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MATÉi Visníec

Impresso no Brasil, julh
Brasil, julho
o de
de 201
2012
2

I llulo original:
origi nal: L'Histoire
L'Histoire du Communisme Racontée aux
Malades
Malades Ment
Mentaux 
aux 
Copyright
Copyright © Lansman
Lansman Edite
diteur 
ur 

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Editor 
Edson Manoel de Oliveira Filho

Gerente editorial'
Gabriela Trevisan

Preparação de texto
Maria Alexandra Orsi

Revisão
Danielle Mendes Sales e Liliana Cruz

Capa
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Maurício Nlsl (ionçalvos / Estúdio É

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forma, seja ela ele-
ele-
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iBpiiHliigfta tiani ......ui (una axpia:;:;a do editor.
.
A História
do Comunismo
Contada
a o s
DOENTES

M E N T A I S

MATÉi Vísniec
TRADUÇÃO:ROBERTO MALLET
IURI PETROVSKI, escritor      S
GRIGORI DEKANOZOV, diretor do hospital     N
    E
STEPAN ROZANOV, diretor associado     G
KATIA EZOVA, assistente médica
    A
    N
OUTROS MEMBROS DO CORPO MÉDICO     O
    S
    R
Os “doentes”:     E
    P
TIMOFEI, doente m ental m édio
DOENTE 1, Piotr 
    S
    A
DOENTE 2, Ivan
DOENTE 3, Sacha
DOENTE 4, Emelian
DOENTE 5, Boris
DOENTE 6, Slivinski
DOENTE 7, Salomon
UM DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN
UM SEGUNDO DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN
0 ESTRANGEIRO
KUHKIN
IVAN MIKADOI GAMAROVSKI
OUTROS DOENTES
0 LOUCO QUE APOSTA EM STÁLIN
0 CRUPIÊ
A MULHER JOVEM
A MULHER VELHA
A TERCEIRA MULHER
A QUARTA MULHER
A QUINTA MULHER
0 PROFESSOR
STÁLIN
Os papéis nesta peça são intercambiáveis. Alguns pa-
péis de “doentes” podem ser representados por mane-
quins ou marionetes.

A ação transcorre no Hospital Central de Doentes


Mentais em Moscou, em 1 9 5 3 , algumas semanas antes
da morte de Stálin. Eventual cenário único: um gigan-
tesco retrato de Stálin.

Esta peça foi escrita originalmente em francês em 1 9 9 8 ,


durante uma permanência do autor na Chartreuse de
VilleneuvelezAvignon;1 sua primeira leitura ocorreu
em julho de 1999 dentro da programação do festival
de teatro de Avignon.

Foi montada simultaneamente na primavera de 2 0 0 0 em


língua romena no Teatro Eugène Ionesco de Chisinau
(Moldávia), com encenação de Charles Lee, e em lín-
gua inglesa em Hollywood por The Open First Theatre
Company, com encenação de Florinel Fatulescu.

Um apoio à sua criação foi concedido pelo Ministério


da Cultura francês em janeiro de 2000.

1A Chartreuse de Villeneuve-lez-Avignon abriga o Centre National


des Ecritures du Spectacle (www.chartreuse.org), oferecendo, entre
outros projetos, residência para dramaturgos. (N. T.)
0 coro dos doentes mentais, dirigido por Katia Ezova,
apresenta-se para o diretor e luri Petrovski. Alguns doentes
estão em camisas de força. Timofei avança algun s passos e
dirige-se aos espectadores.

TIMOFEI: O coro de câmara do Hospital Central de


Doentes Mentais de Moscou vai interpretar a canção
“O Canto dos Partidários”. Regente do coro: camara-
da Katia Ezova. Viva o camarada Stálin!

[Katia Ezova faz vibrar um diapasão, murmura uma


 frase musical, dá o tom e o coro põe-se a cantar.
Tim ofei enxuga uma lágrima. Outro doente chora en
quanto canta, mas está numa camisa de força e não
 pode enxugar as lágrimas. Termina a canção. Tim ofei
enxuga as lágrimas de alguns doentes com camisas de
 força. Katia Ezova inclina-se diante do diretor e de
luri Petrovski. Longo silêncio. Escuridão.)

a história do comu nism o con tada aos doentes mentais I 9 I matéi visniec
luri Petrovski no escritório do diretor Grigori Dekanozov.

ODIRETOR: Sabe, luri Petrovski, hoje em dia ninguém


deve ficar sem as luzes da arte e da literatura. Nossa
concepção científica da sociedade afirma que o ho-
mem está no centro da atenção do partido. Nossa
nova concepção humanista, tal como nos foi ensina-
da pelo Grande Lênin e pelo Grande Stálin, afirma
que o socialismo não é possível sem a transformação
do homem. E a arte, a literatura têm um papel enor-
me na transformação do homem... É por isso que me
pergunto: e os doentes mentais? Eles também não são
seres humanos? Não devem ser transformados, eles
também? Não deveriam beneficiarse, também eles,
das vantagens da arte, da literatura? Na medida do
possível, é claro... Eu creio que os doentes mentais de
nossa sociedade socialista não têm nada a ver com
os doentes mentais dos países capitalistas e impe-
rialistas. Nós não abandonamos os nossos doentes
mentais... Achamos que podem ser curados. Nossos
cientistas trabalham dia e noite para encontrar novos
tratamentos capazes de curar as doenças mentais...
E a arte, a literatura desempenham talvez um papel
nessa batalha.

a história do com unismo contada aos doentes ment ais 11 1 I m atéivis niec
Grigori Dekanozov apresenta luri Petrovski
ao corpo médico do estabelecimento.

O DIRETOR: Caros colegas, apresentolhes o camarada


luri Petrovski, que a União dos Escritores enviou para
nos ajudar. luri Petrovski escreveu novelas no estilo
de nosso grande autor Máximo Gorki. luri Petrovski
escreveu novelas e narrativas sobre a construção do
socialismo, e recebeu por suas maravilhosas novelas
e suas maravilhosas narrativas o Grande Prêmio do
Estado, que lhe foi entregue pelo Grande Camarada
Stálin em pessoa. É meu dever, aqui, agradecer à
União dos Escritores por nos ter enviado o camarada
luri Petrovski. É justamente de um escritor como luri
Petrovski que precisam os, pois ele sabe descrever como
ninguém as coisas simples, as coisas da vida. (Volta-se
 para luri Petrovski.)   Camarada luri Petrovski, sua ta-
refa é escrever histórias curtas para narrar aos nossos
doentes mentais a história do comunismo. E para isso
que está aqui, é para isso que a União dos Escritores
enviouo para cá. Consideramos que os doentes men-
tais têm o direito e o dever de conhecer a história
do comunismo e da Grande Revolução Socialista de
Outubro. O único problema é que a história do co-
munismo e a história da Grande Revolução Socialista
de Outubro devem ser narradas de forma que estejam

a história do comunism o contada aos doentes mentais 1 1 3 I m atéivisn iec

ao alcance deles. É por isso que todos nós, a equipe


ao alcance deles. É por isso que todos nós, a equipe
médica do Hospital Central de Doentes Mentais, bem
como os doentes que estão em tratamento em nos-
so estabelecimento, pedimoslhe, caro camarada Iuri
Petrovski, que utilize seu talento para narrarnos em
palavras simples a história do comunismo e da Grande
Revolução Socialista de Outubro. Use o seu talento
para que nossos doentes possam também eles ter aces-
so à luz do movimento trabalhador. Use o seu talento e
o seu patriotismo para que os doentes mentais possam
alimentarse da esperança que a Grande Revolução
Socialista de Outubro trouxe a todos os trabalhado-
res de todos os países. Tenho certeza, camarada Iuri
Petrovski, que encontrará as palavras que irão tocar o
coração de nossos doentes mentais. Nossas sessões de
iniciação à beleza da arte, da literatura, acontecerão
duas vezes por semana. Todos os doentes mentais de
nosso estabelecimento, sejam eles débeis mentais leves,
médios ou graves, esquizofrênicos, autistas, depressi-
vos ou neuróticos, todos serão convidados a escutá
lo, duas vezes por semana. Todos, exceto talvez os
doentes da seção de segurança máxima, para os quais
vamos imaginar outra solução... Quer dizer, talvez or-
ganizemos sessões especiais para eles.

coleção dram aturg ia I 14 I m atéi visniec


Grigori Dekanozov mostra a luri Petrovski o quarto que lhe
fora reservado. Katia Ezova perm anece resp eitosamente
 junto à porta.

O DIRETOR: Este, meu caro luri Petrovski, é o seu quar-


to. Terá aqui tudo de que precisar. Escolhemos para
você o quarto que tem a mais bela vista do jardim,
pois sabemos que os escritores amam a natureza.
Vocês necessitam ver árvores, ver o céu, ver os pás-
saros que cantam nas árvores... Nós sabemos, meu
caro luri Petrovski... sabemos de que é feita a alma de
um escritor, nós sabemos tudo. Seja bemvindo neste
quarto, em nossa casa. Nossa cara assistente médica
Katia Ezova trará o seu desjejum no quarto todas as
manhãs. Ao meiodia e à noite, poderá comer conos-
co, no salão do refeitório... ( Através de um jogo de
luz surge, atrás de uma parede que se tornou transpa
rente, o salão do refeitório. Os doentes vão começar 
sua refeição, rodeados pelos membros do corpo mé
dico. O conjunto tem algo de uma cena de tortura .)
Pois nós, meu caro luri Petrovski, nós, os médicos do
corpo médico, comemos com os nossos doentes, quer
dizer, com aqueles que podem se deslocar sem proble-
mas até o refeitório. E é com orgulho que lhe digo,
meu caro cam arada, que sessenta por cento dos nossos
doentes mentais PODEM   se deslocar, e deslocamse

a história do com unism o con tada aos doentes mentais I 15 I m atéivis niec
VERDADEIRAMENTE   duas vezes por dia, ao meio
dia e à noite, até o refeitório, para comer em compa-
nhia de seus médicos. Mas você, Iuri Petrovski, faça
como bem quiser. Sabemos que o escritor pode às ve-
zes ser tomado pela inspiração, e então ele não sai do
lugar, não come, não vê mais ninguém, não ouve mais
nada, e escreve, eh, eh... E um grande mistério, a escri-
ta, eu sei.

IURI PETROVSKI: Camarada Grigori Dekanozov, que-


ro muito entrar em contato direto com os pacientes.
Gostaria de visitar todas as dependências. Poderia
eventualmente falar com alguns doentes. É possível?

0 DIRETOR: Camarada Iuri Petrovski, não só você tem


o direito de fazêlo, mas insistimos que o faça. Está
residindo aqui, é portanto natural que conheça nossa
casa. Katia Ezova, que cuidará de você, vai lhe mostrar
tudo: as alas, as salas de tratamento, os banheiros, o
jardim, tudo, tudo, tudo. E toda vez que quiser falar
com um doente, peça a Katia E zova a ficha dele. Certo?
Então, vou deixálo, Iuri Petrovski. Bom trabalho, Iuri
Petrovski. Quando terminar o primeiro capítulo, orga-
nizaremos a primeira sessão. Estou convencido, cama-
rada, de que narrar de forma adequada a história do
comunismo pode curar certos problemas mentais. Até
logo, camarada. Viva o Grande Stálin!

coleção dramaturgia I 16 i matéi visniec


Noite. Quarto de luri Petrovski. luri Petrovski dorme. Katia
Ezova entra. O quarto está iluminado pela luz que vem do
 jar dim . Katia Ezova aproxim a-s e da cam a de luri Petrovski.
Longo silêncio, luri Petrovski tem um sobressalto, abre os
olhos, dep ara-se com Katia.

KATIA: Psiu...

IURI: Quem é?

KATIA: Sou eu, Katia.

IURI: Mas o que você está fazendo aqui?

KATIA: Psiu...

IURI: Mas como é que você entrou?

KATIA: Psiu...

IURI: M as...

KATIA: Por acaso quer um chá?

IURI: Não!

a história do comunism o con tada aos doentes mentais I 17 I m atéivis niec

KATIA: Um chá com um pouco de rum?

IURI: Não.

KATIA: Ou só um pouco de rum?


KATIA: Um chá com um pouco de rum?

IURI: Não.

KATIA: Ou só um pouco de rum?

IURI: Não, não quero nada.

KATIA: Iuri Petrovski, preciso lhe fazer uma pergunta.

IURI: O quê?!

KATIA: Você viu ele de perto?

IURI: Como é?

KATIA: Você sabe, é muito importante pra mim...

IURI: O quê?

KATIA: Psiu... Há muitos que mentem, que apenas fin-


gem que estiveram com ele. Esses me fazem vomitar...
Dizer que estiveram com ele quando nunca estiveram...

IURI: Com quem?

KATIA: Stálin... Você realmente esteve com ele? O di-


retor disse que foi o próprio Stálin que lhe entregou
o Prêmio. E verdade? Foi mesmo Stálin? Foi ele em
pessoa quem entregou?

IURI: Foi...

KATIA: Quando?

IURI: Ah, faz muito tempo. Foi antes da guerra...

coleç ão d ram aturg ia I 18 I m atéi vis niec

KATIA: E você o viu de perto?

IURI: Vi... Mas por que todas essas perguntas?


KATIA: E você o viu de perto?

IURI: Vi... Mas por que todas essas perguntas?

KATIA: Porque... Porque eu queria saber se ele é alto.

IURI: Não é... muito alto.

KATIA: Ele é... mais alto do que você?

IURI: Não, acho que não.

KATIA: Mas você o viu de perto, bem de perto.

IURI: Vi, podese dizer... Estava com outros jovens ca-


maradas escritores reunidos para um congresso. E ele,
ele passou, apertounos a mão...

KATIA: Ele apertou sua mão!

IURI: Apertou.

(Katia pega a mão de luri e aperta-a contra o próprio


 peito.)

KATIA: Ah, luri Petrovski, como sou feliz por têlo


aqui... Nunca conheci alguém que tenha de fato co-
nhecido Stálin.

IURI: Katia Ezova, tenha calma. Eu nunca o conheci


pessoalmente. Apenas apertei sua mão, é tudo.

KATIA: E seus olhos, como eram?

IURI: Seu olhos...?

a história do com unismo contada aos doentes mentais I 19 I m atéiv is nie c


KATIA: Seus olhos. Você olhou diretamente em seus
olhos?

IURI: Não, acho que não...

KATIA: Mas como? Você não se lembra? Como pode


não se lembrar?

(Iuri retira sua mão das mãos de Katia.)

IURI: Camarada Katia Ezova, por que todas essas per-


guntas?

(Katia assoa o nariz e muda bruscamente de atitude.)

KATIA: Sabe, Iuri Petrovski, eu escrevo também.

IURI: Você escreve o quê, Katia Ezova?

KATIA: E screvo poem as.

IURI: Muito bem, Katia.

KATIA: Mas eu nunca os mostrei a ninguém, Iuri


Petrovski.

IURI: Muito bem, Katia.

KATIA: Mas eu preciso mostrálos a você, Iuri Petrovski.

IURI: Depois, Katia.

KATIA: Não, Iuri Petrovski, eu preciso mostrar meus


poemas agora.

IURI: Mas são quase três horas da manhã!

coleção dram aturg ia I 20 I m atéi visn iec


KATIA: Pelo menos um, luri Petrovski.

