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Lei do Valor e a Economia Soviética: implicações para o debate sobre a transição

Marcelo Dias Carcanholo1

1- Introdução
A vitória da revolução socialista na Rússia em 1917 não foi a primeira vez onde
as questões de como organizar os períodos de transição pós-revolucionários se
colocaram2. Entretanto várias especificidades da revolução russa ajudaram, dentre
outras coisas, a desmistificar a concepção mais mecanicista dos processos de revolução,
presente em muitas das interpretações marxistas. O fato de se tratar de um país muito
atrasado economicamente, com um parco desenvolvimento das forças produtivas, o que,
para a concepção mecanicista é um entrave, impedimento para a revolução3, já define
uma marcante especificidade do processo revolucionário russo. Adicione-se a isso a
constituição de um partido revolucionário, com forte influência e participação das
massas, sem nenhum compromisso com uma saída burguesa para uma situação de crise,
como a enfrentada pela Rússia naquele momento.
Não é por outra razão que Trotsky interpreta o processo revolucionário russo
dentro do que chamou desenvolvimento desigual e combinado:
“As leis da história não têm nada em comum com o esquematismo pedantesco. O
desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, não se revela em nenhuma parte,
com maior evidência e complexidade do que no destino dos países atrasados. Açoitados pelo chicote das
necessidades materiais os países atrasados se vêem obrigados a avançar aos saltos. Desta lei universal do
desenvolvimento desigual da cultura decorre outra que, por falta de nome mais adequado, chamaremos de

1
Professor Associado da Faculdade de Economia da UFF, membro do Núcleo
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e Marxismo (NIEP-Marx/UFF),
Presidente da Sociedade Latino-americana de Economia Política e Pensamento Crítico
(SEPLA).
2
A Comuna de Paris em 1871 é, por exemplo, um dos exemplos pioneiros, sobre o
qual, aliás, tem-se uma conhecida e importante análise de MARX, Karl. A Guerra Civil
na França. São Paulo: Boitempo, 2011.
3
O argumento do atraso econômico é utilizado ainda hoje para sustentar algumas ideias
– já presentes na posição menchevique - segundo as quais a experiência soviética teria
se frustrado justamente porque não existiam as necessárias condições objetivas de
desenvolvimento das forças produtivas para a revolução. GETZLER, Israel. “Outubro
de 1917: o debate marxista sobre a revolução russa”. In: HOBSBAWN, Eric (Org.)
História do Marxismo V: o marxismo na época da terceira internacional; a revolução
de outubro; o austromarxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, por exemplo, mesmo
antes da derrocada da URSS, já sustentava, além de certa acusação moralista de
ditadores contra a posição bolchevique, que a experiência seria derrotada em função do
atraso econômico.
lei do desenvolvimento combinado, aludindo à aproximação das distintas etapas do caminho e à confusão
de distintas fases ao amálgama de formas arcaicas e modernas”.4
Do ponto de vista histórico, o atraso econômico5 ainda é agravado pelo processo
de saída da Rússia da I Guerra Mundial, imediatamente após o triunfo da revolução, e
pelo estouro da guerra civil, que se conforma em função da reação do velho regime, que
reluta em fenecer6.
É este contexto histórico, político e econômico que define o objetivo deste texto.
Não se trata, aqui, de resgatar a história econômica da URSS, mas, a partir de alguns
momentos dela, resgatar alguns elementos que nos permitam concluir algo a respeito
dos processos de transição do capitalismo para o socialismo7, processos inescapáveis
para qualquer revolução que se pretenda anticapitalista.
Tomado o poder, o que nunca é uma garantia nos processos revolucionários,
vem a questão que aqui nos interessa: como organizar a vida social e econômica nos
períodos de transição, ainda mais levando em consideração que (i) se trata de uma
pequena parte da economia mundial, onde impera a lei do valor; (ii) essa pequena parte
está inserida em zonas periféricas, dependentes do capitalismo mundial; (iii) até em
função de (ii), mas agravado pelas especificidades da Rússia na época, com um forte
atraso econômico e parco desenvolvimento das forças produtivas8?

4
TROTSKY, Léon. História da Revolução Russa. Tomo I, São Paulo: José Luís e Rosa
Sundermann, 2007, p. 21.
5
“...é precisamente no campo da economia que se manifesta com seu máximo relevo a
lei do desenvolvimento combinado”. TROTSKY, León. Op. Cit., p. 24-25.
6
Embora o exército branco, braço armado do velho regime, tenho sido derrotado em
1920, costuma-se conceber o triunfo definitivo da revolução em 1922, quando se
constitui a URSS.
7
Não é incomum encontrar na literatura sobre o assunto tanto o termo “socialismo”
como “comunismo” para designar a sociedade pós-capitalista que se estabelece após os
processos revolucionários. Como as transformações sociais não são abruptas,
instantâneas, o que pressupõe períodos de transição histórica entre um e outro modo de
produção, alguns preferem caracterizar a fase de transição como “socialismo” e a nova
sociedade, plenamente estabelecida, como “comunismo”. Aqui utilizamos os dois
termos indistintamente, salvo quando for estritamente necessário.
8
O debate sobre as economias de transição está longe de ser um tema novo. A
convivência do planejamento com o mercado (lei do valor) em economias pós-
revolucionárias é tão antigo quanto os próprios processos revolucionários
anticapitalistas. ALBUQUERQUE, Eduardo M. “Plano X Mercado na História do
Pensamento Econômico: quatro rodadas de um grande debate”. Estudos Econômicos, v.
38, n.2, São Paulo, abril-junho, 2008, p. 373-395., procura resgatar sinteticamente o que
ele chama de distintas rodadas desse debate. Entretanto, nos parece, esse resgate é muito
preliminar e superficial. Pericás, Luiz B. Che Guevara e o debate econômico em Cuba.
São Paulo: Xamã, 2004, MANDEL, Ernest. Socialismo X Mercado. 2ed., São Paulo:
Ensaio, 1991, e KATZ, Claudio. El Porvenir del Socialismo. Buenos Aires: Imago
2- Lei do Valor, Capitalismo e Economia Socialista: os períodos de transição

O objetivo deste texto requer que, desde o início, deixemos claro o significado
da lei do valor e sua relação com as leis gerais da economia capitalista, uma vez que
uma economia socialista possui, ao menos, a intenção de se contrapor a essas leis.
È amplamente conhecido o fato de que o próprio Marx não deixou tantas
reflexões sobre o que viria a ser uma economia socialista (comunista)9, até porque a
reflexão sobre uma sociabilidade que (ainda) não existe é, para um pensador de bases
materialistas e dialéticas, um contrasenso.
O que faremos nesta sessão é procurar entender o que é característico de uma
economia (sociabilidade) capitalista para, a partir daí, como o socialismo se pretende ser
uma negação deste tipo de sociabilidade (i) por oposição ao capitalismo, ensaiar
algumas reflexões sobre o que pode vir a ser uma economia (sociabilidade) socialista
(comunista), e (ii) mais importante para os objetivos deste trabalho, caracterizar melhor
as economias de transição, que se caracterizam justamente por conformar uma unidade
dialética entre as (algumas) leis gerais do modo de produção capitalista, ao mesmo
tempo em que são construídas “legalidades” da nova sociedade.
Em primeiro lugar, o que Marx entende em O Capital por lei do valor não é,
como pensam alguns, uma adequação da forma-preço (aparência) ao seu fundamento
(essência) o valor, o trabalho humano. É muito mais do que isso. Se o capital é um valor
que se valoriza a si mesmo, no processo de circulação do capital, então a lei do valor
nada mais é do que, em determinações mais abstratas, o conjunto de legalidades do
valor-capital, isto é, do capitalismo. A teoria do valor em Marx é, portanto, uma teoria

