma estética que tivesse amplitude
transcultural, o que contestava, dizendo que se trataria de uma poética, não de estética.
Continuo, infelizmente, entendendo muito pouco disso. De qualquer modo, colocar uma
estética filosófica, detalhe de um sistema mais amplo, no currículo básico (primeiro semestre)
dos estudantes da área de artes é colocar a reflexão antes da vivência, o que ocorre desde
1969.
4.2.2 Como eu sou sensível!

É comum que se sublinhe uma apenas das várias funções da música, ignorando as demais. A
eleita é a função de expressão emocional. Dois preconceitos aí se consolidam: o de sermos
além de inúteis, também semi-idiotas sentimentais. Há tendências apolíneas e dionisíacas,
entre os executantes, mas isto não pode chegar ao extremo de se tratar música de caráter
predominantemente formal, cerebral, com paroxismos de emoção. Outras vezes o conteúdo
emocional não é de ordem pessoal, mas racionalizado por uma teoria estética de fundo
psicológico que padroniza estados emocionais e os faz corresponder a figuras. Falo da Teoria
dos Afetos do Barroco. Não há conflito interno nessa música. As figuras simplesmente se
desenrolam em fluxo contínuo até que o afeto se esgote. O contraste grande ocorre entre os
movimentos. É música de patos, mas sem drama. O drama interno aos movimentos só viria
com a “sonatice” do Rococó e do Classicismo Vienense e a oposição de temas, ou pelo menos
de planos tonais, uma revolução muito maior do que se pensa. Não é à toa que músicos das
orquestras sinfônicas se vestem de preto. Não é essencial que assim seja, mas não estão ali
para chamarem atenção sobre si mesmos: o drama, se houver, está na música que tocam.
4.2.3 Complicados (confusos).

Complexidade e confusão são coisas muito diferentes. Especialista em preconceitos, o músico


dito “erudito”, termo derrogatório, deve insistir: tudo o que música necessita é ser ouvida. A
notação musical, pretexto para a preguiça de muitos, não é essencial ao processo de
transmissão de música. Música complexíssima, como a indiana dispõe de notação para fins
teóricos e analíticos, mas não para a execução. Outras, ritmicamente muito complexas, como
as africanas e afro-derivadas, não dispõem de notação alguma. Isso não impede, por exemplo,
que os membros dos candomblés baianos a pratiquem e aprendam, sem qualquer bloqueio.
Se a notação é usada para a execução, isto sim pode significar que de alguma forma influa
sobre a maneira de pensar de compositores, executantes e, por extensão, dos ouvintes em
geral. Tal ocorre ainda mais se a notação, com os preconceitos que necessariamente conduz,
for utilizada para a transcrição de músicas de outras culturas.
Ainda assim, nada impede de que a música sendo ouvida, gere um processo de
aprofundamento da percepção que nada mais necessita do que motivação, dose mínima de
conhecimento, observação e, finalmente, a desejada compreensão. O ciclo se renova ao longo
da vida vez que, se a música é de fato muito boa, sua crescente compreensão gera também
motivação crescente e daí, com um pouquinho mais de conhecimento, mais observação, mais
compreensão e mais motivação que recomeça o ciclo, como se a percepção musical fosse uma
hélice que conduz a tesouros disponíveis para todo mundo. É triste a demagogia e o
posicionamento político que insiste em baixar o nível da música boa em vez de educar e elevar
o povo para ela. Como saber o que é bom?
Não esqueço o Trio Pasquier, que nos foi trazido por Alexandrina Ramalho. A SCAB, bem antes
que a UFBA radicasse entre nós os grandes músicos que tem tido, nos trazia artistas de alta
categoria. Os membros desse trio de cordas, já bastante idosos, após memorável concerto em
que tocaram um “divertimento” para trio de cordas de Mozart (seria o K 563, em que o
compositor revela grande criatividade na manipulação de recursos limitados em obra longa), já
executada por eles inúmeras vezes, comentaram que, passados mais de trinta anos, ainda no
ensaio daquele dia perceberam detalhes que ainda não lhes tinham sido revelados. Obras
primas de música são como caleidoscópios, praticamente inesgotáveis. Koellreutter dizia, e eis-
me concordando com ele, que “diante das obras de arte não se julga, se é julgado”.
4.3 Sobre os usos e funções