IURI: Está bem, Katia. Vamos lá.

KATIA: Vou recitálo, luri Petrovski.

IURI: Prefiro eu mesmo ler.

KATIA: Não, luri Petrovski. Não. Meus poemas estão


todos na minha cabeça... Aqui... Na verdade, eu nunca
os escrevi no papel, guardoos sempre aqui... Aqui...

IURI: E quantos você tem aí?

KATIA: Milhares, luri Petrovski, milhares...

IURI: Está certo, Katia. Escolha um e reciteo para mim.

(.Mudando novamente de atitude. Katia quase entra


em transe.)

KATIA: Stálin, tu és nossa luz

Na noite sem fim,

Stálin, acaricias nossa mente

Pois és o amante da Revolução...

Stálin, és nossa razão de viver,

Stálin, tu vives em nós eternamente...

Não temos nada, devemoste tudo,

Fica conosco, fica conosco...

a his tória do com unis mo contada aos do entes m entais I 21 I m atéi visniec
(Completamente transfigurada, começa a chorar. luri
 pega-lhe a m ão e consola-a.)

IURI: É ótimo, Katia, calma... (Katia retira sua mão das


m ãos de luri, olha-o por um instante com o um animal
acuado, em seguida começa a se despir rapidamente.)
Katia Ezova, pare! Mas o que está fazendo?

KATIA: Psiu... Ele está aqui... Ele está aqui... Ele está
conosco...

(Seminua, Katia salta sobre luri, abraça-o chorando,


beija-lhe várias vezes a m ão direita. )

IURI: Quem? Katia!

KATIA: Me abraça, luri Petrovski. Me abraça, abraça...

IURI: Katia, eu sou casado...

KATIA: Me abraça, luri Petrovski. Me abraça... Me


abraça...

coleção dr am aturg ia I 22 I matéi visn iec


iuri Petrovski, em seu quarto, “ensaia” sozinho.

IURI: Abram bem a boca. Digam “u”. Respirem.


Encham os pulmões de ar. Mais. Mais ainda. Encham
os pulmões de ar. Mais. Digam “utopia”. Outra vez.
“Utopia”. Concentremse bem, é uma palavra que faz
uma curva ascendente. Como um cavalo empinando.
“Utopia”. Ouvem como ela sobe? Sobe e dissipase no
ar. Começa dentro da boca e termina em nenhum lu-
gar. “Utopiiia”. Muito bem. Então, o que é uma uto-
pia? Uma utopia é quando alguém está na merda e
quer sair dela. Mas antes de sair da merda, é preciso
refletir a respeito. E se você refletir bem, vai ver que
não é o único que está na merda e que deseja sair dela.
Então, você pensa e vê que não pode sair da merda so-
zinho, que só pode sair da merda junto com os outros,
os camaradas que estão na merda junto com você.

(Iuri Petrovski abre uma garrafa de rum, derrama vá


rias gotas em uma taça de chá; bebe um gole de rum
diretamente da garrafa, em seguida bebe o chá.)

a história do comun ismo contada aos doentes mentais I 23 I matéi visniec


luri Petrovski faz uma demonstração para o diretor 
Dekanozov, Katia e o resto do corpo médico. Somente
Grigori Dekanozov está sentado.

IURI: Abram bem a boca. Digam “u”. Respirem.


Encham os pulmões de ar. Mais. Mais ainda. Encham
os pulmões de ar. Mais. Digam “utopia”. Outra vez.
“Utopia”. Concentremse bem, é uma palavra que faz
uma curva ascendente. Como um cavalo empinando.
“Utopia”. Ouvem como ela sobe? Sobe e abraça o
céu. Começa dentro da boca e termina nas estrelas.
“Utopiiia”. Muito bem. Então, o que é uma utopia?
Uma utopia é quando alguém está na merda e quer
sair dela. Mas antes de sair da merda, é preciso refletir
a respeito. E se você refletir bem, vai ver que não é o
único que está na merda e que deseja sair dela. Então,
você pensa e vê que não pode sair da merda sozinho,
que só pode sair da merda junto com os outros, os
camaradas que estão na merda junto com você. (A
assistência permanece impassível. luri Petrovski con
tinua.)  Mas aqueles que jogaram você na merda não
querem que você saia da merda. Não deixam você sair
da merda, nem você, nem os camaradas que estão na
merda junto com você. Pois eles, os que jogaram você
na merda, são fortes porque estão unidos. Então, para
sair da merda, você e os seus camaradas, é preciso que

a história do comu nismo contada aos doentes mentais 1 25 I matéi visniec

estejam, vocês também, unidos. Foi isso que o cama-


rada Lênin disse um dia, em 1915, quando estava em
Zurique... Uma cidade na Suíça. A Suíça é um país que
estejam, vocês também, unidos. Foi isso que o cama-
rada Lênin disse um dia, em 1915, quando estava em
Zurique... Uma cidade na Suíça. A Suíça é um país que
não estava na merda. “Camaradas”, disse o camarada
Lênin, “para sair da merda, não basta querer sair da
merda, é preciso estar unidos”. Foi isso que o cama-
rada Lênin disse um dia, em 1915 em Zurique, onde
tinha se refugiado com outros camaradas para refletir.
E depois, todos aqueles que estavam na merda na
Rússia disseram “é, o camarada Lênin tem razão”. E
eles se uniram e deramse as mãos, e fizeram um esfor-
ço, e saíram da merda.

(Silêncio glacial. Bruscamente, Grigori Dekanozov


levanta-se , aproxima-se de Iuri Petrovski e abraça-o.
 Aliviada , a assistência aplaude. Grigori Dekanozov
enxuga uma lágrima.)

0 DIRETOR: Bravo, camarada Iuri Petrovski. Bravo.


É isso. É assim que se deve falar. Muito bem, Iuri
Petrovski. Você sabe escrever com o coração sem
deixar de dizer a verdade. E um grande escritor, Iuri
Petrovski. Compreendeu tudo, Iuri Petrovski. Graças
a você, nossos doentes vão poder compreender enfim a
essência mesma da nossa Grande Revolução Socialista
de Outubro. Continue, Iuri Petrovski. Continue. Na
próxima semana, faremos uma primeira sessão com
alguns doentes. Nossos doentes mentais precisam de
você, Iuri Petrovski. Pois não é somente a medicina
que pode curálos. Há também o pensamento do nosso
Grande Camarada Stálin que vai curar nossos doen-
tes. E um erro nosso não ter tentado, até hoje, utilizar
o pensamento marxista, o pensamento leninista e o
pensamento de nosso Grande Camarada Stálin como
terapia contra o autismo, a esquizofrenia e a debili-
dade mental. A força do pensamento comunista deve

coleção dramaturgia I 26 I matéi visniec

penetrar em tudo, em tudo, inclusive nos cérebros


dos nossos doentes. Pois o pensamento pode curar o
penetrar em tudo, em tudo, inclusive nos cérebros
dos nossos doentes. Pois o pensamento pode curar o
pensamento. Quando o pensamento dirigese ao pen-
samento, acontecem maravilhas! E preciso apenas
encontrar as palavras certas, o tom certo, a emoção
certa... E você, camarada luri Petrovski, você encon-
trou a chave. E é com essa chave que vamos abrir a
porta fechada do espírito dos nossos doentes, para que
as palavras de Lênin e de Stálin possam resplandecer
através dela... Obrigado, camarada luri Petrovski. Em
nome de todo nosso corpo médico e em nome de todos
os nossos doentes mentais, MUITO OBRIGADO.

a histó ria do comun ismo cont ada aos doentes mentais I 27 I matéi visniec
luri Petrovski diante de uma plateia de
doentes mentais “leves”.

IURI: Abram bem a boca. (Os doentes obedecem.)


Digam “u”.

OS DOENTES: Uuuuu... Uuuuu...

IURI: Respirem...

OS DOENTES: Uuuu...

IURI: Encham os pulmões de ar. Mais. Mais ainda.

OS DOENTES: Pfuuuu...

IURI: Encham os pulmões de ar. Mais.

OS DOENTES: Uuuuu...

IURI: Digam “utopia”.

DOENTE 1  PIOTR: Não soltem , cam aradas!

KATIA: Silêncio, Piotr.

a his tória do com unis mo con tada aos doentes men tais I 29 I matéi visn iec

IURI: Outra vez... “Utopia”.

OS DOENTES: Uuuuu...
IURI: Outra vez... “Utopia”.

OS DOENTES: Uuuuu...

PIOTR: Não soltem, camaradas!

KATIA: Piotr, cale a boca.

IURI: Concentremse bem, é uma palavra que faz uma


curva ascendente. Como um cavalo empinando...
“Utopia”.

DOENTE 2  IVAN: O cav


ca v a lo m ija em pé! P or que e n tão
tã o ...

KATIA: Silêncio, Ivan.

IURI: Ouvem como ela sobe? Sobe e abraça o céu.

(Vári
(Vários
os doentes
doent es persignam-se
persignam -se .)

KATIA: Continue, Iuri Petrovski.

IURI: Começa dentro da boca e termina nas estrelas.


“Utopiiia...”

OS DOENTES: Utopiiia... Utopiiia...

IURI: Muito bem.

OS DOENTES: Utopiiia... Utopiiia...

KATIA: Parem! Continue, Iuri Petrovski.

IURI: Então, o que é uma utopia?

OS DOENTES: Utopiiia... Utopiiia...

coleção dram aturg ia I 30 I m aléi visn iec

IVAN: Eu quero mijar em pé! Eu quero..


IVAN: Eu quero mijar em pé! Eu quero..

KATIA: Fecha a matraca, Ivan. Continue, luri Petrovski.

IURI: Uma utopia é quando alguém está na merda e


quer sair dela.

(Silê
(Silênci
ncioo glacial. Os doen
d oentes
tes têm um ar constern
con sternado
ado..)

IURI: Mas antes de sair da merda, é preciso refletir.

IVAN (sussurrando para seu vizinho, Sacha)'.  Isso quer


dizer que vamos poder mijar em pé?

DOENTE 3  SACH
SACHA:
A: Psiu
si u!

IURI: E se você refletir bem, vai ver que não é o único


que está na merda e que deseja sair dela. Então, você
pensa e vê que não pode sair da merda sozinho, que só
pode sair da merda junto com os outros, os camaradas
que estão na merda com você.

SACHA: luri Petrovski, posso fazer uma pergunta?

IURI: Pode.

SACHA: Por que é que sempre faz click, clac, pluf?

KATIA: Chega, Sacha.

PIOTR: Sua mãe continua no avião, luri Petrovski?

IURI: Minha mãe está morta, Piotr.

KATIA: Continue, luri Petrovski.

a his tór ia do com unis mo contada aos doentes mentais I 31 I matéi visn iec

IURI: Então, quanto mais reflete, mais você vê que não


pode sair da merda
m erda sozinho,
soz inho, que só
só pode sair dela jun-
to com os camaradas que estão na merda com você.
IURI: Então, quanto mais reflete, mais você vê que não
pode sair da merda
m erda sozinho,
soz inho, que só
só pode sair dela jun-
to com os camaradas que estão na merda com você.
(Silêncio na assistência.)  Mas aqueles que jogaram
você na merda não querem que você saia da merda.
Não deixam você sair da merda, nem você nem os
camaradas que estão na merda junto com você. Pois
eles, os que jogaram você na merda, são fortes porque
estão unidos.

(Os doentes descontrolam-se.)


descontrolam-se.)

 Uuuuu.
Uuuuu....

 Iuri Petrovski,
Petrovski, uma
uma pergunta
pe rgunta...
...

 Somente
Somente o cavalo mija
mija em pé...

 Cli
Click,
ck, clac, pluf!
pluf!

 Façam seus jogos,, ladies and


eus jogos an d gentlemen.
gentlemen.

 Ribbentrop
RibbentropMolotov
Molotov!! Ribbentro
RibbentropMolot
pMolotov!
ov!

 N ão, não, não... Nã o, não, não,


não, não é verdad
verdade.
e....
Não, não, não...

 Henri Barbusse
Barbusse ainda está vivo
vivo??

 Utopiiia..
Utopiiia.... U topiii
topiiia..
a....

 N ão solt
soltem,
em, cam arada s, não solte
soltem!
m!

 O avião,
avião, não tem
tem nada.
nada.

KATIA: Silêncio, camaradas! Continue, Iuri Petrovski.

coleção dram aturg ia I 32 I m atéi visn iec

IURI PETROVSKI: Então, para você e seus camaradas saí-


rem da merda é preciso que estejam, vocês também,
unidos. Foi isto que o camarada Lênin disse um dia...
IURI PETROVSKI: Então, para você e seus camaradas saí-
rem da merda é preciso que estejam, vocês também,
unidos. Foi isto que o camarada Lênin disse um dia...

SACHA: Quem? (Começa a chorar histericamente.)


Quem? Click, clac, pluf?

KATIA: Pare, Sacha.

IURI: Foi isso que o camarada Lênin disse um dia, em


1915, quando estava em Zurique, que é uma cidade
na Suíça...

DOENTE 4: Não é na Suíça, não...

IURI: ... que é um país que não estava na merda.


“Camaradas”, disse o camarada Lênin...

DOENTE 4: Não é na Suíça, não...

IURI: “... para sair da merda, não basta querer sair da


merda, é preciso estarmos unidos”. Foi isso que o ca-
marada Lênin disse um dia, em 1915, em Zurique,
onde tinha se refugiado...

PIOTR: Viva o Grande Lênin!

OS OUTROS DOENTES: Viva o Grande Lênin!

IURI: ... com outros camaradas para refletir. E depois,


todos aqueles que estavam na merda na Rússia disse-
ram “é, o camarada Lênin tem razão”. E eles se uni-
ram...

PIOTR: Viva o Grande Lênin!

a história do com unismo contada aos doentes mentais I 33 I matéi visniec

OS OUTROS DOENTES: Viva o Grande Lênin!

IVAN: Lênin nunca disse que não se deve mijar em pé!


OS OUTROS DOENTES: Viva o Grande Lênin!

IVAN: Lênin nunca disse que não se deve mijar em pé!

KATIA: Fechem a matraca e escutem Iuri Petrovski.

IURI: E eles se uniram, e deramse as mãos, e fizeram


um esforço, e saíram da merda. E aqueles que tinham
jogado os outros na merda ou foram mortos ou foram
banidos para os campos. E então Stálin, grande cama-
rada de Lênin, disse: “Camaradas, ainda não acabou,
é preciso agora construir um país onde ninguém, ja-
mais, possa jogar alguém na merda”. E Stálin disse:
“Camaradas, eu conheço um método científico para
construir um país em que ninguém, jamais, possa jogar
os outros na merda”.

DOENTE 4: Não é na Suíça, não...

SACHA (chorando):   Katia Ezova, Katia Ezova, não é


bom, Katia Ezova...

KATIA: Acal mese, Sacha...