Mundi-Herramienta, 2004, são referências melhores. Especificamente sobre o Grande


Debate em Cuba, esquecido por Albuquerque, pode-se consultar DEUTSCHMANN,
David e SALADO, Javier (Orgs.). Gran debate sobre la economía en Cuba 1963-1964.
La Habana: Ocean Press, 2003, assim como NAKATANI, Paulo e CARCANHOLO,
Marcelo D. “A Planificação Socialista em Cuba e o Grande Debate dos anos 1960”.
Outubro, São Paulo, 2007, p. 195-231.
9
Dentre essas poucas reflexões estão seus escritos sobre a Comuna de Paris, o
Manifesto do Partido Comunista e a Crítica do Programa de Gotha. Entretanto, é de
ressaltar vários trechos dos Grundrisse em que Marx se arvora a comentar o que poderia
ser uma sociedade socialista a partir do próprio desenvolvimento dialético do
capitalismo. ROSDOLSKY, Roman. Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx.
Rio de Janeiro: Contraponto/EdUERJ.Rosdolsky, 2001, cap. 28, faz um bom resgate
desses trechos.
do capitalismo. O valor é a forma pela qual as relações sociais, no capitalismo, são
intermediadas pela troca de mercadorias, segundo equivalentes. Valor (como
determinação mais abstrata do capital) não é uma categoria trans-histórica, que possa
ser pensada em sociabilidades pré-capitalistas e, muito menos, em sociedades pós-
capitalistas.
Apenas com isto, idealizar um socialismo de mercado, muito além da
convivência, em períodos de transição do capitalismo para o socialismo/comunismo, da
lei do valor com outras formas (anticapitalistas) de sociabilidade, é, ao menos para
Marx, um disparate.
“Observar el mercado como un ente perpetuo implica – en última instancia – desconocer el
carácter social de las relaciones capitalistas y aceptar la cosificación de las categorías, que ese sistema
reproduce a medida que se expande su dominación”.10
Em segundo lugar, e decorrente do anterior, a “sobrevivência” da lei do valor em
períodos pós-revolucionários só faz sentido dentro dos períodos de transição na
construção do pós-capitalismo. Katz, por exemplo, faz uma coerente defesa do
argumento de Trotsky para como deveria ser uma economia de transição. Em primeiro
lugar, a regência/direção do processo econômico deveria ser dada pelo planejamento.
Em segundo lugar, o mercado (lei do valor) atuaria como verificador das decisões no
plano individual, mas subordinado ao tal planejamento. Por último, os problemas de
não-coordenação que, por ventura, adviessem da relação do primeiro com o segundo
deveriam ser corrigidos por um mecanismo de democracia plena, isto é, não poderiam
ser dirimidos por um poder centralizado, vertical e burocrático.11
Evidentemente, trata-se de um programa de transição, rumo ao socialismo
(comunismo) e, portanto, no longo prazo, com a redução progressiva do segundo
elemento, ou seja, do papel do mercado como regulador das decisões econômicas.
Como ressalta Mandel (1969: 259):
“durante el periodo de transición del capitalismo al socialismo, la socialización de los medios de
producción está todavía ligada a la apropiación privada del producto necesario en forma de salario, de
cambio, de venta de la fuerza de trabajo por un salario en dinero, además, una parte del sobreproducto
social está todavía apropiado en forma de privilegios individuales de consumo…el interés privado
continúa, pues, siendo el estimulante fundamental del esfuerzo económico de los individuos. La economía
sigue siendo monetaria”.12
Acrescentaríamos que, muito além da economia, durante o período de transição,
ainda ser monetária, em certo sentido, ela ainda é capitalista, ou seja, a lei do valor, com
todo seu significado, continua atuando. Justamente por isso se trata de um período de

10
KATZ, Claudio, Op. Cit., p. 40.
11
KATZ, Claudio, Op. Cit., cap. 2.
12
MANDEl, Ernest. Tratado de Economía Marxista. Tomo II. México: Era, 1969.
transição. Ou a estratégia sócio-econômica, em função da conjuntura histórica
específica, das contradições internas e externas à experiência em questão, se direciona
para diminuir progressivamente a atuação da lei do valor, do capital, ou então essa
experiência específica está fadada ao fracasso.
Esse caráter não direto da transição do capitalismo para o socialismo
(comunismo), definindo um período complexo de economia mista, onde coexistem
características tanto da sociabilidade que se procura encerrar quanto da que se estaria
construindo, é percebido em uma passagem clássica de Marx em sua Crítica ao
Programa de Gotha:
“Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação
escravizada dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e
manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira
necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças
produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas
então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever
em sua bandeira: ´de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades´ ”.13
Neste trecho, Marx nos fornece duas pistas. Inicialmente, delineia o que seriam
os traços gerais de uma sociedade comunista, pela negação do que é a subordinação dos
seres humanos ao trabalho, ou, mais rigorosamente, ao destino dos produtos de seus
trabalhos individuais (mercadorias), do que pelo lineamento das características do que
seria essa nova sociedade. Afinal, trata-se de construi-la concretamente, e não de
idealizá-la, para depois aplicar na realidade concreta essas idealizações. Marx podia ser
socialista, mas não era idealista. Em seguida, o autor constata que essa sociedade
comunista só poderá se efetivar como tal quando os últimos resquícios da sociabilidade
capitalista forem superados, o que requer um período de transição, portanto, onde
convivem características das duas sociedades.
Este período de transição entre a sociedade capitalista e a nova sociedade
comunista, além da convivência contraditória entre algumas de suas características
sócio-econômicas, também implica um papel específico do Estado. Marx também
percebeu isso:
“Pergunta-se, então, por que transformações passará o ordenamento estatal numa sociedade
comunista? Em outras palavras, quais funções sociais, análogas às atuais funções estatais, nela
permanecerão?...entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação
revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado
não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado”.14
Este trecho é tão famoso quanto incompreendido, uma vez que, dizem alguns,
aqui se constata o caráter ditatorial da proposta de Marx para os processos

13
MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo 2012, p.31-32.
14
MARX, Karl. Op. Cit., 2012, p.43.
revolucionários. Por que o período de transição exige uma ditadura revolucionária do
proletariado? Justamente porque é um período de transição, e as características da
sociabilidade capitalista, em especial a lei do valor, continuam atuantes, e, em certo
sentido, dominando as relações sociais, na medida em que estas são intermediadas pelas
trocas de mercadorias equivalentes, em uma economia mercantil (ainda que em um
momento de transição pós-revolucionário). Como a lei do valor (leis do capitalismo)
não é abolida espontaneamente, o que significa, inclusive, que os interesses de (frações
de) classe favorecidos por essa lei possuem mecanismos sociais de preservação, um
processo, efetivamente revolucionário, deve “revolucionar” (romper com) essa lei.
Justamente porque interesses fortes serão contrariados, interesses que tendem a dominar
aparelhos do Estado, o prosseguimento da revolução tem que ser feito por encima desse
Estado, por encima da legalidade (capitalista), pelo que Marx chamou de ditadura
revolucionária do proletariado! Querer que o comunismo/socialismo seja construído
com base nas legalidades do próprio capitalismo – sob a escusa de não ferir a ordem
legal (democracia, no sentido formal-burguês) – significa, no final das contas, defender
a continuidade do capitalismo15.