É sempre bom recorrer à obra pioneira de Alan Merriam (1964: 209-228) [24], bem como aos
comentários sempre lúcidos de Bruno Nettl (1983: 147-161)[25] para distinguir os inúmeros usos
corriqueiros de música, de suas funções subjacentes. Tive a felicidade de conhecer ambos.
Merriam define função como “specific effectiveness [of music] whereby it fulfills the
requirement of the situation, that is, it answers a purpose objectively defined; this is the
equation of function with finality.” (1964: 218)[26].
Merriam aponta para dez funções: expressão emocional, gozo estético, entretenimento,
comunicação, representação simbólica, resposta física, reforço à conformidade a normas
sociais, validação de instituições sociais e rituais religiosos, contribuição à continuidade e
estabilidade da cultura, contribuição para a integração da sociedade (1964: 219). Não vou
comentá-las ou tentar sintetizá-las como o faz Nettl que resume um grupo delas na afirmação
de que “música funciona como a representação simbólica dos principais valores, padrões, ou
temas da cultura.” (1983: 150). Arrisca-se ao tentar reativar a controvérsia que dividiu
etnomusicólogos entre músicos e funcionalistas retomando a busca de funções maiores,
funções que se superimpõem, para a música.
Em proporções diferentes as funções estão presentes em qualquer música, mas o que em
última análise Nettl confessa ser, para ele, o que estaria no topo da pirâmide cuja base seriam
os usos, isto é, “a função da música na sociedade humana , o que música faz, em última
análise, é controlar a relação da humanidade com o supernatural, mediando entre as pessoas
e outros seres, e sustentar a integridade de grupos sociais individuais. Faz isso expressando os
valores centrais relevantes da cultura de forma abstrata.” (Nettl, 1983: 159).
O tema das funções está meio esquecido na Etnomusicologia. Para mim, entretanto, é um
instrumento de cura de muitos preconceitos. É necessário, porém, que não criemos outros
preconceitos. Sugiro que a maioria dessas funções pode atuar ao reverso.

Não é possível separar música de seu contexto. Há um conceito de expressão “pura” (Croce?),
mas o de música “pura” simplesmente não existe. Já assumi o conceito de música pura, em
certa ocasião em que discutia a relação moral e música, a título de um exercício de redução de
música a seus mínimos elementos, como veremos mais tarde. Apoiando-me em Joseph
Kerman[27], diria que o conceito que ainda alcancei associado à música de câmara e às sinfonias
de Haydn, Mozart e Beethoven, foi produto de um ideal estético novo, quintessência do
Romantismo que surgia, no início do século XIX, incorporado em Beethoven, e que
consideraria os três compositores citados como “românticos”, segundo a concepção de E. T.
A.Hoffmann. Ainda seguindo Kerman, um “novo interesse na história da música se associava
com sua nova posição na hierarquia das artes sob o termo recentemente cunhado de
‘estética’. Música era considerada em seus próprios termos, como uma estrutura autônoma de
sons, mais do que como um adjunto da dança ou da liturgia, ou de textos líricos e dramáticos.
E música era valorizada não (ou não somente) porque era agradável e comovedora, mas
porque se sentia que ela oferecesse pressentimentos do sublime” (1985: 64-65).
4.4 Sobre os aspectos sociais

Músicos certamente fazem coisas, já afirmei. É essencial que façam. O que fazem - música, - é
parte de conceitos e de comportamentos indissociáveis daquilo que resulta como produto. É
do constante entrechoque entre esses três aspectos do processo musical, conceitos,
comportamentos e produtos, que as discrepâncias vão sendo dinamicamente dirimidas e um
perfil vai se plasmando para cada cultura e comunidade musical, isto é, sua identidade. Nossa
Escola de Música, ou a maior parte dela, ainda considera música apenas como prato feito, sem
considerar os processos que levam a ela, em sua necessária amplitude.
Se alguma coisa que reconheçamos como parecida com o que chamamos de música ocorre em
toda e qualquer cultura, de modo mais ou menos elaborado (há culturas, por exemplo, que
não têm instrumentos, tão despojadas que são), “música” é então um dos universais da
cultura. Isto não quer dizer, entretanto, que tenhamos conseguido ainda definir de modo
convincente quais sejam os universais da própria música, se é que existem.
O estudante de música que, entusiasmado pelas obras primas da música ocidental artística, as
declara universais, apenas se revela superficial, ignorante da diversidade das culturas musicais
do mundo, etnocêntrico, incapaz de distinguir difusão, ou cosmopolitismo, de universalidade.
Cada cultura sabe o que quer em relação à sua música, mesmo que não articule e explicite
uma teoria a seu respeito, mas a teoria existe tacitamente. Não estranhemos, portanto, que
alguns músicos devam se fantasiar de “músicos” para serem músicos, numa sociedade que
assim o exija, nem que uma outra ache que a nudez seja o traje próprio para uma cerimônia
musical de iniciação.
Dois discursos estarão sempre associados nas manifestações musicais: um é o da música,
propriamente dita, que fala por si própria; outro é o discurso sobre música, ou seja, fala sobre
música. Quando é científica, essa fala sobre música pode constituir ciência musical, isto é,
musicologia no sentido da Musikwissenschaft alemã.
É tarefa do musicólogo investigar o que resulta da interseção desses dois discursos, um
problema clássico de musicologia, aliás um terceiro problema. Ao etnomusicólogo, sobretudo,
lidando com tradições orais em que o tradicional é sempre o contemporâneo, o que se
executa, compete tentar decifrar as regras de operação de músicas cujas gramáticas do
contrário lhe permaneceriam desconhecidas. Necessita saber o que pode mudar e o que não
pode, porquanto música na tradição oral existe em contínuo estado de fluxo, as variantes. Não
chamemos portanto de musicólogos a não-músicos que falam de música. Seriam na melhor
das hipóteses apenas musicógrafos.