IURI: E todos os que tinham saído da merda come-


çaram a construir esse novo país onde ninguém ja-
mais iria jogar outra pessoa na merda. (Os doentes
escutam como se hipnotizados.)   E, então, Stálin viu
que alguns daqueles que tinham começado a construir
com ele o país onde ninguém jamais iria jogar alguém
na merda não queriam ir até as últimas consequên-
cias. Então, o camarada Stálin disse: “Isso não é bom,
pois aqueles que não querem ir até as últimas con-
sequências vão nos retardar. Não se pode construir
um país em que ninguém jamais poderá jogar outra
pessoa na merda com gente que não quer ir até as

coleção dram aturg ia I 34 I m atéi visn iec

últimas consequências. É preciso acabar com quem


não quer ir até as últimas consequências”. ( Silêncio.
Ninguém reage.)   E então, um companheiro de Stálin,
últimas consequências. É preciso acabar com quem
não quer ir até as últimas consequências”. ( Silêncio.
Ninguém reage.)   E então, um companheiro de Stálin,
o camarada Dzerjinski, cujo primeiro nome é Féliks e
que chamarei de Féliks, pois é muito mais fácil do que
Dzerjinski... Féliks então disse a Stálin: “Camarada
Stálin, eu conheço um método científico para iden-
tificar, entre aqueles que querem ir até as últimas
consequências, os que não querem ir até as últimas
consequências”. (Os doentes escutam cada vez mais
consternados, mas uma espécie de rubor toma seus
rostos.)   Pois o problema era que aqueles que não que-
riam ir até as últimas consequências não queriam re-
conhecer com toda sinceridade que não queriam ir até
as últimas consequências. Foi por isso que Féliks teve
que aplicar o método científico para identificar, entre
aqueles que queriam ir até as últimas consequências,
os que não queriam, no fundo de suas almas, ir até as
últimas consequências. E os que não queriam ir até
as últimas consequências foram enviados para o cam-
po. Um dia, estava no campo um grande amigo de
Stálin e de Féliks. E os que estavam no campo porque
não queriam ir até as últimas consequências pergun-
taram a ele: “Mas por que está aqui conosco, nós que
não queremos ir até as últimas consequências, você
que quer ir até as últimas consequências?”. E o amigo
de Stálin e de Féliks respondeu: “É porque eu apenas
acreditava que queria ir até as últimas consequências,
mas meu amigo Féliks demonstroume, com seu mé-
todo científico, que na verdade, e sem que eu me desse
conta, eu não queria ir até as últimas consequências”.
E esse amigo de Féliks e de Stálin pediu para ser fuzi-
lado. Pois, disse ele a Féliks: “aqueles que não se dão
conta de que não querem ir até as últimas consequên-
cias são mais perigosos do que os que sabem muito
bem que não querem ir até as últimas consequências”.

a his tór ia do com unis mo cont ada aos do entes m entais I 35 I m atéi visn iec

Mas Féliks respondeu ao amigo: “Espere, você vai ser


Mas Féliks respondeu ao amigo: “Espere, você vai ser
fuzilado mais tarde, quando quiser de novo, de todo
coração, ir até as últimas consequências, pois então
você será muito mais perigoso”.

(Silêncio pesado. Os doentes estão à beira de uma


em oção extremam ente forte.)

PIOTR (para si mesmo)'.  Ele morreu? Ele morreu então?

KATIA: Paramos por aqui, camarada Iuri Petrovski.


Chega de trabalho por hoje. Vamos, cam aradas, é hora
do passeio no jardim.

coleç ão dr am atur gia I 36 I m atéi vis niec


Um cômodo no subsolo. Uma pequena janela (com grossas
barras) que dá para a rua. A jan ela está s ituada ao nível
da calçada, da qual só se veem os pés dos passantes. Em
relação ao cômodo, a jan ela situa-se em local muito alto,
quase junto ao teto. Sete ou oito “ doen tes” (parece tratar-se
de débeis mentais leves) estão sentados no chão, diante
da janela, em volta de uma espécie de “toalha verde”,
sobre a qual estão várias moedas. Todos estão atentos,
o olhar fixo na janela. A atmo sfera é tensa. Depois de um
minuto de espera, uma velha m ulh er passa na rua diante
da janela, vinda do lado esquerdo. Exclamações, emoções,
movim entos entre os jogadores. 0 “ cru piê” empu rra o
dinheiro para os dois jogadores que são, aparentem ente,
os ganhadores. 0 crupiê puxa um barbante que solta uma
cortina sobre a janela.

CRUPIÊ: Ladies and gentlemen , façam seus jogos...

(Os  participantes dão m oedas ao crupiê, que em se


 guida as coloca sobre a toalha. Deve-se transmitir a
impressão de que o jogo é muito envolvente. )

PIOTR (dando dinheiro ao crupiê)'.   Sexo frágil, lado di-


reito...

IVAN: Vai perder. Nunca vem mulher do lado direito.

a hist ória do com unis mo con tada aos doen tes men tais I 37 I matéi visniec

PIOTR: Não fode minha paciência.

IVAN ( dando dinheiro ao crupiê):  Dez copeques, sexo


forte, lado esquerdo.
PIOTR: Não fode minha paciência.

IVAN ( dando dinheiro ao crupiê):  Dez copeques, sexo


forte, lado esquerdo.

SACHA E DOENTE 4: Pffff...

CRUPIÊ: Vamos, façam seus jogos...

SACHA: Animal! Animal!

CRUPIÊ: Quanto, Sacha? Merda! Quanto?

SACHA: Um copeque!

CRUPIÊ: Vamos, Emelian, jogue...

DOENTE 4  EMELIAN: C asal, sexo frágil, sexo forte,


lado... direito... Três copeques!

PIOTR: Ah, não, três é muito, não pode.

CRUPIÊ: Cale a boca, Piotr. (A Emelian.)  É muito, não


pode. Dois copeques. Vamos, o próximo, façam seus
jogos, ladies and gentlemen.

DOENTE 5: Sexo frágil, lado esquerdo!

SACHA: Duas vezes esquerda, impossível.

CRUPIÊ: Cale a boca. Façam seus jogos, ladies and


 gentlemen.

DOENTE 6: Bicicleta. Bicicleta. Bicicleta.

CRUPIÊ: Está bem, está bem... Quanto?

coleção dram aturg ia I 38 I m atéi visn iec

DOENTE 6: Bicicleta. Bicicleta. Bicicleta.

CRUPIÊ: Quanto?

DOENTE 6: Bicicleta. Bicicleta. Bicicleta.


DOENTE 6: Bicicleta. Bicicleta. Bicicleta.

CRUPIÊ: Quanto?

DOENTE 6: Bicicleta. Bicicleta. Bicicleta.

CRUPIÊ: Um copeque? Dois?

EMELIAN: Vamos, vamos, façam seus jogos, não é a


Suíça, não.

CRUPIE: Sou eu que digo isso. Ouviu? Ninguém senão


eu é que pode dizer “façam seus jogos”.

EMELIAN: Vamos, não é a Suíça, não... [ao doente 6.)


Um copeque, está bem? Vamos, Salom on... Fale...

DOENTE 7: Cachorro.

IVAN: Vai perder. Nunca passa cachorro aqui.

DOENTE 7: Cachorro, lado esquerdo. Um copeque.

SACHA E EMELIAN: Pfff...

EMELIAN: Ainda mais do lado esquerdo... Não é a


Suíça, não...

0 LOUCO QUE APOSTA EM STÁLIN: Stálin, lado esquerdo!

CRUPIÊ: Cale a boca. Você está fora. Encerrado!

0 LOUCO QUE APOSTA EM STÁLIN: M as eu tenho dinhei-


ro! Stálin, lado esquerdo. Tenho o direito!

CRUPIÊ: Fora, merda! Já disse que você não joga!

a histó ria do com unism o con tada aos doentes mentais I 39 I matéi visniec

Encerrado!

(Puxa o outro lado do barban te e a cortina sobe. Todos


esperam em silêncio. Tensão.)
Encerrado!

(Puxa o outro lado do barban te e a cortina sobe. Todos


esperam em silêncio. Tensão.)

SACHA (põe-se a chorar):  Que idiota!

OS OUTROS: Psssiu...

(Um homem passa de bicicleta, vindo do lado esquer


do. Doente 6 explode de rir, sufoca, rola de rir, para,
recomeça. O crupiê dá a ele todo o dinheiro.)

CRUPIÊ: Vamos, vamos, ladies and gentlemen , façam


seus jogos...

coleção dram aturg ia I 40 I matéi visn iec


Iuri Petrovski escreve, em seu quarto, tarde da noite. Leves
batidas na porta. Volta a cabeça. Entra Timofei.

TIMOFEI: Camarada Iuri Petrovski, está trabalhando?

IURI: Estou.

TIMOFEI: Camarada Iuri Petrovski, deixe que eu me


apresente. Sou Timofei. Sofro de uma debilidade men-
tal média. Sou um débil mental médio... Deixeme en-
trar, camarada Iuri Petrovski.

IURI: Mas você deveria estar na sua ala, Timofei.

TIMOFEI: Camarada Iuri Petrovski, os débeis mentais


leves e os débeis mentais médios podem sair de suas
alas. Os débeis mentais leves e os débeis mentais mé-
dios nunca fazem mal. E eu não consigo dormir à noi-
te, Iuri Petrovski. Será que posso entrar?

IURI: Entre.

('Timofei entra, fecha a porta atrás de si, em seguida


 põe-se em posição de sentido.)

TIMOFEI: Iuri Petrovski, apresentome: Timofei, débil

a hist ória do com un ism o con tada aos doen tes men tais I 41 I m atéi visniec

mental médio. Venho apresentarlhe os cumprimentos


dos doentes da ala dos débeis mentais médios. Meus
camaradas enviaramme para convidálo a nos visitar,
a ir ter conosco, camarada luri Petrovski. Sabemos
mental médio. Venho apresentarlhe os cumprimentos
dos doentes da ala dos débeis mentais médios. Meus
camaradas enviaramme para convidálo a nos visitar,
a ir ter conosco, camarada luri Petrovski. Sabemos
que leu suas maravilhosas narrativas sobre a Grande
Revolução Socialista de Outubro para os débeis men-
tais leves. Por isso meus camaradas enviaramme, para
lhe pedir que venha também nos visitar, camarada luri
Petrovski. Não nos despreze, camarada luri Petrovski.
(Lágrimas nos olhos.) Venha também nos visitar.

IURI: Mas, Timofei, já está marcado, há leituras previs-


tas para vocês.

TIMOFEI: Camarada luri Petrovski, não nos abandone.


Os débeis mentais médios colocaram toda a esperança
em você, esperam por você, não nos abandone...

IURI: Mas nao se trata de...

TIWIOFEI (cada vez mais excitado, tremendo): Veja, luri


Petrovski, neste hospital, os débeis mentais médios são
os que mais sofrem. Todas as regalias vão para os dé-
beis mentais leves e para os débeis mentais graves. E
nós, os débeis mentais médios, não temos nem o direi-
to de mijar em pé. Foi por isso que meus camaradas
enviaram me, para implorar que venha nos visitar, que
venha ter conosco. Sabemos que os escritores são en-
viados a todos os lugares, para os trabalhadores, para
os camponeses, para os soldados, para os lenhadores,
para todos, todos, menos para os débeis mentais mé-
dios. (Prostrado.)  Por quê, por quê, luri Petrovski?

IURI: Timofei, prometo que irei à ala de vocês.

TIMOFEI: Ninguém jamais, jamais, jamais foi até nós,


foi ter conosco.

coleção dramaturgia i 42 í matéi visniec

IURI: Timofei, em nome da União dos Escritores, pro-


meto que vou até vocês, vou ter com vocês. E agora,
volte para a sua ala e deitese.
IURI: Timofei, em nome da União dos Escritores, pro-
meto que vou até vocês, vou ter com vocês. E agora,
volte para a sua ala e deitese.

TIMOFEI: Mas quando? Quando? Esperamos por você


já faz quatro anos. Quando?

IURI: Mas, Timofei, estou aqui há apenas uma semana...

TIMOFEI: Esperamos por você faz quatro anos! Oh,


não tenha medo, camarada Iuri Petrovski. Não sou
perigoso. Nós, os médios, não somos perigosos de ma-
neira alguma. E somos nós quem garante a disciplina
à noite, na “seção débeis mentais”... Bom, uma coisa
ainda, Iuri Petrovski... Nós... Como dizer, nós os mé-
dios... Gostaríamos de lhe oferecer um pequeno pre-
sente... Temos um presentinho pra você... Seja bom,
Iuri Petrovski, e aceiteo...

IURI: Eu aceito.

TIMOFEI: Está aqui... (Dá um pacotinho para Iuri.) E


pra você. E boa noite, Iuri Petrovski. E se precisar de
alguma coisa, saiba que entre nós ninguém jamais dor-
me à noite. Bom trabalho, Iuri Petrovski.

IURI: Boa noite.

(Timofei sai. Iuri Petrovski abre o pacote, tira um li


vro, olha a capa.)

a história do com unismo contada aos doentes mentais I 4 3 1 matéi visniec


luri Petrovski escreve, em seu quarto, tarde da noite.
Entra Katia,

KATIA: luri Petrovski...

IURI: Sim...

KATIA: Está trabalhando?

IURI: Não estou precisando de nada, Katia Ezova.

KATIA: luri Petrovski...

IURI: Estou trabalhando, Katia Ezova. Está vendo mui-


to bem que estou trabalhando.

KATIA (quase chorando)'.  luri Petrovski, leia só uma pá-


gina pra mim... Só uma...

IURI: Mas não é possível, Katia Ezova! Deixeme tra-


balhar.

KATIA: Vou deixálo em paz, luri Petrovski. Mas antes


me leia uma página.

IURI: Tome, leia você mesma.

a histó ria do com unism o contada aos doentes mentais I 45 I matéi visniec

KATIA: Iuri Petrovski, preciso ouvir sua voz. Somente


KATIA: Iuri Petrovski, preciso ouvir sua voz. Somente
você sabe ler bem. Somente sua voz é que... que pode
ler isso, que... Sua voz é como... Iuri Petrovski, não sei
falar bem, mas você é... Sua mãe deve estar orgulhosa
de você, Iuri Petrovski... ( Choraminga .) Você tem ta-
lento, Iuri Petrovski, é o único homem que conheci que
tem talento. Você é um poeta, Iuri Petrovski.

IURI: Não, eu não sou poeta.

KATIA: E sim, é como Illia Ehrenburg.

IURI: Katia...

KATIA: Que é?...

IURI: Sente se. Há quanto tempo trabalha neste hos-


pital?

KATIA: Há dez anos, Iuri Petrovski.

IURI: Há dez anos... Bem, digame, Katia, quer que eu


leia o quê?

KATIA (choramingando)'. Quero o capítulo sobre Stálin,


depois da morte de Lênin...

IURI: Está bem. Vamos lá... Mas depois você vai e me


deixa trabalhar, combinado?

KATIA (assoando o nariz)'.  Combinado.