3- O período do chamado Comunismo de Guerra (1918-1920)

Voltando para a experiência soviética na construção do socialismo, o exato


momento pós-revolucionário, ainda dentro do contexto da guerra civil que se seguiu à
revolução, definiu o período que se chamou de comunismo de guerra. Para ser mais
exato no período de poucos meses após a Revolução, na passagem de 1917 para 1918,
viveu-se uma experiência baseada nas famosas Teses de Abril de Lenin, curto período
conhecido como o capitalismo de Estado.16

15
Ainda sobre o papel do Estado na transição, LENIN, Vladimir I. O Estado e a
Revolução: o que ensina o marxismo sobre o Estado e o papel do proletariado na
Revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 39, é claro ao sustentar que “a
substituição do Estado burguês pelo Estado proletário não é possível sem uma
revolução violenta. A abolição do Estado proletário, isto é, a abolição de todo e
qualquer Estado, só é possível pelo ´definhamento´”.
16
MIGLIOLI, Jorge. “Formação do Sistema Soviético de Planejamento”. Revista Novos
Rumos, n.2 (11), Unesp, Marília, 2012.
Mandel nos lembra que o programa do primeiro governo bolchevique não
incluía a expropriação imediata de todos os capitalistas17, embora já promovesse a
instalação do controle operário das empresas, o que envolvia tanto o aprendizado da
gestão, quanto a vigilância dos diretores “capitalistas”, a nacionalização de bancos,
solo/subsolo e, em termos progressivos, dos principais setores monopolizados da
economia, a revogação da dívida externa e a distribuição de terras entre camponeses.
Ainda segundo Mandel, “el conjunto de esas medidas no hubiera significado un cambio
radical cualitativo de la estructura social económica rusa”.18
Nesse curto período do capitalismo de Estado não se pretendia eliminar a
propriedade capitalista, nem suprimir o mercado, mas tão somente garantir o controle do
Estado sobre essas características. Segundo Miglioli, “visava-se a um processo gradual
de socialização, no qual a instalação do capitalismo de Estado – como regime misto –
era o primeiro passo”.19
A guerra civil que se estabeleceu depois da revolução contribuiu, em muito, para
a aceleração do processo revolucionário e da construção do socialismo, principal
diferença com o período anterior, do capitalismo de Estado, estabelecendo o comunismo
de guerra20. Nesse período o planejamento como diretriz econômica até foi pensado,
mas não chegou a ser realizado, muito em função da situação caótica dada pela guerra
civil.
Do ponto de vista da estrutura produtiva, na agricultura, estabeleceu-se o
monopólio estatal do trigo, a apropriação compulsória dos excedentes de produtos
considerados de maior necessidade e a expropriação dos kulaks (camponeses ricos). No
setor industrial, a nacionalização foi total, fazendo com que a produção ficasse
inteiramente nas mãos do Estado, e o gerenciamento das empresas com controle

17
Frente à óbvia questão do que fazer após a tomada do poder, Hobsbawn, Eric (1995)
Era dos Extremos: o breve século XX – 1914 – 1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995,
p. 69-70 afirma que “o novo regime pouco fez sobre o socialismo, a não ser declarar que
esse era seu objetivo, tomar os bancos e declarar o controle dos ´operários´ sobre as
administrações existentes, isto é, apor o selo oficial ao que já vinham fazendo de
qualquer modo desde a Revolução, enquanto os exortava a manterem a produção
funcionando. Nada mais tinha a dizer-lhes”.
18
MANDEL, Ernest. Op. Cit., 1969, p. 162.
19
MIGLIOLI, Jorge. Op. Cit., p. 43.
20
“Desde fines de 1918, la nacionalización de los bancos del gran comercio, de toda la
industria, de toda la propiedad extranjera, así como el establecimiento de un monopolio
estatal del comercio exterior, crean una estructura económica y social nueva en Rusia”
(Mandel, Ernest. Op. Cit., 1969, p. 162). Essa estrutura econômica e social nova é
justamente o comunismo de guerra.
centralizado. No setor de serviços, manteve-se o monopólio no comércio exterior, e
ampliou-se a nacionalização de bancos, companhias de seguro e transportes.
Neste período de comunismo de guerra, e até pelo contexto da guerra civil, o
processo de expropriação do capital privado (nacionalização) se acelerou. A
característica principal dessa época foi a forma em que o excedente da produção
agrícola e, em alguns casos, até do produto necessário para a própria manutenção do
setor, assumiu: o confisco (entrega obrigatória de parte da produção agrícola para o
Estado). Além disso, este período inicial da economia de transição englobou a
nacionalização quase total, especificamente a maior parte das indústrias de escala
reduzida, a proibição de comércio privado, a centralização da planificação e do controle
e a desmonetização parcial da economia, com as transações entre organismos estatais
sem a intermediação monetária.
Surge a questão com que todo e qualquer processo revolucionário se depara,
tendo em vista a necessidade de prosseguimento do processo econômico produtivo:
“...durante a guerra civil se revelou ilusória a hipótese de que sob o poder soviético os
capitalistas permanecessem à frente de suas empresas e continuassem a dirigir suas atividades produtivas
ou comercias. De fato, na grande maioria dos casos, eles fugiram das regiões dominadas pelos
bolcheviques, e aos órgãos operários de controle também coube a tarefa de gestão das empresas”.21
Se já seria, no mínimo, temerário apostar na famigerada burguesia nacional para
um projeto independente e autônomo de uma economia atrasada, dependente da lógica
mundial de acumulação, ainda dentro dos marcos do capitalismo, imagine-se em um
processo revolucionário. Daí a necessidade concreta da nacionalização e centralização
do gerenciamento produtivo nas mãos do Estado.
As características do período de comunismo de guerra contribuíram para que a
produção agrícola não se tornasse dinâmica. Em 1921, a produção do setor foi
catastrófica, ainda refletindo as conseqüências da Guerra Civil. A Nova Política
Econômica (NEP), com a introdução de elementos mercantis na economia de transição,
está muito relacionada com esta falta de dinamismo.
Além disso, o comunismo de guerra foi abandonado muito em função das
contradições políticas que implicava. Se a aliança operário-camponesa tinha sido o
alicerce sócio-político da Revolução Russa, o rechaço dos camponeses à política
econômica do comunismo de guerra gerou uma tensão insustentável para essa aliança.

21
HEGEDÜS, András. “A Construção do Socialismo na Rússia: o papel dos sindicatos,
a questão camponesa, a nova política econômica”. In: HOBSBAWN, Eric (Org.)
História do Marxismo VII: o marxismo na época da terceira internacional; a URSS
como construção do socialismo ao stalinismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 17.
Por outro lado, reforçando o anterior, o isolamento da Revolução Russa no cenário
internacional, frente ao fracasso de processos revolucionários em outros países, exigiu a
manutenção dessa aliança operário-camponesa, o que conflitava com a estratégia
econômica do comunismo de guerra. Todas estas questões econômicas, políticas e
sociais definiram um quadro dentro do qual a revisão da estratégia parecia ser
inevitável. Abria-se a necessidade do período da NEP.