4.4.1 Demagogia

Uma prática boçal chama hoje música de “som”. “Fazer um som”, “comprar um som”
tornaram-se expressões do dia a dia, nesses cinqüenta anos. Que progresso! Pascal
Quignard[28] num terrível livrinho, escrito em dez pequenos tratados, considera o som (tanto
quanto o ruído, acrescento eu) como estupradores, pelo massacre do silêncio e pelo assalto a
ouvidos que não têm pálpebras. Vale citar o trecho inteiro tanto pelas idéias, quanto pela
maneira como as expressa (1999: 63):

Todo som é o invisível na forma do perfurador de envelopes. Que se trate de corpos, de


quartos, de apartamentos, de castelos, de cidades fortificadas. Imaterial, ele atravessa todas as
barreiras. O som ignora a pele, não sabe o que é limite: ele não é nem interno, nem externo.
Ilimitante, ele é inlocalizável. Ele não pode ser tocado: ele é impalpável. A audição não é como
a visão. O que é visto pode ser abolido pelas pálpebras, pode ser impedido pelo paravento ou
pelo reposteiro, pode se tornar imediatamente inacessível pela muralha. O que é orelha não
conhece nem pálpebras, nem paraventos, nem reposteiros, nem muralhas. Indelimitável, dele
ninguém pode se proteger. Não existe ponto de vista sonoro. Não existe terraço, janela, torre,
cidadela, ponto de vista panorâmico para o som. Não existe sujeito nem objeto da audição. O
som penetra. Ele é o estuprador. O ouvido é a percepção mais arcaica ao longo da história
pessoal, antes mesmo do cheiro, bem antes da visão, ele se alia à noite.
4.4.2 Música e terror

Não posso concordar com Quignard, entretanto, no que diz respeito à “colaboração” da
música com o regime nazista, assunto de seu “Sétimo Tratado”, em que aborda o parentesco
entre música e terror e que dá nome (“Ódio à música”) ao seu livro (1999: 119-138). Jamais
excluiria a possibilidade de uma manipulação tenebrosa como a que dela se fez, no extermínio
de judeus organizado pelos alemães de 1933 a 1945, principalmente em Auschwitz. A
indignação é mais do que justificada, diante de um crime contra a humanidade que não pode
ser esquecido.
Ainda assim, não é de música, que Quignard está falando, mas de músicos, de monstros, de
vítimas, de circunstâncias brutais de coerção de pessoas. Nada de canto de passarinhos, mas
grasnar infernal de abutres. Precisamos saber disso, não esquecer nunca, mas não me parece
cabível um julgamento moral de uma mera linguagem abstrata. Iríamos julgar a língua
portuguesa pelo fato de Salazar a ter falado? O espanhol, por causa de Franco? O italiano, por
causa de Mussolini? O inglês, por causa de Bush?
É paradoxal a cultura brasileira em relação às artes. Sabe vagamente que são muito fortes e faz
de tudo para fingir que não são, enquanto as controla . Há indícios fartos desse conhecimento
na história da Bahia, como no episódio da proibição e exclusão dos batácotôs, após a revolta
dos Malês. Esses tambores nigerianos falantes, capazes de atuarem como sub-rogados da
linguagem falada, no caso de línguas tonais como o ioruba, causavam agitação perceptível
entre os escravos. Articulando durações e alturas, os tambores recitam poemas, transmitem
genealogias, dão recados e chamam pessoas. Outros instrumentos são também capazes de
fazê-lo, ajudando na indução de estados alterados de consciência, nada anormais, nas culturas
de muitos povos.[29]
Por mais potente que a música seja como linguagem, ainda assim é neutra. Poderíamos
argumentar, com a hipótese já descartada de Sapir-Whorf, sobre uma correlação histórica
entre a língua e as representações mentais, ou seja, como se a linguagem criasse a cultura e
não o reverso.
A música se realiza numa zona neutra, “niveau neutre”, diz Jean-Jacques Nattiez no
seu Fondements d’une sémiologie de la musique[30]. Jean Molino (s.d.: 133)[31] explica: longe de
um mero processo mecanicista de transmissão de uma informação única, fora da qual tudo é
ruído, no ato concreto de comunicação humana, fato social, os processos simbólicos da
“Linguagem, música ou religião nos obrigam a uma análise tripartida da sua existência, sem a
qual nenhum conhecimento exato é possível”. Entendo assim que, independentemente das
variáveis de sua execução, a música embute em si uma múltipla existência, a depender dos
pontos variáveis de uma zona neutra em que dois fluxos opostos se encontram: o do
“poiético” que é o pólo da criação para o qual converge uma multiplicidade de fatores, e o do
“estésico”, uma realidade distinta, que é o pólo das sensações dos indivíduos, para o qual, de
maneira semelhante, também converge uma multiplicidade de fatores. Assim sendo, com
perdão do vernáculo, música não “é”, música “são”.
Som e ruído podem ser, e são, estupradores. Música, enquanto tal, é muito mais que isso.
Escrevo com receio de ser considerado insensível por me deter em uma questão teórica e de
certo modo apriorística. Por isso me valho agora de Blacking, insistindo na necessidade do
estudo de música não ser feito independentemente de três de seus aspectos fundamentais:
sua função, para ele a de intensificar de alguma forma a qualidade da experiência individual e
das relações humanas; suas estruturas, que são reflexos de padrões de relações humanas; seu
valor, como peça de música, que é inseparável de seu valor como uma expressão da
experiência humana (1995: 31). Na verdade, a audição de música, como tal, só é possível para
quem se disponha a ouvi-la. Caso contrário, não estamos falando de música, mas ainda de
brutal ruído.
4.4.3 Música e moral