IURI: Enquanto isso, o país em que ninguém mais iria


jogar ninguém na merda ia sendo construído confor-
me os planos do Grande Stálin. “Para que ninguém
mais possa jogar ninguém na merda, o país precisa

coleção dram aturg ia I 46 I m atéi visniec

de eletricidade”, tinha dito Lênin. E Lênin mostrou


de eletricidade”, tinha dito Lênin. E Lênin mostrou
para todos como se deve gerar eletricidade, e de-
pois morreu. E fez com que o sepultassem na Praça
Vermelha. E muita gente se pôs a chorar. E Stálin dis-
se: “Camaradas, antes de morrer, nosso Grande Lênin
chamoume em sua casa e me disse: ‘Caro camarada
Stálin, vou lhe mostrar o caminho que se deve seguir
para construir o país em que ninguém mais possa jo-
gar alguém na merda’. E então, camaradas, disse ain-
da Stálin, o Grande Lênin me deu os planos. E então,
disse ainda o Grande Stálin, mostrando os planos que
agitava com a mão direita, aqui estão os planos, estão
comigo, não percamos mais um só segundo, ao traba-
lho, camaradas!”. O país precisava de muito cimento,
e Stálin mostrou aos trabalhadores o que fazer para
fabricar muito cimento. O país precisava de muito car-
vão, e Stálin mostrou aos trabalhadores o que fazer
para fabricar muito carvão. O país precisava de muito
aço, e Stálin mostrou aos trabalhadores o que fazer
para fabricar muito aço. O país precisava de muitos
livros bons sobre a maneira de produzir muito cimen-
to, muito carvão e muito aço, e Stálin mostrou aos
escritores como escrever bons livros sobre a maneira
de se produzir muito cimento, muito carvão e muito
aço. E o escritor Iuri Petrovski também escrevia livros,
mas não conseguia terminálos pois Katia Ezova não o
deixava em paz... Pois toda noite Katia Ezova entrava
no quarto de Iuri Petrovski e...

KATIA: Não.

IURI: ... e lhe pedia que lesse um capítulo. E assim, Iuri


Petrovski, em vez de escrever...

KATIA (no auge da emoção)'.   Não, Iuri Petrovski não


escreveu isso, está inventando... Iuri Petrovski...

a histó ria do com unism o con tada aos doentes mentais I 47 I matéi visniec
lURI: ... em vez de escrever, tinha que 1er para Katia
Ezova seus capítulos preferidos...

KATIA: Iuri Petrovski, não, mentira, mostreme essa pá-


gina... Iuri Petrovski... Está debochando... Está debo-
chando...

(Atira-se sobre Iuri, joga-o por terra e monta a cavalo


sobre ele.)

IURI (ainda lendo):  E foi assim que Iuri Petrovski não con-
seguiu terminar o bom livro que Stálin tinha pedido...

KATIA (arranca-lhe a folha)-.  Iuri Petrovski mentiroso!


Mentiroso... (Abraça-o no auge da excitação.)  Me abra-
ça, Iuri Petrovski... Me abraça... (Chora.)  Me abraça...
(Chora.) Me abraça... Me abraça... (Fazem am or no es
curo.)   Iuri Petrovski...

IURI: Sim.

KATIA: Tente lembrar, Iuri Petrovski...

IURI: Do quê?

KATIA: É muito importante pra mim...

IURI: O quê?

KATIA: Seus olhos, como eram?

IURI: Não olhei para os olhos dele.

KATIA: Não, mentira... Não me diga isso, Iuri... Está


mentindo... Ele apertou sua mão... Certamente você
olhou nos olhos dele. Talvez você tenha até olhado

coleção dram aturg ia I 48 I m atéi visniec


bem dentro daqueles olhos... Precisa lembrar... Como
eram os olhos dele?

IURI: Digamos que tinha... um olhar fixo.

KATIA: Fixo?!

IURI: Fixo.

KATIA: E sua voz?

IURI: Ele não me disse nada, Katia.

KATIA: Nada? Nem uma palavra?

IURI: Bem, digamos que disse para nós, não para mim,
mas para todos... “O partido precisa de vocês, cama-
radas!”

KATIA: Só?

IURI: Só...

KATIA (gritando)'.  Não, não, mentira! Mentira!

IURI: Katia! Silêncio! Merda!

(Por um jogo de luz, a parede ao fundo torna-se trans


 parente. Vê-se o coro dos doentes mentais. Tem-se a
impressão de que os doentes observam a cena, que
 para eles as paredes não existem. O coro canta, no
começo com voz baixa e depois num crescendo, uma
velha canção de amor . )

a histó ria do com unism o con tada aos doentes men tais I 4 9 I m atéi visniec
No escuro, iuri e Katia conversam em voz baixa.

KATIA: Iuri...

IURI: Sim?

KATIA: Você não tem medo?

IURI: Medo de quê?

KATIA: Do escuro...

IURI: Não.

KATIA: Eu, eu temo por você, Iuri.

IURI: Você teme por mim?

KATIA: É, eu temo por você.

IURI: Não se preocupe comigo.

KATIA: Eu temo por você como se fosse sua mãe.

IURI: Minha mãe nunca temeu por mim.

KATIA: Claro que sim. Você é que não consegue lem-


brar.

a histó ria do com unism o con tada aos doen tes men tais i 51 I m atéi visniec

IURI: De qualquer maneira, ela está morta.


IURI: De qualquer maneira, ela está morta.

KATIA: Então, não há ninguém no mundo para temer


por você?

IURI: Não, acho que não há ninguém na face da Terra


que tema por mim.

KATIA: Triste isso, Iuri Petrovski.

IURI: Não acho que seja tão triste assim.

KATIA: Você nunca teve medo de si mesmo, Iuri Petrovski?

IURI: De mim mesmo? Como assim?

KATIA: Quando escreve, não tem medo de que às vezes


as palavras... escapem e...

IURI: Katia, o que você está balbuciando?

KATIA: Tenho medo de você, Iuri.

IURI: Tem medo de mim? Por quê?

KATIA: Tenho medo de loucos, Iuri.

IURI: Mas eu não sou louco, Katia.

KATIA: Amanhã a leitura será para os loucos perigosos.


Tenho medo dos loucos perigosos, Iuri.

IURI: Então por que trabalha há dez anos com loucos?

KATIA: Não é isso, Iuri. Não é isso mesmo... (Silêncio.)


Iuri...

coleç ão dr am atur gia I 52 I m atéi vis niec

IURI: Sim?
IURI: Sim?

KATIA: O que ele deu pra você, o “médio” que veio


aqui?

IURI; Deume um livro de Henri Barbusse.

[Silêncio.)

KATIA: Iuri...

IURI: Sim?

KATIA: Quem é Henri Barbusse?

SÜRS: É um cam arada escritor comunista, irm ão francês.

(Silêncio.)

KATIA: Iuri...

IURI: Sim?

KATIA: Nada. (Silêncio.)  Iuri...

IURI: Sim?

KATIA: Será que eu posso recitar um poema sobre as


rãs?

IURI: Vamos lá, Katia.

KATIA: Escrevi trinta poemas sobre as rãs.

IURI: Vamos lá, Katia, escolha um e recite.

a his tória do com unism o con tada aos doen tes men tais I 53 I m atéi visniec

KATIA: Uma rãzinha olhava direto em meus olhos

Pois tinha visto correr uma lágrima de meus olhos


KATIA: Uma rãzinha olhava direto em meus olhos

Pois tinha visto correr uma lágrima de meus olhos

E então ela me disse: “Katia...

Pode emprestarme a sua lágrima

Pois o universo se reflete nessa lágrima”

Mas a lágrima já estava em minha boca,

Então eu engoli a lágrima e todo o universo...

E a rãzinha se pôs a chorar...

(Silêncio.)   Gostou, Iuri?

IURI: Você é muito linda, Katia, você sabe...

KATIA: Iuri, diga mais uma vez.

IURI: Você é muito linda, Katia.

KATIA: Não, diga o que Stálin disse pra você.

IURI: O quê?

KATIA: Diga “o partido precisa de vocês, camaradas


Diga mais uma vez.

coleção dram aturg ia I 54 I m atéi visniec


Iuri lê para seis ou sete “ doentes” , todos em camisas de
força. Também estão amo rdaçado s. Atrás de Iuri, Katia e
dois seguranças muito fortes observam c ada movimento.

IURI: Quando o país precisava de alguma coisa, as


pessoas vinham e perguntavam a Stálin o que fazer
para fabricar uma coisa ou outra. E eis que, um dia,
o trabalhador Alexei da divisão do aço, o trabalhador
Vladimir da divisão do carvão e o trabalhador Vassili
da divisão do cimento vieram até Stálin e disseramlhe:
“Camarada Stálin, há um problema com a construção
do país em que ninguém mais vai jogar ninguém na
merda. E que trabalhamos todo o dia, segunda, ter-
ça, quarta, quinta, sexta, sábado e também domingo,
que é o dia do trabalho patriótico. E estamos muito
felizes por construir o país em que ninguém mais vai
jogar ninguém na merda. Acontece que à noite, quan-
do terminamos nosso dia de trabalho e nossas horas
suplementares, e vamos comprar pão, o camponês
Mikhail, o camponês Ivan e o camponês Dimitri não
querem nos vender o pão”. Então, o grande camarada
Stálin estudou os planos que tinha recebido do gran-
de camarada Lênin e disse: “O país precisa de muito

a história do comunism o contada aos doentes mentais 1 55 I matéi visniec

mais trigo, vamos construir kolkhozes”.1E foi ter com


o camponês Mikhail, com o camponês Ivan e com o
camponês Dimitri e disselhes: “Rejubilemse, meus
caro s Mikhail, Ivan e Dimitri, vamos construir k olkho-
mais trigo, vamos construir kolkhozes”.1E foi ter com
o camponês Mikhail, com o camponês Ivan e com o
camponês Dimitri e disselhes: “Rejubilemse, meus
caro s Mikhail, Ivan e Dimitri, vamos construir k olkho-
zes e todo mundo terá pão no país onde ninguém mais
vai jogar ninguém na m erda” . O camponês Mikhail
disse: “Está certo, caro camarada Stálin, compreendo
que é necessário que eu dê para o kolkhoz meu pedaço
de terra e também meu cavalo, minha vaca, meu porco,
minhas ovelhas, e que eu deva em seguida trabalhar no
kolkhoz, e estou feliz, pois faço isso para a constru-
ção do país em que ninguém poderá jamais jogar al-
guém na merda”. E o camponês Ivan disse: “Quanto a
mim, caro camarada Stálin, não compreendo por que
deva dar ao kolkhoz meu pedaço de terra, e também
meu cavalo, minha vaca, meu porco, minhas ovelhas,
e por que deveria em seguida trabalhar no kolkhoz,
mas estou feliz em fazêlo porque tenho confiança em
você, caro camarada Stálin, pois somente você pode
nos mostrar como construir o país onde ninguém mais
vai jogar alguém na merda”. E o camponês Dimitri
disse: “Q uanto a mim, caro cam arada Stálin, não co m -
preendo por que deva dar ao kolkhoz o pedaço de ter-
ra que herdei de meu pai, meu cavalo, minha vaca, meu
porco e minhas ovelhas, que são meus animais, criados
por mim, e não compreendo também por que deveria
trabalhar no kolkhoz e não em minha própria terra.
E porque não compreendo, caro camarada Stálin, não
irei para o kolkhoz”.

' Kolkhoz é um tipo de propriedade rural coletiva, típica da antiga


União Soviética, no qual os camponeses formavam uma cooperativa
de produção agrícola. (N. T.)

coleção dram aturg ia I 56 I matéí visniec

(Os “doentes”, que foram dando sinais de excitação


cada vez mais fortes, reagem energicamente, tem-se a
impressão d e que querem exprimir-se. Alguns se jogam
(Os “doentes”, que foram dando sinais de excitação
cada vez mais fortes, reagem energicamente, tem-se a
impressão d e que querem exprimir-se. Alguns se jogam
no chão.)

KATIA: Está bem, Iuri Petrovski, paramos por aqui. É o


suficiente por hoje.

IURI: Se houver alguma pergunta... Posso responder às


perguntas.

(Katia retira a mordaça dos doentes.)

KATIA: Alguma pergunta? Nosso camarada Iuri


Petrovski responderá às perguntas...

(Os “doentes” permanecem calados, mas fixam Iuri


Petrovski com estranha avidez.)

a história do com unism o con tada aos doentes mentais I 57 I matéi visniec
iuri, em seu quarto, tarde da noite, escreve.
Leves batidas na porta. Entra Stepan Rozanov.

STEPAN ROZANOV: Iuri Petrovski...

SUBI: Sim?

STEPAN ROZANOV: Está trabalhando?

IURI: Sim.

STEPAN ROZANOV (entra e fecha a p orta atrás de si): Boa


noite, Iuri Petrovski. Desculpe atrapalhar. Sei que está
trabalhando. Sou Stepan Rozanov, o diretor associado.

IURI: Boa noite.

STEPAN ROZANOV: Queria dizer que é magnífico o que


está fazendo, Iuri Petrovski.

IURI: Faço o que posso.

STEPAN ROZANOV: Posso sentar um minuto?

a his tória do com unis mo contada aos doentes men tais I 59 i matéi visniec

IURI: Por favor, Stepan Rozanov.

(Puxa uma garrafa d e vodca.)

STEPAIM ROZANOV: Trouxelhe isto . M unições . H e


IURI: Por favor, Stepan Rozanov.

(Puxa uma garrafa d e vodca.)

STEPAIM ROZANOV: Trouxelhe isto... M unições... H e,


he... Tem copos?

IURI: Tenho. (Servem-se.)

STEPAN ROZANOV: Iuri Petrovski, gostaria de fazer um


brinde. Permite?

IURI: Por favor, Stepan Rozanov.

STEPAN ROZANOV: Gostaria que fizéssemos um brinde


à literatura socialista posta a serviço do povo e da re-
volução.

IURI: À literatura socialista!

STEPAN ROZANOV: Tintim!

IURI: Tintim! (Esvaziam os copos.)

STEPAN ROZANOV: Obrigado, obrigado, camarada Iuri


Petrovski, por ter me recebido e aceitado meu brinde
à literatura socialista posta a serviço do povo e da re-
volução.

IURI: E uma grande honra para mim, camarada Stepan


Rozanov, fazer um brinde à literatura socialista.

STEPAN ROZANOV: Camarada Iuri Petrovski. Você é um


grande escritor. Gostaria também de fazer um brinde à
União dos Escritores que tem entre seus membros um
grande escritor como você.

coleç ão dr am atu rg ia I 60 I m atéi vis niec

IURI: Camarada Stepan Rozanov, não sou um gran-


de escritor, sou um escritor a serviço do meu povo.
Proponho portanto um brinde à União dos Escritores,
na qual todos os escritores estão a serviço do povo.
IURI: Camarada Stepan Rozanov, não sou um gran-
de escritor, sou um escritor a serviço do meu povo.
Proponho portanto um brinde à União dos Escritores,
na qual todos os escritores estão a serviço do povo.

STEPAN ROZANOV: Tintim!

IURI: Tintim! (Esvaziam os copos.)

STEPAN ROZANOV: Camarada Iuri Petrovski, permita


me fazer uma pergunta. Esteve na guerra?

IURI: Sim.

STEPAN ROZANOV: Onde?

IURI: Em Leningrado.

STEPAN ROZANOV: Leningrado?

IURI: Leningrado.

STEPAN ROZANOV: Durante todo o cerco?

IURI: Sim.

STEPAN ROZANOV: Então, façamos ainda um brinde à


cidade de Leningrado!

IURI: A Leningrado!

STEPAN ROZANOV: Tintim! (Esvaziam os copos.)


Camarada Iuri Petrovski, gostaria de fazer uma per-
gunta.