4- NEP (1921-1928)

A opção pela NEP consistiu, basicamente, na reabertura de espaço para a


atuação do setor privado na economia, após a fase do “comunismo de guerra”:
“La NEP se caracteriza por la supresión de las medidas de requisa, sustituídas por un impuesto
progresivo en especie, por el restabelecimiento de la libertad de comercio y la reaparición de un mercado,
por la vuelta a la economía monetaria, por la tolerancia de la pequeña y mediana industria privada, por la
petición, bajo control estatal, de inversiones extranjeras”.22
A NEP implicou, por um lado, a substituição das direções gerais centralizadas
nas empresas pelos trustes23, com autonomia relativa para administrar os processos
econômicos e, por outro lado, a introdução de elementos de incentivo material e
econômico para os setores. Assim, esta nova estratégia econômica significou um recuo
para a ampliação do espaço mercantil na sociabilidade pós-revolucionária. Não é
surpreendente, portanto, que sua introdução tenha levado ao famoso grande debate
sobre as estratégias econômicas dali por diante.
Tratou-se de reverter medidas do período anterior que aprofundavam a
constituição de uma economia genuinamente socialista, ao mesmo tempo em que se
diminuía a vigência da lei do valor, da economia capitalista24. Segundo um árduo
defensor do chamado socialismo de mercado, embora em muitos momentos ele pareça
ser mais simpático ao mercado do que ao socialismo, “a NEP, portanto, tornou-se um
modelo de economia mista na qual os setores fundamentais (a indústria em larga escala,

22
BROUÉ, Pierre. El Partido Bolchevique. Madrid: Ayuso, 1963, p. 206.
23
“Nos anos da NEP, os trustes podiam comprar e vender com liberdade quase plena,
até no mercado livre. Em princípio, deviam atender às encomendas dos órgãos estatais
só no caso em que os preços oferecidos correspondessem aos do mercado livre”
(HEGEDÜS, András. Op. Cit., p. 34-35).
24
As medidas da NEP, neste sentido, incluíram a interrupção na coletivização da terra, a
liberalização da comercialização do excedente agrícola, a desnacionalização de
pequenas e médias empresas (na indústria e no setor de serviços) e o aumento da
independência decisória nas indústrias ainda nacionalizadas (MIGLIOLI, Jorge. Op.
Cit.).
grande parte do comércio no atacado, o comércio exterior) eram controlados pelo
Estado, mas onde o próprio setor estatal tinha de agir também em um contexto de
mercado; através de um acordo (sic) com os consumidores, a direção estabelecia a
proporção relativa dos produtos, os custos deviam ser cobertos com o que fosse
conseguido com as vendas e o plano estatal se limitava, em grande medida somente aos
investimentos. Os camponeses foram liberados para cultivar e vender como bem
entendessem”.25
Do ponto de vista de recuperação da produção agrícola, e de sua rentabilidade,
as medidas parecem ter tido sucesso, se confiamos na estrutura de preços relativos como
bom indicador dessa rentabilidade. Tomando 1913 como base, igual a 100, os preços
dos 12 principais produtos agrícolas passaram de 104, em janeiro de 1922, para 113, em
maio do mesmo ano, enquanto que os preços dos principais 12 produtos industriais
passaram de 92 para 65, no mesmo período.26 Entretanto, já em 1923 essa tendência se
inverte drasticamente.
Mas não se tratou apenas do setor agrário. O sucesso da NEP poderia ser
atestado também se considerada a produção global, agrícola e industrial, que quase
recuperou o nível pré-bélico, permeado pela guerra civil, em 1926. Além disso, o
investimento em capital industrial de 1926 superou o patamar de 1913, sem a
necessidade de recorrer a grande financiamento externo que, diga-se de passagem, teve
a dívida externa revogada justamente com a vitória da revolução.27
Por outro lado, não é incomum a interpretação de que a NEP pode ser entendida
como uma reinterpretação do capitalismo de estado, isto é, como a necessidade de,
frente a uma economia atrasada, reintroduzir elementos mercantis, que promovessem o
desenvolvimento das forças produtivas, condição objetiva necessária para a retomada do
processo revolucionário – algo muito próximo da concepção mais mecanicista das
transformações sócio-históricas. Hegedüs sustenta que “segundo Lenin, a formação do

25
NOVE, Alec. “Economia Soviética e Marxismo: qual modelo socialista?” In:
HOBSBAWN, Eric (Org.) História do Marxismo VII: o marxismo na época da terceira
internacional; a URSS como construção do socialismo ao stalinismo. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1986, p. 108.
26
HEGEDÜS, András. Op. Cit., p. 35.
27
DAVIES, Robert W. “As Opções Econômicas da URSS”. In: HOBSBAWN, Eric
(Org.) História do Marxismo VII: o marxismo na época da terceira internacional; a
URSS como construção do socialismo ao stalinismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986,
p.85.
capitalismo de Estado28 é um recuo necessário a que o poder soviético foi obrigado pelo
atraso do país, e por isto esta via de transição poderá [poderia] ser evitada pelos partidos
que tomarem o poder nos países mais evoluídos”.29 Ademais da perigosa aproximação
desta concepção com a interpretação mecanicista da teoria da história em Marx, é de se
perguntar: a NEP foi mais um expediente inevitável para lidar com as contradições
políticas e econômicas da questão agrária, ou uma estratégia para a transição socialista?
Do ponto de vista mais geral, a recuperação econômica da URSS, durante o
período da NEP, ocorreu muito pelo aproveitamento da capacidade ociosa que a
estrutura produtiva do país acumulou durante o período de caos econômico. Uma vez
preenchida esta capacidade ociosa, colocou-se uma questão concreta: a continuidade do
processo de expansão teria que passar por acréscimos da capacidade produtiva, o que
requer elevação das taxas de acumulação. Este requisito, em uma economia de
transição, deve ser liderado pelo Estado, em um sentido de mais médio e longo prazo, o
que pressupõe alguma espécie de planejamento. Não por casualidade, isto consistiu, por
um lado, na explicitação dos limites da NEP e, por outro, ajuda a entender o
aparecimento do debate sobre a industrialização da economia soviética nos anos 1924-
1928.

5- Debate sobre a NEP: o famoso debate dos anos 20 na URSS

O famoso debate soviético dos anos 20 do século passado está inserido nas
disputas sobre a orientação econômica que o processo deveria seguir, principalmente
após a instalação da NEP, e se deu especialmente no âmbito da Academia Comunista de
Ciências da URSS30. Essas disputas passaram, basicamente por três fases: 1923, 1925 e