Quanto à questão da moral, Blacking alude ao “niveau neutre” de Nattiez. Diz ele: “Como
Nattiez argüiu (1975), a música é o ‘niveau neutre,’ e sua moralidade é essencialmente a
moralidade de quem e do que vai com ela, de seus executantes e de seus ouvintes.” (1995:
157).
Chego a uma conclusão não muito distinta na pequena antologia que reuni em meu
despretensioso “Moral e Música”[32]. Um assunto incomparavelmente mais ameno nos dividia
desde o Carnaval de 2003. Polarizados na lista de Bibliografia mantida na Internet para o
seminário MUS 502, havia uma inversão de papéis entre nós: o etnomusicólogo abrindo mão
da neutralidade e do relativismo cultural ao criticar sua própria cultura, como um de seus
deveres perante ela; o educador musical sensível insistindo no aspecto social da questão, em
detrimento de qualquer outra consideração. A protagonista era uma ilustre quadrúpede que
levou ao desespero literatos (principalmente) e músicos: a “Egüinha Pocotó”.
As discussões sobre a relação moral e música levantadas pela “Egüinha” nos levaram muito
mais longe do que de início imaginávamos. “Onde foi que erramos?” foi uma das questões
iniciais, bem como a idéia de uma “pessimização” da música popular brasileira. O binômio
moral e música levantava questões: Aplica-se? Quais os limites? Quem define? Qual é a atitude
do educador? Do agente cultural? Das instituições?
Chegamos a questões de estética, girando em torno do que seriam o conteúdo de música e sua
verdadeira natureza, ambas questões abertas, até agora. Sem respostas, confirmava-se com a
“Egüinha”, a mesma conclusão de um artista americano, Barnett Newman, na década dos
sessenta, para o qual a estética para a arte seria tão inútil quanto a ornitologia para as aves
(ainda os passarinhos), isto é, não causava danos viver sem ela.
Mais ainda, nos demos conta de que o próprio conceito de música (e o de moral também) é
indefinido como objeto de estudos, variando entre nós mesmos desde um mundo fechado
sobre si mesmo, isolado, constituído apenas de sons estruturados, até um complexo do qual o
aspecto sônico seja parte, mas aberto para o homem e para o mundo, em toda sua amplitude.
A idéia de uma antologia veio logo no início. Queria simplesmente mostrar, com alguns
exemplos históricos, que a questão não era nova. Se pudesse reduzir música apenas a
parâmetros mínimos de altura, duração, intensidade e timbre, sem interferências externas,
música pura como já se discutiu, seria revelada a sua incapacidade, como linguagem, de
expressar conceitos como o religioso e outros até sancionados por teorias psicológicas antigas,
como a doutrina dos afetos (“Affektenlehre”), já citada, salvo por meio de correlações,
particularmente as associações importantíssimas com textos e movimentos. Também como já
disse, essa redução parece impossível.
Isso não é negar o óbvio quanto à possibilidade de música, em sua neutralidade, funcionar
como um arrastão de fatores externos e de se deixar por sua vez apanhar por eles, linguagem
poderosa, portanto, a despeito dessa neutralidade. Instrumentos não percussivos podem
também colaborar como indutores de um transe bruto, não controlado por uma iniciação
prévia. Já falamos dos instrumentos falantes, substitutos da fala convencional. Tampouco
devemos esquecer acusações feitas a Marilyn Manson, mesmo controvertidas, pela autoria de
música associada a mensagens psicóticas que teriam levado adolescentes americanos,
segundo alguns, a cometer assassinatos. Tampouco podemos esquecer a capacidade de trios-
elétricos de enlouquecerem multidões, ou de shows que associam à música, em níveis
altíssimos de volume já no limiar da dor e da surdez, gritos, correrias, gestos, pulsação de luzes
brilhantes, todos indutores de possíveis crises epilépticas. Um ou vários problemas, portanto
existem, mas transcendem à música. É o “como,” portanto que deve ser investigado e, se
possível, submetido a alguma forma admissível de controle e prevenção.
4.4.4 Educação musical