IURI: Estou ouvindo, camarada Stepan Rozanov.

a his tóri a do com unis mo contad a aos doen tes m entais I 61 I matéi visniec

STEPAN ROZANOV: M as, antes, gostaria de fazer um


brinde a nosso grande camarada Stálin, o homem de
aço que, como você disse, tirou todos nós da merda.
STEPAN ROZANOV: M as, antes, gostaria de fazer um
brinde a nosso grande camarada Stálin, o homem de
aço que, como você disse, tirou todos nós da merda.

IURI: Ao grande camarada Stálin!

STEPAN ROZANOV: Ao grande camarada Stálin!


(Esvaziam os copos.)   Pronto... E agora, eis o que eu
queria lhe dizer, camarada Iuri Petrovski. Jamais li nar-
rativas mais reacionárias, mais antirrevolucionárias e
mais subversivas do que as suas. (Breve pausa.)  Você
tem um grande talento, Iuri Petrovski. Compreendo
que não é fácil escrever boas narrativas reacionárias,
antirrevolucionárias e subversivas. Tudo que é bom
deve ser difícil de escrever.

IURI: Camarada Stepan Rozanov...

STEPAN ROZANOV: Admiro você, Iuri Petrovski. Admiro.


Imagino que é muito mais fácil escrever narrativas
ruins do que narrativas totalmente reacionárias, antir-
revolucionárias e subversivas. Não é?

IURI: Camarada Stepan Rozanov...

STEPAN ROZANOV: Camarada Iuri Petrovski, saiba que


fui eu que informei nossos ÓRGÃOS   sobre o que
se passa neste hospital. Portanto, acredite, esperava
que alguma coisa acontecesse. Em seguida, você che-
gou. E então, compreendi tudo. Portanto, permita
me dizer, Iuri Petrovski, que abraço totalmente sua
missão e que vou ajudálo com todas as minhas for-
ças. Ficaria verdadeiramente muito honrado, Iuri
Petrovski, se me desse o privilégio de ver, em primei-
ra mão, a sua narrativa.

coleção dram aturg ia I 62 I matéi visn iec

IURI: Camarada Stepan Rozanov...

STEPAN ROZANOV: Não diga nada, camarada Iuri


IURI: Camarada Stepan Rozanov...

STEPAN ROZANOV: Não diga nada, camarada Iuri


Petrovski. Não diga nada. Sei como é isso. Bebamos
ainda um copo para que a luta de classes em nosso
hospital alcance a vitória do proletariado.

IURI: À vitória do proletariado!

STEPAN ROZANOV: Tintim! (Esvaziam os copos.) Faz


quatro anos que enviei meu relatório aos ÓRGÃOS.
Há quatro anos que espero uma reação e eis que,
finalmente, você chegou! Estou feliz que esteja aqui,
Iuri Petrovski. Quer que eu leia o que escrevi em
meu relatório?

IURI: Com prazer, camarada.

STEPAN ROZANOV: Caros camaradas, é meu dever ob-


servar que o partido não prestou atenção suficien-
te à luta de classes no Hospital Central de Doentes
Mentais de Moscou. Nosso camarada Stálin disse: “A
luta de classes acontece em todos os patamares, a luta
de classes entra em sua fase decisiva, tornase cada
vez mais aguda. Saibam, camaradas, que em nosso
hospital ocultamse não poucos elementos subversi-
vos, não poucos contrarrevolucionários e não poucos
possíveis sabotadores. Uma parte dos citados pertence
às classes hostis. Uma parte dos idiotas são elementos
míopes. Uma parte dos imbecis são inimigos do povo.
Uma parte dos débeis mentais são elementos suspei-
tos. A maioria dos esquizofrênicos, dos melancólicos e
dos maníacos provêm do meio burguês e fazem, den-
tro do quadro do hospital, propaganda enganosa. Eis
porque lhes peço, caros camaradas, que tomem me-
didas urgentes, pois sob a máscara da alienação e da

a histó ria do com unis mo contada aos doentes m entais I 63 I m atéi visniec
deficiência mental ocultamse temíveis reacionários!
E da maior importância criar um tribunal revolucio-
nário em nosso estabelecimento. E da maior impor-
tância separar os doentes mentais sinceros e de raiz
proletária dos doentes mentais suspeitos e odiosos. Os
doentes mentais que estão ao lado da classe trabalha-
dora esperam o auxílio do partido. Não os deixemos
sozinhos em sua luta contra os doentes mentais que
estão ao lado da burguesia! Ajudemnos, camaradas.
(Pausa. Stepan Rozanov serve a bebida. Os dois be
bem.)   Então? O que me diz, Iuri Petrovski?

IIM: O que é que eu posso dizer, Stepan Rozanov?

STEPAN ROZANOV: Tenho certeza de que seu método


vai nos permitir identificar os elementos hostis a
fim de isolálos. Um BRAVÍSSIMO   para sua ação,
Iuri Petrovski.

IURI: Muito obrigado, Stepan Rozanov.

STEPAN ROZANOV: No princípio, eu me perguntei: mas


como, como é possível que narrativas reacionárias,
subversivas e contrarrevolucionárias possam ser efi-
cazes para a identificação dos elementos suspeitos?
Em seguida me dei conta de que, no caso dos doentes
mentais, é o único método! O único método verdadei-
ramente eficaz! É fantástico, camarada Iuri Petrovski!
Pegaremos todos! Não conseguirão mais nos escapar!
Vão todos trairse ao ouvir suas narrativas. E final-
mente é tão simples, tão simples... E tão claro... E lindo
o que você imaginou, Iuri Petrovski... E lindo como a
revolução... Pois é somente com um discurso reacio-
nário, subversivo e contrarrevolucionário que serão
desmascarados os elementos reacionários, subversi-
vos e contrarrevolucionários... Simplíssimo... Bravo,

coleção dramaturgia i 64 ! matei visniec

Iuri Petrovski, bravo, camarada! Deixeme abraçálo!


(Abraça Iuri Petrovski e chora.)   Vamos pegálos, va-
Iuri Petrovski, bravo, camarada! Deixeme abraçálo!
(Abraça Iuri Petrovski e chora.)   Vamos pegálos, va-
mos pegálos todos... A luta de classes não se detém
à porta do nosso estabelecimento... A luta deve conti-
nuar, a luta deve... Sobretudo agora... Pois ouvi dizer
que o camarada Stálin está doente...

(Ele chora nos braços de Iuri. Escuridão.)

a histó ria do comunism o contada aos doentes mentais I 65 I matéi visniec


Aposento do subsolo. oito d oentes  jogam a “ roleta
Sete ou
dos pa ssan tes” . Todos têm os olhos fixos na janela. Depois
de um minuto de espera, um homem uniformizado, do
íado de fora, passa diante da janela, vindo do lado direito.
Exclamações, emoções, etc. entre os jogadores. 0 crupiê
empurra o dinheiro para o jogador que ganhou a aposta e
desce a cortina que cobre a  janela.

CRUPIÊ: Ladies and gentlemen,  façam seus jogos...

PIOTR ( entregando seu dinheiro ao crupiê)'.   Civil alge-


mado, lado direito...

IVAN: Vai perder. Não acontece nunca um civil algemado


do lado direito.

PIOTR: Não fode a minha paciência.

IVAN (dando dinheiro ao crupiê)'.   Dois copeques, pa-


trulha, lado esquerdo.

SACHA E EMELIAN: Pffff...

CRUPIÊ: Vamos, façam seus jogos...

SACHA: Cadáver numa carroça! Cadáver numa carro-


ça! Direita ou esquerda!

a his tór ia do com uni sm o con tada aos doentes men tais I 67 I matéi visn iec
CRUPIÊ: Quanto, Sacha? Merda! Quanto?

SACHA: Um copeque!

CRUPIÊ: Vamos, Emelian, aposte...

EMELIAN: Automóvel negro, lado... Direito... Três co


peques!

PIOTR: Ah, não, três é muito, não pode.

CRUPIÊ: Cale a boca, Piotr. (A Emelian.)   É muito, não


pode. Dois copeques. Vamos, o próximo, façam seus
jogos, ladies and gentlemen.

DOENTE 5: Agente à paisana, lado esquerdo!

SACHA: Mas fui eu que disse agente à paisana!

CRUPIÊ: Cale a boca, você disse cadáver. Façam seus


jogos, ladies and gentlemen.

DOENTE 6: O dedoduro Igor! Lado direito ou lado es-


querdo.

CRUPIÊ: Quanto?

DOENTE 6: Um copeque.

EMELIAN: O Igor vem sempre da esquerda. Diga dedo


duro, esquerda, e dobre a aposta.

CRUPIÊ: Vamos, vamos, façam seus jogos.

EMELIAN: Vamos, Salomon... Fale... Não estamos na


Suíça.

co leção dr am aturg ia I 68 I m atéi visn iec


DOENTE 7: Cachorro.

IVAN: Merda, pare com esse seu cachorro, nunca é ca-


chorro. Ele me deixa enlouquecido com seu cach orro...

DOENTE 7: Cach orro, lado esquerdo. Um copeque. Faço


o que bem entendo.

IVAN: Ah, isso me arrebenta os nervos... Há duas se-


manas é só isso que escuto... Cachorro, cachorro, ca-
chorro!

EMELIAN: Ele faz o que quiser. E como na Suíça. Na


Suíça, todo mundo faz o que bem quer.

CRUPIÊ: Ninguém aposta mais.

0 LOUCO QUE APOSTA EM STÁLIN: Stálin, lado esquerdo!

CRUPIÊ: Cale a boca, idiota. Você está fora. Ninguém


aposta mais.

0 LOUCO QUE APOSTA EM STÁLIN: Mas eu tenho dinhei-


ro! Stálin, lado esquerdo. Tenho direito! Tenho dinheiro.
 Jogo como bem entender.

CRUPIÊ: Vá passear, merda. Vá para a ala dos graves. Eu


disse que você não joga mais aqui! Ninguém aposta mais.

(Puxa o barbante, a cortina sobe. Todos esperam em


silêncio. Tensão.)

SACHA ( tomado por um riso louco)'.  Que idiota!

OS OUTROS: Psssiu.

a his tóri a do com unis mo con tada aos doentes mentais I 69 I m atéi visni ec
(Uma criança descalça, a cabeça descoberta, passa cor
rendo. O crupiê recolhe para si todo o dinheiro.)

CRUPIÊ: Passante sem apostas. Ganha a banca.

DOENTE 6: Mas não, é um dedoduro! Fui eu que...

CRUPIÊ: Cale a boca, Slivinski. A banca ganhou. Vamos,


façam seus jogos, ladies and gentlemen.

coleção dr am atur gia I 70 I m atéi visn iec


Iuri Petrovski trabalha em seu quarto. Uma jovem mulher 
bate à janela. Iuri Petrovski abre a janela.

A MULHER JOVEM: Iuri Petrovski... Iuri Petrovski...


Trago uma carta para Josef Vissarionovitch... (Ela es
tende a ele várias folhas de carvalho.)   Iuri Petrovski,
não me abandone, não me abandone, é preciso que
 Josef Vissarionovitch leia minha carta, eu suplico,
tome, ele não sabe que estou aqui, Iuri Petrovski, sou
Nadezhda Alliluyeva, e ainda o amo, digalhe que ain-
da o amo, digalhe que Nadezhda Alliluyeva ainda o
ama, diga a ele que sua mulher ainda o ama, que es-
tou aqui e que me preocupo com ele, prometame, Iuri
Petrovski, que vai entregar essa carta pessoalmente...
(Lança mais e mais folhas mortas no quarto de Iuri.)
Prometame, Iuri Petrovski, o amor é mais forte que
tudo, digalhe que ainda o amo mas que não quero
que venha me ver, não, não diga a ele onde estou, diga
lhe somente que ainda estou viva, que ainda o amo
e que me preocupo com ele, mas não lhe diga onde
estou, diga somente que me encontrou, sou Nadezhda
Alliluyeva, que ainda o amo, que o amo, de verdade,
sou Nadezhda Alliluyeva, que ainda o amo, que o
amo, de verdade, digalhe tudo isso, ele não precisa
ter medo, nada mudou, mas é preciso que lhe entregue
minha carta pessoalmente, prometam e, Iuri Petrovski,

a his tór ia do com unis mo con tada aos doentes m entais I 71 I m atéi visn iec
eu sei que ele chama por mim, ele precisa parar de
beber... E não diga nada a ninguém... Não diga nada a
ninguém, prometame que não dirá nada a ninguém...
Digame alguma coisa, Iuri Petrovski... Digame al-
guma coisa, uma palavra, uma palavra, uma palavra,
uma palavra... Tenho uma ca rta ... Iuri Petrovski...
Tenho uma carta para Josef Vissarionovitch... (Dá a
ele várias folhas de carvalho.)   Iuri Petrovski, não me
abandone...

(Ela continua na mesma lógica, sempre retom ando seu


discurso, enquanto uma velha mulher aproxim a-se da
 janela e dirige-se a Iuri Petrovski.)

A MULHER VELHA (que fala ao mesmo tempo que a


mulher jovem)-.  Iuri Petrovski, digalhe que sua mãe
diz para não se cansar, ele está cansado, ele não mata
mais, ele não está bem, eu sei, ele não mata mais, isso
é porque ele não está bem, está doente, há uma sema-
na que não mata, está doente, está com a barba por
fazer, digalhe que sua mãe está inquieta, ele não mata
há quatro dias, come mal, bebe demais, está com a
barba por fazer, está doente, digalhe que sua mãe está
inquieta, ele não matou nos últimos dias, dorme mal,
está cansado, vela a noite inteira, porque, está com a
barba por fazer, tosse, está doente, não mata há uma
semana, digalhe que sua mãe está inquieta, ele está
doente, está resfriado, está cansado, está sozinho, ele
não mata há dois dias, está sozinho, cansado, está sem
dormir, porque, digalhe...

(A mulher velha continua seu discurso na mesma “ló


 g ica”. Uma terceira mulher aproxim a-se da janela e
dirige-se a Iuri Petrovski, junto com a jovem mulher 
e a velha mulher.)

coleção dr am aturg ia I 72 I matéi vis niec


A TERCEIRA MULHER: Sacha não fez nada, não, ele não
fez nada, não, ele me disse, não fez nada, não fez ab-
solutamente nada, não, não fez nada, Sacha não fez
nada, não, não, ele não fez nada, ele me disse que
não fez nada, ele me disse, não, ele não fez nada, não,
Sacha nunca fez nada, estava lá mas não fez nada, es-
tava lá, só isso, mas não fez nada, apenas estava lá,
é , estava lá, é isso, é, mas não fez nada, não, não fez
absolutamente nada, não, nada, nada, nada, Sacha não
fez nada, estava lá mas não fez nada, não viu nada,
não fez nada, estava lá, só isso, mas não disse nada,
não fez nada, nada...

(Uma quarta mulher aproxima-se da janela e fala com


Iuri Petrovski junto com as outras três mulheres.)

A QUARTA MULHER: Não, Maria Spiridonova não gos-


ta de pirojques,2 não, os pirojques, não, nada de pi
rojques, Maria Spiridonova não gosta de pirojques,
não, os pirojques, não, nada de pirojques, não, não,
não, nada de pirojques, não, não, não, pirojques de-
mais, não, os pirojques, demais, não, demais, nada de
pirojques, não para Maria Spiridonova, não, Maria
Spiridonova não gosta de pirojques, nada de piroj-
ques, nada de pirojques, não, não, nada de pirojques,
não, Maria Spiridonova, não, chega de pirojques...

