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Elfriede Jelinek

A MORTE E A DONZELA I – V
Dramas de Princesas

Tradução Alexandre Krug


A MORTE E A DONZELA I

(BRANCA DE NEVE)

Duas figuras gigantescas, semelhantes a espantalhos, inteiramente tricotadas em lã e forradas


com enchimento, uma como Branca de Neve, outra como Caçador com espingarda e chapéu,
conversam calmamente, as vozes vêm em off, ligeiramente distorcidas.

BRANCA DE NEVE : Já faz uma eternidade que estou andando por todas as voltas e curvas desse
bosque e o que é que eu não encontro? Anões! Dizem que eles são parecidos com a gente na
amabilidade, porém diferentes na forma. O senhor, por sua vez, tem a aparência de alguém
semelhante a mim na forma, mas está mais para desagradável. Talvez por toda a responsabilidade
que o senhor carrega. Com certeza deve dar muito trabalho ser aquele que clareia o que É e o que
é justo põe em pé. Já eu assumo mais o que é fácil. Por muito tempo consegui ter sucesso graças
à minha aparência, então, no afã de conseguir ainda mais sucesso, caí no buraco da minha
madrasta, que me pegou de um lado que eu não esperava e logo em seguida me envenenou com
uma fruta. Ela cavou a cova para outra e não caiu ela mesma dentro. Desde então sou uma
buscadora da verdade, inclusive em assuntos linguísticos. Tudo isso parece ser
extraordinariamente interessante para a grande massa, pois a minha história já existe há séculos,
não faço a menor ideia do que ela tem de tão divertida ou excitante. É como se eu tivesse
incessantemente que me levantar e então cair de novo, pela mão de uma mulher. Uma simpática
exceção, o que não é o caso da morte. Essa sempre vem, em geral como homem, e acaba que não
é homem nenhum. Nos espreita, vem de maneira indesejada, e justamente quando temos sucesso,
como no meu caso, fica com inveja e nos tira do campo sem o menor consolo.

CAÇADOR : Será que a senhorita porventura está se desencaminhando? Permita sugerir que a
senhorita renuncie a si mesma enquanto seu próprio refúgio. E isso para não se desencontrar da
verdade, a qual, por sua vez, já anda à procura da senhorita o tempo todo e a qual eu muitas vezes
encontrei por este bosque na forma de pessoa indefesa – ou também como túmulos secretos para
pessoas e animais. Os túmulos de animais não são obra minha, afinal eu sempre levo minha presa
pra casa. Ela é boa demais pra dar à terra. A senhorita, como não joga nada do que encontra para
a verdade comer, nem possui experiência em coletar presas, pois a senhorita é que é a presa, vê a
verdade lhe escapar naturalmente na primeira oportunidade. Nessa sua versão da história eu
simplesmente não acredito, senhorita. Não existe em parte alguma qualquer anel viário, por onde
ela lhe poderia evitar, a pobre verdade. Agora, coloque-se no lugar dela: seria como ser cegada
pelos faróis de um ônibus, é claro, se de repente ela se deparasse com uma mulher como a
senhorita, vestindo – e disso afinal eu entendo – uma roupa completamente inadequada para o
bosque. Pois bem, esta mulher pergunta agora por uma ou mais pessoas que estariam vestindo
chapéus que, na minha avaliação, nenhuma pessoa jamais colocaria na cabeça. Que aspecto teria
isso! Pegue meu chapéu como modelo, um desses é que a senhorita e aqueles que a senhorita
busca deveriam usar! Com essa linda pena em forma de galo-do-mar por cima, fora de série, hein?
Chapéu pontudo não, nunca, por favor! E ainda por cima provavelmente sendo baixinha, e
querendo com aquilo parecer mais alta! Saltos altos, enchimentos postiços, penteados pra cima
feito cimento armado! Não admira que a verdade não queira se identificar com uma criatura assim.
Por que afinal a verdade deveria aparecer como sete pessoas, quando não a deixam passar
tranquila nem como uma só? Mesmo que a gente então pudesse finalmente deixar isso pra trás e
contar contos de fadas novamente? Afinal ela se tornou tão tímida justamente porque todo mundo
que pegar nela.

E agora a senhora ainda fica aí, parada no caminho dela. Eu vou lhe dizer uma coisa: sua beleza,
nos nossos círculos, dos que percorremos a natureza selvagem, não conta muito. Uma vez por
semana no lago congelado acontece um treino de patinação em duplas. A beleza e a verdade
também participam e assim conseguem se conhecer melhor. Não gostaria de tomar parte também,
senhorita? Quem sabe encontre mais prazer na verdade do que na beleza? Isso sim seria uma
distração para a senhorita, pra variar! Dá pra sorver a beleza estalando a língua, como uma
experiência, mas aí a gente logo já a deixa pra trás junto com a verdade, aferrada uma à outra,
para não se estatelarem no gelo. Por outro lado sete pessoas para a verdade, pensando bem, não
seria tão ruim, pois sendo tão pequena como é, talvez ela tivesse que se multiplicar para poder ao
menos ser percebida como verdade. Então ela saltaria aos olhos da gente com seu gorrinho. Aí
sim! A verdade como um cabide todo espetado de gorros. E então a beleza, que não quer colocar
nenhum desses chapéus na cabeça pra não ficar ridícula e assim se tornar inimiga de si mesma. A
verdade como o descaminho do Ser. Aliás, senhorita, está se desencaminhando se por acaso crê
que está me vendo. Eu sou invisível. E se eu fosse visível, eu não existiria e a senhorita tampouco
poderia me ver. Assim tanto faz se a senhorita me reconhece ou não. Provavelmente a senhorita
se desencaminhou quando me tomou por uma de suas verdades, só porque não tinha me visto!
Bem, de qualquer maneira eu não pertenço às suas verdades! Faça o favor de olhar com mais
atenção para o meu chapéu antes de não me ver e mesmo assim me abordar com blá-blá-blá idiota!
Eu sou a morte e pronto. A morte como verdade última. Vendo dessa maneira a senhorita até tinha
razão de me procurar. Gosto disso: a morte como verdade extrema, e que por isso não quer saber
nada de si mesma. Mas não é verdade. A morte como a nudez do animal cego, em cujo torpor o
ser humano se deixar arrastar, para por fim não saber mais nada de si mesmo. Apesar disso ele
precisa morrer, mesmo que já esteja inconsciente. A morte como a cegueira diante da sua nudez,
senhorita. Mas cuidado! Nem tudo que a senhorita não vê já é a morte, como antes expliquei.
Quanto a mim, a senhorita portanto nunca poderá ter certeza. Caçador de fato não é um disfarce
lá muito original. Me arrepio quando vejo sua fé de olhos vazios e ainda por cima cega. A
senhorita não deveria me forçar a ouvir nenhum de seus segredos, mas eu bem sei que não posso
impedi-la. Acredita por acaso que se fosse possível ver a morte alguém ia querer tratar com ela,
mesmo que, digamos, apenas pela duração de um jantar feito de animais não sepultados, que de
qualquer maneira ela mesma ia ter que providenciar? Sim, pois é! Não que por isso eu pudesse
afirmar que quero ter alguma coisa a ver com a verdade. Não, realmente não. A verdade não está
nem aí pra nada, a não ser pra ela mesma. No entanto não existe no momento melhor intérprete
para ela do que eu. De modo que, se eu precisar continuar fazendo o papel dela, nem sei mais se
ainda estou representando. Faz tempo que eu já não quero mais, mas preciso. Uma delas, a
derradeira de todas, eu mantive como modelo, todas as outras verdades anteriores não escaparam
a mim e à minha arma. Nisso eu fui meticuloso. A derradeira é muito, muito pequena. Apesar
disso eu fico sempre olhando para ela para saber quem eu sou. Mais ou menos tão pequena quanto
devem ser esses seus anõezinhos. Com energia e dedicação, no entanto, trabalhei meu caminho
para o alto como um autodidata e agora, seguro de mim, deslizo para a vida afora como sobre o
lago congelado.

BRANCA DE NEVE : Oh, a vida quer ser admirada e contemplada por muitos lados, o senhor
não acha? Ela é muito bela mesmo. Mesmo as coisas insignificantes não deveriam nunca ser
pequenas demais para nós. Se eu não encontrar o Pequeno que busco, poderia me voltar para o
Grande que o senhor diz encarnar. O que existe afinal de mais “grande” que a morte, que não nos
traz nenhum proveito substancial, e sim grande prejuízo. Mesmo que ela seja gostosa como uma
maçã Granny Smith. Pois ali dentro dela está o verme, fazendo seu lance de abertura, depositar a
morte no cofre onde ele pode seguir ensimesmado, devorando tranquilamente, e assim o cerne
fundamental é ao mesmo tempo aberto e novamente fechado: o próprio Ser, olá! É, um bom
negócio é que não foi! Minha corda de tripa desafinou com a fruta mofada. Assim como a tônica
fundamental do meu Ser. Ele está supertensionado, mas o tom nunca afina. Um destino
lamentável, uma delicada constipação. E então: o alpinismo como a grande tarefa da sociedade,
só que em geral infelizmente não há montanhas disponíveis. Estas montanhas são na melhor das
hipóteses morros, o umbral de uma serrinha que se poderia atravessar sem sofrer prejuízos. Agora
vou fazer um relatório de prejuízos pra seguradora do Ser e depois também um pedido de
localização pessoal, pois estive todo esse tempo inconsciente, o que minha madrasta por sua vez
interpretou como morte e impotência. Ela estava enganada. Além disso: ninguém sentiria mais
falta do poder que o próprio impotente. Talvez seja a razão porque ela quis acabar comigo, pois
devia contar com isso: que eu me levante e seja no mesmo instante o ser mais sedento por poder
que existe, ou seja, ponha em disputa esse troço que ela tanto gosta de amontoar ao redor de si.
Tudo bagulho! Mas aí surge mesmo uma perua, nem de longe tão chique como eu, um tanto mais
velha, o que sem dúvida a rói por dentro até nos sonhos, e quer realmente roubar de mim o meu
ser! Ela acredita que a beleza então vai passar para ela porque acha muito enfadonho estar numa
morta. Pois a beleza quer sempre estar sobre o mundo, de preferência nas folhas das ilustradas,
que de tanto serem folheadas acabam caindo mais rápido até que a folhagem normal. A Mamãe
não consegue se acomodar com o acontecimento que é a impotência diante da minha beleza e
tenta, assim, sem mais, arrancar de minhas mãos os meios do meu poder, com nada menos que
uma maçã. Uma maçã contra as maçãs deste rosto! Imagina só. Natureza contra natureza. Uma
luta de titânias. E na verdade poderia ser muito mais simples. Era só se colocar na minha frente e
já o meu poder desapareceria, pois eu não seria mais vista! Só um anão conseguiria se esquivar
disso, porque ele é menor que eu, por isso é que desde aquele acontecimento eu não procuro outra
coisa a não ser anões, e isso não é nada simples, posso lhe garantir. E para os anões eu vou me
deitar com prazer, para que eles também possam ter suas ego trips. Até pra irritar a mamãe-
madrasta, que já nas suas perguntas sobre o desconhecido estabelece uma gradação hierárquica
de quem pode e quem não pode existir. Ela pode. Eu não posso. Por beleza excessiva e sua inveja
pela concorrência. Os anões só podem existir porque ela ainda nunca os viu. No entanto ela me
avisa pra ter cuidado com eles!

O CAÇADOR : Bem, comigo de qualquer maneira a senhorita não vai encontrar os seus
anõezinhos. Sou o oficial responsável pelo espaço aberto, e não pelos emaranhados que nele
possam surgir. Eu percebo, é claro, quando algo aparece no meu espaço aberto, um ângulo, uma
consequência essencial [sequência de criaturas ?] em forma de animal – posso lhe assegurar que,
já faz tempo, não tenho mais tanto desejo pela consequência seguinte como minha espingarda,
que ainda arfa, baba e resfolega – não, ao contrário, na verdade eu preferiria depositar esse espaço
aberto dentro de mim e conservá-lo bem, como um tupperware. Por isso me tornei caçador. Por
isso é que não estou interessado nesse anão da verdade que a senhorita vem procurar justamente
aqui, no bosque. Eu sou o gigante da inverdade. Elimino tudo que existe com meu abrangente
programa de eliminação. Completei porém meu período de aprendizado junto à verdade e posso,
em caso de necessidade, representá-la também. De modo que nós, a senhorita e até eu mesmo,
acreditamos que eu seja a verdade, aliás a última que ainda há disponível no mercado. Já faz
tempo que eu me afirmo com esta afirmação. As circunstâncias da minha vida: decente colocação
de tocaia, me camuflar de cavalete na picada para os animais, moldar alguns gigantes, como eu
mesmo sou, puxar o gatilho. Acabada a criatura. Veja só: vira comida pronta processada e não
precisa temer processo nem juiz. A única que não precisa temer o juiz é a morte. Eu ando por aí,
por toda parte e sempre legal, mesmo que de vez em quando eu goste de ultrapassar a velocidade
assim como se fosse a correnteza da morte, com um único passo de minhas pernas forradas com
meião e caneleira.

BRANCA DE NEVE : Então me diga lá: por que eu ainda existo em vez de não ser nada, como
era a intenção original da minha madrasta? Me bombardear de volta às minhas origens por meio
de uma maçã, por exemplo? Acho que porque eu não tinha mesmo outra possibilidade que não
simplesmente existir, pra mim mesma, sozinha. Minha madrasta queria sempre existir para os
outros, pela sua beleza, que ela espelhava o tempo inteiro, como se ela fosse duas, no mínimo.
Que eu existisse era um espinho nos olhos dela, que queriam enxergar apenas a si mesmos. O
Espelho não era o Por Quê. Ele era o Quê. Ele era “O que vocês ainda querem afinal? Como eu
igualmente me espelhava, eu existia ali, e ainda por cima, antes mesmo dela. A hierarquia da
beleza era Branca de Neve primeiro, madrasta, a eterna segunda. O espelho se abria como um
armário, escancarava as duas folhas da porta e ficava estupefato diante do que ali entrava. Sempre
eu primeiro! Tão radiante que nem se via o papel de jornal velho forrando o chão dele. Sobre o
jornal, desbotadas antes do tempo, outras como eu. Não se pode existir e não existir ao mesmo
tempo. Bem, o senhor talvez possa, mas eu não. Para o espelho e pra mamãe-madrasta isso já
significava uma coleção de perguntas, um catálogo recém-aberto de perguntas com ilustrações
coloridas, todas de mim, se isso a deixava azeda, nem lhe digo! Um catálogo portanto que trazia
dentro de si sua resposta e o prêmio por ela. E as perguntas irrompiam pra fora urrando, se
livravam de suas correntes esguias e se espalhavam em todas as direções. Sim senhor. As
perguntas dessa mulher, que eu nunca deveria chamar de mamãe, simplesmente passavam direto
por sobre a minha existência, sem a menor consideração por mim, esnobes, perguntando no vazio.
Sendo que ela podia pelo menos estender minha existência como um tapete e assim fazer bom
uso dela. No castelo é bastante frio para os pés, o senhor deve saber. Mas nem sinal disso. Todo
e qualquer sinal de mim é que deveria sumir! Agora na verdade o pensamento podia ter entrado
em ação com suas meigas vozinhas. É um lindo hobby mesmo, só requer um pouco de espanto.
Mas qual mulher vaidosa, tão convencida de si mesma que não precisa nada do espelho – embora
passe o tempo inteiro perguntando a ele – porque de qualquer maneira sabe que é a mais bonita,
que necessidade essa mulher tem de penetrar o oculto? Essa mulher pergunta ao seu espelho o
imperguntável, e então estufa o inesgotável como fartura e recheio pra dentro da resposta que ela
de antemão já tinha como certa desde sempre, sem precisar fazer nenhuma reflexão. Esse bolo
não tem como dar certo. Eu podia ter dito isso logo de uma vez pra ela. E que ideia lhe ocorre?
Meu envenenamento com maçã. Existem formas de morrer mais agradáveis, posso lhe garantir,
mas nenhuma mais original. A minha forma de morrer é que não foi. Isso lá é maneira de matar
alguém, assim simplesmente? Entretanto, como o senhor já vê, eu não estou exatamente morta. O
que é que estou lhe explicando, o senhor é o especialista aqui! Então tudo de volta à posição
básica. Início. O senhor, fora! Anão, pra cá!

O CAÇADOR apontando para ela : Um certo senhor anão deve poder fazer o que eu não posso?
E não importa mais nada? O bosque tem lugar pra todos, mas na origem foi previsto apenas para
mim e minhas presas. Eu até gostaria de travar conhecimento com essas construções tão pequenas,
se eu tivesse um pouco mais de tempo. Mas tempo eu não tenho nenhum e por isso mesmo tomo
pra mim o tempo destinado a outras criaturas. Sou eu que digo quando o acabou tempo e lhes
tomo o resto que ainda tiverem. Que daí é sempre consumido rapidamente. Sabe senhorita, a
morte se alimenta do tempo alheio e por isso está sempre faminta. O tempo de cada um, afinal,
nunca é suficiente. E o passeio com o tempo alheio também não dura muito. Os seres humanos
acabam na completa humanificação [Vermenschung]. Me refiro exatamente ao que a senhorita
afirma de sua madrasta. Tenho a impressão que o que mais lhe incomoda nessa senhora, que
tentou meter a colher no meu ofício, é que ela parece notoriamente acreditar na posse anterior e
absoluta de todas as respostas e também na possibilidade de, com o auxílio da razão, se tornar
senhora da própria razão. Isso também me daria nos nervos, se eu os tivesse, pois seria tão sem
sentido como um shopping center que fecha no fim do dia, mas ainda que se chama de shopping
center durante a noite.