O contínuo e dinâmico processo de compatibilização entre os conceitos de música de uma


sociedade, os comportamentos necessários para o fazer musical e a música resultante
constitui um “feedback”, ou a face da cultura musical que se preocupa com a sua transmissão.
Seu nome é educação musical, duas faces de uma mesma medalha. Utilizo o termo aqui em
sentido mais amplo do que o fazem alguns de meus colegas e amigos educadores musicais
inspirados, muitos deles, por europeus como Dalcroze, Edgard Williams, Kodaly e Orff, e
determinados a transmitir uma cultura musical que não é primariamente nossa[33]
Um interesse pela educação musical, nesse sentido mais restrito, tem sido uma característica
constante de nossa Escola de Música, desde seus primórdios. Um belo trabalho tem sido
sempre feito, mas tem havido equívocos. Os passarinhos lutaram duramente, na reforma
universitária de 1968, para manterem uma Divisão Preparatória na Escola (hoje o Básico), de
tal modo que se pudesse estrangular a admissão aos cursos superiores, duplamente
controlados pelo Vestibular e pelos Testes de Aptidão. O saldo de vagas não ocupadas seria
então destinado à preparação de jovens, embora com acesso seletivo e diferenciado quanto às
opções.
Os educadores musicais têm insistido em conceitos ligados à teoria dos etos da música grega
antiga. É inegável que se educa (ou deseduca) através de música. Assim também o fazem os
que ensinam matemática, as ciências exatas, as ciências sociais e humanas e as humanidades
sem terem de apelar aos Conselhos de Educação em termos do “educar pela” (música, no
caso), para ensinarem suas respectivas disciplinas na rede pública. Contando apenas com cinco
sentidos, é deplorável que tanta justificativa ainda necessite ser dada aos filisteus da Educação
para se vender a idéia de que o desenvolvimento de um deles, a audição, a inteligência
auditiva, seja indispensável para qualquer um. Com os preconceitos e juízos que podem ter a
respeito de música lembram os velhos lavradores da cultura do cacau: para que os agrônomos
da CEPLAC os convencessem da utilidade de certos fungicidas para combate à podridão parda
(bons tempos aqueles), era necessário que pulverizassem DDT nas formigas de enxerto para
que as vissem morrer.
4.4.5 A insustentável dicotomia: I – VI – II6 – V – I

Só me resta abordar, entre os grandes problemas, o da cruel dicotomia popular / erudito.


Outra falácia. O pior dos preconceitos é o dos que querem equacionar música ruim com o que
incluem como popular. As discussões do que seria popular e erudito, como dicotomia,
começam comigo em interessantíssimos diálogos que tinha com Tom Zé, quando meu
estudante de classes de História. A partir de uma mesma estrutura harmônica, a indicada no
subtítulo, pode se ter a Sonata “Primavera”, para violino e piano de Beethoven, que
chamaríamos de erudita, além de clássica; pode ser também o God Save the King, hino
nacional modelo para vários outros, que não saberia como chamar; ou ainda um ostinato
repetitivo e besta para um balanceado qualquer que muitos chamariam de “popular”. Seria
antes “primitiva”, termos que etnomusicólogos não usam. A culpa não é do ostinato. Sobre a
repetição de um baixo recorrente, Henry Purcell compôs o “Lamento de Dido” da ópera Dido e
Enéas, certamente uma obra prima. A mesma coisa fez Johann Sebastian Bach, no “Crucifixus”
da Missa em si menor, outra obra prima, como Monteverdi já havia feito no “Pur ti miro”
da Coroação de Popéia. São obras primas porque nelas se aliam as técnicas adequadas à
expressão pretendida. No exemplo de Beethoven, a estrutura harmônica comum é submetida
a um ritmo harmônico lento[34]. No caso do hino, como ocorre com as obras primas de
harmonização que são os corais de Bach, o ritmo harmônico é rápido. Na versão dita popular
nada acontece além da repetição rítmica do baixo e um iê-iê-iê qualquer sobreposto, que não
é o dos Beatles. Aqui o ritmo harmônico é zero e a redundância é quase total. Não posso crer
que a redundância excessiva seja o que se pretenda da música popular reduzida a um padrão
único. No mínimo uma tipologia necessitaria ser construída para que o conceito se tornasse
mais claro e a rica canção brasileira encontrasse seu nicho.
Nas discussões com Tom Zé, um dos argumentos era o de que a mesma música, a depender do
lugar e da época, passavam facilmente de uma categoria para a outra. Uma ópera italiana seria
música popular na Itália, berço do bel canto que se pratica também em qualquer canção
napolitana. No Brasil, a mesma ópera, com a influência do bel canto no canto brasileiro, seria
“música de pancadaria” para os ensaios de crítica de Mário de Andrade. Já uma canção
popular renascentista trasladada para este século seria erudita. Enfim, estamos fartos de saber
que as fronteiras entre as duas categorias são muito vagas. Consulte-se, por exemplo, Peter
Burke (1989: 20-21)[35] chamando a atenção de estudiosos do assunto no sentido de que é a
interação e não a divisão entre cultura de elite e cultura popular o que deve
interessar. Charles Seeger, nos Estados Unidos, também se preocupou com isso (1980: 436)[36]:
“The dichotomy ‘oral versus written’ is misleading: one can learn to write and read words an
notes only by oral-aural means.”
Há muito venho sugerindo que, em vez de uma dicotomia, deveríamos adotar a idéia do
continuum de Mantle Hood, reconhecendo que há uma infinidade de gradações entre o que
seria absolutamente espontâneo, num extremo, e o que seria totalmente produto de
laboratório no outro extremo. Nenhum dos dois extremos existe, daí ser melhor fechar o
continuum sobre si mesmo. Por fim, ainda gostaria de me fixar num ponto de vista de Blacking
sobre a relatividade do meramente funcional e do artístico. Segundo Blacking (1995: 52)[37]:
“There can be ‘art music in tribal societies and ‘folk’ music in industrial societies. Both types of
music comment on the human condition: in folk music the comment is expressed by the
accompanying social situation and not by the music; in art music it is expressed by the music
and not necessarily by the social situation. . . . The only useful distinction which the terms
‘folk”and ‘art’ might express are differences of process, of the ways in which the experiences
of individuals in society may be expressed. The terms are certainly not accurate indications
of musical differences.”
A concepção de Blacking torna relativos os conceitos do artístico e do folclórico. Não se trata
de uma questão de grau de elaboração. Assim sendo, uma música que é artística numa
sociedade africana (sempre um mau exemplo, diante da complexa elaboração rítmica), por
transcender os meros requisitos da situação, pode já não sê-lo se levada a uma sociedade
industrial urbana, do mesmo jeito que a música de um conjunto de rock que utilize toda a
parafernália eletrônica disponível permanece popular, pelo fato de apenas satisfazer os
anseios da sociedade em que existe.
5 CODA