28
A discussão sobre uma fase denominada capitalismo de Estado ganha, nos dias atuais,
nova dimensão, em função até do que se debate a respeito da sociedade chinesa atual. O
que importa aqui, de acordo com a experiência da URSS, naquele período, é que “en los
años veinte, Lenin, Trotsky y Preobrazhensky subrayaron, respectivamente, la
importancia de una primera etapa de ´capitalismo sin capitalistas´, cuya duración
estimaban prolongada y no inferior a varias décadas” (KATZ, Claudio. Op. Cit., p. 44).
29
HEGEDÜS, András. Op. Cit., p. 38.
30
BALANCO, Paulo A. Socialismo e Mercado: a dialética econômica da transição nos
países atrasados e a ruptura stalinista. Tese (Doutorado em Economia), Instituto de
Economia, Unicamp, faz um resgate das posições de Lenin, Trotsky, Bukharin e
Preobrazhensky sobre a transição do capitalismo para o socialismo e, no caso específico
dos dois últimos, os termos em que se deu o debate dos anos 20, dentro do contexto da
NEP, sobre a industrialização da economia soviética.
1926-192731, e contrapuseram dois grupos, no que diz respeito a várias questões,
algumas delas aparentemente apenas conjunturais, mas expressavam, no fundo,
concepções distintas de como tinha que se dar o processo econômico na transição rumo
ao socialismo.
Além da centralidade do financiamento da industrialização no debate, um pano
de fundo concreto para o mesmo era o fato de que a economia soviética dependia
fortemente da exportação de grãos para a economia mundial, a fim de obter as divisas
necessárias para adquirir os produtos (inclusive industriais) de que necessitava. Trata-se,
portanto, de limitação estrutural que tradicionalmente marca as economias dependentes
no processo de acumulação mundial de capital.
Como sair da situação de dependência econômica quando a lei do valor opera
em escala mundial e, não menos importante, quando se intenta um processo
revolucionário de transição ao socialismo? A importância deste debate para os objetivos
do presente texto é mais do que óbvia.
Um primeiro grupo, chamado de “oficialistas”, defendia teses agrário-
monetaristas, combinando a defesa do aumento da renda agrária para que o campo
aumentasse seu poder de compra e, com isso, pudesse adquirir a superprodução
industrial, advinda do processo de industrialização, com concepções ortodoxas,
monetaristas, na condução das instituições econômicas e financeiras.
Esse grupo, tendo em sua liderança intelectual Bukharin32, terminava por
defender o setor agrário-camponês, que terminou prosperando, em função da
reintrodução de mecanismos de mercado na economia soviética, dentro do contexto da
NEP. Tratou-se verdadeiramente da constituição de uma próspera burguesia agrária.
A outra concepção era defendida por grupos de oposição, e propunha o repasse
de recursos da economia privada no campo para financiar o desenvolvimento da
industrialização, por meio de tributação progressiva. Em outras palavras, e contraposto à

31
Embora Lênin só faleça em 1924, sua debilidade física vinha de antes e, portanto, sua
capacidade de interferência política e intelectual no debate já estava limitada mesmo
antes de sua morte.
32
Em toda sua trajetória Bukharin modificou sua opinião, inclusive sobre questões
centrais. Curiosamente, para dizer o mínimo, suas mudanças de opinião, no plano
teórico, costumavam coincidir com a conveniência política que delas redundava nas
distintas conjunturas políticas na URSS. Ainda assim, não é raro encontrar defesas
arraigadas dessa “trajetória” oportunista, como é o caso de TELÕ, Mario. “Bukharin:
economia e política na construção do socialismo”. In: HOBSBAWN, Eric (Org.)
História do Marxismo VII: o marxismo na época da terceira internacional; a URSS
como construção do socialismo ao stalinismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
primeira concepção, não se tratava de aprofundar o enriquecimento da burguesia agrária
que, presumivelmente compraria (e terminaria financiando) a produção industrial. Ao
contrário, tratava-se de diminuir a apropriação do valor do setor agrário, que seria
repassado para o esforço industrializante. Do ponto de vista da disputa de classes,
dentro do processo de transição, este segundo grupo contrariava explicitamente os
interesses da burguesia agrária. Seu principal líder intelectual era Preobrazhensky.
A ideia central de Preobrazhensky era que a economia durante o processo de
transição era regulada por um duplo movimento. Por um lado, em função de que a
economia capitalista ainda não tinha sido integralmente aniquilada, operaria a lei do
valor33, e fundamentalmente porque a economia soviética estava inserida em uma
economia mundial regulada por esta lei (capitalismo) e, portanto, as transações
comerciais com o resto do mundo seguiam esta regulação34. Assim, a vigência da lei do
valor incluiria tanto os elementos mercantis que subsistiam internamente quanto a
influência crucial da economia mundial sobre os determinantes internos. Este último
aspecto denotava a importância que o monopólio estatal do comércio exterior, inclusive
no controle das divisas, adquire nos processos de transição.
Por outro lado, a economia socialista que se procurava construir exigia um
processo de acumulação (primitiva) socialista, justamente constituído pela já referida
taxação progressiva sobre o setor privado, basicamente o setor agrário. Mais
especificamente, o setor estatal abrangeria tanto a acumulação socialista sobre a base
produtiva da própria economia estatal, que deveria ser ampliada, quanto o que este autor
chamava de acumulação socialista primitiva, a acumulação estatal sobre a base de
recursos externos à atividade produtiva estatal35. A acumulação primitiva socialista era a

33
Esta percepção acertada do autor sobre a economia em períodos de transição não lhe
garantiu escapar de uma visão tão equivocada quanto comum do que é a lei do valor.
PREOBRAZHENSKY, Evgueni. A Nova Econômica. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979, p. 158-159, compartilha a visão que confunde valor com uma determinação
quantitativa e, pior, que a lei do valor opera quando este é igual ao preço. Assim, a lei
do valor só valeria para uma economia mercantil simples (com livre concorrência).
Segundo ele, “desde o período monopolista do capitalismo, a lei do valor é parcialmente
suprimida”. Como vimos, esta compreensão da lei do valor é muito mais herdeira do
pensamento ricardiano do que de Marx.
34
Perceba-se, já daqui, que concepções sustentadas com base no “princípio” do
socialismo em um único país desconhecem (ou desconsideram) a força da imposição da
lei do valor em sua operação em escala da economia mundial.
35
Este aspecto talvez seja o principal centro das críticas que este autor sofreu durante o
debate. Concluiu-se disso que Preobrazhensky propunha a extorsão do campo
(contrariando os interesses agraristas do setor e dos defensores do grupo oponente no
forma como Preobrazhensky formulava a economia em um período de transição, a lei
básica que regeria a economia mista, em um país atrasado economicamente (periférico,
dependente), dentro de um processo histórico de construção de uma sociedade
socialista.
Montoro percebe muito bem a concepção de Preobrazhensky sobre a unidade
dialética das duas leis nos processos de transição:
“...[Preobrazhensky] aborda sucesivamente la influencia de la ley del valor en la economía
soviética y la ´acumulación socialista originaria´ en tanto que ley. Se trata, por tanto, de las dos ´leyes´
que componen el doble regulador de la economía soviética entonces, una economía en transición que
presenta un carácter socialista-mercantil”.36
As duas leis formam uma unidade dialética porque constituíram uma
determinada formação social, a economia soviética de transição, cuja dinâmica
(unidade) comportava as duas legalidades. Se fosse apenas a lei do valor, sem sua
oposta “acumulação primitiva socialista” seria a continuidade da economia capitalista.
Se fosse apenas a última, sem a lei do valor, não se estaria mais em transição, o
capitalismo teria sido derrotado; viver-se-ia já uma sociedade pós-capitalista, com o
período necessário de transição ultrapassado.
Assim, para Preobrazhensky, a economia em transição do capitalismo para o
comunismo possuiria uma característica mista, com as duas leis convivendo
dialeticamente durante a transição, que pode ser caracterizada por ser uma economia
socialista, ainda não comunista, mas em transição para ela. A especificidade era ainda
maior, pois se tratava de uma economia atrasada, dependente, dentro do capitalismo
mundial. Para esse autor, isso justificava ainda mais a lei fundamental da acumulação
primitiva socialista:
“Quanto mais este ou aquele país, que passa à organização socialista da produção, é
economicamente atrasado, pequeno-burguês e agrícola, menor será a herança que recebe para seu fundo
de acumulação socialista o proletariado do país considerado no momento da revolução social – e mais,
relativamente, a acumulação socialista será obrigada a se apoiar sobre a apropriação de uma parte do
sobreproduto das formas pré-socialistas da economia e menor será a parte específica da acumulação
retirada de sua própria base de produção, quer dizer, menos ela se alimentará do sobreproduto dos
trabalhadores da indústria socialista. Ao contrário, quanto mais este ou aquele país, em que a revolução
social é vitoriosa, for econômica e industrialmente desenvolvido, mais será importante a herança material
– sob a forma de indústria altamente desenvolvida e agricultura organizada de forma capitalista – que o
proletariado deste país recebe da burguesia após a nacionalização; quanto maior for a parte específica no
referido país das forças pré-capitalistas, mais será necessário para o proletariado reduzir as trocas não
equivalentes de seus produtos contra os das antigas colônias e mais o centro de gravidade da acumulação