BRANCA DE NEVE protegendo os olhos com as mãos : Mas francamente! Faça-me o favor! O
que é isso que o senhor aponta contra mim o tempo todo? Uma lanterna? Considere que meus
olhos ainda estão debilitados, porque eu vi a morte, naquela versão especial que o senhor
certamente conhece, como um túnel claro e resplandecente. Estou até agora cega por causa
daquilo. Não está vendo como eu tenho que apertar os olhos? Chegue um pouco pro lado, por
favor! Talvez o senhor esteja aí há horas encobrindo um ou mais dos seres de pequena estatura
com quem marquei compromisso. Ou será que veio aqui justamente para me dar o endereço exato
e agora retarda de propósito o momento da nossa despedida? Será que o senhor me foi enviado
pelo meu fado? A única coisa que sei é: “além das sete montanhas”. As pessoas são tão
desleixadas quando tem que ditar ao telefone. Nunca esperam pra ver se a gente entendeu. Além
disso, pouco a pouco vou preferindo deitar do que ficar sentada. Estou muito, muito cansada por
causa do veneno. Minha maldade deve cochilar. O povo deve moderar um pouco seus atos e
alcançar seus objetivos. Pelo menos, ele não deveria ficar inquieto, se lida com questões
profundas. O inexplicável deve repousar em seu chão de explicações, até que o avanço das flores
lhe chute a bunda de baixo pra cima. Aí ele há de ter a bondade de se erguer e nos esclarecer para
que possamos também por fim ter uma noção do que existe. Pois bem, esse seria também o fim
dos meus desejos. Quando se é bonita, é possível se vestir com a modéstia. Quando temos
liberdade de movimento, temos a obrigação de oferecer logo uma noção das coisas. Mesmo que
ainda não tenhamos a menor noção do tamanho real das coisas. Anões estão mais pra pequenos.
Entretanto, eles olham minha modéstia com desprezo. Ouvi contar que eles não querem nada
menos do que a mulher mais bonita do mundo, só para conseguir conforto e poder oferecer seu
comportamento desenvolto, a pedidos também fora de casa, no tapete da campina, onde com o
membro liberto eles avançarão em minha direção para então saltar sobre mim, e todos de uma só
vez. Se o senhor soubesse o quanto eu já ouvi contar isso! Isso foi o que minha madrasta
engendrou para mim, por anos a fio ela procurou me incutir o medo com essa coisa! Ela afirmava
que os anões, depois de conseguir o que quisessem, seriam ingratos como todos os outros seres.
Que espécie de brilho desconhecido é esse que o senhor continua me apontando pro rosto? Essa
coisa comprida e esguia? E como é que se desliga isso?

O CAÇADOR : Eu não chamaria isso necessariamente de lanterna. Ela serve mais bem para
apagar a luz com um sopro. Da escuridão do bosque surgem criaturas, que acreditam criar uma
vívida vida intelectual, mas isso não é absolutamente nada pra mim! Obstáculo nenhum! Na pista
de corrida do autódromo local, a razão enfrenta o cão da fé, que sempre tem liberdade total de se
movimento, uivo, berreiro, rugido, rancor, gorgorejo, estertor, rosnado, é uma pena que não possa
lhe apresentar isso, não costumo ter cão de caça presente comigo, não tenho necessidade. Então,
os dois se fazem trapo e farrapo, e o empório da vida intelectual está aberto pra negócio, lá a
senhorita encontra desde cadarços de sapato e farrapos de oração, até um pedaço de chão no
tamanho de cinquenta por cinquenta centímetros, é o chão da não-fundamentação da verdade, ele
agora lhe pertence, mesmo que a senhorita quem sabe prefira re-fundamentar totalmente sua
verdade e não queira saber da minha, embora, como já disse, ela seja o último exemplar em
estoque. Bem, e quem será o vencedor na luta mercadoria versus chão, fé versus razão? O
ANIMAL. Que conseguiu alcançar o mais alto certificado de sua suposta categoria, até venha
uma mais forte. Ainda ardem as brasas na lareira do Ser, no turvo entardecer do domingo, eis que
surge, como semanal desastre do entardecer de domingo, uma mulher numa espécie de camisola,
perdoe se não posso descrever melhor suas vestes, na verdade tanto faz, a noite tudo penetra e eu
agora venho trazê-la para a senhorita. Atira em Branca de Neve. Para o cadáver: A senhorita
era também uma dessas mulheres que só põem no mundo figuras do cinema, porque querem
parecer como uma delas? Que se apavoram diante da vida? Apavorar-se diante da morte não lhe
serviu de nada, ela segue o seu rastro armada com meu penhor. A senhorita não passava de uma
menina que deixou ver seu pé nu sobre a grama, que estava fria demais pra isso. Ninguém devia
ficar andando pelo bosque com roupa de caixão. No seu caso entretanto foi prático, a senhorita já
pode ficar com esse troço aí. Pra mim tanto faz, como eu disse, não entendo nada das damas e os
humores da sua moda. Em todo caso, esta é presa que eu deixo pra trás. O tempo foi tudo que lhe
tomei, e deve ter bastado, afinal era a coisa mais perigosa nela. Mais cinco minutos e talvez eu
tivesse me deixado convencer a me tornar menor do eu que sou. Agora, é claro, ela está
completamente desamparada pois, ao contrário, a beleza não teme nada mais do que o tempo.
Nada de terra por cima. Seria leve demais.

Coloca a espingarda no ombro e se vai.

Os Sete Anões aparecem e rodeiam Branca de Neve.

OS SETE ANÕES : Como sempre. Lá se vai ela, a boazinha. E ela teria conseguido nos encontrar
a tempo, se não tivesse segurado seu mapa turístico de cabeça pra baixo o tempo todo. O que a
beleza pensou que eram vales, eram na verdade montanhas. Só a bondade pode mover montanhas,
a fé às vezes também, mas a beleza, em todo caso, não. Ela pode errar as montanhas por milhas,
mesmo que haja sete delas. As montanhas estavam lá, onde sempre estiveram, só a beleza
infelizmente estava no lugar errado. Tanto faz. Seja como for o trabalho todo sempre sobra pra
nós. Somos nós sempre que devemos tomar uma atitude enérgica e remover a imundície dos
outros. Às vezes pensamos assim, que nós mesmos também gostaríamos de estar mortos, para que
os outros vissem alguma vez em figuras engraçadas como nós que a morte na verdade não é tão
engraçada como parecem ter imaginado. Colocam Branca de Neve no caixão de vidro e saem
carregando-o.
A MORTE E A DONZELA II

(BELA ADORMECIDA)

PRINCESA : Minha existência é sono, portanto a vida é minha fronteira lógica. Mas talvez
minha existência seja apenas esperar até ser beijada. Esperar como um estar desligado,
terminado, até atingir um outro estado? No tempo de intervalo do ser? Não, mais bem na sua
prorrogação! Qualquer príncipe aí, saia ao sol, faça mais um gol! Eu gostaria muito de vivenciar
alguma coisa, mas estou paralisada pela minha incapacidade de acordar. A questão é: será
mesmo o senhor aquele que devo esperar até que um dia me beije? Prefiro porém não colocar
essa questão, pois afinal eu também não sei quem serei quando acordar. Nesse meio tempo terei
estado morta. Ou seja, no momento ainda estou morta. No entanto não posso, como outras
pessoas, me dissolver na morte e me tornar uma nulidade, muito ao contrário, a mim foi dada a
tarefa de mandar pra dentro, engolir a morte até quase rebentar, ela é por assim dizer a
consultora e a constante da minha existência, cujo abismo ela me ajuda a superar e assim
elaborar a cada dia novamente a possibilidade de SER. Por que afinal justo eu devo me matar de
trabalhar, estando na própria morte, só pra no fim continuar sempre nada mais do que morta?
Próxima questão: o que somos quando acordamos? Que pessoa o senhor vai beijar? Nunca vi o
senhor antes. Como posso saber quem foi o senhor antes, meus vínculos com a vida se
perderam. O ser é incomparável, é verdade, mas fazer o quê. De qualquer modo não há como
fazer qualquer comparação. O senhor simplesmente chega e diz que é príncipe. Bom, deve ser
mesmo, pois nesse momento eu pareço estar acordada, o que só é possível através do senhor,
como a Senhora F. me anunciou naquele tempo. Tanto faz quem o senhor é, seja como for eu
devo aceitar o que me é dado. Não estou falando agora durante meu sono, do qual por vezes me
desperto. É indiscutível que agora estou realmente acordada. Aquela Senhora F. e suas
profecias, de que com o tempo nem minha alma ia conseguir se aguentar dentro do meu corpo!
E essas videntes ainda tem a coragem de pedir dinheiro por isso, é inacreditável! Como então o
senhor poderia aguentar, meu caro Senhor Príncipe, se nem minha alma conseguiu! Não quer
talvez me explicar quem eu sou, enquanto eu, de minha parte, já posso deduzir a partir desse
beijo quem o senhor é? Nisso eu estou um passo à frente do senhor. O senhor apenas se chama
Príncipe, ou é príncipe de verdade? Que bobagem. O senhor tem que ser príncipe, veja acima,
senão eu ainda estaria dormindo. Mas quem é o senhor realmente? Que país tem a intenção de
governar? Aposto que o meu. E foi pra isso que me espetei naquele espinho, ou seja lá o que era
aquilo. Vasculhei dentro de mim atrás da causa daquela dor que se introduzia intensa, embora
eu pudesse ver perfeitamente o espinho, ou seja, a coisa pontuda, certo? E então, sumi. Apaguei.
Tela em branco. Fim de papo. Quem sou eu. Onde estou. Me dou conta agora de que o senhor
com certeza é príncipe e eu me submeto a esta verdade de seu ser. Bom, muitas vão me invejar
por causa do senhor, mas por mim mesma também, pois eu sou igualmente uma princesa. Eu
apareço em fotos de capa, mas mesmo elas não podem me comprovar quem eu sou. Talvez
todos os seres humanos que existem sejam princesas e príncipes. Assim falam os padres, e as
pessoas na sua luta pra sobreviver são burras o bastante pra acreditar neles. Todas as pessoas
que eu conheço, em todo o caso, são uma cerca-viva. Isso já é um passo na direção certa. E os
grandes são implacáveis com elas, como é a natureza com a própria natureza. Lembro-me
vagamente. Rosas. Isso já é pra deixar a gente insegura. O que está escrito aqui? Uma mulher
diz que era uma forma de loucura. Ela diz: Através dele eu esperava enfim poder viver. Ela diz:
Eu queria viver só para ele, e era como se só tivesse achado minha alma através dele, como se
eu não passasse de uma casca vazia sem ele, e só ele então me preencheu, e foi de amor. Bravo.
Essa mulher acaba de ser criada, e me é permitido ser a primeira a lhe dar os parabéns. Ela
agora olha para um homem e parece saber exatamente com quem tem que lidar. Agora ela se
coloca de jeito, pra colocar o todo numa conserva que seja durável, em vez de se contentar em
ficar ruminando o que ela já tem e se alegrando com o pasto suculento. E ela pergunta à sua
conquista: você ainda é a mesma pessoa que foi ontem? E vai ser o mesmo ainda amanhã?
Depois de amanhã? Depois de ele já ter se tornado a alma inteira dela, ela ainda quer saber dele
quem ele é? Inacreditável. E quando então ele diz não, tudo desaba dentro dela. Na minha
cabeça, pelo menos, a única coisa que pode desabar é essa cerca-viva artesanal levinha, do
atacadão de material de construção. Como porém o senhor só pode ser mesmo o Mr. Cara Certo,
essa cerca-viva, muito pelo contrário, vai se levantar a qualquer momento e se tornar humana.
Chegue um passo atrás, por favor, para não ser pisado, pois é muito provável que meu séquito
real transmude agora mesmo seu corpo e de sua plena forma, como cerca-viva, entre de volta na
forma original dos seus corpos. Oxalá nesse meio-tempo as entradas não tenham sido
emparedadas, senão as pessoas não vão caber na forma de seus próprios corpos, coitadas. A
situação não é cor-de-rosa, posso lhe confidenciar, embora esteja feita de rosas. Despertar de um
estado, e não conhecer ainda, ou já não conhecer mais este outro no qual devemos entrar. Eu
olho para o seu rosto bronzeado, Senhor Príncipe, para o gel de seus cabelos escuros e os
músculos sob sua camiseta, procuro os joelhos e o traseiro em sua bermuda de surf extra grande
e pergunto: Pode ser mesmo que seja o senhor e que esteja em algum lugar debaixo de tudo
isso? Pode ser que o senhor seja o senhor? Pode ser que eu seja eu? Pode ser que o senhor esteja
se dirigindo mesmo a mim? Tem que ser, do contrário não estaríamos aqui. Ou seja: se o senhor
não tivesse vindo, nós dois não estaríamos aqui. Ou seja: sem que o senhor tivesse vindo, não
haveria agora eu, ou pelo menos ainda não. Obrigada.

PRÍNCIPE : Me disseram que era pra eu vir até a senhorita e beijá-la e ver o que acontecia. E
que daí em diante eu visse o que fazer. Sempre dá pra fazer alguma coisa. O que eu vejo me
agrada bastante, valeu a pena, é o que posso dizer desde já. Eu sou o poder. Quem se coloca contra
mim perde a si mesmo, na medida mesmo em que insiste em si mesmo. Que bom que a senhorita
logo reconheceu que deve sua existência a mim e apenas a mim. Como posso dizer: eu sou eu.
Como a senhorita sabe, eu sou mesmo aquele que eu sou. Não há o que fazer. Eu gostaria de ser
o Eterno, e talvez eu seja, pois até agora não morri, e sim, muito pelo contrário, cheguei a
ressuscitar uma morta. Com um beijo. Deve ser um lindo despertar: tanto tempo no oculto,
acocorada, e então a primeira coisa que se vê, Deus. A mim. Eu! Eu! Eu sou aquele que ressuscita
os mortos. O tempo se chama e proclama: eu, e eis-me aqui agora. Mais ninguém. Minha cara
Gatinha Princesa, estou certo de que até há pouco, quando ainda dormia e ninguém nem ao menos
lhe pintava as unhas, de que a senhorita não podia enviar ao Ser nem sequer o mais mínimo sinal
de que estava ali. Não podia tampouco dedicar a mim nenhum cartão postal, nenhuma carta,
nenhum ligação dizendo onde encontrá-la, embora meu celular estivesse sempre ligado. E aí é
que estava a graça: eu não podia saber onde a senhorita estava, e mesmo assim a encontrei. Fui o
único. Portanto eu simplesmente TENHO que ser Deus. Aquele que sabe o que ninguém sabe.
Provavelmente até fui eu mesmo que a fabriquei. Se eu sou Deus, eu posso. Pois bem. E agora
também acabo de abolir o tempo, pois como a senhorita estava dormindo, estava fora, pelos cem
anos que me foram profetizados, que agora no entanto são passado para a senhorita, não, não, não
precisa se preocupar, o tempo não foi embora. Como porém o tempo não lhe deixou marcas, a
senhorita só pode ter estado na própria mão de Deus, que segurou pessoalmente os ponteiros dos
relógios. Sim. Porque sou Deus, pude portanto fazer isso: dar à existência um sinal para que agora,
quando a beijei, ela desse corda no relógio e o soltasse sobre a senhorita como um cão raivoso, e
que comece o envelhecimento! Em cem anos não haverá mais beijos, e sim uma fartura de liftings!
Não desejamos, é claro, ver aqui o tempo como um inimigo da eternidade, no máximo como
inimigo da beleza feminina, pois eu, enquanto Deus, posso lhe assegurar que a eternidade não é
o nosso objetivo, e nem a sua irmãzinha, a eternidade dos valores. Então, dê-lhe rímel, enquanto
ainda há tempo, e dê-lhe esfolador facial, quero dizer, o esfoliante facial para as rugas. Alguém
lhe deu a informação errada. Uma vez que está ali, o tempo não pode ser apagado, nem pintado
como novo. Quando nosso tempo chega, nós de repente sentimos muito por ter um corpo, mas
antes disso gostávamos muitíssimo dele. Pois nosso objetivo é uma vida agradável sobre a qual
as revistas e a televisão queiram falar. Na eternidade não há nada sobre o que se possa falar. Nada
pode acontecer ali afinal, pois é sempre agora e nunca se poderá ler como passado. Sem dúvida é
confortável para a senhorita e para mim não precisarmos analisar agora mesmo as disposições da
eternidade para nós, quero dizer, não precisarmos analisar o que a eternidade significaria para
nossas vidas. Ela poderia por exemplo significar que nós caíssemos mortos nesse exato momento,
ou então que tivéssemos que nos beijar por toda a eternidade porque não pudemos nunca mais
desligar este momento, e mesmo assim mais tarde ainda iríamos deixar que nos fotografassem
esquiando, e no nosso casamento estariam presentes também as amadas câmaras de televisão, não
é? A senhorita também não vê assim?

PRINCESA : Bom. Deixa ver...soa bem. Conservar momentos. Ao menos temos alguns em
estoque afinal. Suponhamos que, enquanto eu dormia, eu tivesse tomado o Eterno como uma
realidade própria, legítima, e no fim das contas tivesse que ser assim mesmo, pois eu, adormecida,
me movia mesmo por essa eternidade atemporal como um peixe dentro d’água. Além disso, me
foi profetizado amor eterno da parte de um príncipe que me salvaria, o amor como mais um desses
seus valores eternos mixurucas, me desculpe, ele não é um dos seus valores? Ele deve ser um dos
meus? Só estou falando porque ele se mostrou a mim, o amor, bem, o senhor ainda precisa me
fazer valer esse voucher, Senhor Príncipe, nisso estamos de acordo, não estamos? Bom, eu
admito: eu estava na eternidade, e de repente sou atirada pra dentro da temporalidade, pelo senhor,
meu caro, mas como eu poderia compreender o meu Ser e o tempo no qual eu sou EU, ou digamos:
no qual eu estou, como eu poderia portanto compreender o tempo de antemão? Estou recém
começando a me mover nesse sistema de coordenadas em que as mulheres dizem: Eu estava
absolutamente fascinada por este homem! E dizem mais: Ele irradiava uma força interior etc. Ser
não é simplesmente existir ali, à disposição, é preciso algo mais. Fui enlatada como princesa e
acordada por um príncipe. Acredita realmente que dizer: Deus está aqui, é o mesmo que dizer: O
príncipe está aqui? Um príncipe, afinal, pode ser deposto pela sua mãe, a rainha, porque ele trepou
com uma mulher ruim, mas quem vai depor Deus? Bom, talvez até eu, porque afinal, pelo menos
por um tempo, também fui eterna? Bela Adormecida, como aquela que venceu a Deus! Bem, vai
ser um farfalhar nos folhetins e uma bela salada de folhas!