(Uma quinta mulher aproxima-se da janela e fala com


Iuri Petrovski, junto com as outras quatro mulheres.)

A QUINTA MULHER: Economizamos um número considerá-


vel de vagões, num total de 37.5 48 metros lineares de pran-
chas, 11.834 baldes e 3.400 aquecedores! Economizamos

2 Pãezinhos recheados de carne moída, especialidade russa. (N. T.)

a histó ria do com unism o con tada aos doentes mentais I 73 I matéi visniec
um número considerável de vagões. Economizamos um
número considerável de vagões, 37.548 metros linea-
res de pranchas, 11.834 baldes e 3.400 aquecedores!
Economizamos 37.548 metros lineares de pranchas,
11.834 baldes e 3.400 aquecedores! E um número consi-
derável de vagões... Economizamos um número conside-
rável de vagões, num total de 37.548 metros lineares de
pranchas, 11.834 baldes e 3.400 aquecedores...

co leção d ram atur gi a I 74 I matéi visn iec


Noite, no quarto de Iuri Petrovski. Iuri Petrovski dorme em
sua cama. Timofei entra, aprox im a-a-se
se da cama
cam a e espera.
Longo silêncio. Iuri Petrovski sobressalta-se, abre os olhos,
vê Timo fei.

IURI: Timofei... Timofei, deixeme dormir...

TIMOFEI: Iuri Petrovski, vamos à festa...

IURI: D eixe me dormir,


dorm ir, Timofei
Tim ofei.. Volte para
pa ra sua ala.
Deixeme dormir.

TIMOFEI: Vamos à festa nos “isolados”, Iuri Petrovski.


Desculpeme, Iuri Petrovski, mas foi Ivan Mikadoi
Gamarovski quem o convidou.

IURI: Timofei, deixeme dormir. Pegue a garrafa e dei-


xeme dormir.

TIMOFEI: Iuri Petrovski, não foi por isso que eu vim.


Os camaradas que estão em regime isolado clamam
por você. Também a Corte está reunida na seção de
segurança máxima. Você tem que vir... (Riso louco.) A
autocrítica já começou...

IURI (levanta-se como um sonâmbulo)'.   Timofei, como

a his tória do com unis mo con tada aos doentes m entais I 75 I m atéi visn iec
você faz para entrar no meu quarto? Como? Estava
tran cad o... Com o você faz
faz para entrar no meu
meu quarto?

TIMOFEI: Ivan Mikadoi Gamarovski está festejando os


quinze anos que passou aqui... Façanos a honra de
prestigiar essa festa... Pois você é um dos nossos, Iuri
Petrovski... Sabemos que é dos nossos...

(Iuri Petrovski, de pijama, deixa-se conduzir por 


Timofei. O percurso deve ser feito de modo muito
com plicado, dand d andoo a entender
entender que os doentes têm sua suass
 pa
 p a s s a g ens
en s se
secc r e ta
tass , suas
su as p o r t a s s e c r e t a s .)

TIMOFEI: Por aqui, Iuri Petrovski... Abaixe a ca-


beça... Pronto... Perdoenos pelo incômodo, Iuri
Petrovski, mas é uma grande honra para Ivan Mikadoi
Gamarovski ter você conosco, na zona livre... Dême a
mão, pule! Pronto. Chegamos... Entre, Iuri Petrovski...

coleção dr am aturg ia I 76 I matéi visn iec


Em uma sala pouco iluminada, uma dezena de homens e
m ulh ere
eress agu arda a ch
chegada
egada de Iuri
Iuri Petrovs
Petrovski.
ki. At
Atmo
mo sfera de
reunião de célula
célu la de partido.
partido. Os cam aradas estão
estão sentados
em c adeiras. Iva
Ivann Mikado i Gamarovs
Gamarovski ki preside a reunião
atrás de um
u m a mesa, sobre
sobr e um pequeno
p equeno estrado. Alguns
participantes vestem camisa
cami sa de força, mas com as m angas angas
soltas, descendo ao chão. À entrada de Timofei e de Iuri
Petrovski
Pe trovski (qu
quee está de pijama)
pijam a),, todo mundo
mun do aplaude.

TIMOFEI: Camarada Ivan Mikadoi Gamarovski, eis aqui


Iuri Petrovski, que nos deu a honra de vir à sua festa.

IVAN MIKA
IKADOI GAMAROVSKI: Se
Seja b e m v in d o , c a m a r a d a
Iuri Petrovski. É uma grande honra para nós recebê
lo no território livre da União Soviética! (Reações,
aplausos, exclamações na sala.)  Está aqui, caro Iuri
Petrovski, no único lugar deste hospital onde jamais
nenhum médico, nenhum segurança, nenhum respon-
sável pôs os pés. Estamos aqui, caro Iuri Petrovski, na
autogestão total.

0 PROFESSOR: Click, clac, pluf!

(Todos riem.)

IVANMIKADOI GAMAROVSKI: Você, meu caro Iuri Petrovski,

a his tória do com unis mo cont ada aos do entes m entais I 77 I matéi visn iec
é o primeiro civil, a primeira pessoa que entra na zona li-
vre deste estabelecimento. Declaramos portanto que você
é, caro camarada Iuri Petrovski, um homem livre!

[Aplausos, alguns batem no chão com os pés.)

0 PROFESSOR: Click, clac, pluf!

(Todos riem.)

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Caro cam arada Iuri


Petrovski, para começar, rogamos que aceite, en-
quanto homem livre no único lugar livre da União
Soviética, um presentinho. (Uma mulher traz uma ca
misa de força. Caminha com ar solene.)   Aí está, Iuri
Petrovski. É para você. N ão tenha medo. Experimente.
Sabemos que é um dos nossos. (Iuri, auxiliado pela
mulher, veste a camisa.) Quer que amarremos as man-
gas? (Iuri faz sinal negativo.)   Não? Está bem. Agora,
Iuri Petrovski, sentese! (Ele se dirige à assistência.)
Levanto este copo a Iuri Petrovski, por suas ótimas
narrativas, verdadeiramente revolucionárias, que
aquecem nosso coração! Hip, hip, hip, hurra!

TODOS: Hip, hip, hip, hurra!

0 PROFESSOR: Click, clac, pluf!

(Todos riem.)

PIOTR: Camarada Ivan Mikadoi Gamarovski, quero


fazer uso da palavra!

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Daqui a pouco, cam arada!


Daqui a pouco! Temos ainda que explicar ao nosso
caro Iuri Petrovski duas ou três coisinhas!

coleção dr am aturg ia I 78 I matéi visn iec


IVAN: Que testemunhe no processo! A Corte de nos-
sa zona livre trabalha dia e noite, camarada Iuri
Petrovski!

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: É verdade, Iuri Petrovski,


julgamos incessantemente os traidores da verdade.

IVAN: Até mesmo o Máximo Gorki foi condenado à


morte por nós!

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: É verdade, Iuri Petrovski,


condenamos até mesmo o Máximo Gorki à morte!

0 PROFESSOR: Click, clac, pluf!

(Todos riem.)

IVAN: Máximo Gorki está de fato morto, camarada Iuri


Petrovski? Pois, para nós que o condenamos à morte, é
importantíssimo ter a confirmação de que ele está morto.

IURI: Ele está morto!

(A assistência fica aliviada. Todos aplaudem.)

0 DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN: Quero contar como


conheci Stálin! Quero contar ao camarada Iuri
Petrovski como conheci Stálin.

IVAN: Uma pergunta, Iuri Petrovski. Queremos tam-


bém condenar à morte Semion Babaievski, Mikhail
Bubiennov e Vassili Ajaiev. Pois condenamos à morte
todos os que receberam o Prêmio Stálin. Eles morreram?

IURI: Não.

a his tória do com unis mo co ntada aos doentes m entais I 79 I m atéi visniec
IVAN: Então ainda não podemos condenálos à morte.

0 PROFESSOR: Mas você acredita que um dia eles esta-


rão mortos, camarada Iuri Petrovski?

IURI: Sim.

(A assistência aplaude, em ocion ad a.)

0 PROFESSOR: Click, clac, pluf!

(Ninguém ri.)

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Caro cam arada Iuri


Petrovski, deixe que eu me apresente... Sou Ivan
Mikadoi Gamarovski. Estou há quinze anos neste hos-
pital. A zona livre foi criada há dez anos. Temos aqui
um grupo de estudos revolucionários, um cassino, o
tribunal que trabalha 24 horas por dia, o clube dos
que conheceram Stálin...

0 DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN: Quero contar como


conheci Stálin...

0 SEGUNDO DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN: Eu também


conheci Stálin!

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Vamos, Grigori, conte ao


nosso caro camarada Iuri Petrovski como você conhe-
ceu Stálin...

0 DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN: Eu conheci Stálin! Eu


conheci Stálin!

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Está bem, você conheceu


Stálin! Mas conte como conheceu Stálin.

coleção dr am aturg ia I 80 I m atéi visn iec


0 DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN ( concentrado, desfigu
rado)'.  Conheci o grande Stálin...

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Muito bem, Grigori. Mas


conte ao nosso cam arada escritor com o conheceu Stálin.

0 DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN (face congestionada,


treme)'. Eu o conheci!

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Certo, Grigori. Mas quando?

0 DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN: Eu estava no destaca-


mento do comandante Sergo Ordjonikidze!

0 PROFESSOR: Ah, é? Então você também conheceu


Sergo Ordjonikidze?!

0 DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN: Sim, conheci Sergo


Ordjonikidze.

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: M as diganos logo como


conheceu Stálin.

0 DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN: Acontece que os ku-


laks3 não queriam mais nos dar pão. E Stálin disse:
“Os kulaks têm tendências exploratórias”. Então, re-
cebemos ordem de fuzilar vinte kulaks em cada aldeia.
E um dia, estávamos perto de uma aldeia chamada
Buianska: eu, um sujeito de Vostokstal e um sujeito
de uma aldeia cujo nome esqueci. Devíamos fuzilar
três kulaks que estavam trancafiados no porão na sede

1Termo depreciativo usado no linguajar político soviético para se


referir a camponeses relativamente ricos do Império Russo que pos
suíam grandes fazendas e faziam uso de trabalho assalariado em
suas atividades. (N. T.)

a his tóri a do com unis mo co ntad a aos doentes m entais I 81 I m atéi visn iec
da GPU.4 Resolvemos fuzilálos na floresta. Os kulaks
benziamse o tempo todo e olhavam para nós, e nisso
se via bem que eles tinham tendências exploratórias.
E então o sujeito de Vostokstal disse para mim e para
o sujeito da aldeia que esqueci o nome: “Camaradas,
vamos fuzilar três kulaks que têm tendências explo-
ratórias, mas vamos fuzilálos em vão, porque escon-
deram o trigo deles e jamais saberemos onde”. Então,
em vez de fuzilálos, nós os crucificamos, do jeito que
se vê nos ícones, na igreja... Como fizeram com nos-
so Salvador Jesus e com os dois ladrões, nas cruzes...
E eles foram torturados para que dissessem onde ti-
nham escondido o trigo. Mas os kulaks não quiseram
de jeito nenhum nos dizer onde tinham enterrado o
trigo. E talvez nem tivessem trigo nenhum. Três dias
depois, o camarada Stálin passou por lá e os viu,
crucificados na floresta. E perguntou: “Quem é que
fez isso, camaradas?”. E eu, o sujeito de Vostokstal
e o sujeito da aldeia cujo nome esqueci, avançamos
e dissemos: “nós”. E o grande Stálin ficou furioso.
Ele nos disse: “Camaradas, não torturamos os kulaks
com métodos reacionários da Igreja. Os kulaks devem
ser torturados com métodos revolucionários. Podem
arrancarlhes a língua, arrancarlhes as tripas, cortar
Ihes as orelhas, podem afogálos pouco a pouco em
um tonel, mas crucificálos jamais. Entenderam, ca-
maradas? Não liquidem os kulaks com métodos con
trarrevolucionários. Liquidemnos com os métodos
do Bureau   político”. Foi assim. Foi assim que conheci
Stálin. Ele poderia ter nos fuzilado, a mim, ao sujeito

4 GPU é a sigla de Gossudarstvennoie Polititcheskoie Upravlenie


(Direção Política do Estado), polícia política soviética que surgiu em
1922 e sucedeu à Tcheka (comissão extraordinária panrussa para
a repressão da contrarrevolução e da sabotagem), serviço secreto
criado em 1917. (N. T.)

coleção dr am aturg ia I 82 I m atéi visn iec


de Vostokstal e ao sujeito da aldeia cujo nome esqueci,
ele poderia ter nos fuzilado porque utilizamos méto-
dos de tortura contrarrevolucionários, mas não o fez.
Viva o grande Stálin.

TODOS: Viva o grande Stálin!

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Camaradas, faço um brin-


de à força da literatura que, graças a Iuri Petrovski, faz
a mentira recuar e a verdade avançar.

(Delírio na sala. Vários doentes vão abraçar Iuri


Petrovski.)

0 ESTRANGEIRO: Ribbentrop Molotov!

0 PROFESSOR: Click, clac, pluf!

0 SEGUNDO DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN: Eu também,


eu conheci Stálin! Fui o fotógrafo de Stálin. Fui eu
que apaguei da foto oficial Antipov, Kirov, Chvernik
e Akulov!

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Calma, cam aradas! Um de


cada vez. Camarada Iuri Petrovski, será que aceitaria
ser comissário para a literatura em nosso governo pro-
visório?

(,Silêncio gelado.)

IURI: Aceito.

(A assistência descontrola-se.)

0 PROFESSOR: Abaixo os traidores da revolução!


Abaixo!

a histó ria do com unism o con tada aos doentes ment ais I 83 I matéi visniec
IVAN: Uma questão, Iuri Petrovski, o escritor francês
Henri Barbusse já morreu?

0 ESTRANGEIRO: RibbentropMolotov!

0 SEGUNDO DOENTE QUE CONHECEU STÁLIN: Primeiro,


apaguei Antipov. Depois, apaguei Kirov. Depois, apa-
guei... Não, Chvernik eu não apaguei, eu o coloquei...

SACHA: Camaradas, proponho que o cam arada Kuhkin


leia para nós o capítulo que o camarada Iuri Petrovski
escreveu sobre a guerra!

( Uivos, assobios de aprovação, excitação, como se um


espetáculo estivesse para começar.)

KUHKIN: Ah, não, camaradas! Jamais teria a coragem


de pronunciar, mesmo de cor, as maravilhosas pala-
vras que nosso camarada Iuri Petrovski escreveu sobre
Stálin e sobre a guerra!

(Reações de reprovação, assobios, etc.)

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: C amarada Iuri Petrovski,


deixeme apresentar a você o ator Kuhkin, que sabe de
cor todos os capítulos que você escreveu aqui sobre a
história dos bolcheviques... Vamos, camarada Kuhkin,
suba à tribuna!

0 PROFESSOR: Click, clac, pluf!

(Todos aplaudem Kuhkin, que sobe no estrado.)

KUHKIN: Vou recitar... todo o último capítulo que


Iuri Petrovski escreveu esta noite antes de dormir!
(Agitação. Aplausos.)  Permite, Iuri Petrovski?

coleção dr am aturg ia I 84 I m atéi visn iec


IURI: Claro.