Levamos quarenta anos para produzir o primeiro Mestre em Música na UFBA (Ricardo Bordini,
Composição, 1994). Mais sete (quase cinqüenta anos) para que nosso primeiro doutorado
fosse outorgado (Wellington Gomes, Composição, 2001). Isso significa que hoje sabemos bem
mais sobre a música na Bahia e no Brasil do que sabíamos em 1954. Muitos mestres e
doutores os seguiram, mais o que sabemos ainda é pouco.
Sonho com o dia em que toda música seja apenas boa música, ao mesmo tempo popular e
erudita. Qualquer música pode ser objeto de estudo, mas talvez nem todas devam ser objeto
de ensino. A questão não é nova. Uma academia pode se tornar fatal para a espontaneidade
que se espera da criação do povo, além de incompetente. Mantle Hood, etnomusicólogo de
tendência musicológica, implantou a idéia da bi-musicalidade na UCLA, mal entendida por
muitos. Julgavam que o Programa de Etnomusicologia lá existente tendia a ser um
conservatório de música exótica, termo inaceitável. Confundia-se um procedimento
metodológico antecipatório do trabalho de campo, trazendo-o para dentro da Universidade
por via de instrutores nativos, com a performance da música do outro por nós próprios, para
fins de exibição pública, em detrimento dos nativos, apenas eles capazes de dominá-la a fundo
Os estudos do imensamente talentoso Tom Jobim com Koellreutter, entretanto, não o
prejudicaram.
Parece-me que seja o que se faça, deve ser uma decisão caso a caso, fruto de sensibilidade e
prudência. Evidentemente, escolas de música devem ensinar música, a melhor música, ainda
que através dela busquem uma compreensão mais fiel do homem e da sociedade em que ele
vive.
O melhor Caymmi é o próprio Caymmi, com o seu violão. É possível se tomar uma de suas
canções como ponto de partida para outras obras, amplificadoras e transformadoras, como se
tem feito desde tempos imemoriais com outros, e como os próprios Widmer e Lindembergue
o fizeram. Mas não me sinto bem com a idéia de fazermos arranjos sinfônicos como favor à
música dos outros. Provavelmente não necessitam deles. Temos, evidentemente, de lutar
(sem guerra) pela nossa música, seja o que isto seja, tenha sido, ou vá ser.

Salvador, 3 de julho de 2004

Manuel Veiga

[1]
Parcial elaboração de fatos pessoais e reflexões em torno da história da Escola de Música da
UFBA em seu cinqüentenário, este artigo teve sua primeira parte publicada pela Revista da
Bahia, publicação da Fundação Cultural do Estado da Bahia em seu v. 32, nº 39, pp. 5 – 24.
Os itens 2 e 4 foram reformulados sendo o 4 predominantemente inédito.

[2]
A estimativa para 2004, ainda do IBGE, é de 179.094.547 habitantes.
[3]
Sou grato a Luciano André da Silva Almeida (Luciano
Caroso) pela ajuda que me deu em levantar os dados do
mencionado Guia, assim como por vários outros comentários e sugestões sobre música popula
r de que tem vivência muito maior que a minha. Quanto a este último ponto,
agradeço também a Tito Baqueiro Cerejo e a Leandro de Magalhães
Gazineo pela troca de idéias sobre a vida musical baiana e brasileira,
o último ainda membro do Núcleo de Estudos Musicais [NEMUS] que coordeno.
As referências serão feitas seguindo o sistema autor-data.

[4]
Nascido em Itaparica, Damião Barbosa de Araújo (1778-1856) está
reconhecidamente entre os melhores compositores da Bahia.
Foi também mestre de capela da Catedral, como confirmou Dr. Pablo Sotuyo Blanco.