PRÍNCIPE : Já estou vendo que se eu não lhe explicar, a senhorita jamais vai compreender seu
Ser, e quem lhe poderia explicar melhor do que eu! É de mim, afinal de contas, que a senhorita o
recebe! Portanto eu, seu criador, lhe digo: seu Ser acontece agora porque eu o passei às suas mãos.
Mas se a senhorita quiser possuí-lo, como sua propriedade, antes é preciso ainda acontecer uma
coisa que eu vou lhe mostrar agora. (Ele veste uma fantasia de um bicho de pelúcia qualquer com
um enorme pênis.)
PRINCESA : Mas não precisa ocorrer mais nada! Já ocorreu! Como princesa eu pude, em vida,
economizar patrimônio de vida que agora aplico em minha relação consigo, Senhor Príncipe.
Espero obter bons rendimentos. Comigo o senhor não erra: não sou a cópia de ninguém. Antes os
outros, na televisão, é que são a cópia de mim. Eles não sabem que cada um deles, por seu lado,
enquanto um Eu, é a única coisa que não é, ao mesmo tempo, outra coisa, não, eles querem todos
ser eu. Imagine só. Antes de adormecer, me incutiram a ideia de que a melhor experiência seria
aquela vivida por um corpo que, tanto quanto possível, não fosse a gente mesma. Quando me
disseram isso, certamente não estavam pensando nesse troço que o senhor está colocando agora.
Isso é nojento! Mas pressinto que seria um erro enxergar a vida apenas do meu ponto de vista. O
senhor talvez goste do seu corpo. Ainda assim, é só sacudir uma moita do caminho pra ver dúzias
de corpos como esse. Animais! Admito que o senhor conseguiu se tornar um completo outro. Já
não se parece mais em nada consigo mesmo! Ou fiquei louca, ou não consigo me libertar da
incorrigível e incorreta suposição de que o seu corpo estava ligado à sua identidade, mas parece
que vou ter que conseguir. O senhor – um Outro. E este Outro não estava já o tempo todo embutido
dentro do senhor, espero, senão eu nunca o teria beijado. O que estou dizendo? Eu não teria podido
fazer nada. Foi o senhor que me beijou! Com certeza que foi comprado pela Senhora F. É por isso
que desejou ser um outro? Para não precisar estar aqui? Para escapar ao seu destino? Para não
precisar me beijar? O senhor vestiu uma fantasia. Eu o observei muito bem. O senhor fez isso
especificamente para se tornar um outro? Ou pra ser ainda mais quem senhor já é, ou seja, pra
enfatizar sua individualidade? Só estou dizendo. Porque agora o senhor ainda por cima me mostra
sua alma, que evidentemente está embutida dentro do senhor como a lagarta na borboleta ou vice-
versa. O senhor é um animal, Senhor Príncipe! Já eu de minha parte acredito que sou um
acontecimento, porque eu aconteço, não porque eu me visto com alguma coisa. Ainda que outrora
sempre se tenham descrito minuciosamente minhas roupas, como se elas fossem a coisa mais
importante em mim. Eu sou sempre a mesma, do contrário afinal eu não poderia acontecer, do
contrário eu estaria eternamente apenas me tornando, e ninguém me reconheceria nas minhas
fotos. O senhor agora por exemplo, Senhor Príncipe, é algum outro. Eu teria preferido que o
senhor continuasse quem era. Enfim, eu não tenho a menor necessidade de me emperiquitar sabe
lá Deus como para ser alguém, isso é certo.

PRÍNCIPE : Mas a senhorita só pode se dar aqui porque agora é minha propriedade, mediante
beijo. Com barba postiça ou roupa brega de povão eu poderia enganá-la sem esforço, como a um
recém-nascido, pra quem tanto faz o que o papai está vestindo, até o avental da clínica ele acha
vistoso no papai. Aquele que agora sou deve apenas lhe provar que eu, que sou Deus, tenho à
minha escolha ser quem mais eu quiser ser. Quando eu vim até a senhorita, eu ainda não tinha
necessidade disso. Eu podia ser aquele que eu era. Simples e naturalmente. Eu podia vir logo
como eu era, como príncipe. Eu a despertei com o frescor revigorante de TicTac e completei o
esboço que me foi apresentado da senhorita, eu o pintei por assim dizer com a boca. Eu encontrei,
no entanto, apenas o que eu esperava encontrar. Eu criei apenas o que eu queria de qualquer
maneira criar. Nada me aconteceu, nada lhe aconteceu. Eu poderia a posteriori dizer que a
encontrei por acaso. Mas prefiro dizer que a senhorita é meu achado, meu órfão encontrado, meu
seixo rolado, e apresentá-la à imprensa. Primeiro algo é inventado, e depois é mostrado. Esta é a
essência da criação, minha especialidade. Se a senhorita estivesse morta, eu teria me perguntado,
como qualquer criador que não tivesse previsto tal coisa: tinha mesmo que ser assim? O que eu
fiz de errado? Isto é a princesa ou não é? Se a senhorita continuasse morta eu teria perguntado
diante do seu cadáver, o que é isso, não posso trazer os mortos de volta à vida? Como assim não
posso mais? Este objeto é mesmo um ser humano ou não é? Não consigo me lembrar de tê-lo
feito. É um cadáver diante de mim? Ou o quê? Bom, vamos ver isso agora mesmo! Entrega a
Bela Adormecida uma fantasia de coelho de pelúcia branca, com uma vulva bastante
protuberante e lhe faz sinal para vesti-la, o que ela faz. Quando ela termina de vestir sua fantasia,
os dois começam a trepar furiosamente feito loucos. A cerca-viva desaba sobre eles e os sepulta.
Dela surgem diferentes tipos de animais, sobretudo galinhas, que se portam de forma bastante
animal – imitar mesmo com precisão o comportamento dos animais! Duas das galinhas
desenrolam elegantemente uma faixa onde se lê: “VISITE A ÁUSTRIA! AGORA MAIS QUE
NUNCA!”

PRÍNCIPE e PRINCESA, juntos, um pouco ofegantes :


Bom, pelo menos não somos um império aviário financeiramente corroído. Cadáveres na esteira
da linha de produção, que mesmo em cima dela continuam unidos. Que beleza. Mas no fundo
para entender o que acontece com os mortos, teríamos que dar um passo além, teríamos que estar
nós mesmos mortos. Não é suficiente falar sobre a morte. Seria preciso viver para falar sobre ela.
Mas o que fazem todos esses pobres mortos? Eles não sabem que estão mortos e no entanto estão.
Nós sabemos que um dia estaremos mortos e no entanto vivemos. Agora afinal conseguimos ao
menos nos desprender de nossos corpos e apesar disso não estar mortos. É um grande progresso,
pelo qual os senhores podem nos dar os cordiais parabéns. Ainda não vamos tão longe a ponto de
corrigir o pressuposto de que temos que morrer. Mas dizemos em todo caso que estivemos mortos
e que agora vivemos. Experimentadas as duas coisas – não tem comparação! Experimentem vocês
também! A comparação os deixará bastante seguros no trânsito da cidade, quando vierem.
A MORTE E A DONZELA III

(ROSAMUNDA)

Infelizmente a água penetrou no meu corpo. Embora o que eu quisesse fosse apenas embeber um
pouco meus retratos. Estou muito consternada, eis que logo deverei me afogar por isso. Sobre a
formosa terra de Deus, o tigre dilacera o cordeiro. Apenas eu não sei sentir de outro modo. Tudo
me deixa consternada, até aquilo que não me diz respeito. Assim sou e assim serei, vejo apenas o
novo, o turvo neste mundo. Mil vezes me dizem, o que eu poderia fazer, e isso também me deixa
novamente consternada! Minha pena corro incansável, não falo nenhuma língua estrangeira e
quando falo, é errado. Adoraria ser uma banhista num biquíni sensual, lançando gritos de dor,
doce veneno de sua própria língua. Mas a banhista num instante se torna grave seriedade, apenas
por eu ter que representá-la. Eu penetraria atrevida no círculo dos viventes, eu estava na frente
desta senhora, já estou esperando faz tempo. Por favor, me deem algumas daquelas boias de
braços, que me façam flutuar! Quem está interrompendo o verde despencar das ondas, aquele que
neste instante eu ainda não sei que de ondas se origina? Sim senhor, agora começa, aqui, de
repente, a luz intermitente de marés cheias que não frearam para mim, apesar de frearem até pra
animais. E já se crava em cheio na grade do meu radiador o narigão de uma maré cheia. Afiados
contornos, não não, não eu em meu conjuntinho de duas peças no qual pousei minhas formas!
Não eu! Num raio púrpura resplandece mais uma vez o capô do meu motor, o vale ondula
suavemente, num elegante salto fica pra trás. O vale, cercado de serras, deveria encerrar também
a mim, porém, estúpida consternação, você me lança sempre e sempre para fora de onde eu
poderia ser feliz, na varanda enramada do meu amado país. Ao longe uma felicidade em espaços
dourados, sim ou não? Decida-se agora de uma vez! Como assim, como é que cada um agora, e
eu também, se decidiu tão claramente pela felicidade? Foi cedo demais, os senhores tinham
primeiro que esperar a luz vermelha pisca-pisca e só então apertar o botão! O martírio, por acaso,
é um prazer para os senhores? É por isso que o candidato adversário já é o vencedor. Agora sim
que já é tarde demais, mesmo, a felicidade agora é de outro. Mas e a infeliz desgraça, acaso não
é ela também uma linda criança de uma outra mãe? Não precisa necessariamente ser um horror
vazio! Por que os senhores não escolheram a desgraça? Sobre ela se pode dizer muita coisa, tudo
o que os vales encerram, o que eu anseio em silêncio, o que ainda floresce e em que lugar e onde
a luz do novo dia recai mais uma vez, onde não consigo encontrá-la. A desgraça das águas, nada
mal também, eu a vejo cada vez com mais clareza, envolta de melancolia cintilante, ah não, era
uma luz, um nada, sobre o mero reflexo na espuma das ondas. E no entanto: vem em minha
direção cada vez mais rápido. Ondas cortantes, eu escrevo e escrevo, a rainha do mundo sou, só
que mais uma vez ninguém me vê. Já me falta o ar, sonhos inquietantes me apavoram: não estará
habitado o fio cortante dessa água? Depois de procurar por tanto tempo, errando pelo mundo, sem
abandonar minha escrivaninha, não será que no último momento alguém ainda mora, tão
incômodo quanto eu, sobre o fio dessa navalha? Como é que de repente moram aqui tantos
incomodados? Num incômodo muito maior que o meu? Não pode ser! Meu impulso arrebatador
me impeliu até aqui, e eis que muitos outros, como vejo, já deram também seus impulsos, não é
possível! Próxima degradação: a navalha não é sólida, a lâmina está sim afiada, mas não é lamina
nenhuma. Água é o que ela é, ergue a cabeça orgulhosa para beijar as estrelas, e me pega de
supresa! Justo eu! Que tolice! Não, isso não! Você por acaso é minha mãe? Não, você não é ela,
sua nulidade de navalha, inofensiva como o azul no céu, que é isso mesmo que ele está, quero
dizer, está azul pra valer, mais azul impossível nesse instante. Eu digo, lá vem uma tempestade,
e então, silêncio sepulcral. Desculpe céu, não queria ofender-te com meu carro modelo médio
porte alemão de dezesseis anos atrás. Sem mastro, sigo errante sobre o mar, mas também posso
errar mais cômoda, se assim se desejar, aqui, essa figura de cera, quero dizer, de segurança e
vigilância junto à minha escrivaninha, essa sou eu, uma filha que se aproxima para que lhe possam
prestar homenagens. Mais tarde talvez, será então rainha, e seu coração vai se embalar como
nunca, condenado a si mesmo, completamente só por sobre as ondas. Não há olhos olhando
amáveis para baixo, não há propelentes nem frases de estímulo nadando ao seu lado, não há raios
nem flashes sacados especialmente por ela, não há nuvens envolventes, costuradas por cima com
esse material cinzento que adquiri porque estava muito barato. Não gritem assim, ainda tenho
toneladas disso sobrando! Ondas que me espelham amor, ao menos elas olham para mim, assim
pelo menos eu acreditei, mas foi um acidente com o carro. Não pude nem me alegrar direito com
a luz de freio do carro da frente. Achei que era minha própria luz, que eu segui por tantos anos,
lépida e lerda ao mesmo tempo, teimosa luz que ia esvoaçando à minha frente, e no entanto era
apenas a minha luz! Vejo um indicador piscar, ele me indica rumo às cidades. Mas sozinha hei
de morrer. Pois bem. Agora no entanto, sofro que zombem de mim, tão-somente porque me aferro
a esta massa de água que quer apenas me puxar pra dentro, onde oscila toda flor, onde estrela
nenhuma me indaga. Ao pequeno regato quero dizer que adoraria tanto viver tudo isso. Sim,
exatamente assim é como vivi em pessoa, com pneus totalmente vividos e gastos, e agora este
acidente grave, absolutamente inevitável, me acontece e é bem feito pra mim. Qualquer um teria
logo visto que essa água só estava esperando para me assassinar. Apenas eu fui, mais uma vez,
cega. Eu afirmava ser uma vidente, mas o que ia revoando à minha frente eram apenas as horas
da minha vida. Eu tinha que ficar em casa como um cão que não tem cordeiro algum pra dilacerar.
Ali no alto vale belos livros eu leio, mas o que faço agora na água, eu magnífica, mesmo chorando
amargamente? Quer dizer, apesar de tudo não oscilo em minhas inquebrantáveis convicções, eu
criança chorosa, que não pode dizer isso, e sim apenas: o quê? Eu corça receosa, que por anos a
fio procura a bala, para então simplesmente reenviá-la a outro alguém: Não, esta bala não é pra
mim! Vejam só: o endereço está errado. Além disso eu sou a única que sou por mim, como posso
receber uma encomenda? De resto não tenho voz nenhuma, e nem pude conseguir alguma. Não
posso mais dizer o que eu quero ou por quê. Eu tento então uma vez mais, eu movo a mim mesma
escuridão adentro, pois agora até os holofotes se apagaram, que azar! Por favor, um pouco de
deleite ainda para minha dor! Que frio é esse, nenhuma luz de luar tão cândido, nenhum sonho
que me engane. Nenhum mundo luminoso que me envolva de flores, nenhum doce olhar que me
envolva em fulgores, nem sequer esse isqueiro, como assim, se ele funciona a bateria! Será que
até ele se afogou? Oh não, a primeira ferida de uma luta que não procurei é já a ferida mortal,
embora eu não tenha entendido bem a pergunta. Agora tudo se torna claro para mim. Eu me curvo
sobre mim mesma e digo algo sobre mim mesma e o envio e me removo a um espaço profundo.

Kinder chocolate recheado para os intervalos:

A lua cheia fulgura na alta montanha,


de ti tanta saudade,
doce coração, a beleza é tamanha,
quando nos beija a leal fidelidade.
De que serve o encanto ornamental de maio?
Me trazias centelhas primaverais,
Ó luz de minha noite, dá-me teu sorriso
Na morte uma vez mais.

E envolta ela entrou do brilho da lua,


olhou do céu a imensidão,
“Em vida, longe, na morte, tua”.
E doce fundiu coração com coração.

The real thing

A passagem de trilho para rua


A passagem de água para rua
A passagem de água para trilho
A passagem de rua para trilho
A passagem de trilho para água
A passagem de rua para água

Os dois se acabam um com o outro, mas pra valer!

FÚLVIO: Não, não vire seu olhar, entregue-se por favor à situação que acaba de se produzir,
neste bar, onde a luz um tanto melancólica se aferrou a gente perturbada como você. Hoje vejo
você ainda, como se fosse ontem. Hoje ainda eu tomo você, como se já fosse amanhã. Eu tomo
você pelo tempo necessário até poder recuperar você de você mesma. Então faço cair seu último
invólucro. Do que você se queixa? Você mesma agora há pouco fez cair os últimos invólucros!
Nos seus escritos, como você diz. Eis aqui um guarda-sol sobre o solo rochoso, pois até do sol
você se amedronta. Mas veja, o que você pensou que eram seus últimos invólucros, era só o estojo
da sua esferográfica! Não é necessário. Outros possuem muito mais destino, ou pelo menos eles
têm o seu próprio. Você nem sequer isso possui. Você é o produto da sua própria reciclagem.
Você era uma lata. Você era o horror do poder. Eu pensei você, eu fiz você. Minha você tem que
ser! Eu tomo você e me sinto bem com isso. A corrente percorre você igual a um pavor desnudo,
entra nos aparelhos dos seus membros. De mim você fala mal. Mas eu ao menos, com uma única
decisão, me retirei do mundo, ao qual deixo agora de passar em revista. Não há danos. Apesar de
tudo. Prefiro não mencionar você, e lhe faço assim mais um favor. Sou o sol que brilha sobre a
água. Eu existo pelo menos duas vezes. Um truque da lâmpada, que duplica a chama com
espelhos. Mas, de alguma maneira, não fica bem certo. Tudo enfraquece. E que mais? Já vou
descendo pela ribanceira, as flores se precipitam a meu lado no vale, um verde torvelinho diáfano,
gracioso. Mais espécies ainda! Cada flor quer ser a primeira a chegar lá em baixo. Veja, que belas
se penduram de cabeça pra baixo formando cinturões, lá embaixo na encosta da campina. Lá elas
se embalançam, as cabecinhas bem junto do abismo, mas ainda não totalmente dentro dele. Muito
esportivo. Que mais: ah, se não tivesse jamais se aceso essa sua brasa incandescente maligna!
Você olhou sempre apenas para a fama, que supostamente lhe sorria. Não reparava em mim,
preferia descrever o vigor da minha insignificância. Porque você foi caçar outra significação! E
agora aí está! Você mesma, uma corça, grande mulher! A caça é você! Sim sim, pode se aferrar
com força, estou disposto a segurar você. Porém a vastidão do meu coração me leva adiante, até
outro balcão, com melões mais robustos pendurados. Também de algum modo mais lisos, firmes,
uma hora depois de passar o creme: andem! Sobre o que daí surge poderíamos nos fiar e edificar,
se não fosse preciso antes queimar como combustível, o corpo. O quê? O que dizem as eróticas
de vestidinho típico com avental? Invencível você se manteve? Acreditou que era possível ser
procurada e evitada mesmo tempo, tomada e poupada? Com isso você não conseguiu me
assombrar nem por um minuto, vai ter que pensar em alguma outra coisa! Sem andar não adianta
nada, a direção tanto faz. Sem andar você nunca vai poder se dividir em duas. Mesmo se livrando
de uma parte de você mesma, ainda não conseguiu ficar mais magra!
ROSAMUNDA: Monstro! Oh, minha mãe, perdoa-me! Oh, minha escrita, perdoa-me! Oh, minha
obra, perdoa-me! Natureza, perdoa-me também! Minha escrita, perdoa-me outra vez! Calça
colada no corpo, perdoa-me! Blusa sem mangas, perdoa-me! Amor, protege-me uma terceira vez!
Vontade, realiza-te a ti mesma! Atira-te pelo menos mais rápido ao chão quando um homem forte
vier! Atira-te ao chão pelo menos quando um homem sofisticado vier! Pisa sobre mim quando
um estudioso vier, não, estudioso não, um vigoroso, é claro! Quem mais, oras? Homem
desconhecido que me sacrifica, esquece de mim logo em seguida! Homem desconhecido que me
sacrifica, não te esqueças de mim logo em seguida! De jeito nenhum! Está ouvindo: não esqueça!
Tudo anterior, nulo, anulado! Proteção que me circunda, também não te esqueças de mim, hã, ah
não, isso na verdade é o anel viário que preserva a paisagem urbana, perdão. Paisagem urbana
que sempre apresenta uma outra sobre o outdoor, perdoa-me que eu não me pareça com ela! Oh,
minha coxa, oh minha bunda, perdoai-me que eu tenha feito de vós o que sois! Horror de ser
desprezada, perdoa-me! Solo onde pisa o pé de mulheres, perdoa-lhe a cena falha, a entrada
atrapalhada! Martírios que me reviram o peito, perdoai-me! Por não terdes achado nada ali dentro,
perdoai-me ainda mais! Homem desconhecido, perdoa-me por me tornar tua! Homem
desconhecido, perdoa-me por não estar ali pra me tornar tua! Eu tomei o meu próprio caminho,
que por favor, me há de perdoar que sempre haja uma outra que dele se aproprie.