debate) e o espontaneísmo, no sentido de que se aceleraria uma industrialização pela


simples vontade de promovê-la.
36
MONTORO, Xabier A. Capitalismo y Economía Mundial: bases teóricas y análisis
empírico para la comprensión de los problemas económicos del siglo XXI. Madrid:
IME/ARCIS, 2014, p. 251.
socialista se deslocará para a produção com base nas formas socialistas, quer dizer, apoiar-se-á no
sobreproduto de sua própria indústria e sua própria agricultura”.37
Desde 1925-26 o debate passa a centrar-se preponderantemente na discussão
sobre o financiamento da industrialização, uma vez que esta última passa a ser
amplamente aceita pelos dois lados do debate. O debate também se expressa na
discussão sobre os primeiros projetos para os planos qüinqüenais, momento no qual os
“oficialistas” preponderam no Comitê Estatal de Planificação (Gosplan) e os grupos de
oposição, com suas posições industrialistas, no Conselho Supremo de Economia
Nacional (Vesenja).
O debate chega ao fim, não por casualidade, concomitantemente ao fim do
período da NEP:
“o conflito entre os dois pontos de vista opostos, o da ´planificação através do mercado´ e o da
´planificação superando o mercado´, cedo se colocou diante de uma verificação decisiva. Em outubro-
dezembro de 1927 os camponeses venderam aos armazéns oficiais somente a metade dos cereais
vendidos nos meses correspondentes de 1926. Com aquela quantidade de cereais, era impossível
alimentar as cidades e o exército”.38
O fim “prático” do debate econômico se dá quando em 1928/29 se acelera o
ritmo da industrialização forçada, e em 1929/30 (no inverno) é promovida brutalmente a
coletivização da agricultura. Assim, o debate se encerrou pelo simples fato de que ele
foi liquidado no momento em que Stalin implantou brutalmente a coletivização forçada
para uma industrialização acelerada, constituindo o que Montoro39 chamou de
Mecanismo Econômico Estalinista (MEE). Vejamos como se caracterizou este
mecanismo que norteou o desenvolvimento econômico da URSS a partir de então.

6- Caracterização do processo econômico na URSS: a coletivização forçada para uma


industrialização acelerada

Como nosso objetivo neste texto não é a história econômica da URSS


propriamente, mas a análise dessa experiência para o socialismo que se pretende
construir, nos basta resgatar alguns elementos dessa história para, em específico,
discutir criticamente o papel da lei do valor nos processos de transição.
Assim, o MEE conteve grandes distorções econômicas e, o que mais nos importa
aqui, contradiz o que seria, de fato, uma revolução socialista. Esta estratégia que acabou

37
PREOBRAZHENSKY, Evgueni. Op. Cit., p. 140-141.
38
DAVIES, Robert W. Op. Cit., p. 98.
39
MONTORO, Xabier A. Op. Cit.
caracterizando a economia soviética pós-grande debate está diretamente relacionada ao
aprofundamento dos processos decisórios totalitários na URSS a partir dessa época:
“...en diciembre de 1927, la oposición es expulsada del partido en el XV Congreso. El sector
“estalinista” se hace con el monopolio absoluto del aparato del Partido y del Estado. Desde dicho
monopolio y en contexto muy convulso, acabará impulsando el proceso conocido como gran viraje,
concretado en la colectivización forzosa y la industrialización acelerada”.40
Deve-se ressaltar que o MEE, além da coletivização forçada para a
industrialização acelerada41, pressupunha a concepção do “socialismo em um só país,
isto é, uma orientação autárquica. Do ponto de vista político, aproveitando-se da crise
da colheita em 1925-26, o estalinismo termina obtendo apoio das teses agraristas no que
se refere às relações econômicas externas dentro do debate:
“Ningún sector cuestionaba la necesidad de articular la economía soviética con la economía
capitalista mundial, pero sí tenían posiciones muy distintas en cuanto a la forma de esa articulación. Los
agraristas no cuestionaban el papel histórico que había desempeñado Rusia en la división internacional
del trabajo, agroexportador, lo que estaba vinculado a su defensa de la acumulación privada en el campo,
que les llevaba hasta el cuestionamiento del monopolio estatal en el comercio exterior. La oposición, por
su cuenta, defendía las relaciones con la economía capitalista mundial como un elemento imprescindible
para salir del atraso. Pero no podían ser una relaciones cualesquiera, sino que debían estar precedidas por
un manejo estratégico por el Estado, de todas las palancas a su alcance para contrarrestar y/o limitar la
influencia de la ley del valor”.42
Se o MEE43 se caracterizou por um processo de coletivização forçada no campo,
em um momento de crise agrícola e alimentar, como forma de acelerar o processo de
industrialização, como explicar essa aliança da burocracia estalinista com os agraristas?
Como visto, o princípio do socialismo em um só país, base constitutiva do que viria a
ser o MEE, coadunava com as posições dos agraristas sobre o tema das relações
econômicas externas. Além disso, e talvez mais importante, o MEE, em seu nascedouro,
não se propôs a contrariar os interesses dos camponeses enriquecidos durante a NEP,
flertando com a tese agrarista de como financiar a industrialização. Assim, em
dezembro de 1927, a burocracia, com o apoio dos agraristas, expurga os grupos de
oposição.