[5]
Domingos da Rocha Vianna (1807-1856),
“Mussurunga” por adoção do nome do engenho em cuja proximidade que fora ferido,
na Guerra da Independência, além de bom compositor, foi autor de
uma proposta à assembléia provincial para criação de um conservatório para a
Bahia, em 1846, sem sucesso.

[6]
Há poucas mas extraordinárias exceções no que concerne
à rede de educação musical formal praticamente inexistente, na Bahia.
A Escola Parque, criação de Anísio Teixeira, é um exemplo. A excelente tentativa de ajustar-se
uma escola de segundo grau à preparação de músicos,
o Colégio Manuel Novaes, um outro exemplo,
deu resultados muito promissores, mas ainda assim foi abortada. O fato continua:
a Divisão Preparatória, o atual Básico da Escola de Música,
deve funcionar como uma espécie de cornucópia invertida indispensável ao trânsito de talento
s promissores, em idade propícia, praticamente
aspirados para dentro do sistema em qualquer de seus níveis. Ainda não se
conseguiu, entretanto, que flutuasse sobre uma ampla rede de educação musical escolar,
achatando-se contra o fundo estéril de indiferença dos educadores.

[7]
A Biblioteca da Escola de Música da UFBA possui um exemplar de A universidade e
a música (uma memória), de uma edição limitada a
50 exemplares, prova do autor, feita em 2003, à qual se seguirá brevemente (outubro, 2004)
uma segunda edição muito aumentada. Os compositores da Bahia devem a
Piero um estilo musicográfico inconfundível que aplicou na publicação de
muitas obras de nossos compositores, inclusive num volume de composições de Lindembergue
Cardoso, parte de um projeto de publicação de suas obras completas. Hoje o Coda-
Finale, complexo software,
elabora digitalmente partituras sem recurso às técnicas de desenho ou de impressão, além de
permitir sua execução por computadores.
[8]
A Academia Brasileira de Música arquiva um depoimento, da série “Trajetórias”,
de setembro de 2001, para alguém que possa se interessar por detalhes.

[9]
Hoje Consuni e Consepe
(Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão), respectivamente.
[10]
Marshall não se limitou a uma mera assessoria de música.
Enveredou pelo levantamento do folclore musical baiano,
tendo feito gravações em arame, por volta de 1948, que infelizmente não foram localizadas.
O saudoso mestre Thales de Azevedo não perdia oportunidade de nos lembrar disso.
[11]
Também entre os beneditinos da
Bahia que não raro contaram com músicos importantes. Ainda alcancei um deles, para quem c
heguei a tocar.
[12]
Cf. M. Veiga, 1998.
[13]
Agradeço a Hugo Leonardo Ribeiro, também do NEMUS, o acesso aos manifestos de 1944 e
1946 transcritos em seu trabalho, “Grupo de Música Viva”, redigido em setembro de 2000.

[14]
Fez parte da novidade designar-se uma instituição pelo que seria
uma maneira de transmitir conhecimentos, o seminário. “O Seminários” (a instituição)
é um problema constante de concordância, mas parece ser a maneira de nos referirmos
à escola, instituto, faculdade, ou o que fosse. O
“Livres” também foi outra fonte de ambigüidade, vez que havia currículos a serem
cumpridos, embora tal a
fluidez que as matérias cursadas em contínuo, até a realização de exames finais,
eram apenas numeradas por semestre, quer o estudante as cursasse ou não.
Os currículos também eram alterados, acrescentados, diminuídos, ao bel-
prazer da Direção. Outra novidade foram as notas dadas ao reverso, parece-
me que à maneira alemã: 1 representava a nota mais alta; 5
a mais baixa. Durante anos tivemos problemas para emissão de históricos escolares inteligíveis
.

[15]
O “Uvirundu” da crítica de Jorge Antunes. Nacionalista me parece, mesmo que seja à força.

[16]
Sou grande admirador de Mário de Andrade e, às vezes, chego a dizer coisas que não sei
se são minhas ou dele, como é o caso, embora ache que não sejam.

[17]
“Música é a arte da não-mudança flexível”.
[18]
O atual Instituto de Música da UCSAL é de 1897, o segundo mais antigo do Brasil.

[19]
A conclusão é realmente do Dr. John Harrison, do setor de Humanities da Rockefeller
Foundation, em Nova York, com o qual eventualmente concordei.