FÚLVIO : Então, eu ficaria contente se o mundo inteiro ficasse só trepando, aí ficariam todos
numa boa, numa nice. O resto pode esquecer. Normalmente eu teria precisado de apenas uma
mulher, mas os tempos em que a gente, por paixão e convicção, chamava uma deusa do amor de
piranha, messalina, já passaram. Não que eu acreditasse, ou mesmo apenas desejasse, que uma
extraordinária, uma magnífica mulher, das que por sua inteligência atraem a atenção sobre si, iria
se contentar comigo como possibilidade, mas então ela fez isso, fez exatamente isso, eu vi com
toda clareza a sua brasa incandescente acender, vi essa lamparina puxar sua própria cordinha, e
não houve chance, a cordinha infelizmente era corda enroscada e se enlaçava em seu pescoço,
que pena. Submersa sem um pensamento sequer, como um pato de chumbo, não, como uma
morta. No fim, porém, fechada e hermética, como uma alameda infinita quando se olha para ela
pela primeira vez. Essa mulher com a sua saia balão ou lampião, um troço desses nem se usa mais.
Usa sim, usa, a Prada lançou de novo nessa temporada, mas ano que vem vão fazer algo totalmente
diferente outra vez. O quê, essa mulher continua procurando o cordão de parada de emergência?
Pra poder fingir que está se debatendo nas suas amarras? Pra poder despertar e resplandecer
imediatamente quando alguém, numa hora inesperada, der um puxão na corda. Ali está o ponto
de ônibus. Eu sou seu homem. E assim que possível eu ainda vou cortar essa cordinha estúpida,
você vai ver, eu vou cortar, e vai ser justo quando você quiser puxar com mais força. Murmúrio
d’água. É a fonte nas montanhas. Não, não é a fonte nas montanhas. Água de alguma outra parte.
O céu proverá. Seja meu anjo protetor. A festa nos chama. Sempre há uma festa que nos chama.
Pois bem, Rosamunda. Depois de tudo não vai valer a pena nem falar dessa língua solta que ela
manejava. Tudo show. Eu corto fora a sua língua e aí, cadê a palavra agora? Tá vendo, foi-se! A
palavra agora com certeza não vai mais ser tão má como você a ensinou. Agora ela não passa de
um convidado desagradável que não quer ir embora. Rosamunda. Eu lhe digo com todas as letras:
tudo tem que ser decidido agora, neste instante. E quem se decidiu por mim agora na verdade, dá
pra acreditar? Você, você, você! Nunca teria imaginado. Seja lá o que for, mas seja agora, já!
Vapt-vupt! Bom, não adianta, vou ter que fazer o melhor possível disso tudo. Chega desse
blábláblá de menininhas. Minha você tem que ser, a sua vida depende de um piscar do meu olho!
Por favor, chegue um pouco mais perto com a câmera, sim, estou vendo, ela realmente se decidiu
por mim e pelo meio milhão! Se tivesse se agarrado na sua ideia anterior, já seriam agora três
quartos de milhão! Um milhão inteiro! Mas a pergunta na categoria “Música Séria” deve ter sido
mesmo séria demais pra ela. Façam-me o favor, essa mulher é uma piada! Eu sempre digo: para
uma viagem feliz no Barco do Amor, tanto faz quantos passageiros já subiram nele antes. Mas
nesse barco aí ninguém nem nunca esteve. Isso me deixa bem desconfiado. Por que afinal
ninguém navega nessa magnífica, porque ninguém levanta a âncora e viaja nessa grandiosa? Isso
é o que eu me pergunto, minha criança embevecida. Oh, afeiçoa-te a mim, e em ternas carícias eu
me aconchegarei a teus pés.

ROSAMUNDA : Monstro! Inconveniente! Inconformista! Parceiro perfeito pra mim! Quem foi
que me deixou sobrando? Um serviço estrangeiro de busca de parceiros? De busca por uma outra
totalmente diferente que, no fim das contas, não vai ser ninguém outra que eu mesma? Eu sou
todas! Eu bem-aventurada mulher de sucesso. Eu feminista fundamentalista solteira por
convicção. Eu muito tempo andei por aí, quase feito uma ninfomaníaca, mas agora se acabou de
uma vez por todas. Eu tiro os olhos de mim mesma. Eu exijo de uma vez por todas que as mulheres
conquistem mais e mais o direito de viver sua sexualidade. Eu exijo de uma vez por todas que as
mulheres conquistem o direito de viver de uma vez por todas. Se os homens conseguiram, então
também deve ser possível pras mulheres. Agora há pouco, ao compor tudo isso, eu ainda estava
super feliz. E agora, ao pôr mãos à obra, de repente, já não é tão legal. Talvez pra outro fosse
diferente num monte, quero dizer, no alto de um monte na costa leste de Chipre? Quem sabe? Nas
férias, afinal, tudo é sempre diferente. E quando chega a hora da despedida, tudo de repente é
igual como sempre. O normal habitual. O belo é uma coisa que não existe. O belo, de uma vez
por todas, é uma coisa não existe mesmo.

FÚLVIO : Fique! Pois tudo deve se decidir agora neste instante! Na verdade, já deveria ter se
decidido no instante anterior. E pode se decidir no próximo instante de forma totalmente diferente.
Enquanto isso eu domino a mim mesmo. Mas o que eu faço logo a seguir? Rosamunda. Por que
você deixou as mulheres tomarem tanto o seu tempo? Eu já percebi isso também em você: por
que tão apavorada quando um homem lhe põe a mão? Um homem parte como conquistador e
retorna como conquistador, mas só para em seguida voltar a partir. Para retornar como ele mesmo.
Feliz então com sua presa, ele pula pro próximo negócio e faz um vídeo disso tudo. E acontece
que nesse negócio tem outra presa muito melhor, da qual ele também pode fazer um vídeo, e tem
ainda um celular grátis, com ligações e conversações também grátis, e a língua grátis, a voz e o
voto grátis e o sucesso eleitoral então também grátis, porque ele já fez bastante ligações, votou
em tantas votações, e por isso ganha também uma eleição grátis. Põe a mão, pega! Põe um visual
em cima e pega com a mão! O quê, você não quer pegar? Você não pegou ainda que podia me
fazer o homem mais feliz do mundo? Não consegue pôr na cabeça a ideia de ser pega? Prefere
pôr em palavras? Você se satisfaz com informações? Faz bom uso da sua mediocridade,
esbanjando esse recurso pra aprender a falar? Ódio! Ódio! Que outra ideia você não tem? Não lhe
vem na ideia que você mesma poderia ser a única a estar sofrendo todo esse ódio? Por que não se
deixa descansar aqui comigo, em vez de simplesmente deixar as coisas como estão? Portanto
agora vamos fazer um corte limpo e preciso e vamos admitir que estávamos indo por um caminho
estranho. A mídia esteve nos observando. Não tem problema. Não, a mídia infelizmente não
estava nos observando. Outras mulheres admitem um, dois, um monte de cortes na vida. Mas
você. Sim você mulher entre 18 e 80 anos, eu não consigo enxergar de qual fim você está mais
perto do que de mim, você está de mais perto de todo e qualquer fim do que de mim, você, sim
você, um pergunta não me deixa descansar desde que estou aqui na sua frente: quantos parceiros
sexuais você já teve até hoje? Não, não diga nada. Diga o que eu estou habituado: por que afinal
você é uma vítima e por que traz uma vítima em oferenda e foi transformada em vítima de
sacrifício e assim, com todo seu Ser posto na palma de uma mão, por que precisamente quer se
tornar uma vítima, por que justamente a minha vítima.

ROSAMUNDA : Então, eu devo morrer assim, relativamente no melhor da idade?

FÚLVIO : Como pôde sequer presumir, orgulhosa mulher, de haver me dominado? Por Deus,
tem graça! Um retrato de açúcar, uma boneca articulada, um caniço volúvel nessa enervada
empunhadura! Todas as perguntas: calar imediatamente, saúde: falhar de repente! Tudo de volta
pro início, pra se consumir completamente uma segunda vez, vou lhe dizer. Isso tudo tem um
preço! Ninguém deve suspeitar que espécie de gente somos nós, do contrário entramos logo na
mídia. Em todo caso, somos gente que anda em boa forma. Vou lhe dizer como eles ativaram a
circulação deles. Vou lhe dizer, vamos fechar agora tudo que é jornal e revista. Ah, não, não vou
lhe dizer nada. As pessoas tem mais é que ler você. Muitas operações poderiam ser evitadas
através da leitura, até aquelas feitas no coração. Então, mais uma vez, do início, a fama que eu
tenho: aproveitar! Meu tempo: deixar que me tomem! Desta atividade: ser dispensado! Tudo:
caduco!

ROSAMUNDA : Amor? Amor o quê? Amor é um sonho de moçoilo! Isso aí. Uma dor bem
carimbada dentro, o passaporte é válido e passa muito bem comigo, obrigada. E agora, será que
meu ódio deve continuar assim bruxuleando caminho afora ou ficar ali, fosforejando sem parar?
Só pergunto porque uma coisa desencaminha tudo e a outra também enerva que é uma beleza.
Faça o favor de dizer de uma vez o resultado da minha transgressão! Pra saber o quanto mais uma
vez eu bati na trave no assunto “Erotismo”. Será que consegui fazer os pontos suficientes dessa
vez? Não? Outra vez não? Vou atirar todo meu ódio no inocente Festival Eurovisão da Canção e
no Encontro Mundial da Música Sertaneja Alpina e no programa especial comemorativo do
aniversário de qualquer coisa, porque afinal tem sempre tanta coisa de tudo, que sempre vai ter
comemoração de alguma coisa, e então vou atirar todo o meu ódio no carro tapando a entrada do
estacionamento e nessa casa que devia guiar você, moçoilo, até os meus pais, mas já faz cinquenta
anos que não guia, pois os meus pais estão mortos há mais tempo que eu. Isso é que é retrato. Será
que eu devia ter sido homem? Será que teria sido melhor? Eu atiro e atiro meu ódio, atiro e atiro
esse ódio envelhecido, obsoleto, carcomido. O quê, você toma esse ódio pra você? Ele bem que
ia se sentir melhor junto com você, mesmo. Pelo menos foi o que ele me disse. Por favor, se a
visão do meu ódio não te inflama feito gasolina, toma ele pra você assim mesmo e vá se esquentar
com outra coisa! Toma também o diadema que, queimando, coroava minha testa, ele ainda solta
umas fagulhas, por favor, aí está, acende ele de novo em mim! Agora, seja lá o que você for fazer
– toma esse ódio pra você, mas não toma ele assim, tranquilamente.

FÚLVIO : Ah não. Pode ficar com ele, tranquilo. Agora, tranquila é que você não é e nem nunca
vai ser. Você ainda vai vir rastejando aos meus pés, ganindo pelo meu amor, esse amor que agora
você desdenha com empertigada arrogância! Estou avisando! Não provoque a ira do tigre! Antes,
acompanhe toda minha expressão com a sua, mesmo que ela nunca consiga se afinar
completamente! Você tem todas as razões pra ficar constrangida por isso. Ser o segundo violino.
Sempre. Mas até que fica bem. Só que não me basta. Expressões é que não te faltam, sua
querelante. O quê? Você não consegue se libertar da forma? Não admira, se conseguisse ia ver
que você não passa de um bolo de forma ordinário, com um gosto que não corresponde a
imaginação nenhuma, pelo menos a nenhuma que você jamais pudesse apresentar. E se pudesse,
teria primeiro que ir buscar com muito esforço de algum outro lugar e então emoldurar muito
bem, senão nunca ia conseguir diferenciá-la do mundo ao redor, essa sua imaginação. Você já vai
cerrando as cortinas, e com toda razão. Uma forma própria você de qualquer forma não tem. Pra
ser apresentada você não foi feita, mesmo. E também não apresenta praticamente nada. Então,
pra que as cortinas? Inúteis como um sol deslumbrante numa paisagem que ninguém fez questão
de ver e que, de qualquer maneira, parecia completamente diferente no folheto.

ROSAMUNDA : A imaginação desandou, um fiasco. Está bem. Deixe comigo. Erga seus olhos
para as montanhas, não, não: primeiro erga os olhos, depois remova o sol, e só então abra as
cortinas, senão o deslumbre nos cega, e então olhe as montanhas, veja se valeu a pena manter
esses olhos erguidos o tempo todo, por tanto tempo até eles empalidecerem desbotados sem cor.
Picos pálidos de neve. Leni R. O que ela tem pra nos dizer hoje? A maldita beleza gruda na gente
feito placenta. Todo mundo se livra dela. Ninguém se livra dela. Utilizamos a técnica laser e
vamos nos recortando pra alcançar uma melhor forma. Primeiro uma luz azul, e então: branca.
Branco amarelada. Velha. Incolor. Sem resultado. A cor dessa luz está errada. E era isso o que a
gente achava o tempo todo que era o sol? Está escaldada demais pra enrubescer, essa luz. A forma:
possivelmente um estado que vai se deteriorando. Não. Não é um estado que poderia ir se
deteriorando ainda mais. Tudo o mais é melhor, mesmo quando é pintado como paisagem, ou
rodado como filme, ou como uma foto tirada direto uma a uma e jamais devolvida: tudo o mais é
melhor e todos os outros fizeram tudo o mais melhor que eu.

FÚLVIO : Uma voz. Uma voz. Um voto. Uma voz. Diz

ROSAMUNDA : Acho que agora é a hora de você descer. Bem agora o ódio começa a espalhar
raízes no meu coração, mais uma vez, ele está de volta, mas eu o tinha proibido terminantemente,
ah não, ele começa a espancar, e não outras, sou eu que ele espanca! Justo eu, sendo espancada
por ele! Com muito esforço, eu o seguro no alto, os braços trêmulos, e quem é que o meu ódio
espanca? Eu! E isso que eu havia colocado um lindo apartamento, totalmente de graça, à
disposição dele. Não foi o bastante pra ele. Bem bem, você também não seria o bastante pra
ninguém, ninguém que ficasse frente a frente com sua alma sequer por um segundo. Você está
dizendo que ele se recuperou, o ódio? Ódio ódio ódio, ódio familiar, ódio interno da empresa,
ódio bilateral. Ódio ódio ódio! Bullying contra si mesmo. Não é acaso um sorriso, essa delicada
espuma que se encrespa em torno dos meus lábios? Não, não é sorriso nenhum. São rugas. Não,
também não são rugas, nem podiam ser, se afinal eu usei aquele creme. É o ódio, que caminha
pelos campos, tranquilo, relaxado, seguro de si, a mão semeando grãos ao vento. Mas de alguma
maneira isso é, por outro lado, positivo, não é? Florestas, pro fogo! Pessoas, saiam do fogo! Vocês
agora estão no ponto. Vocês nesse ponto são muitíssimos. Já é o bastante.

FÚLVIO : Diz. Acendo uma faísca no inferno. Totalmente supérflua. Amando você, eu não pude
retomar de assalto o céu. Eu devo descer. Bom, a hipocrisia da sociedade já está me irritando que
é um horror. Eu quero ter muito humor e um bom intelecto, e caloroso de coração eu devo ser, e
eu não vou pra cama com nenhuma logo no segundo encontro. Eu antes olho bem pra ela mais
uma vez e então outra vez e daí olho de novo e então olho com mais cuidado ainda e vou olhando
cada vez melhor, com cada vez mais cuidado. E então não vou mais embora. Daí não faço mais
nada. É um pedaço de gente, isso que eu vejo aqui? É um retrato de uma pessoa? É uma pessoa
de um retrato? Sim, é uma pessoa de um retrato. Mas eu conheço essa pessoa! Não, não conheço
não. Não, eu não vou embora, eu não vou, não vou! Não, eu vou embora sim. Sim sim, eu já vou
indo!

ROSAMUNDA : Minha voz. Minha voz. Meu voto. Minha voz. Não diz nada.
A MORTE E A DONZELA IV

(JACKIE)

Colaboradora e colaborador: Randy Taraborelli, Elisabeth Veit, Roland Barthes entre outros.