KUHKIN: Um dia, o camarada Molotov acordou Stálin


e disse a ele: “Camarada Stálin, perdoeme por acor-
dálo, mas é que o nosso vizinho Hitler nos invadiu.
Eh, veja só, acrescentou Molotov, Hitler nos inva-
diu e acontece que perdemos a Ucrânia”. “O quê? 
disse Stálin  Perdem os a U crân ia?” (Explosão de
risos na sala.) “E h, veja só, respondeu M olotov, per-
demos tamb ém a Crim eia.” “O quê?  disse Stálin 
Perdemos a Ucrânia e a Crimeia?” “Eh, veja só, é
verdade, perdemos a Ucrânia, a Crimeia e o nor-
te do Cáucaso.” (Explosão de risos na sala.) “ O
quê?  disse Stálin  Perdemos a U crân ia, a Crimeia
e o norte do Cáucaso?” “Eh, veja só, respondeu
Molotov, perdemos a Ucrânia, a Crimeia, o norte do
Cáucaso e a parte oeste do baixo Volga.” ( Explosão
de risos na sala.) “O quê?  disse Stálin  Perdemos
a Ucrânia, a Crimeia, o norte do Cáucaso e a par-
te oeste do baixo Volga?” “Eh, veja só, perdemos
a Ucrânia, a Crimeia, o norte do Cáucaso, a parte
oeste do baixo Volga, e Hitler está agora às portas
de Leningrado e de Moscou...” Então Stálin refle-
tiu um instante e depois disse: “É preciso declarar a
Grande Guerra de Liberação da Pátria”. E declarou
a Grande Guerra de Liberação da Pátria. E Hitler foi
vencido... Pronto...

(Todos aplaudem de pé. Alguns estão em prantos.


Kuhkin faz um gesto na direção de Iuri Petrovski.
Todos aplaudem Iuri Petrovski.)

0 ESTRANGEIRO: RibbentropMolotov!

0 PROFESSOR: Click, clac, pluf!

a his tóri a do com uni sm o con tada aos doentes mentais I 85 I matéi visniec
(Toda a assistência põe-se a cantar “O Canto dos
Partidários”. Interrompem a canção tão bruscamen
te quanto a haviam começado, a um gesto de Ivan
 M ikadoi Gamarovski.)

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: M eu caro Iuri Petrovski,


fala línguas estrangeiras?

IURI: Falo.

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Fala, por exemplo, o espa-


nhol ?

IURI: Falo.

0 ESTRANGEIRO; RibbentropMolotov.

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Vamos, camarada


RibbentropMolotov, venha aqui. (O estrangeiro
sobe no estrado.)  Veja, Iuri Petrovski, nosso camarada
RibbentropMolotov está aqui desde 1 939. E ele não fala
outra coisa além de “RibbentropMolotov”. Camarada
RibbentropMolotov, diga “RibbentropMolotov”.

0 ESTRANGEIRO: RibbentropMolotov.

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Vê?... Ouviu? Ele não


é russo. Não tem sotaque russo. Nosso camarada
RibbentropMolotov, em nossa opinião, é um camara-
da estrangeiro. Camarada RibbentropMolotov, diga
outra vez “RibbentropMolotov”.

0 ESTRANGEIRO (feliz)'.  RibbentropMolotov.

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Vê?... Ouviu? N ão é rus-


so... Não é soviético... Achamos que deve ser espanhol,

coleção dramaturgia I 86 I matéi visüiec


francês ou inglês. De qualquer maneira, alemão ele
não é, nós ouvimos os alemães falarem, ele não pode
ser alemão. Pode perguntarlhe em alguma língua es-
trangeira de onde ele vem?

IURI: Are you English?

0 ESTRANGEIRO: RibbentropMolotov.

IURI: Sei italiano?

0 ESTRANGEIRO: RibbentropMolotov.

IURI: Tu es français?

0 ESTRANGEIRO: RibbentropMolotov.

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Vê? Só diz isso. Há catorze


anos, só diz isso...

KUHKIN (como se em transe, como um ator cabotino ):


E então, um grande amigo e camarada de Stálin, que
se chama Molotov, disse a Stálin: “Camarada Josef
Vissarionovitch, os camponeses que não querem fazer
os kolkhozes são daqueles que não querem ir até as
últimas consequências?” E Stálin respondeu: “Não,
camarada Molotov, os camponeses que não querem
fazer os kolkhozes são daqueles que acreditam que
não querem ir até as últimas consequências mas em
seus corações, na verdade, eles querem ir até as últi-
mas consequências. Será necessário portanto fazer os
kolkhozes nos seus próprios corações, é em seus cora-
ções abertos que se fará a coletivização socialista da
agricultura, é nos seus corações que o país dos sovietes
de agora em diante vai cultivar o trigo!”

a história do comunismo contada aos doentes mentais I 87 I matéi visniec


(As pessoas aplaudem, riem.)

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI (riso convulso)'.  Camarada


Iuri Petrovski, você trouxe muita felicidade para nós.
Camarada Iuri Petrovski, a revolução não morreu.
Graças a homens como você, graças a esta zona livre
da União Soviética, ela ainda vive, e um dia...

0 PROFESSOR: Click, clac, pluf! O maior drama do ho-


mem é que o avião faz pluf!

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: C amarada Iuri Petrovski,


apresentolhe o professor Gagain, que dirige o nosso
grupo de estudos revolucionários...

0 PROFESSOR: Eu agradeço, camada Gamarovski, por


me dar a palavra. O negócio é o seguinte... Sem avião,
a coisa não vai. O homem é feito para pensar o avião.
Mas quando o avião está feito; quando o homem sai
voando no avião, ele faz pluf. Este é o grande dra-
ma do homem, pois o avião, se ele é visto no solo, é
perfeito. Venham, camaradas, vejam, o avião é bom.
Olhem só, com um click todas as luzinhas se acen-
dem. Olhem só, com um clac todos os motores co-
meçam a funcionar. Click... tudo brilha. Clac, tudo
nos trinques. Click, os relógios giram. Clac, as molas
trabalham. É o melhor avião que o cérebro humano
já inventou, sem dúvida alguma. Vamos, camaradas,
subam. E você embarca, e você decola, e o avião faz
pluf. Pronto. E então você diz para si mesmo... Deve
haver algum problema... E você investiga e vê que o
avião não tinha nada. Então você diz para si mes-
mo, era o piloto que não prestava. Então você refaz
o avião. E chama os seus camaradas e mostralhes o
avião. E no solo, o avião não tem problema algum,
está perfeito. Click, tudo se ilumina. Clac, tudo gira.

coleção dr am aturg ia I 88 I m atéi visn iec


Click, movimento. Clac, ronrom. Ele é belo, seguro,
forte, é o que o cérebro humano inventou de mais
belo, de mais seguro, de mais forte, de mais luminoso.
E você embarca com os seus camaradas, e decola e
voa um pouco e o avião faz pluf. Então, você diz: o
avião não tem problema algum, era o piloto que não
prestava. E você reco m eça. Click. Clac. Pluf. Então
você diz, o avião não tem problema algum, está per-
feito, é que tinha muita gente dentro. E você recome-
ça. E no solo, o avião é perfeito. E belo. E luminoso.
Click, clac, pluf. Então, você diz, foi por causa da
tempestade; foi a tempestade mais forte dos últimos
trinta anos. Click, clac, pluf. Foi por causa dos pás-
saros. Os pássaros, é estranho como os pássaros tor
naramse idiotas, atiramse contra as hélices. Click,
clac, pluf. Foi por causa do click. Click, clac, pluf. Foi
por causa do clac. Click, clac, pluf. Foi por causa do
pluf. Click, clac, pluf. Foi por causa do Click, clac,
pluf... E isso. Click, clac, pluf, é isto o homem. Isso
não acaba nunca. O avião é bom. Pluf. Embarquem ,
camaradas. Pluf. O avião é bom. E de toda maneira,
ninguém pode dizer que o avião não era bom, pois
todos os que estavam no avião estão mortos agora...
Click, clac, pluf. Outros camaradas, o mesmo avião.
Pluf. De novo. Pluf. A máquina é boa. Pluf. Pronto.

(Aplausos, gritos, risos, etc.)

KUHKIN: Camaradas, abram bem a boca. (Eles abrem.)


Digam “u ” .

OS DOENTES: Uuuuu... uuuuu...

KUHKIN: Respirem...

OS DOENTES: Uuuu...

a his tór ia do com unis mo contada aos doentes men tais I 89 I m atéi visn iec
KUHKIN: Encham de ar os pulmões... Mais forte...
Mais...

OS DOENTES: Pfuuuu...

KUHKIN: Encham de ar os pulmões... Mais.

OS DOENTES: Uuuuu...

IURI: Digam... “uto”.

TIMOFEI: Camarada Iuri Petrovski, está sendo procura-


do... Camarada Iuri Petrovski, venha rápido... O cama-
rada diretor Dekanozov está procurando você... Oh,
meu Deus, venha rápido...

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Iuri Petrovski, não vá.


Querem prendêlo!

TIMOFEI: Vamos, rápido, tem que me seguir...

IVAN MIKADOI GAMAROVSKI: Iuri Petrovski, podemos


escondêlo aqui durante anos... Não vá... Rozanov é
o homem de Beria... Iuri Petrovski... Olho vivo... Não
deixe a zona livre... (Iuri Petrovski sai, conduzido por 
Timofei.)   Iuri Petrovski...

IURI ( virando a cabeça antes de desaparecer ): Sim?

IVANMIKADOI GAMAROVSKI: Viva a verdadeira revolução!

(Todos os doentes, em pé, extremamente tensos, aguar


dam a última palavra de Iuri.)

IURI: Click... clac... pluf!

coleção dr am aturg ia I 90 I m atéi visn iec


Em uma sala pouco iluminada, Katia Ezova e o diretor.

0 DIRETOR: Entre, Katia Ezova. Entre. (Katia, que per


manecia na soleira da porta, avança alguns passos.)
Adiante... Sentese. (Katia senta-se.)  Você sabe, cama-
rada Katia Ezova, por que pedi para vir aqui?

KATIA: Sei, camarada diretor.

0 DIRETOR: Você sabe, camarada Katia Ezova, que es-


tou muito aborrecido com você.

KATIA: Sei, camarada...

0 DIRETOR: Você sabe, camarada Katia Ezova, que estou


mais do que aborrecido... Que estou louco de raiva.

KATIA: Sei.

0 DIRETOR: Você sabe que é uma puta suja, camarada


Katia Ezova. Sabe, não sabe?

KATIA: Camarada diretor...

0 DIRETOR: Cale a boca!... Você sabe, camarada Katia

a his tóri a do com unis mo con tada aos do entes m entais I 91 I m atéi visn iec
Ezova, que é uma puta suja que envergonha nossa so-
ciedade socialista.

KATIA: Camarada...

0 DIRETOR: Você sabe que é uma vergonha para nossa


pátria, sabe que é a vergonha da classe trabalhadora e
a vergonha do nosso combate pelo comunismo!

KATIA: Camarada...

0 DIRETOR: O comunismo não pode ser construído com


putas sujas como você, Katia... Não, jamais podere-
mos construir uma sociedade nova com putas sujas
que se deitam com os doentes mentais graves. E verda-
de ou não é, Katia?

KATIA (que se p õe a chorar): Não sei...

0 DIRETOR: A sociedade nova, o homem novo, o futu-


ro radioso da classe trabalhadora, jamais poderemos
construílos com putas sujas que trepam com doentes
mentais graves, jamais!

KATIA: M as...

0 DIRETOR: Katia Ezova, eu tinha lhe proibido de tre-


par com os débeis mentais graves. É verdade ou não é?

KATIA: É...

0 DIRETOR: Eu avisei, eu proibi, eu implorei que você


não trepasse com os graves. Será que eu não fui sufi-
cientemente claro, camarada Katia?

KATIA: Foi...

coleção dr am aturg ia I 92 I m atéi visniec


0 DIRETOR: Os leves não bastam pra você. Os médios
não bastam pra você. Eu...

(O diretor se põe a chorar.)

KATIA: Grigori...

0 DIRETOR: Cale a boca! Você traiu nossa causa! Traiu


a luta operária. Você traiu a herança dos clássicos do
marxismoleninismo... Você traiu Stálin!

KATIA: N ão...

DIRETOR: Traiu, sim, traiu nosso camarada Stálin.

(Ela desaba no chão.)

KATIA: Não... Não...

0 DIRETOR: Por que se deitou com Ivan? Ele nunca este-


ve com Stálin. Por que se deitou com ele?

KATIA: Não, ele o conheceu...

0 DIRETOR: Katia... Mesmo assim você não pode se dei-


tar com todos os que conheceram Stálin...

KATIA: Mas não...

0 DIRETOR: Katia, você está detida por alta traição.

KATIA: Grigori...

0 DIRETOR: De joelhos!

KATIA: Sim, Grigori...

a his tória do com unis mo contada aos doentes mentais I 93 I matéi visn iec
0 DIRETOR: Faça sua autocrítica, camarada Katia
Ezova...

KATIA: Sim, Grigori...

0 DIRETOR: Não me chame de Grigori!

KATIA: N ão...

0 DIRETOR: Quero ouvir sua autocrítica, Katia...


Quantas vezes você trepou com Ivan Mikadoi
Gamarovski?

KATIA: Só uma vez, Grigori.

0 DIRETOR: Não me chame de Grigori!

KATIA: Camarada diretor...

0 DIRETOR: Cale a boca! Estou ouvindo, Katia. O que é


que você tem a dizer?

KATIA: Eu...

0 DIRETOR: Reconheça, camarada Katia, que você é uma


puta suja, que sabotou com seu comportamento a mo-
ralidade comunista e fez o jogo das forças imperialistas.

KATIA: Não, Grigori... Não...

0 DIRETOR: Não me toque.

KATIA: Grigori, eu amo você...

0 DIRETOR: Não me toque, camarada.

coleção dr am aturg ia I 94 I matéi visn iec


(Os dois caem, chorando, um nos braços do outro.
Pelo jogo de iluminação, a parede ao fundo torna-se
transparente. Veem-se algumas dezenas de doentes
olhando a cena por um buraco, um de cada vez.)

a his tór ia do com uni sm o con tada aos doentes mentais I 95 I m atéi visniec
Iuri Petrovski entra no quarto onde estão Katia Ezova,
Grigori Dekanozov e Stepan Rozanov. A atm osfera é quase
mórbida. Katia, semin ua, chora, a cab eça sobre a mesa.
Stepan Rozanov está caindo de bêbado. Grigori Dekanozov
bebe e enxuga suas lágrimas.

O DIRETOR: Iuri Petrovski... Iuri Petrovski... Escutou o


rádio?

IURI: N ão...

0 DIRETOR: Iuri Petrovski... Aconteceu uma grande des-


graça para o nosso país... Stálin morreu.

(.Soluçando, Katia se lança nos braços de Iuri.)

KATIA: Stálin, estás conosco, em nós

Devemoste tudo, devemoste tudo

Fica conosco, fica conosco...

IURI (afastando Katia)'.  Tem certeza, Grigori


Dekanozov?