40
MONTORO, Xabier A. Op. Cit., p. 259.
41
A industrialização forçada começa oficialmente em 01/02/1930, sendo que o número
de fazendas coletivizadas saltou de 3,9% em 1929 para 52,7% em 1931, 61,5% em 1934
e 93% em 1937 (MANDEL, Ernest. Op. Cit., 1969, p. 167).
42
MONTORO, Xabier A. Op. Cit., p. 255-256.
43
MONTORO, Xabier A. Op. Cit., p. 271, faz uma boa síntese das características de
instalação do MEE na URSS. Para nossos objetivos aqui nos basta ressaltar justamente
a coletivização forçada, com tendências autárquicas, em um contexto histórico de crise
de colheita e dificuldades crescentes no comércio exterior, com atraso da indústria de
bens de consumo em toda sua trajetória (justamente para acelerar a taxa de
acumulação), e um controle extremamente centralizado da economia (tanto em
produção como em distribuição), com base nos planos qüinqüenais, o que pressupunha
também a supressão de direitos trabalhistas junto à forte repressão estatal.
Entretanto, o grupo agrarista (com posições bem mais a direita em relação aos
grupos de oposição, tanto por defender interesses de frações da classe burguês no campo
quanto por sustentar teses monetaristas-ortodoxas) também termina por ser,
posteriormente, expurgado. Frente às dificuldades econômicas do período, a burocracia
estalinista implementa a industrialização forçada, atacando os interesses dessa burguesia
agrária na medida em que promove a coletivização forçada do campo. Esse ataque a
certas vantagens dos camponeses provocou a ruptura na aliança agrarismo-oficialismo,
que terminou no expurgo dos primeiros, e a industrialização nas piores condições
possíveis, com destruição de forças produtivas na agricultura e isolamento econômico
internacional.
Como se deu esse processo de industrialização acelerada na URSS,
principalmente no período entre 1928-1940? É exatamente o objeto de estudo de
Almeida Jr. e Germer.44 Segundo eles, “constatou-se primeiramente que foi devido a um
investimento maciço do departamento I [produtor de bens de produção], envolvendo
importação e replicação de novas tecnologias, que a União Soviética conseguiu
industrializar-se tão rapidamente. Esses investimentos foram financiados em maior
grau, por uma drenagem de parte do trabalho excedente dos trabalhadores, através do
imposto de circulação de produtos alimentícios e, em menor grau, por empréstimos
externos”.45
Do ponto de vista mais operacional, o MEE se programou por intermédio dos
planos qüinqüenais. O primeiro foi aplicado em 1928. Na implementação do segundo,
em 1933, 99,3% das empresas já eram estatais, e 65% das terras da agricultura havia
sido coletivizada.46
O MEE atingiu seu objetivo de acelerar o ritmo da industrialização da economia
soviética, o que torna inegável o forte desenvolvimento das forças produtivas obtido
pela URSS no esforço de acelerar a taxa de acumulação.

Gráfico 1: Volume da Produção Global da Indústria na URSS (1913 = 100)

44
ALMEIDA Jr., Antonio C. e GERMER, Claus M. “A Estratégia de Desenvolvimento
da União Soviética: prioridade ao departamento I”. Revista da Sociedade Brasileira de
Economia Política, 41, junho-setembro, 2015, p. 123-149.
45
ALMEIDA Jr., Antonio C. e GERMER, Claus M. Op. Cit., p. 124.
46
ALMEIDA Jr., Antonio C. e GERMER, Claus M. Op. Cit., p. 130.
Fonte: Elaboração própria com base em dados de Almeida Jr. e Germer47.

O gráfico 1 exibe a trajetória do volume da produção industrial soviética entre


1927 e 1938, justamente o período de aceleração da industrialização forçada, onde
foram constituídas as principais características do MEE. A clara trajetória ascendente da
produção industrial é perceptível durante todo o período. Em1931, esta produção já
superava em mais de duas vezes o patamar de 1927, em 1933 em mais de três vezes, em
1936 em mais de cinco vezes, e em 1938 em mais de seis vezes.
Entretanto, esse esforço industrializante implicou “el retraso del desarrollo de la
industria de bienes de consumo sobre el de la industria de bienes de producción”,48 o
que já, em si, demonstra uma desproporção no crescimento obtido pela estratégia
forçada de industrialização.

Tabela 1: % na Produção Global da Indústria na URSS


Anos 1913 1928-29 1932 1937 1940
Meios de Produção 44,3% 32,8% 53,3% 57,8% 61%
Bens de Consumo 55,7% 67,2% 46,7% 42,2% 39%
Fonte: Almeida Jr. e Germer.49

47
ALMEIDA Jr., Antonio C. e GERMER, Claus M. Op. Cit., p. 131.
48
MANDEL, Ernest. Op. Cit., 1969, p. 172.
49
ALMEIDA Jr., Antonio C. e GERMER, Claus M. Op. Cit., p. 131.
A tabela 1 retrata nesse período a redução relativa do setor que produz bens de
consumo, em relação à produção de meios de produção, sendo que em 1932 o maior
percentual da produção industrial global já se dá neste último.
Este atraso da produção de bens de consumo frente ao setor de bens de
produção, além dos problemas econômicos, sociais e políticos que engendra, nos coloca
uma questão essencial para os objetivos deste texto: se o objetivo do período
necessariamente de transição é a construção de uma economia (sociedade) socialista
(comunista), a estratégia mais adequada para atingir esse objetivo é uma
industrialização/coletivização forçada? Atente-se para o fato de que uma estratégia de
desenvolvimento com forte industrialização é a estratégia para desenvolvimento de
economias dependentes, dentro da lógica capitalista mundial.
Após a morte de Stalin, em 1953, o MEE começa a ser revisto. Kruchev, a partir
de 1956, começa a implementar um processo de descentralização. Embora a
burocratização permanecesse, essa descentralização passou a representar um
redirecionamento para práticas capitalistas na condução da economia, incluindo a
ampliação do lucro como motivador dos processos produtivos. Segundo Pericás, “com a
saída de Kruchev e a ascensão da `tróica´ liderada por Podgorny Kossygin e Bresnev ao
poder, no final de 64, percebe-se o declínio gradual da União Soviética como
superpotência até o final da década de 1980, que culminou, pouco depois, com a
Perestroika de Gorbachev e a desintegração do país”.50
A transformação da economia soviética em uma grande potência, que chegou a
liderar o bloco socialista em seu “embate” com o bloco capitalista (liderado pelos EUA)
durante a Guerra Fria, tendo saído de uma economia extremamente atrasada antes da
Revolução, semi-feudal segundo alguns, pode ser caracterizada como um verdadeiro
“milagre econômico”. Certamente, esse “milagre” ocorreu pelas altas taxas de
acumulação (investimento) dentro do esforço de acelerada e forçada industrialização. Se
comparamos com o ano de 1913, ainda sob o império czarisa, quando a Rússia possuía
9,4% da população mundial, 6% da renda mundial e 3,6% da produção industrial do
mundo, constata-se que a URSS, em 1986, com 6% da população mundial, chegou a
14% da renda mundial e 14,6% da produção industrial do mundo.51 Os dados são
inegáveis. Outra questão, que nos parece extremamente relevante, é se esse “milagre”
pode ser caracterizado como avanço em direção à construção de uma sociedade

50
PERICÁS, Luiz B. Op. Cit., p. 99.
51
HOBSBAWN, Eric. Op. Cit., p. 375.
verdadeiramente socialista, isto é, a que custo (e certamente a referência aqui não é
apenas “econômica”) se promoveu esse esforço de industrialização?
O fim socialismo realmente existente, como caracterizam alguns, não sem
controvérsias, é, certamente, multicausal. Obviamente, o fato de que nenhum processo
de transformação social tem a garantia pré-estabelecida de sucesso, uma vez que a
história é aberta, faz parte disso. Adicionalmente, as contradições internas construídas
pela própria estratégia de desenvolvimento, claramente pelo MEE, fazem parte dessas
múltiplas causas52.
Mas é preciso ressaltar algo aqui dentre dessas várias causas, até para relacioná-
lo com os objetivos específicos deste trabalho. Sobre o comércio exterior entre os dois
blocos (socialista e capitalista) que conformaram a chamada Guerra Fria, no segundo
pós-guerra, Hobsbawn lembra que “o comércio entre os dois blocos era uma função de
suas relações políticas. Só nas décadas de 1970 e 1980 houve sinais de que o universo
econômico separado do ´campo socialista´ estava sendo integrado na economia mundial
mais ampla. Em retrospecto, podemos ver que esse foi o começo do fim do ´socialismo
realmente existente´”.53 Ou seja, a ampliação da atuação da lei do valor em escala
mundial, com a incorporação do bloco socialista no espaço do comércio mundial,
aprofundou as características da sociabilidade mercantil-capitalista nesses espaços que
procuravam freia-las. Era, nas palavras de Hobsbawn, o começo do fim, já possibilitado
pelas inúmeras contradições internas do próprio processo de transição.