Jackie, penso eu, deveria aparecer num conjunto Chanel, (e aí os senhores precisam ter razões
muito boas se quiserem fazer de outro modo!). Também se poderia tomar como modelo aquela
última foto no Central Park (com Maurice Tempelsman), sentada no banco, casaco de
gabardine, peruca (pois o cabelo caiu com a quimio), óculos de sol e lenço de cabeça Hermès.

Em todo caso, ela deve trabalhar muito. Eu imagino que todos os seus mortos, as crianças,
bom, o embrião e os dois bebês mortos não são tão pesados, mas em compensação os homens
mortos, Jack, Bobby, Tellis (“Ari”), tudo isso dá um belo de um peso, não é?!, então, como
posso dizer, ela deve arrastar esses mortos atrás de si como num cabo de guerra. Ou como um
barqueiro do Volga arrastando seu barco. Isso eu não posso aliviar pra vocês. Pelo menos o
sangue sobre o conjunto rosa não pesa tanto, e do crânio de Jack, de qualquer forma, falta um
pedaço inteiro. A atriz deve arrastar os mortos (presos um ao outro?) atrás de si com muito
esforço, e por isso ir ficando cada vez mais sem fôlego, ofegante ao falar, até que em algum
momento precisa interromper o monólogo porque não aguenta mais. Dependendo da sua
condição e da versão de cada dia, isso será ora mais cedo, ora mais tarde. E nesse momento o
monólogo acabou e fim. Mas os senhores, com certeza, vão fazer alguma coisa completamente
diferente.