0 DIRETOR: A Rádio Moscou informou que Josef

a his tória do com unism o con tada aos doentes m entais I 97 I matéi visniec
Vissarionovitch Stálin morreu! Temos que reforçar a
vigilância operária... Temos que evitar qualquer de-
sordem... Temos que reforçar a disciplina... (Serve um
copo para Iuri e b ebe também.)  Saúde!

STEPAN ROZANOV (caindo de bêbado ): Iuri Petrovski...


Iuri Petrovski... Você ainda é jovem... Ajudenos a re-
forçar a vigilância operária...

KATIA (apanhando folhas mortas pelo chão):   Iuri...


Iuri... Por que queimou as folhas? Por que fez isso?

STEPAN ROZANOV: O que é que vamos fazer agora com


a hidra da contrarrevolução? O que é que vamos fazer
com os lacaios do imperialismo francês e inglês? Eles
vão erguer a cabeça... Grigori, onde está a garrafa?

KATIA (chorando):

E então ela me disse: “Katia...

Pode emprestarme a sua lágrima

Pois o universo se reflete nessa lágrima”

Mas a lágrima já estava em minha boca,

Então eu engoli a lágrima e todo o universo...

E a rãzinha se pôs a chorar...

(Enquanto isso se alastra a histeria por todo o hos


 pital. Ouvem-se gritos, uivos, vozes, passos, tem-se a
impressão de que os doentes começaram a destruir os
móveis, que eles se jogam contras as paredes, etc.)

coleção dr am aturg ia I 98 I matéi visn iec


0 DIRETOR: O nosso dever é estar vigilante... O nosso
dever é estar vigilante...

(O  jardim é invadido pelos doentes que se aglutinam


diante da janela. Dezenas de rostos colam-se contra a
 janela do quarto de Iuri.)

STEPAN ROZANOV: Iuri Petrovski, digalhes que Stálin


não está morto. Isto vai acalmálos...

0 DIRETOR: É... Com certeza...

KATIA (chorando)'.  Então eu engoli a lágrima e todo o


universo... E a rãzinha se pôs a chorar...

(O diretor sai do quarto gritando “Stálin não mor


reu!”. Todos os membros do corpo médico adotam a
mesma estratégia e percorrem os corredores do hospi
tal gritando “Stálin não m orreu!”. Entretanto, a histe
ria geral cresce em intensidade. Os mem bros d o corpo
médico passam de uma sala a outra, batem nas portas
e nos aquecedores, gritando “Stálin não m orreu!”. Iuri
Petrovski abre a janela e grita cada vez mais forte.)

IURI: Stálin não morreu! Stálin não morreu! Stálin não


morreu!

a histó ria do com unism o con tada aos doentes mentais I 99 I matéi visniec
Um quarto pouco iluminado. Stálin está no chão, perto de
uma cadeira, meio deitado, desesperadamente apoiado
sobre os cotovelos. Sobre uma iriesa, um copo e uma
garrafa de água mineral. Sobre o tapete, um exemplar do
 jornal Pravda. Uma jovem mu lher entra na po rta dos pés.
Chega diante de Stálin.

A MULHER JOVEM: O que está acontecendo com você,


camarada Stálin?

STALSW  (com dificuldade de articular as palavras)'. E


você, Nadezhda?

A MULHER JOVEM: Camarada Stálin, quer que o ponha


no sofá?

STÁLIN: Espere, Nadezhda. Espere...

A MULHER JOVEM: Quer beber alguma coisa?

STÁLIN: Nadezhda...

A MULHER JOVEM: Sim, camarada Stálin?

STÁLIN: Oh, Nadezhda, você me despedaçou...

a his tória do com unis mo con tada aos doentes mentais I 101 I matéi visniec
A MULHER JOVEM: Como assim, camarada Stálin?

STÁLIN: Espera, Nadezhda... basta.

(A mulher jovem inclina-se sobre Stálin.)

A MULHER JOVEM: Está chorando, camarada Stálin?

STÁLIN: Como é que deixou Setanotchka e Vassia


sem mãe?

A MULHER JOVEM: Quer que eu seque suas lágrimas, ca-


marada Stálin? (Seca-lhe as lágrimas com seu robe.)
Vamos, Sosso, é bora de partir.

STÁLIN: Para onde vamos, Nadezhda?

(Quando a mulher encosta nele, Stálin encontra re


 pentinamente forças para se mover. A jovem mulher o
conduz para a saída.)

A MULHER JOVEM: Minha mãe retomou o grande apar-


tamento da rua Rojdestvenskaia... Você se lembra dele?

STÁLIN (feliz).   Lembro, lembro...

A MULHER JOVEM: Sempre teve o seu quarto lá, meu


querido Sosso... Vamos nos esconder lá, está bem?
Temos que recomeçar tudo, Sosso. Lembra quando
você fugiu de Krasnoiarsk e veio à nossa casa pela
primeira vez? Eu tinha dezesseis anos... E você esta-
va magro, Sosso... E Lênin perguntounos: “O que o
Stálin está comendo?” E disse para minha mãe: “Por
favor, Olga Evguenievna, temos que recuperálo, não
está com uma cara boa...” E uma vez escondeuse com
Lênin... E depois você raspou a barba e o bigode dele

coleção dr am aturg ia I 102 I m atéi visn iec


para que pudesse atravessar a Finlândia sem ser reco-
nhecido... Lembra, Sosso?

STALIN (feliz como uma criança)'.  Lembro, lembro...

A MULHER JOVEM: Vamos, ninguém descobrirá você na


rua Rojdestvenskaia... Precisa repousar... Refazer as
forças... Depois, veremos...

STÁLIN: Sim, Nadezhda, sim...

(Os dois personagens saem. Stálin sempre feliz, am pa


rado pela jovem mulher. Poder-se-ia pensar que os dois
são pacientes do hospital.)

a his tóri a do com unism o con tada aos doentes m entais I 103 I m atéi visn iec
ri
Na sala do subsolo, ond e sete ou oito doentes
 jogam “ roleta dos passantes ” .

CRUPIÊ: Vamos, ladies and gentlemen , façam seus


jogos...

PIOTR (dando dinheiro ao crupiê)'.  Civil com uma pá,


lado direito...

IVAN: Vai perder. Os civis nunca limpam a neve.

PIOTR: E daí? Não fode com a minha paciência.

IVAN(dando dinheiro a o crupiê)'. Dois copeques, homem


com uma pá daqui a três dias. Direita ou esquerda.

SACHA E EMELIAN: Pffff...

CRUPIÊ: Vamos, façam seus jogos...

SACHA: Homem com uma pá daqui a um mês!

CRUPIÊ: Quanto, Sacha?

SACHA: Um copeque!

a his tóri a do com unis mo con tada aos doentes mentais I 105 I matéi visn iec
CRUPIÊ: Perfeito. Vamos, Emelian, é sua vez.

EMELIAN: Militar com pá, lado... direito... Daqui a três


meses... Três copeques!

PIOTR: Ah, não, três é muito, não pode.

CRUPIÊ: Cale a boca, Piotr. (A Emelian .) É muito, não


pode. Dois copeques. Vamos, o próximo, façam seus
jogos, ladies and gentlemen.

DOENTE 5: Jamais, ninguém, de lugar nenhum.

SACHA: Ele não está jogando direito! Não é direito assim!

CRUPIÊ: Cale a boca, ele joga como quiser. Façam seus


jogos, ladies and gentlemen.

DOENTE 6: Sol derretendo a neve daqui a seis meses!

CRUPIÊ: Quanto?

DOENTE 6: Um copeque.

EMELIAN: Seis meses é muito. Jogue cinco meses.

CRUPIÊ: Vamos, vamos, façam seus jogos.

EMELIAN: Vamos, Salomon... Aqui não é a Suíça, não.

DOENTE 7: Cachorro.

IVAN: Merda, pare com esse seu cachorro! Sabe muito


bem que jamais deu cachorro. Jamais deu cachorro!

DOENTE 7: Cachorro que faz pipi na janela de neve,


lado esquerdo. Um copeque. Faço o que bem entender.

coleção dr am aturg ia I 106 I m atéi visn iec


IVAN: Ah, isto me arrebenta os nervos... Há dez anos, é
só o que ouço... Cachorro, cachorro, cachorro!

EMELIAN: Ele faz o que bem entender. Os suíços fazem


o que bem entendem...

CRUPIÊ: Encerrado!

0 LOUCO QUE APOSTA EM STÁLIN: Stálin, lado esquerdo!

CRUPIÊ: Cale a boca. Você não está no jogo.

0 LOUCO QUE APOSTA EM STÁLIN: M as eu tenho dinhei-


ro. Stálin, lado esquerdo.

CRUPIÊ: Fora, merda.

0 LOUCO QUE APOSTA EM STÁLIN: Eu tenho o direito!

CRUPIE: Já disse que você não joga! Encerrado!

SACHA: Que idiota! Vamos, levante, merda!

(O crupiê puxa o barbante. A janela está quase toda


coberta de neve, que não cessa de cair. A sala é ilumi
nada por débeis raios de luz que vêm de fora. Todos
esperam em silêncio.)

SACHA ( tomado por um riso louco):   É uma loucura...


Ainda assim, como é belo... Hein?

OS OUTROS: Psiiiiu.

( Ouve-se de algum lugar distante “O Canto dos


Partidários”. Os doentes que jogam “roleta dos pas
santes” subitamente são tomados por um   frisson.

a his tória do com unis mo co ntada aos doentes m entais I 107 I matéi visn iec
 A moldura da janela é então atravessada por Stálin
e a jovem mulher. Os dois têm muita dificuldade em
andar na neve e a jovem mulher deve amparar Stálin
a cada passo. Os doentes aproximam-se da janela.
Fascinados, olham a cena.)

DOENTE 7: É ele... Por Deus, é ele...

SACHA: Não... É idiota... Não é verdade...

0 LOUCO QUE APOSTA EWl STÁLIN: Ganhei...

DOENTE 7: É ele...

0 LOUCO QUE APOSTA EM STÁLIN: Ganhei... Ganhei...

(“O Canto dos Partidários” ressoa cada vez mais for


te enquanto Stálin e a jovem mulher distanciam-se.
 Antes de sair da moldura da janela, Stálin volta a ca
beça e lança um olhar de pai sereno e generoso para
os doentes.)

Fim

coleção dr am aturg ia I 108 I matéi visniec


 JOSEF VISSARIONOVITCH DJUGACHVILI, dito JOSEPH
STÁLIN, apelidado Sosso por seus pais: ditador comu-
nista responsável pela morte de 20 milhões de pessoas
na URSS. Entre 1929 e 1953, foi objeto de culto célebre
tanto em seu país e outros países comunistas quanto no
seio dos partidos comunistas dos países ocidentais.

NADEZHDA ALLILUYEVA: segunda esposa de Stálin.


Cometeu suicídio5 em 1932, desgostosa com a bruta-
lidade de Stálin; teve dois filhos com ele: Svetlana e
Vassia.

MARIA SPIRIDONOVA: dirigente histórica dos socialistas


revolucionários, partido que os bolcheviques tole-
raram até fevereiro de 1919. Em dezembro de 1918,
Maria Spiridonova condenou vigorosamente o ter-
ror praticado cotidianamente pela Tcheka; foi pre-
sa em fevereiro de 1919 e condenada pelo Tribunal

' Após uma discussão com Stálin num jantar do Partido Comunista,
Nadezhda Alliluyeva foi encontrada morta em seu quarto com
uma arma a seu lado; aparentemente, ela havia cometido suicídio.
Kiitretanto, alguns acreditam na tese de que Stálin matou a própria
esposa. (N. T.)

a histó ria do comun ismo con tada aos doentes ment ais I 109 i m atéivis niec
Revolucionário à “detenção em sanatório devido a seu
estado histérico”. Tratase do primeiro exemplo, sob o
regime soviético, de enclausuramento de um oponente
político em um estabelecimento psiquiátrico.

SEMION BABAIEVSKI, MIKHAIL BUBIENNOV, VASSILI


AJAIEV: escritores “oficiais” que fizeram em suas obras
o elogio de Stálin e da sociedade soviética.

SERGO ORDJONIKIDZE: um dos acólitos de Stálin, res-


ponsável, entre outros, por uma verdadeira carnificina
na Geórgia, em 1921, durante a guerra civil.

HENRI BARBUSSE: escritor francês que fez em várias


obras o elogio de Stálin e da “nova” sociedade socia-
lista na União Soviética. Escreveu em 1928 um livro
sobre a “maravilhosa Geórgia” e, em 1935, a primeira
biografia oficiosa de Stálin.

MÁXIMO GORKI: o primeiro escritor “social” russo.


Depois de guardar distância da revolução bolchevi-
que, voltou em 1929 para a URSS e pôsse a serviço
do regime.

ANTIPOV, KIROV, CHVERNIK: responsáveis políticos apa-


gados das fotos oficiais depois dos expurgos.

VIATCHESLAV M0L0T0V: um dos mais fiéis servidores de


Stálin. Comissário do povo para assuntos estrangei-
ros; assinou em 1939 com Ribbentrop o pacto germa
nosoviético.

FÉLIKS DZERJINSKI: criador e primeiro chefe da polícia


política bolchevique, a comissão panrussa extraordi-
nária de luta contra a contrarrevolução, a especulação
e a sabotagem (abreviatura “Tcheka”).

coleção dram aturgia 1 1 1 0 I matéi visniec


DANIIL HARMS: um dos muitos escritores mortos por
Stálin. Em suas narrativas, Daniil Harms utiliza um
estilo infantil para enganar a censura.

“ECONOMIZAMOS UM NÚMERO CONSIDERÁVEL DE VAGÕES,


NUM TOTAL DE 37.548 METROS LINEARES DE PRANCHAS,
11.834 BALDES E 3.400 AQUECEDORES!”: Excerto de um
relatório assinado por um certo Milstein, funcioná-
rio do NKVD, referente à eficácia da deportação dos
povos do Cáucaso para a Sibéria, entre novembro de
1943 e junho de 1944, graças ao fato de que em cada
vagão para animais eram colocadas 45 pessoas em vez
de 40.

COLETIVIZAÇÃO FORÇADA: mais de dois milhões de cam -


poneses deportados, dos quais 1,8 milhão somente em
19301931; 6 milhões mortos de fome; centenas de
milhares mortos na deportação.

a hist ória do com unism o con tada aos doentes mentais I 111 I m atéi visniec
D a d o s I n t e r n a c i o n a i s d e C a t a l o g a ç ã o n a P u b l i c a ç ã o (C IP )
( C â m a r a B r a s i l e i r a d o L i v r o , SP, B r a s i l )

Visniec, Matéi
A história do comunismo contada aos doentes mentais /
Matéi Visniec; tradução Roberto Mallet. -
São Paulo: É Realizações, 2012 . -
(Biblioteca teatral. Coleção dramaturgia)

Titulo original: L’histoire du communisme racontée aux


malades mentaux
ISBN 978-85-8033-097-7

1. Teatro Francês - Século 2 0 I. Título. II. Série.

12-06959 CDD-842

Ín d ic e s p a ra c a t á l o g o s is te m á t ic o :
1. Teatro : Literatura francesa 842

Este livro foi impresso pela


Gráfica Vida & Consciência
para É Realizações, em julho
de 2012. Os tipos usados são
da família Sabon LT Std e
Helvética Neue. O papel do
miolo é alta alvura 90g, e o
da capa, cartão supremo 250g.

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