7- Notas Conclusivas: para uma economia (sociedade) socialista

O resgate da experiência soviética, como uma das experiências de transição para


sociedades pós-capitalistas, teve o objetivo de resgatar alguns elementos que, muito
mais do que um ajuste de contas sobre o sucesso/fracasso dessa experiência específica,

52
HOBSBAWN, Eric. Op. Cit., p. 375, é muito bem sucedido ao caracterizar as
contradições internas do socialismo real com uma estratégia de desenvolvimento com
industrialização sob planejamento quando sintetiza: “em suma, o sistema soviético foi
projetado para industrializar o mais rapidamente possível um país muito atrasado e
subdesenvolvido, na suposição de que seu povo se satisfaria com um padrão de vida que
garantisse um mínimo social e um padrão de vida material pouco acima da subsistência
– o quanto dependia do que pingava do crescimento geral de uma economia engrenada
para favorecer a industrialização. Apesar da ineficiência e desperdício, atingiu esses
objetivos”.
53
HOBSBAWN, Eric. Op. Cit., p. 366.
ajudem a identificar, ainda que por oposição ao capitalismo, o que pode vir a ser uma
sociedade pós-capitalista. Estas notas conclusivas, por mais pretensiosas que pareçam,
não possuem mais do que este objetivo.
Em primeiro lugar, as sociedades pós-capitalistas (socialismo/comunismo) não
começam de “uma hora para outra”, imediatamente após a vitória da revolução. Existe
uma fase de transição que combina, dialeticamente, elementos da sociedade a ser
superada com elementos da nova sociedade. Portanto, a época de transição convive com
a lei do valor, com as legalidades do modo de produção capitalista, em maior ou menor
grau em função de vários determinantes (conjunturas específicas, grau de
desenvolvimento do capitalismo na economia em questão, forma específica em que se
encontra a relação entre economias dominantes e economias periféricas na economia
mundial, correlação de forças entre as distintas classes, tanto interna quanto
internacionalmente, só para mencionar alguns). O fato é que enquanto as leis do
capitalismo conviverem com os intentos de construção de uma nova sociabilidade, esta
ainda não superou a antiga.
Esta superação do capitalismo, derrocando a vigência da lei do valor (capital), é
uma mera possibilidade histórica. Não há, portanto, nenhuma garantia de sucesso na
tentativa de transformação social em direção ao socialismo/comunismo. As conjunturas
históricas específicas se apresentam, com o perdão da redundância, com todas suas
especificidades. Por isso a história é aberta, e as tendências que se delineiam são meras
possibilidades. Para onde, de fato, a história irá depende justamente da atuação – sempre
permeada pelos conflitos sociais, pelas lutas de classes – do sujeito histórico, o ser
humano. Por isto, tampouco há resposta pronta, pré-estabelecida sobre como se constrói
a sociedade pós-capitalista. O máximo que se consegue é: (i) identificar por oposição
(ao capitalismo) qual é a sociedade a ser derrotada; (ii) aprender com as experiências
anteriores as possibilidades e limites, em função de distintas conjunturas, dos processos
revolucionários. Pode até parecer, mas isto não é pouco.
Nessa árdua luta – tanto quanto a revolução em si -, dentro da economia de
transição, deve-se sempre recordar que a lei do valor (capitalismo) é dinâmica e
maleável o suficiente para intensificar as contradições/limites do processo. Isto significa
que qualquer resquício de intermediação mercantil das relações sociais, se não é
completamente derrotado, pela própria lógica de uma economia mercantil, volta a se
espraiar por todas as relações sociais com relativa facilidade e rapidez
Essa lei do valor (capitalismo) é totalizante e, portanto, mundial. Trata-se de um
fato objetivo, para desespero dos pós-modernos, ainda que com perfumaria de esquerda.
Mas, o que mais importa aqui, é que essa característica do mercado (capitalismo)
mundial faz com que os processos revolucionários de construção do
socialismo/comunismo não possam se restringir a uma ou outra face da economia
mundial, tanto mais quanto menos desenvolvida for a economia em questão. Se algo
aprendemos da experiência soviética é que o socialismo em um só país tende a ser cada
vez mais apenas “em um só país” e menos “socialismo”.
Até relacionado a isso, outra questão é muito importante. As
dificuldades/limites/contradições de qualquer processo de transição para o socialismo
são potencializadas em economias dependentes. Isto, entretanto, não significa a
impossibilidade objetiva de processos revolucionários em economias atrasadas, como
defende a concepção mecanicista, teleológica, da história, mesmo no marxismo
revolucionário. Apenas que é mais complexo.
Essas fases de transição tampouco podem ser pensadas de forma justaposta, isto
é, pela convivência (socialista) de meios de produção expropriados, sob propriedade
socializada, em oposição a um processo de distribuição capitalista, via mercado (lei do
valor). As formas de propriedade diferenciadas não se convertem em não-capitalistas
enquanto as relações sociais continuarem sendo intermediadas pela troca dos produtos
do trabalho (mercadorias) na circulação. O capitalismo é uma unidade contraditória
entre a produção e a distribuição, e suas características sociais permeiam as duas
esferas, cada uma reforçando a outra, dialeticamente. As fases de transição convivem
com elementos capitalistas não apenas no mercado. A lei do valor não tem sua atuação
restrita a esta esfera, mas, por conta da totalidade dialética, retroage sobre a esfera
produtiva.
Isto nos leva a outra questão mais de fundo. O socialismo/comunismo requer que
as relações sociais sejam diretamente sociais, sem qualquer tipo de intermediação. Os
trabalhos privados devem ser diretamente sociais, sem a necessidade de qualquer
validação (ou não) de seu caráter social. E o mercado (capitalista) não é a única forma
de mediação das relações sociais. A burocracia centralizadora pode ser outra!
Por último, resta uma questão que decorre diretamente da experiência soviética.
Quais seriam as implicações para uma economia de transição que adote uma estratégia
como a do MEE, isto é, industrialização acelerada, com base na coletivização forçada,
dentro de um contexto de explícita disputa produtivista com o bloco capitalista,
portanto, dentro da lógica da economia mundial capitalista, isto é, da lei do valor? Em
termos menos rigorosos, a pergunta é: qual seria o destino de uma experiência
revolucionária que, para (presumidamente) derrotar a lei do valor (capital), assume uma
estratégia de desenvolvimento industrializante, na economia mundial, que está
justamente regida dialeticamente por essa lei do valor?
Como visto, do ponto de vista unicamente dos parâmetros produtivistas e
industrializantes da concepção burguesa de desenvolvimento, o MEE seria considerado
um retumbante sucesso. Entretanto, se a perspectiva era construir o socialismo, não
poderíamos terminar sem um comentário de alguma forma irônico e provocador. A
URSS entra em derrocada não por causa de seu atraso no desenvolvimento das forças
produtivas, como prega a concepção mecanicista da teoria da historia para as
revoluções, mas justamente o contrário, por ter disputado com o bloco capitalista
justamente segundo os critérios deste, a lei do valor, acelerando o desenvolvimento das
forças produtivas, acelerando o ritmo da acumulação de capital, com base na lógica do
crescimento, da valorização, do valor, do capital!

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