JACKIE : Então, eu marco minha presença da mesma forma que minha cintura, a qual eu não
acentuo. Eu visto roupas neutras, sem acento. Minha cintura seria criada, primeiro, ao ser
salientada, e então, imediatamente cimentada. Ah sim, não, esta é justamente uma decisão
essencial, e eu me decido diferente: minha cintura não deve ser cimentada, e sim, mais bem,
apenas insinuada. Ela não é o que eu particularmente salientaria em mim. Eu não me separo do
meu vestido solto de alcinha, ou seja lá como se chame, aquele que só meninas usam. Eu sou a
criança dentro da mulher. Eu me retiro cortesmente quando converso com alguém, e no entanto,
ao mesmo tempo, ali permaneço, em minha elevada existência. Eu cubro uma praça inteira.
Prefiro ser pendurada em todos esses retratos de mim e arrastada junto por aí, daí não preciso me
preocupar com nada. Por outro lado, porém, sempre novamente furiosas atividades em assuntos
de arranjo e decoração. Americana da gema, coroada como um dente podre com drapeados Luís
XVI, é o que na época chamavam de bom gosto, imaginem só! Não. É melhor não imaginar nada.
Porque nunca se sabe em que tigela se serve a imaginação na cozinha do sopão dos pobres.
Primeiro eu teria que vir e convencer a população que depositou confiança em mim, mas não
recebeu de mim nada em troca. É preciso que tudo tenha pompa e esplendor, só a gente mesma é
que não, a gente mesma deve continuar simples, e pra isso é fundamental – justamente pelo
extremo recato, pelo mais diáfano tom de trivialidade – um jeito descarado, que se torna porém
absolutamente plácido e tranquilo assim a gente surge como a própria aparição milagrosa de
Maria. É um milagre que uma imagem como eu possa falar! É preciso ser os próprios passos que
as pessoas escutam à frente da porta e que as deixam paralisadas de medo. Isto é poder. Não a
antessala do poder, como aparece sempre nas revistas. Isto é o próprio poder, que lança seus
membros, delicados como roupas, e mãos invisíveis os apanham, mãos que, por assim dizer, caem
de joelhos diante de si mesmas. O poder se vê e não se vê. É preciso fazer belos movimentos com
a cabeça e então atar, acorrentar todos esses movimentos numa só foto, como um refém da gente
mesma. Como uma amada da gente mesma. Por isso que as incontáveis amadas de Jack contavam
todas tão pouco pra mim, porque elas não captavam nada. É preciso primeiro ser prisioneira da
gente mesma, para então poder apreender os outros. É preciso ser silenciosa, mas, no silêncio, o
mais barulhenta possível, para instilar sensações nos outros, como o remédio em um doente. As
pessoas precisam dessas sensações, porque embora não as tenham, eles ainda assim as conhecem.
Elas são descritas continuamente para eles, no torpor da trela das páginas coloridas, no rumor da
roçadela em si próprio, relação que é a menos perigosa de todas, a não ser que você seja seu
próprio empecilho. Seus pais podem morrer, seus filhos podem morrer, seus cães podem morrer,
mas quando somos nós que morremos, eles atiram pra fora todas suas próprias ocasiões de morrer,
como pedras num amontoado, erguem suas fuças e choram aos uivos. Eles não são capazes de
ficar marcando o passo onde estão, e muito menos de nos pisotear no chão. Elas preferem dar um
passo adiante pra se juntar a nós e ser como nós. E o que eles próprios não são, eles querem de
qualquer maneira receber muito bem descrito, mas como algo que seja conhecido, senão também
não iam entender. Para que, afinal? Será que nós devemos viver por eles? De algum modo é lógico
que um tiro tenha posto fim a tudo isso. Não, com um tiro é que tudo isso começou! Contemplar
interessados o seu objeto, como se olhassem a si próprios no espelho, sim, isso é o que as pessoas
fazem. Olham pra nós, mas na verdade vêem a si próprios, em nós. Uma preciosidade como eu,
porém, só se faz valer pra valer estando ausente. Mesmo assim, eu sou vista em toda parte. Com
a jaquetinha durante o dia. Dessas eu as compro às dúzias, mas nem por isso mais baratas. Eu
apareço, passo a existir ao ser salientada e cimentada. Minha cintura não. Ela não é salientada, e
nem meu cabelo é cimentado. Ele é laqueado. Tenho também uma peruca, embora sempre tenha
negado. A Joan, aquela pinguça, me entregou, e foi banida, o que também é uma certa forma de
se salientar. Pra valer! E mesmo assim, ela foi a única que produziu uma descendência
responsável. A Ethel: praticamente só descendentes irresponsáveis. Eu: meio a meio. Assim
mantém o equilíbrio. Também só me restou uma, mas ela pelo menos, como declamadora, está
em boa ordem. Ela vive para nos declamar, eu e o pai dela, nos salvar ela não precisa, nós já
estamos salvos, e não porque em vida tínhamos tanto o que fazer. E sim porque nós éramos. Ao
menos ela não declama histórias de outras pessoas. A Joan era a mais bonita de nós, mas ao
mesmo tempo, a mais ínfima. Já esse Teddy é realmente um verme. Quando nós ainda existíamos
como pessoas, nos chamavam de personalidades, mas o Teddy não era nem isso sequer. Em
compensação, ainda está vivo. Nada mal, também. Agora, se afogar trepando – francamente!
Bom, pelo menos foi só ela, a secretariazinha, não ele. Ele teve que sair à tona super rápido
enquanto o carro afundava, e parece que afundou num instante. Como se o carro fosse uma baleia,
que tivesse que passar correndo da terra para o mar, perseguida por pescadores com flashes à
prova d’água. O pobre peixinho loiro ficou pra trás, lá embaixo, Mary Jo. Sim sim. Teddy
infelizmente era nossa última chance, o único sobrevivente, mas ele não aproveitou, a chance que
ele agarrou foi outra. Aí foi o fim das carreiras na família. Me tornei, como me ordenaram, numa
estátua, com um homem sangrando caindo por cima, cujo rosto naqueles seus últimos minutos
ninguém jamais vai esquecer. As pessoas – pra usar de novo a palavra – também podem se
cimentar no concreto, mas na medida em que sejam banidas e desapareçam, vejam a Joan. Meu
marido desapareceu e permaneceu como cicatriz eterna de uma ferida, com uma luz eterna pra
que não nos esqueçam, eu também estou ali, com as crianças mortas. O Johnjohn eles
infelizmente não deixaram entrar mais tarde, porque ele não tinha servido. Cemitério militar:
apenas para os que servem! Agora ele é cinza no mar, e os barcos da America’s Cup passam
velejando através dele, é bonito também, não? A emergências dos pronto-socorros é que não é
exatamente um lugar agradável, para nós ali quase sempre foi péssimo. A opinião pública reage
absolutamente igual às duas coisas: desaparecer e vir à tona. Ela não é neutra, a opinião pública,
ela se expressa de maneira a se tornar o próprio fator decisivo, a régua pra nós, os regentes, os
quais se precipitam na própria visão de si mesmos e muitas vezes caem do lado, porque mediram
errado, e as pessoas então nunca mais se livram dessa visão. De alguma maneira, eu não consigo
me atrever a expor a visão da cabeça destroçada, com o cérebro escorrendo no meu colo, à opinião
pública, que tem o direito a cada detalhe. Os médicos compreendem isso, os homens do serviço
secreto também. Eles precisam compreender tudo o que nós fazemos, mesmo quando nós mesmos
não entendemos. Oh, Jack, oh Jack, eu te amo, digo soluçando. O que mais eu vou dizer, afinal?
Eu não posso, aqui no hospital, dar a desculpa que tenho um compromisso! Nos apoiamos nos
braços uns nos outros e acariciamos nossas costas enquanto choramos baixinho, porque tantos de
nós morreram e nós agora também, quer dizer, eu de qualquer forma estou morta. Está tudo bem,
nos dizemos, está tudo bem, vamos deixar sair, deixar sair tudo até o última gota. Eu acabei de
ter o meu acesso de choro, a Ethel começa agora o dela, a Joan parece não ter lágrimas, mas
começa então a chorar também, não, na verdade não, agora sim, de fato, com algum atraso chegam
finalmente suas lágrimas, embora ninguém esperasse por elas, não, eu estou vendo: elas são
esperadas, sim. Por todos nós. Num claro riachinho.* Já com as lágrimas pro mar de lágrimas! E
que lá, desapareçam. Com essa expressão facial os senhores não vão conseguir nada, peguem essa
aqui que é melhor! Essa cá eu já experimentei em outro lugar, mas não combinou por lá. Essa
outra é como um sapato, que a gente usa pra subir a escada sem fazer ruído, escorrega e desaba
aos berros lá de cima até embaixo. Ah, se ainda a tempo nós tivéssemos deslizado no salão, com
aqueles passos atrevidos, arrastando as solas antiderrapantes, como todo mundo. E então, tudo
que venha, filtrar através de um véu negro, os senhores vão ver, o sabor é incomparável. Eu me
aguentei bem, até que a Ethel chegou, então peguei meu autorretrato da minha galeria e fiquei ali
parada, a woman in black de cima a baixo, até as correias que me prendiam ao caixão. As duas
crianças pequenas colocadas na minha frente com suas caras de bem-comportados, os sapatinhos
vermelhos, os casaquinhos azul-claros, deixei bem arrumadinhos, não ficaram uma fofura? Isso
perdura na memória das pessoas por séculos, os senhores vão ver, não, infelizmente os senhores
não vão ver. Mas podem admirar no filme cinco mil vezes, e mesmo assim nunca ser o bastante
para os senhores e mesmo assim no fim não vêem nada. Eu dei muito bem conta do recado, não
dei? Tudo obra minha, convencer as pessoas dessa morte fascinante em vermelho e azul-claro, a
morte na forma de duas pequenas crianças, encantadora como quiçá um esbelto pedacinho de céu,
essa morte que também aguarda por eles, só que aí, eu temo, não há de ser tão bacana. Eles abrem
suas bocas para apreender tudo isso. O cavalo sem cavaleiro, a botas vazias viradas pra baixo, o
cano apontando o chão nos estribos. E isso que Jack detestava cavalos! Ele era alérgico às suas
belas crinas. Bem, eu não era. Cavalgar, tênis, esqui, esqui aquático, essa é a maneira com que eu
abraço a mim mesma. Logo o Jack começou a assediar essa ou aquela mulher, quando a gente lhe
dava as costas, mas isso era da cortisona. Dá tesão, e nem tem necessidade de soltar a mão da
mamãe. Diariamente o Don Juan fazia os seus progressos, sem precisar ter aulas, até porque é
aluno desatento. Ele não precisa se esforçar, afinal. Isso veio totalmente dado a ele. Nenhuma
pode resistir à sua personalidade. Ele pula pra dentro de toda mulher, mas não adentra em
nenhuma discussão comigo. Eu finalmente esclareci com o Jack a questão da Marylin, ele me
disse que já tinha terminado com ela antes que ela morresse, portanto ninguém podia dizer que
ele era responsável por essa morte. Ele disse que ela já tinha tido grandes problemas, muito antes
dele se encontrar com ela. Eu cheguei finalmente à convicção de que não se pode na verdade pôr
a culpa nele pelo que aconteceu. O pai dele sempre paga. Paga pra mim também, afinal. Se eu
tenho mesmo que me casar e permanecer casada, então o pai dele tem mais que pagar mesmo. O
meu não podia, pagar. Eu tinha que casar, de outro forma não haveria colocação para os meus
encantos, eles precisavam afinal de um endereço bem fixo. Não como essa Sylvia Plath, que pôde
aceitar a bolsa do estágio na revista feminina e em troca quase morreu envenenada com a
maionese de lagosta que ofereceram às meninas, bom, teria poupado a ela muita coisa. A mim
nunca serviriam uma coisa dessas. Ninguém ousaria. Vejam, eu não preciso de bolsa nenhuma de
estágio pra morrer, eu simplesmente sei como a coisa funciona. Eu já sei de antemão. Eu sei como
a coisa funciona. Qualquer coisa. E uma dessas como a Plath nunca vai se tornar um ícone, a não
ser pras mulheres imbecilizadas que pensam que lhes foi dada uma inteligência própria. Ridículo.
De onde é que ela viria então?! Pra utilizar onde afinal, a não ser em frivolidades no portão da
casa? Eu não pude nem sequer pensar em aceitar minha bolsa na Vogue. Mamãe era contra. Você
tem que ter uma casamento rico, ela dizia com toda razão. Não desperdice um ano inteiro. Esse
ano você pode aproveitar pra coisa melhor. E como é que a gente fica então nas horas de visita
durante o Juízo Final, quando não tem ninguém pra nos apoiar o braço, porque a gente tem que
esperar uma eternidade no corredor até que Deus finalmente apareça pra nos apertar a mão? Até
com o De Gaulle e o Khrushchev demorava menos! Invoque o fato de que mesmo vedada você
podia ter conhecido sei lá quantos homens! Tempo pra poesia, é claro, mas muito melhor que sua
roupa seja uma poesia! Muito bem, é isso aí. Você tem que se encaixar! Só quando você chama a
atenção em toda parte você chega realmente a cachorrinha obediente. Se aconchegue na carne,
mesmo que ela esteja estragada, o importante é que a guarnição seja tão rica que a carne
desapareça embaixo. No que respeita à educação e formação de uma senhora, ninguém faria
melhor trabalho do que a mamãe fez comigo. Ela não me compreende, mas ela tem razão. Ela
mesma também foi assim. Eu já me compreendo, mas é apenas ar com uma dor profunda, como
a água que vira um caminho, no esqui aquático, dura como uma estrada na sua frente, mas ainda
assim você pode se afogar nela. O que nenhuma torrente de chuva ou de lágrimas conseguiria.
Dessas você sempre dá um jeito de vir pra fora. Pra que o presidente precisaria aprender isso, as
mulheres se vem por elas mesmas. Homens. Aqueles homens. Os primeiros homens a se tornarem
sexy através do esporte. E as irmãs também. Não, isso não é verdade. Só é verdade hoje, porque
as atletas agora têm que tirar a roupa. Elas deram o pontapé inicial. Aquelas Rah-Rah Girls
[Garotas Hurra-Hurra; Garotas Blá-Blá-Blá; Quá-Quá Girls?]. Sempre berrando, brigando,
chutando, se esgoelando, sempre inflamando e o fogo dessa flâmula então, com ventinho, com ar,
atiçando, insuflando, futricando, caindo umas por cima das outras, jogadoras do time, futebolistas,
mordendo, pisando, arranhando. Isso elas podiam fazer sempre, aquelas mulheres pavorosas, com
seus tendões disparando feito flechas por toda parte, em todas as direções, mulheres se
empurrando umas às outras feito carros numa artéria principal que rebenta na hora do rush. Como
se pudessem ser arremessadas pro ar a qualquer momento, se não estivessem aferradas à boa e
velha Terra. Ou por acaso não é verdade que nós, figuras femininas, fibrosas como nós éramos,
sem qualquer carne sobre os ossos, nos tornamos as casas decoradas-modelo da nossa geração e
de todas que estão por vir? Muito especialmente, eu. Apreciem-nos bem e encomendem logo algo
parecido, pois igual não acharão nunca mais! Nós parecíamos que não podíamos jamais sucumbir
à efemeridade, parecia que não havia mesmo nunca nem uma grama de carne. Éramos como que
descarnadas, saudáveis, sim, e no entanto nossa carne era atingida pelos mais duros golpes. Se
tivesse sido carne. Assim o destino acertava sempre bem no meio de uma bem esticada rede de
bombeiros e nos arremessava de novo pro alto, não importava o que acontecesse. Sim, o destino
tomou nota de nós, e nos escreveu então por extenso, até o fim das nossas melhores páginas.
Desde então ele apenas nos transcreve, o destino, até terceira, quarta descendência. E ele não
consegue imaginar mais nada de novo, o destino. Um romance verborrágico, como que tirado da
vida real, não, não, nós é que éramos a própria vida! De nós é que tiraram! E não foi pouco!
Ninguém fez nenhuma cerimônia. Ninguém permanece com a sua forma, apenas a nossa forma
permanece pela eternidade. A gente faz valer a nossa quilometragem, embora não pese nem meio
quilo. Não temos absolutamente corpo nenhum! Mas por favor, senhor destino, sirva-se! Um
momento, primeiro eu preciso entrar na fôrma que me foi estabelecida através da roupa, e eu
instruí o Sr. Cassini a confeccionar a roupa segundo as minhas medidas, mas de modo que ela
nunca me tocasse. Nada nem ninguém pode me tocar, se eu não quiser. Apenas o destino não
acatou essa regra. Bem, agora eu cubro ainda minhas unhas roídas com as habituais luvas longas
– meio-longas ou de braço inteiro – e estamos conversados. Branco é minha cor favorita, eu a
compartilho com a morte, a grande branqueadora. A popular limpadora universal. Nada fica tão
limpo, a não ser que ela mesma ponha a mão. Ela sempre encolhe os ombros, mas isso não é
nenhum sinal de lamento. Com todas minhas preciosas roupas, esses montes e montanhas de
tecido, feitos de linhas de fundo limpas, daonde são lançados todos os passes, todas as bolinhas
de ginástica, com boa pontaria, mas acertando em gol só uma vez, não, duas vezes na verdade,
com todos esses farrapos, ora longamente lisos, ora volumosamente estufados, eu quero aparentar
não ter um corpo por debaixo. Embora eu apresentasse, claro, este corpo esportivo, firme,
musculoso, nesta nova variante disponível no mercado desde os anos sessenta, apesar de que só
poucos pudessem bancar, o apresentasse por assim dizer como um conteúdo inconsistente, em
incontáveis revistas. Na televisão. No cinema. E sei lá onde mais. Eu fui portanto salientada, ou
seja, passei a Salientação não significa elevação, como eu já disse, pode haver elevação também
no recolhimento. Sempre discreta, isso é importante, sempre espelhar os próprios encantos, deixá-
los surgir no espelho, só não ser você mesma, pessoalmente, encantadora, aí você seria uma
pessoa! A inventora do vestido de gala tomara que caia e da minissaia, no serviço público. Na
minha fase pré-verbal, que também poderíamos chamar de fase das roupas, ou seja nessa forma
em que ainda não se fala, mas em que já se está ali, presente, esperando pela vez de depor no
tribunal das multidões, eram os comentaristas que falavam sem parar. Muito se falou sobre a
minha roupa, quase mais do que de mim mesma, e isso não é pouca coisa! Ela era minha escrita,
a minha roupa. Meus vestidos eram mais singulares do que a minha linguagem, compreendem, e
no entanto não passavam apenas de linhas, que são a forma básica, toda a ornamentação apenas
posta em cima, simples, essencial. Círculo, quadrado, esfera, cubo. A forma ajustada recuava
diante de mim, justamente porque eu apenas deixava tudo fluir pela minha cintura como as ondas
da Vênus, nascida da espuma. Eu era porém, a espuma por cima dos sonhos de outros, estranhos.
Incontáveis estranhos. Que estranho. Como eu pude alcançar ainda mais? Ser os próprios sonhos?
Pelo amor de Deus. Estar dentro de cada um. Que horrível. Eis-me aqui sempre apenas eu, na
costa açoitada pelo vento. Os veranistas se foram, e eis-me aqui ainda apenas eu. I love the
autumn, and yet I cannot say all the thoughts and things that make one feel this way. I love walking
on the angry shore, to watch the angry sea; where summer people were before, but now there’s
only me. [Eu amo o outono, e no entanto não posso expressar todos os pensamentos e coisas que
fazem a gente sentir assim. Eu amo caminhar na costa brava, contemplar o mar bravio; onde antes
havia o povo do verão, mas agora, apenas eu.] Uma expressão passa veloz sobre meu rosto, ela
corre, se esforça, mas é instantaneamente apanhada e imobilizada por todas as câmeras. Aí não
sou nunca mais apenas eu. Nunca mais. Ela se escapa, minha querida expressão, antes que eu
possa me empenhar com detalhes, e agora ela está em toda parte, como uma imbecil. Não, imbecil
ela nunca foi, não é verdade. Eu não vou mais continuar indo embora tanto como até agora. Eu
vou pra outro lugar, pra Grécia. Tenho uma notícia para o senhor, disseram ao Bobby. Atiraram
no presidente. O quê? Disse Bobby. Oh. Eu... É grave? Pois é, ele falou assim, o Bobby, mas só
uma vez, uma coisa dessas não precisava dizer mais vezes. Na vez seguinte já foi a vez dele
mesmo. Creio que é grave, responderam pra ele. Nunca mais pude alcançar tanto como naquele
então! Quem poderia superar algo assim?! Dormir entre dois mares, quem é capaz disso. Eu não
pude alcançar nem ao menos o pedaço de crânio em cima da traseira do carro, aonde eu fui
engatinhando. No dia seguinte não conseguia me lembrar disso. Não foi fuga, de maneira
nenhuma. A única coisa que lembro é que podia ver uma parte do interior do seu crânio. Era assim
como cor de carne, na verdade tipo uma coisa macia, não é. Acontece parecido com a roupa, nas
fotos ela parece dura, imaterial, mas na verdade ela é toda macia, quando ela puder ser toda como
um envoltório. Quando a gente a deixa. Eu não a deixo, do contrário me tornaria humana como
uma noite já escorrida. Irrepetível. Nenhum segundo repetível. A morte então, absolutamente
irrepetível. Ainda lembro como pensei que o Jack parecia estar tendo uma leve dor de cabeça. Ele
tinha uma expressão tão desconcertada, e ergueu sua mão, deve ter sido a esquerda. Ainda lembro
que gritei, como só gritam minhas cunhadas quando estão na praia. Escorreguei do assento e tinha
a sua cabeça no meu colo, isso eu recordo muito bem. Sabem, depois havia essas fotos de mim
engatinhando pra fora do carro pela traseira. Mas disso eu não me recordo nada, nada. Com
cuidado, sopro um íntimo carinho dentro do crânio do Jack, mas ele está efetiva e clinicamente
morto. Mais do que é mostrado não se pode saber. Isso é também como as roupas: mais do que se
mostra não se pode saber. As roupas estão absolutamente mortas, embora pareçam estar vivas em
mim. Ou sou eu que vivo apenas através de minhas roupas? Tanto faz. Em todo caso, é uma
propriedade muito singular. Só não sei se é minha ou das minhas roupas. Nas fotos então,
novamente: mortas. Dá pra suspeitar o que as faz se moverem. Que é uma mulher quem as move.
Por isso me interessei tanto pela moda. Ela é o que ela é. E dentro dela desaparece a pessoa. No
meu casaco tem sangue e fiapos de cérebro, mas as pessoas vão se lembrar do casaco rosa, porque
é um casaco onde está meu espírito, este incessante aprendiz, aprendendo até que ele mesmo, um
dia, pode ser leitor. Numa editora de livros. Foi de um depósito de livros, afinal, que saíram
aqueles tiros. Os livros são estados de coisas, e as coisas está sempre emaranhada e se torna cada
vez mais emaranhada. Tudo o que se acredita, deve-se abandonar imediatamente. Do contrário os
outros acabam acreditando também. Mas um vestido, porém, precisa ser comentado, do contrário
não é um vestido. O vestido passa a existir no descrever, os realces vem de mim. Os senhores
devem ler também as notas de pé de página. Esta nota diz que as manchas no casado são sangue
e massa cerebral. Tudo ao redor é apenas acessório, mas é o casaco que conta. Sabemos do sangue
e do cérebro. Eu sou o vestido por cima, não, o vestido é mais que eu, é maior, nunca se funde à
minha figura, ele se afirma valente contra mim, e fica eternamente na lembrança das pessoas. De
mim fica o rosto branco, a massa negra do cabelo, como uma montanha jamais sacudida, e como
afinal se poderia sacudir uma montanha? Os olhos bem separados onde não combinam óculos de
sol nenhum, pois os olhos sempre tentam dilacerar os óculos ao meio, como uma pantera negra
com sua presa. A pessoa parece sempre calma demais em comparação com a sua roupa, por onde
corre o vento, uivando e chorando por si mesmo. Minhas roupas me rodeavam como um anel de
crianças chorosas e pasmadas, elas se distraíam de mim, mas sem mim elas não seriam nada. Não,
isso não é verdade. Elas não precisam de mim. Elas tem uma forte inclinação, mas isso qualquer
montanha tem. Todas aquelas amantes. Ela nunca me davam a informação que eu desejava, então
eu fiz disso o meu jogo: dar a mim mesma um valor e esse valor era o cimentar meu cabelo e o
desvalorizar minha cintura. Essa Marilyn me parodiou na Vogue com aquela peruca de gesso
negro com as pontas em curva pra fora. E todos aqueles colares de pérolas! Aquela louca errada.
Não entendeu nada. Eu sou escavada do espaço, da escuridão, criada com a luz. Ela era a luz. Isso
ela não entendeu. Nada é mais vulnerável que a luz. Um gesto com a mão e ela se vai. Já o escuro,
porém, permanece: todo dia a noite vem. Nada mal como a Marilyn fez, a peruca negra não fica
real nela, mas a gente percebe a intenção e nem se incomoda, porque tanto faz, aquilo não pertence
a ninguém, todo mundo contempla, mas não significa nada. Eu sou a significativa, não ela.
Nenhuma pessoa pode ser tão significativa quanto eu. E entrar atrás dela nessa casa onde sempre
brilha a luz eterna, isso é que o Jack não queria mesmo. Sairia muito caro pra ele. Eu, no entanto,
replico a essa pobre coisa desmaquilada, a esse rochedo de giz: ser magra dá poder! É verdade
que eu não sou magra, mas eu posso parecer, porque me visto com habilidade. Estou no meu
elemento quando me mostro, pois afinal não sou apenas: luz. Não sou tão fugidia. E se alguma
vez quero fugir, não me deixam. Eu sou minha roupa e minha roupa sou eu, portanto ela é: mais
do que luz. Ela é aquilo que mais não pode ser. Ela não é aquilo que não pode ser mais. Quer
dizer, como direi: não há carne nenhuma embaixo. O que há é isso aí, mas não é efêmero, pois
não é carne. Eu não apodreço. Eu me permito me sentir completamente em casa no meu corpo,
porque ele está envolto em roupa que me dá segurança. Errado outra vez. Bem, bem, os olhos
bem separados e a boca sensual, neles ainda vai se pensar por muito tempo, mas também enquanto
algo que é roupa. Meus olhos, minha boca, são acessórios. Meus contornos são muito
complicados, mas pra eles há toda uma série de abreviaturas e sinais que minhas roupas
expressam, e eu aproveito todos pra me inscrever com escrita dinâmica no livro das pessoas, tudo
bem assinalado nos seus livros de visitas, tem sempre alguma coisa pra cada um. Uma escrita
dinâmica que no fundo é variante, sem identidade ou forma. Tudo é inseguro, por isso eu pareço