[20]
Comunicação pessoal de sua esposa, D. Lucy P. Cardoso.
[21]
A Lei 3.857/60 criou a Ordem dos Músicos e regulamentou
a profissão de músico. Não foi feliz desde o início, deixando-
se influenciar por favorecimentos injustificáveis.
Incumbiu privativamente “ao compositor de música erudita e
ao regente”, entre outros de seus exageros, “dirigir estabelecimentos de ensino musical” (Art.
30, item i). A definição e regulamentação dos cursos, que viriam seis anos mais tarde,
hierarquizaram-nos na mesma linha de discriminação. Para serem operacionais,
os cursos superiores de instrumento e canto foram
enquadrados em curta duração: mínimo de três a cinco anos, carga horária total em torno de
1.600 horas, parâmetros totalmente inadequados e irreais para a situação de infraestrutura
do ensino musical
do país. Centenas de cursos optariam pelo mínimo de três anos. Para impedir a proliferação de
cursos de composição e regência, tidos como de cumeada, fizeram-
nos intermináveis: seis a oito anos, bem mais de 3.600 horas. Respeitadas as habilitações,
a formação superior dos músicos não é para diferir tanto. Inaugurava-se um sistema de
contínuas transferências internas entre os cursos, em instituições sérias, e
uma enorme diversidade de padrões de admissão (e de saída) que permanece até hoje,
dificultando a transferência externa, entre instituições, e
o ensino de disciplinas comuns a vários cursos. Pior aconteceu com Teatro: com o
enquadramento do Curso de Formação de Atores em nível médio, criou-
se um teatro de diretores, cenógrafos e
iluminadores, estes de formação superior, enquanto vigorou. Para se ser ator, disse-me
Manuel Diegues, era necessário apenas se ser desinibido e se ter um bom diretor.

[22]
Agradeço ao Dr. Paulo Sotuyo Blanco a identificação de um nome que nunca nos foi
de fato anunciado, antes adivinhado. O uso das aspas não era muito divulgado
nesses primeiros tempos.

[23]
Para um tratamento mais sisudo remeto o leitor para o artigo ‘Música, músicos,
musicólogos” (M. Veiga, 1998: 34-35).
[24]
Alan P. Merriam, The Anthropology of Music (Evanston, Ill.: Northwestern University Press,
1964).

[25]
Bruno Nettl, The Study of Ethnomusicology: Twenty-Nine Issues and Concepts (Urbana, Ill.:
University of Illinois Press, 1983).

[26]
“eficácia específica [de música] através da qual ela preenche o requisito da situação, isto é,
responde a um propósito objetivamente definido, isto é a equação de função com finalidade”.

[27]
Joseph Kerman, Contemplating Music, Challenges to
Musicology (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1985.
[28]
Pascal Quignard, Ódio à música, tradução de Ana Maria Scherer (Rio de Janeiro: Rocco,
1999).
[29]
Também muito lembrada é a atuação da polícia, no controle dos candomblés, pela
irreverente apreensão dos atabaques, os instrumentos sacros que fazem a comunicação com
os orixás. Isso perdurou na Bahia até o I Seminário de Cultura organizado pelo então prefeito
Jorge Hage. Uma indicação unânime do Seminário foi logo acatada pelo então governador, Dr.
Roberto Santos, por volta de 1976.

[30]
Jean-Jacques Nattiez, Fondements d’une sémiologie de la musique. (Paris: Union générale
d’éditions, 1975).

[31]
Jean Molino, “Facto musical e Semiologia da Música”, in Semiologia da Música, Maria
Alzira Seixo, ed. (Lisboa: Veja Universidade, s/d), pp. 133-137.
[32]
O texto “Moral e Música” está disponível no seguinte
endereço: http://bibliopgemus.sites.uol.com.br/mm.htm
[33]
O pioneiro da educação musical no Brasil, nesse sentido mais restrito, é o Jesuíta Irmão,
posteriormente Pe. Antônio Rodrigues, uma das aquisições da Companhia de Jesus no Brasil,
embora natural de Lisboa. Já andava pela Bahia em 1556, tendo construído a igreja de Nossa
Senhora, na aldeia do Rio Vermelho, onde residiu com Nóbrega. Foi professor de flauta dos
meninos (nheengaraíbas) que tocaram na festa de Jesus que se realizou no Colégio da Bahia,
em 1565. Faleceu no Colégio do Rio de Janeiro, em 1568, segundo notas do volume 3
de Cartas Jesuíticas, que trata de José de Anchieta (Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP,
1988), pp. 68-69.
[34]
O ritmo harmônico é o coeficiente de mudança das harmonias em relação ao tempo. Não
deve ser confundido com o andamento da música. No caso do hino, cujo andamento é lento, o
ritmo harmônico é rápido porque muda a cada batida.

[35]
Peter Burke, A Cultura Popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800, tradução de
Denise Bottman (São Paulo: Companhia das Letras, 1989).

[36]
Charles Seeger, “United States of America: II. Folk Music 1-5.” In The New Grove, Stanley
Sadie, ed. 20 vols. (Londres: MacMillan, 1980). Vol. 19, pp. 436-447. “A dicotomia ‘oral versus
escrito’ é enganadora: só se pode aprender a escrever e ler palavras e notas por meios orais-
aurais.” (p. 436).

[37]
“pode haver música artística em sociedades tribais e música folclórica em sociedades
industriais. Os dois tipos de música comentam sobre a condição humana: na música folclórica
o comentário é expresso pela situação social que o acompanha e não pela música; na música
artística é expresso pela música e não necessariamente pela situação social. . . . A única
distinção útil que os termos ‘folc’ e ‘arte’ podem expressar são diferenças de processo, dos
meios pelos quais as experiências de indivíduos na sociedade podem ser expressas. Os termos
não são certamente indicações acuradas de diferenças musicais.”

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