tão segura. Uma mulher no fundo insegura como eu, que parece segura no sistema mundo. As
pessoas exigem endurecimento de nós, figuras públicas, e endurecimento é o que a gente recebe
às toneladas. Mostrar as pernas! Isso ainda nenhuma tinha se atrevido. Cintura, tchau. Em
compensação, pernas, até o osso! Até no dia da posse, quando eu quase congelei no meu
casaquinho de lã. Mas eu me ressaltei dos longos visons das matronas. Os senhores não entendem
que alguém possa aceitar um fardo desses? Então escutem: pode ser que seja impossível que
qualquer coisa falte, porque do contrário tudo faltaria. Quer dizer, algo pode faltar tão
decisivamente que sua própria existência não esteja mais dada, mesmo que ainda haja um resto
dela, não, está errado, não há margem de jogo para a existência, e portanto a própria existência se
torna margem de jogo. Porém só nós, os eleitos, podemos jogar nela. Os outros ficam da grade e
tentam se espremer pra dentro. Não conseguem. Nenhuma peça de roupa pode sobreviver sem
costuras. Olhem só. Quando as costuras faltam – não existe peça de roupa! O que teria nascido
pra ficar junto, não cresce junto e se funde. Quem poderia saber disso melhor que eu! E assim eu
procedo comigo mesma. Eu sou a costura, mas o tecido que vai no meio está faltando, ai, agora
eu virei isso tudo do avesso. Então: minha existência só se torna significativa na medida em que
eu vario onde salientar. Logo aí vão estar falando mais do meu vestido branco de cetim de seda à
saúde da eleição, minha camisa Vichy xadrez e shorts, na praia, à saúde das crianças, e do meu
casaco Chanel rosa, à acomodação e bem-estar da morte e do meu casaco vermelho de lã, que
após o anúncio do resultado das eleições, em que os votos alcançaram o apogeu absoluto, abrigou
docilmente minha cabeça junto ao ombro, ou foi o próprio ombro que abrigou? Tanto faz. De
repente estou ali parada, sozinha, e começo a chorar. Isso das costuras, que são o que sou, me
mantém ocupada: as pessoam pintam na imaginação o entremeio, que é o que não sou. Cada um
vê algo diferente. Costuras são ou não são, podem ser ornamentadas até a última gota, podem-se
salientar como uma cintura, não a minha, uma outra, a minha não é a melhor coisa em mim,
preciso me distrair dela. Partos demais, mais da metade em vão. Tudo besteira. Nascidos
prematuros ou mortos na infância. Da morte da pequena Arabella e da morte do pequeno Patrick
eu nunca vou me recuperar, nem na eternidade. Pelo menos ainda lhes dou o seu pai, uma criança
afinal precisa do pai, mais um pedaço de aborto, sem nome, que justamente agora é que eu não
teria precisado mesmo. Um era demais. O segundo e o terceiro, idem. Eu simplesmente fui
seguindo atrás deles. Nada de melhor podia mais vir pra mim. A morte por mim pode ficar com
todos, afinal ela agora também me tem, essa velha calcinha deslavada, de onde ela mesma sempre
sai vazada, a morte, essa velha sanguessuga, tudo bem. Também com um vestido assim, que
possui forte inclinação pra retórica, pode-se negociar e pode-se negar alguma coisa, como o Jack
fez. O Jack era atraente, tanto pra homens como mulheres. As drogas não prejudicaram muito
nisso. Eu também tomava. Por décadas. Um médico especialmente pra isso. Muito bom. As
drogas doces e fininhas, ainda são as que falam mais alto, mas a roupa tem a vantagem que a
gente a vê e deve vê-la. As drogas ficam paradas feito poste atrás da gente, é muito injusto que
não se possa vê-las, que elas sejam tão abominadas, as pobres, que concedem à nossa existência
algo tão miraculoso! Que maldade. A gente pode ficar o dia inteiro acordada e excitada e ninguém
perceber. Pode ficar dia e noite acordada e sendo injusta e ninguém perceber. Engraçado. As
drogas são o que a humanidade como um todo sonha, mas que só uns poucos podem realmente
experimentar. Está bem assim. Nosso médico era o melhor. Ele sempre calou a boca, esse homem
maravilhoso, que nós fizemos trabalhar tanto e ao máximo, de tanto daquelas coisas fininhas e
magníficas que enfiávamos na boca. Nos tornamos como elas, finos, esbeltos, magníficos e
rápidos. Elas nos deixaram resistentes, vertiginosos, tenazes. Muito obrigada, desse jeito e
atrasada, mas antes tarde do que nunca, senhor doutor no quarto ao lado. No quarto enevoado.
Obrigada também por sempre nos acompanhar fielmente. Os homens falam sempre eles mesmos,
não gostam de mandar que falem, a não ser que seja algo desagradável, pra isso pegam um porta-
voz ou deixam a droga que os comanda tão milagrosamente falar dentro e pra fora deles. As
lágrimas são só aparência, o riso só aparência, a energia é só aparentemente um drinque, na
verdade são as drogas, sobretudo esse estimulante, é fantástico como ele faz até o mais molóide
se mexer rapidinho! Faz você literalmente saltar fora de si mesmo! Experimentem e vão ver! Os
senhores vão rolar pra fora de si mesmos como uma única e maravilhosa lágrima, límpida e
cristalina, que abriu caminho pra fora dos senhores, mas sem qualquer esforço. De nós mulheres,
porém, não importa o que façamos, também vem uma outra coisa que fala, e infelizmente com
voz mais alta que tudo: a morte. Na medida em que erramos tanto o alvo da vida. Sim, a vida
também fala de dentro de nós. Mas a morte fala mais alto. Lá está você querendo pegar alguma
coisa boa pro almoço na prateleira do supermercado, e quem é que nos fala sem a menor
cerimônia? A morte. A morte nos legumes, amorte no peixe, a morte na fruta. E a culpa é nossa.
A culpa é nossa de que se tenha plantado, porque queríamos alimentar nossos filhos e maridos, e
agora é nossa culpa de que plantas se voltem contra nós. Um exemplo, se permitem: meu marido
sofria desde 1940 de uma uretrite crônica – inflamação da uretra, decorrente de sua gonorreia. O
mal de Addinson, de que ele também sofria, impediu a sua cura, seu sistema imunológico estava
enfraquecido. Na sua autópsia, atestaram além disso uma infecção por clamídia. Ela é transmitida
apenas por contato sexual, então por favor, de quem pra quem? Eu é que não comprei essa doença,
posso garantir, mas mesmo assim recebi. Minhas pérolas legítimas só fui ganhar mais tarde do
Telis, mas a doença eu ganhei num instante. Meus abortos e natimortos foram provavelmente
consequência dessa infecção. De fato a clamídia pode impedir a bolsa amniótica de amadurecer
antes que o embrião exista realmente ali e provocar abortos e prematuros. Ninguém permanece
com a sua forma, eu já disse isso antes, outros dizem também, e eu já disse também para a roupa,
e ela me escuta: entra de cabeça pra dentro dela, da forma. E então, sobra apenas forma, e ela
permanece, como que pregada ali. Pois: mais que isso não há. Com o sorriso forçado dos meus
olhos, sobressaio entre meus filhos mortos, como uma luz eterna, ardendo radiante pra dentro da
casa, pra fora porém, dolorosa. A imprensa está ali. Em meus braços a criança estava morta. A
primeira eles nem ao menos me mostraram, a outra não consegui nem sequer entrever. Sim, o
Jack me infectou e me negou a informação necessária pra saber por que e a quem se devia aquilo.
Pois afinal eu devia tudo a ele. Ele beija como uma espécie de Casanova, tanto faz a quem, da
mesma maneira que lida com sua clientela, a opinião pública. Bom, o Jack não precisava de
costuras, ele não era costura nenhuma, isso é bem certo. Ele era antes um pacote, vazio, muitas
vezes aberto, nada dentro, um pacote que só chega depois dele esvaziar seus caminhões de mobília
lotados de intimidades sobre e por cima de tantas mulheres. Nada ficou pra trás. Tudo ficou pra
trás, mas não pra mim. Nós não existimos nada. E apesar disso: nós somos os soberanos da opinião
pública, que nos presenteia nossas casas e além do mais, todo o universo que nos cerca, de onde
saímos estampados para a eternidade. Nós fomos feitos para a eternidade, mas não sabemos por
quê. E ainda que perambulássemos pelo vale das trevas, fomos feitos para a eternidade. E ainda
que perambulássemos fazendo a corte pra nos casar, fomos feitos para a eternidade. A luz é falsa.
Estão vendo esta luz que vem dessa mulher, Marilyn, esta luz é falsa, e por isso é que essa mulher,
pela qual temos o mais profundo desinteresse, precisamente por isso é que essa pobre mulher
morreu. Todos nós morremos, mas essa mulher com boas razões. Porque estávamos
desinteressados por ela, mais desinteresse impossível. Estamos até mais interessados nos nossos
filhos mortos, que nem pudemos conhecer, do que nessa mulher. E por quê? Também não sei.
Não me perguntem! Contemplo o retrato dela como se fosse um móvel no meu quarto. Proíbo ao
Jack ter qualquer trato com ela, por compaixão a ela, e que não haja aqui nenhum mal-entendido,
ela nunca foi uma rival, ela nem sequer rival foi, ela era nada e ninguém, embora todo mundo a
conhecesse, é claro. O Jack não vai cair bem pra ela, estou dizendo, e ela não vai cair de boca
nele, dá igual, ficamos poupados dela, e a razão é porque ela mesma nunca aprendeu a poupar.
Eu teria podido ensinar algumas coisas pra ela, mas ela não me perguntou. Avareza em
desperdiçar isso é que é. Poupar consigo mesma enquanto finge que se oferece generosamente,
bem, eu é que jamais fingi isso, esse desprendimento. Eu era mesmo como que costurada a mão,
ponto por ponto, eu não me descosturo tão rápido como outros, embora tivesse motivo bastante
pra isso. O lado direito dessa cabeça sumiu toda! Até embaixo do ouvido direito! O cerebelo
balançava do occipital por um único feixe de tecido, e assim, reparei agora, se poderia descrever
também o meu vestido novo, o qual eu vou usar uma única vez, como todos. Quem sabe um assim,
comum botão solto. Eu procurei manter o crânio unido, do mesmo modo que a família inteira.
Mais que isso não havia. Não havia mais nada. Todos mortos, todos mortos, esse é assim
simplesmente o meu mundo, é a morte. Outros têm cultura, que eu também tenho, mais que as
cunhadas burras em todo caso, aqueles pontos centrais dos seus círculos de conhecidos, cultura
qualquer um tem, mas sempre que notamos cultura dentro de nós, combatemos de imediato essa
cultura porque queremos permanecer sendo totalmente nós mesmos. Isso é o que mostramos
também à multidão boquiaberta. Que nós somos nós mesmos e não precisamos de nada e de mais
ninguém, nós, não, só eu, só eu com meu cabelo armado pro alto, o estojo de comprimidos
guardado no occipital da mente, tubinhos estreitos, jaquetas curtinhas, apertadas, com botões
grandes e sobretudos simples. Eu ainda digo a essa Marilyn que ela devia se poupar pra si mesma,
devia cuidar melhor de si mesma, como nós ricos desde sempre fizemos e continuamos fazendo,
e também aqueles que fazem que são ricos, eu por exemplo, nesse então ainda não era rica, era
até pobre, pobre de verdade, mas de família rica, não, mesmo assim nós não precisamos poupar,
nós ricos, mesmo sendo pobres, nós sempre vamos estar ali, porque poupamos com nós mesmos.
Por isso tem tão poucos de nós. Nos recolhemos depressa, até que reine um gigantesco vazio ao
nosso redor, o vazio da morte, desse nevoeiro à toa, dessa tarde dissipada na praia privada, dessa
noite bebida inteira com manto e coroa. Este é todo o segredo. Mais não há. Não se trata de
empilhar dólar sobre dólar, e sim conseguir poupar consigo mesmo. Você também, querida
Marilyn, mas infelizmente você só havia em duas versões, como luz e como sombra. De vazio é
que você teria precisado, não de luz e sombra, escuro e claridade. E agora que todos recuem diante
de você, em vez de irem todos até você no cinema. Ridículo. O que é que alguém vai poupar de
si, quando todo mundo quer tudo dele? De que ele seria poupado? É relativamente simples ser
sovina com a luz, mas quando a gente quer ver alguma coisa, aí precisa mesmo dela. Isso da luz
é o que faz toda a diferença. Você, Marilyn, não passa de luz, a grande indefinição, o nada único
e sem igual, pior que a mesa no meu quarto com flores frescas em cima. Pior que o chapéu
casquete que mal para em cima do meu cabelo capacete, sempre a ponto de despencar, enquanto
meu marido capota bem ao meu lado. Mas pelo menos você foi antes dele. Tudo isso é material.
Você, Marilyn – não! Estou dizendo: ela não é matéria, essa Marilyn. Ela é decomposição, pois é
carne. E mesmo que a carne esteja feita de luz – ela tem que se decompor! Já estava até
decomposta enquanto a sua juba loira ainda saía pra fora do caixão sibilando como a espuma de
um extintor de incêndio. Meu chapéu casquete estava bem preso, mas a Marilyn, é claro, sempre
se esquecia de se prender bem. O cabelo dela jorrava do caixão e não entrava, e não entrava de
jeito nenhum, a maior humilhação. Ela já não podia mais erguer nem um braço. Com o meu cabelo
isso nunca teria acontecido. Meu cabelo era uma pura fria negra superfície absolutamente sem
luz. Num jorro só. O negro, como se sabe, captura a luz e não a deixa sair mais da gaiola. Ela não
estava acostumada a isso, a coitada, e no entanto estava acostumada sim, tinha que lutar contra a
sua carne sempre tão disposta, pra ela poder se transformar inteiramente em luz. Isso foi errado.
É claro que alguma coisa sempre sobrava. Migalhas para a alcateia, a cachorrada que gania ao
lado dela. Esse tufão de cabelo. Não me sai da cabeça. Esticada pra fora do caixão feito o pompom
de uma cheerleader biscate agitado pro alto. Ela vem do nada, essa mulher loira, que nem loira é,
toda semana uma velha russa lhe esfrega a água oxigenada na raiz dos cabelos, não é de admirar
que os cabelos quisessem fugir quando pensaram que ainda podiam, fugir ao menos uma vez!,
não admira que ela no fundo seja feita do nada, Marilyn, ela é nada e não lhe resta nada, ainda
que ela mesma reste: esse corpo exuberante por demais, costurado dentro do vestido de glitter,
ele já só consegue sussurrar, o vestido, porque está totalmente sem ar. Happy Birthday, Mr.
President, me poupe! Ela sai voando, voa pra fora daquilo, definitiva, embora sinuosa e presa à
terra, carnudos os quadris, os seios, os ombros, já no limiar de perder a forma, ainda agora
costurada no vestido, mas no fundo: insustentável, embora na verdade sem poder sustentar a si
mesma, sem poder sustentar aquilo que lhe empresta a forma. Uma pessoa, em suma, que precisa
desesperadamente da roupa, mais ainda do que eu – que no fim das contas SOU roupa! – ela sai
inevitavelmente voando dali em urgência total. Marilyn. O cabelo já não vai sair com vida dali,
estou vendo. Na violenta corrente de ar que se levanta sempre que se ambiciona um nova posição
social, ela foi arrancada, saiu voando e se foi, para sempre. Marilyn. Eis-nos ali presentes no
primeiro parto natural, quer dizer, no nascimento do que é natural, da própria natureza, e então,
rápido como veio, já se foi. A gente pode ficar contemplando a natureza por horas, mas quando
ela estraga – fora com ela! Não há o que fazer. Em mim os senhores podem, mais bem, observar
o nascimento do artificial, que esconde a natureza com tanta habilidade, que a natureza logo
desaparece também e com ela a vida, como se ambas alguma vez tivessem sido algo natural. Os
senhores veem, o efeito é o mesmo, tanto faz se é a arte ou a natureza que nasce. Ambas se
deterioram quando a gente toca nelas, quando a gente limpa os dedos nelas. Mantenha sempre
bonitinho a distância! Tanto natureza como arte se erguem muitas vezes com desconcertante
rapidez do seus lugares, e como fomos nós que as tiramos do equilíbrio, aqui na sua gangorra
VIP, ora uma em cima, ora a outra em baixo, e vice-versa, é sempre a gente que nessa gangorra
se estatela com violência no chão. Os senhores não pertencem ao grupo das celebridades, sejam
sinceros. Poderia até ser enriquecedor para as suas vidas se pertencessem, mas é melhor que
permaneçam aí com seus pensamentos. Pelo menos ninguém os vê, mas eles precisam dos
senhores, afinal sem os senhores eles não podem sequer existir! Nós, os VIPs, podemos. Se a
natureza funciona, a vida também funciona, já falei isso, pois ambas são uma coisa só, embora
nem sempre tenham uma mesma opinião, por exemplo esses seios agora tinham que se decidir
pra valer se querem estar de acordo com esses quadris que vem junto com eles, ou não. E então o
rosto também deveria se ajustar e as pernas também, isso é exigir um pouco demais, mas nós os
ricos podemos nos exigir algo assim. Podemos exigir tudo de nós mesmos, porque já temos tudo.
Sim, o artificial não precisa esconder sua artificialidade, ele pode ser como ele é. Mas quando a
natureza entra em jogo, embora na verdade ela jogue o tempo todo, mesmo que sem lá muito
apuro artístico, pobre Marilyn, aí a coisa fica séria! Quando o jogo começa, a coisa fica
mortalmente séria, podem acreditar. Na universidade da vida pode-se alcançar esse ou aquele grau
de independência, mas o material, a carne que está por debaixo, se tranca pra fora da casa e fica
procurando a chave desesperada, sim, era isso que acontecia com a Marilyn. Eu nunca me tranquei
em lugar nenhum, muito menos me travei pra vitória da artificialidade. Como se não bastasse
perder a chave, a pobre ainda a jogou pela janela, pra nunca mais poder voltar a si. Ela nunca
esteve lá muito dentro de si. Já eu decidi pessoalmente o que e quem e onde eu queria ser. Isso aí.
A carne sucumbe, e sucumbe especialmente rápido quando vem dos subúrbios. A carne
literalmente irrompe dos subúrbios, vem ao nosso encontro até quando fazemos uma excursão ao
litoral, mas sempre passa correndo pela gente, essa corrente, corre até a banca pra comprar fotos
da gente, embora a gente esteja bem ali na frente deles, em carne e osso, mas não, nós nunca
estamos onde a multidão está. Bom, nem sempre ela passa ilesa, a carne, mas em geral sim. Quem
se interessa por isso, a não ser outra carne? Geralmente ela não encontra a gente e precisa
reconhecer rapidinho seus limites quando não entra mais nas calças do ano passado. Meu limite
é de seda e algodão e ali ele permanece. O limite da Marilyn era sua carne. Coitada. A luz foge
de nós, voa pra longe de nós. Ela era a luz. A coisa fugidia que já se foi, mesmo quando ainda
está ali. Sensações ainda lhe são incutidas, mas é só por diversão. Isso é o que elas não entendem,
essas mulheres. O proprietário do mundo livre lhes diz rapidamente, se despedindo: se você não
parar, tenho a intenção de machucar você verdade. O seu irmão também diz isso a elas, só que
um pouco depois é claro, afinal ele vem apenas em segundo. Só deixam ele ser o segundo. Mas
ela nem escuta mais, a Marilyn, de tanta precipitação na vertigem de se machucar a si mesma
ainda mais e mais rapidamente. Ela nos serve com a sua falsidade, a luz malvada, salpicada sobre
tela, para a eternidade, que afinal é a coisa mais fugidia de todas, pois não tem começo, nem fim,
é ainda mais fugidia que a luz, que atira as pessoas sobre a tela e as deixa ali pra morrer de fome,
não admira que algo assim seja contagioso e meu marido quisesse imitar: deixar o outro morrer
de fome com as mãos estendidas, e quando a gente quer pegar alguma coisa dessa bandeja, não
era coisa nenhuma. Tinha sumido. Tudo o que a gente coloca em cima dela cai imediatamente no
nada. Vejam só. A Marilyn era uma dessas. A gente tenta pegá-la com a mão, e não há nada.
Apenas esse cabelo quis resistir, não me sai da cabeça, não me sai da cabeça. Sim, o efeito é
exatamente o mesmo comigo. Também sou assim, dá pra pegar, eu não sou carne, sou o seu
invólucro, sou o vestido! Minha silhueta não muda nunca. Eu sou imodificável. E o quanto menos
se consegue me pegar, mais nítida eu sou, mas não há luz em mim. Eu a mandei embora. Nessa
grande tempestade de flashes, sem qualquer tipo de privacidade, eu sou completamente privada,
na medida em que sou completamente pública, e uma coisa não diminui a outra em nada. Eu posso
estar munida de uma orla negra de viúva, posso estar toda de negro e deixar cair um véu sobre
meu rosto, posso ser neve fresca recém-caída ao lado de Pablo Casals ou Isaac Stern, posso abanar
a cabeça e arregalar os olhos admirada, minha pose favorita, posso sussurrar baixinho e cricrilar
como uma menina do primeiro ano na primeira pergunta da sua vida, onde foi parar a cama de
Abraham Lincoln, pois eu quero colocá-la bem aqui, já tinha planejado faz tempo, mas apesar de
tudo isso: ninguém tira nada de mim. Meu marido pode morrer, meu cunhado pode morrer, vinte
mil, cem mil outras pessoas podem morrer, na selva? Sim, por mim até na selva, tanto faz pra
mim onde, quem se importa, de qualquer maneira ninguém me tira nada, porque eu enclausurei
tudo na minha roupa, inclusive eu mesma. Eu sou e não sou. Sou também tipo um vampiro. Estou
morta, mas nunca vou morrer. Os desejos das pessoas, sim, inclusive em relação a mim, vagam
ao meu redor, eu sou o navios sobre essas vagas, mas tudo está trancafiado e bem costurado. Puro
algodão. Algo tão puro: querer! Alto grau de independência material, não, isso ainda não, só bem
depois. Querer simplesmente ser, sim, querer apenas ser, e ao mesmo tempo querer ser sustentada,
isso é que não dá. Preciso dizer à Marilyn. Ela afinal só quer ser sustentada, só espera por isso.
Ela espera por um senhorzinho legal. Isso é que não dá. Não dá pra querer se perder, só pra um
outro vir te levantar e te sustentar. O resultado disso é ficar só falando no telefone, o medo que
geme, falar no telefone, agitar os membros, falar no telefone, supositório pra dormir, falar no
telefone e ingerir diferentes substâncias proibidas. Bom, isso o Jack e eu fizemos por décadas,
mas pra nós não fez mal nenhum. Tomar muito e devolver pouquíssimo. Assim é que se faz. Por
sorte nesse processo o Dr. Jacobson fez um silêncio de ferro. Eu supliquei ao nosso sossegado
provedor que ele calasse sobre o seu cardápio pra todo mundo, menos pra nós, seus habitués.
Obrigada, Doutor Jacobson, por ter mantido a promessa. Não como esse Dr. Death, que só dá o
que falar o tempo todo. Se bem que a morte também precisa bater o seu tambor, do contrário
quem é que vai recebê-la de livre e espontânea vontade? A pobre Marilyn, é só o que posso dizer,
queria se levantar pra vida ainda uma vez mais, e justo com o meu Jack! E pra isso ela ainda
simplesmente abandonou sem permissão o seu local de trabalho, a locação da filmagem, onde já
não se ia pra frente, e sim sempre só em círculos! Ela devia estar louca. Foi despedida, ali não
estão pra brincadeira. Disciplina é tudo, bom, isso eu tenho, todos nós temos nessa família. Eu
sou, como posso dizer: sólida. Sou minha própria peça de mobília. Eu sobrevivo de outra forma,
porque sou de carne e osso e, ao mesmo tempo, não sou. Sou feita deste e deste vestido, deste
sobretudo, deste look casual, geralmente calças. Eu sou roupa. Sou diversas variantes da forma
da roupa. Sim. A luz também é necessária, é necessária para que eu seja vista na minha roupa e
se reconheçam os detalhes. Diferente com a Marilyn. A luz não precisa de nenhum detalhe em
sua guirlanda radiante, estrela do mar, eu te saúdo. Nenhuma virgem Maria abençoada ali pra
ajudar. Ela não ajuda as mulheres. Ela é parada em homens. Como todo mundo. Eu também. Eu
no entanto estou parada em mim mesma, em cima de mim, pra parecer mais alta, embora eu não
seja exatamente baixinha, estou parada em mim como um abutre faminto e arranco pedaços de
carne de mim mesma pra que a multidão veja que eu também sou carne. E eles acreditam de
verdade! Não, não acreditam. Apesar disso: foi um bom número o que eu ofereci, não foi? Tem
algo aí que permanece, e eu não sei dizer o que é. De algum modo isso me irrita como uma farpa
debaixo da pele, debaixo do meu suéter de praia leve listrado. Mas também desta vez não serve
pra nada. É uma dor terrível expressar uma emoção pra que todo mundo também possa ver, podem
acreditar. Olá? Tem alguém em casa? Eu estou lhe dizendo, diz a Ethel concluindo sobre mim e
meu comportamento, o qual não inclui nenhum convite a ela, o que a irrita profundamente,
portanto a Ethel diz, falando pro meu bem, sim, por mim tudo bem, e então para a Joan: será que
você faz alguma ideia do tamanho da pressão sobre essa menina, agora que ela acaba de perder
outra criança? Estou lhe dizendo, essa menina está sob remédios ou alguma outra coisa. Isso é o
que ela dizia, me paparicando, me consolando, mas eu nem vejo nada, ela dizia sobre mim algo
assim e alguma outra coisa. Mas é isso o que os outros sempre são: não o inferno. Eles são alguma
outra coisa. E mais nada. Claro que estou terminada, sem dúvida. Nada mais pra melhorar, nada
mais pra piorar. Estamos todos sob pressão, sem dúvida, mas eu não posso ser comprimida. Os
senhores podem apertar e pressionar e não sai nada, nem sequer água. Eu fico sozinha, e vou lhes
contar o segredo: nunca se espremer com ninguém! O que eu mais gostaria seria ir até mim mesma
pra me consolar, mas não tem ninguém ali. Não tem nem sequer o cabelo, como com a Marilyn.
Ele já caiu sozinho faz tempo por causa do maldito câncer. Não é engraçado? Não tem mais nem
sequer cabelo que pudesse cair. Se eu fosse um corpo, ficaria admirada. Aceno com a mão diante
do meu rosto: olá, tem alguém em casa? Mas eu só olho pra mim mesma. Por que eu não deveria
olhar pra mim mesma? É o que todos outros também fazem. Não. Ninguém em casa. Nem sequer
meu cabelo. Santo Deus, olhem só pra isso! Nem sequer meu cabelo está em casa. Completamente
inabitável! Mais uma vez me acho em plena renovação. Já escolhi os drapeados. São tão incríveis
que ninguém vai perguntar mais pelo meu cabelo. Sim. É assim que nós vamos fazer. Sem dúvida.
A MORTE E A DONZELA V

(A PAREDE)

1º ATO

Sylvia e Inge abatem juntas um animal macho (um carneiro selvagem). Arrancam seus testículos
e se lambuzam com o sangue. Isso deve parecer bastante arcaico e cruel – totalmente ao contrário
do texto falado! No correr da cena, suas roupas então vão ficando imprestáveis, e as mulheres
precisam se trocar. Ingeborg então veste um vestido folclórico alpino e botas de montanha,
enquanto Sylvia põe um maiô dos anos 50 peça única, mas também botas de montanha.

Os textos tem a sua divisão estabelecida aqui, as personagens porém podem se duplicar ou
triplicar, os parágrafos indicam apenas partições na fala, não servem para diferenciar as duas
personagens Sylvia e Ingeborg, as duas representam muitas outras. Desta vez, porém, senhor
chefe, senhora chefa, os senhores precisam executar as instruções que estabeleci para as ações
de cena, pelo menos em suas linhas gerais, pois desta vez elas são parte do texto. Lamento
sinceramente.

Acalma-te. Esse não é Urano, a quem estás arrancando o sêmen junto com seus ductos, os degraus
onde ele se planta para enfim nos fazer férteis. E tu também não és Cronos, que simplesmente
lança o troço no mar ou na boceta da mãe ou sei lá onde, e tampouco és a espuma onde a carne
imortal tem permissão pra nadar à vontade, agora o que não és mesmo é essa Afrodite que dali
desce neste preciso momento com seu biquíni novo, entra direto na tempestade de flashes, algo
assim nunca poderias bancar. Nunca com a tua figura. Oxalá a natureza em breve volte a se
acalmar. Não faço ideia de por que novamente se irritou tanto. Afinal qualquer um podia vir
atravessando o oceano até aqui e espalhar o sêmen o quanto quisesse, assim, simplesmente, sem
a nossa ajuda. Nós é que não fomos. Nunca dá em nada quando nós colocamos as mãos em algo.
Nem quando usamos uma foice, dá em alguma coisa. Ração para os coelhos, talvez, mas mais
nada. E além do mais também não há crianças pra devorar, nem umazinha. Se nós ao menos
fôssemos amantes do sexo, mas por que haveríamos ser? Só porque saímos de dentro de um sexo?
Onde quer que pisemos, há apenas pedras. E esse aqui que estás trabalhando e amolecendo é só o
nosso menininho. Suas cabrinhas estão esperando por ele. Ainda não sabem o que aconteceu. E
na morada de Deméter também aguardam por ele. Na verdade deveríamos fazer a entrega hoje.
Desta vez eles vão esperar em vão. As prateleiras do Barateiro estão e permanecerão agora vazias.
Para sempre.

Sim, é claro. É claro. Do jeito que ele parece agora não vão mais querer recebê-lo.

Do jeito que nós o ajeitamos.

Do jeito que nós demos um jeito nele. É o que sempre diz a Rita, quer dizer, a Reia. Mas a questão
fundamental na verdade permanece sempre e sempre apenas a questão da coisa. Nós a temos
agora afinal ou não temos?
Agora nós a temos, mas é a errada. Seja qual for: nunca é o mundo que rebenta e esguicha suas
entranhas diante de nosso olhar embasbacado como uma melancia estourada.

Ora da semente de uma melancia até hoje nunca surgiu nada. No entanto olha só tudo o que o
sêmen de Urano por sua vez produziu! Importantes personalidades. Coisa igual tu nunca tinhas
visto! Uma centena de braços descomunais pendurados nas axilas e cinquenta cabeças, por pessoa,
em cima dos ombros! Todos se tornaram dublês. Não ganham nada mal. Tudo que precisaram foi
simplesmente disseminar isso, o sêmen, e fim. Os repórteres só tiveram que esperar ainda até que
os resplandecentes, os deuses, de dois em dois, adentrassem solenes o salão do festival da
consagração wagneriana com seus trajes flamantes repugnantes. Flexíveis suas bochechas,
pungentes suas bocas, quero dizer, injetados seus lábios.

Personalidades heroicas? Nós não. Uma guerra vantajosa? Não temos como. Apesar disso,
estamos em todos os sentidos em plena ascensão, mas ainda não compreendemos plenamente essa
nossa ascensão. Nós queremos a coisa essa só para saltar por cima dela, é o que sempre
acreditamos. Mas na verdade nós a queremos porque somos belas demais pra morrer. Então
vamos lá. Despedida da fase da coisa prioriotária. Indicador da coisa avisando a coisa da coisa
essa. Um flic-flac por sobre a cerca, parede acima, caindo então, como de costume, e o caso é que
tudo o que a queda é, não é pra mais ninguém uma recaída, a não ser para a psiquiatria, um caso,
simples assim. A coisa que buscamos por tanto tempo, faz séculos se tornou supérflua, assim
como o conhecimento em si faz séculos se tornou supérfluo, antes mesmo de acontecer. Na nossa
escrita proferimos sentenças, uma loucura, um julgamento, um firmamento de nós mesmas, mas
eis que buuum, lá estamos nós de novo caídas da nossa parede. Antes de chegar lá em cima. Antes
de poder contrair um matrimônio ou recolher a porta. E no mais também não pudemos concluir
nada. Porque não começamos nada. Da porta da casa nos esquecemos completamente. Alguém
acabou de nos pendurar ali e já estamos de novo aqui embaixo. A parede já está toda estilhaçada
das nossas tentativas de pendurar nossos retratos nela.

Essa parede é minha! Vai te fazer de importante em outra freguesia! Agora falo eu, e eu falo em
farrapos e fiapos de papel sangrentos: tanto faz como eu tento construir minha escrita em cima
dos meus conhecimentos e a quais objetos, vede: parede, eu me refiro, tudo a que eu posso
me referir é somente aquilo que eu vejo. Infelizmente ainda não consegui ver muita coisa. Eu
gostaria de seguir adiante e finalmente ver alguma coisa diferente. Gostaria de viajar, conhecer
países e pessoas estrangeiros.

Escuta aqui, houve uma outra mulher, que não nós, que simplesmente tirou da veneta uma parede,
uma que seria completamente invisível! Aí você teria afinal o seu bom motivo pra não precisar
viajar. Poderia ficar por aqui, porque não poderia de jeito nenhum ir embora. Você não teria que
sair para a vida!

Balela. A contemplação, o ponto de vista, só pode acontecer quando nos é dado um objeto para
isso. E não pode ser sempre o mesmo! Ou seja, só quando eu puder descrever o objeto, a parede,
como se ela de fato existisse e estivesse à disposição como um instrumento para se arrancar uma
farpa de pensamento pra outro propósito, como uma meta, não, como lasca, não, pra meter numa
lata. Daí podemos nós mesmas todas nos meter numa lata pra nos conservar.
Você quer dizer, provavelmente, acordar? Não, Acordar é sem propósito. Pra quê, afinal. Com
que meta.

Acordar a lata com uma lasca, é o que daria agora na veneta de algum jovem poeta sobre isso,
mas pra nós mais velhos ele não teria nada a dizer. Sim, daí portanto a gente se confia a uma
parede, e então ela é a própria fenda em si e se engole a si mesma, e quando a gente se galga nela
não tem ninguém que te engaje, quero dizer que te engate ou te deixe enganchada ou pendure pela
garganta ou sei lá o quê. Provavelmente apenas uma desatenção da parede. Nada mais. Nós
também não avançamos mais nada.

Uma parede com uma fenda eu até consigo imaginar melhor, por mim inclusive, uma parede em
que você desapareça, mas uma parede invisível, em que a vida não avança nada, a não ser que a
gente se afaste da vida, isso eu não consigo imaginar muito bem. Não foi você quem disse que
uma vez desapareceu dentro de uma dessas fendas? Você mentiu. A parede ainda está ali e tu
você também ainda está aqui. Tome cuidado, pois agora você está tentando correr de cabeça
contra a parede até revelar todo seu crânio. Vai morrer no deserto, bater as botas na areia que ao
longo dos milênios se esfarelou da parede invisível até se desfazer numa farinha grossa. Tem
cuca, mestre cuca. Mas a parede ainda não é nenhuma coisa clara e dada, ela é e continua sendo
invisível. Você capitula e some por você mesma. Com seu desaparecimento conseguiu ainda até
ocupar uma nova posição básica, aliás uma posição básica pra tudo que existe, menos que isso
você nem aceitava. Menos que isso não lhe basta, mesmo que menos fosse mais, não lhe bastaria.
A posição básica é a única posição que você pode adotar. Consiste de uma interioridade deslocada
para dentro. Se você me pergunta, ela é tão visível quanto a parede. Importante seria mencionar
ainda que se trata de um conhecimento humano. Mas isso não daria certo se o objeto do
conhecimento fosse um outro ser humano. Porém, se trata de uma parede. Ao lado dela a sua
cabeça rachada, quem foi que a colocou aí, você ainda não é nenhuma heroína caída! Há tanta
coisa para conhecer, e você só quer sempre conhecer essa parede, e só quer conhecê-la pra se
colocar ali a si mesma. A gente escala penosamente a parede num ponto qualquer, só pra ver
que no fim o que nos espera é a sua cabeça degolada sorrindo irônica, quem sabe ainda
com uma cabeça de alho dentro da boca. Ou uma lista de compras. Com todos seus itens, que se
mantém firmes como sentinelas até que o papel se envergue sob o peso de merda de cachorro,
ossos de galinha e corações de maçã. Depois disso você mesma tem que ficar de vigia. Seja
invisível ou não, a parede, de qualquer modo você está sempre colada demais na frente dela e não
consegue ver nada. E acredita, só porque não a vê, que ela seria invisível. E você cai fora de
mansinho. Ofuscada pela sua dor. Mas quando a gente desaparece, aí, claro, é que a gente fica
especialmente visível, você sabe. E já só por isso, pelo simples fato de que algo assim nunca
aconteceu antes e agora, é claro, está em todos os jornais. Eu acho que é simplesmente a ausência
de contrariedades dessa parede que atraiu você e fez você se enfiar justo aqui, onde não há nada.
E então de repente fica apertado. Até essa parede tem que amar você! Para que você possa SER!
Você é insaciável. É bem feito que você foi devorada por ela. Como é que se pode conhecer
alguma coisa, se só existe parede ali? Já estou vendo como. Se você se meter à força dentro da
parede e logo então se tornar parede você mesma. Você precisa a todo custo entrar onde você não
pertence, só porque ali ainda não tinha ninguém. O que é que você gosta tanto nisso? Eu ouço
como ela custa a engolir você. Isso não pode ser nada agradável. Eu ouço como ela arranca
pedaços de você, rói você com seus dentes, a parede do conhecimento. É uma tremenda maldade
dessa parede. Me deixe experimentar também! Eu não posso ficar aqui esperando até que me
ditem uma sentença! Você não suportaria isso.
Espere aí! Um momento! Uma vez, num daqueles dias em que eu tornava a fugir de mim mesma,
o bosque, que até então sempre estava ali, justo dessa vez não estava. Por isso o exemplo com a
parede. Eu não via o bosque, de tanta árvore que tinha. Eu acreditava ver, como sempre, apenas
árvores, mas de repente ali estava essa parede, transparente. Só mulheres podem descrever algo
assim. São elas também que morrem de medo do átomo. Homens não perderiam seu tempo com
algo assim que não se vê. A questão é sempre sobre nós, mas na verdade não somos nós! Eles
calculariam de antemão o alcance de qualquer coisa, e a sua conclusão: isso não tem grande
alcance! O raio de ação é bastante limitado, apesar do nosso conhecimento se referir
expressamente ao objeto em questão. Porém, como conhecer alguma coisa quando esse objeto é
translúcido, mas supostamente está ali? ficar claramente boiando clara como

Mas por favor, você acha que eu estou boiando, janelas assim bem limpinhas são, é claro, sempre
tão claras quanto invisíveis. Isso é muito melhor do que a sopa clara de macarrão onde a gente
fica boiando todo dia, fazendo mais gostoso na ressaca fervilhante da espuma de Maggi! Não dá
pra se afogar nela. Nosso destino está numa colher, se o gosto não estiver bom o bastante pro
homem. Desse riscado a gente entende bem, lembre bem disso! Lembre que pelo menos pra nós,
seres humanos, a magia é estar bem claro que as coisas podem sim ser invisíveis.

Pensar significa reconhecer um objeto. Não, não significa. O objeto, sua contemplação, vem antes
da gente poder propagar nossos pontos de vista diante dos outros. Mas se alguém cria um muro
transparente, é por motivos muito transparentes: pra não precisar ficar esperando e poder propagar
logo seu modo de ver, pois de qualquer maneira não está vendo nada. Não dá pra dar a volta por
cima disso, seja lá o que for isso, e seja lá bode que houver no caminho. É o que eles imaginam.
A gente não consegue ver, mas também não consegue dar a volta por cima, o que provoca
tormentos pavorosos, isso é muito importante. Haver um tormento é a coisa mais importante.
Muitos heróis são pessoas simpaticíssimas na vida privada. Por que eles se atormentam – não faço
a menor ideia. O amor canta, colore e consola, se for correspondido, do contrário: é motivo de
novos desassossegos e dificuldades para escrever, e daí o amor é verborragicamente questionado,
afinal a questão é inventar por onde ganhar a vida, ainda mais quando ela não é divertida.
Questionado, inclusive, até por uma parede se for preciso, uma parede que não dá nada em troca.
Sobretudo quando ela é transparente. Como se pode usar a medida do nossos conhecimentos
humanos, que definem a essência das coisas, pra medir se o homem é humano, quer dizer, se a
mulher é humana, não, o homem mesmo. Não. O homem não. O homem é simplesmente
desumano. A mulher, ao contrário, é humana. Ela é a única coisa humana. A parede é um modo
de visão possível, quer dizer, ela seria se pudéssemos vê-la. Só que ela é transparente. Nenhum
eco, nenhum nada. A mulher está dentro, todo o resto está fora. Assim é que imaginam os que
escrevem, que buscam conhecimento, examinam sua capacidade de pensamento com tomografia
computadorizada pra se permitir acreditar que de fato ela existe. O que é que eu vejo aqui no
monitor de imagens de procedimento? Uma parede. A imagem acaba de bater e voltar nela, sem
efeito nenhum. Que pena. Uma parede sem conhecimento de si própria, sem aparência, sem
forma, mas mesmo assim a gente tem que ter os conhecimentos dela! E a idiotice do negócio é
que você nem sequer reconheceu a parede.

E como eu poderia! Se eu nem posso vê-la! Você esquece que não foi essa parede que eu tinha
pensado, e sim aquela outra parede ali, com a racha na cuca, não, na cumbuca, a única que eu me
atrevo a meter a mão, não, aquela da macaca velha com o pulo do gato, tendo o escrúpulo de
colocar a cumbuca ali com parafuso a menos pra atrapalhar meu pulo, pra ninguém ver como eu
salto alto, não, pra ninguém ver o próprio miolo mole do pulo. Pra ninguém saber mais de onde a
gente pula fora. Eu quero ser honesta. Mais que isso: ser alguém que presta, relevante! Importante!
E eis aí a parede, transparente. Ela nem sequer é um fragmento, isso ainda serviria, ela é o sujeito
malvado da nossa contemplação, o sujeito costumado da nossa contemplação. Mas como é
possível diferenciar o Contemplar e o Pensar? Impossível, quando não se vê nada, não dá. Isso
quer dizer que a mulher, particularmente, não vê nada? Provavelmente. Afinal ela lustrou e limpou
essa parede por tanto tempo, até ela não se ver mais. Limpbem sem olhar a quem. E também
Sapólio Radium com razão, Omo fatal radiante, é Cândida e Veja: adeus à candidíase, mantenha
o Pinho Bril, auto brilho abrasivo na brasileira, falei Poliflor, não poliamor!

Mas nós sempre podemos escrever sobre ela. Não precisamos saber nada. Não precisamos
experimentar nada. Mas escrever nós podemos. Nós iluminamos o novo conhecimento com a
novo lustre que nós compramos, parece mais caro do que saiu, esse conhecimento. O lustre
também. Como nossos vereditos podem ser livres de contradição e nossos conhecimentos não,
não, ao contrário, não, não, isso mesmo, ou seja, como podemos chegar a um veredito sem
contradições para alcançar um conhecimento de verdade, quando na verdade não podemos
reconhecer absolutamente nada além dessa parede?

Ora por favor, não venha me roubar minha parede, eu peguei primeiro! Eu não a vi primeiro! E
agora já estou há uma hora limpando ao redor dela, e só percebo agora que ela é um espelho. Se
eu tivesse lido antes as instruções de uso no frasco do spray teria percebido que esse spray é só
pra vidro e espelho. Pra uma parede tem que usar outra coisa completamente diferente. Mas afinal
se fosse um espelho, eu poderia me ver. No vidro só se eu fosse a coisa escura atrás dele, ou se
houvesse algo escuro por trás. Mas não tem nada atrás. Não tem problema. O vampiro agora
acreditou por tanto tempo que não tinha reflexo, e na verdade não havia era espelho nenhum!
Talvez fosse só a parede azulejada da cozinha. A gente não conseguir se contemplar em alguma
coisa que nem é espelho, não quer, nem de longe, dizer que a gente pensa. Infelizmente. A gente
pode contemplar alguma coisa, e a gente pode também pensar, do meu ponto de vista, à esquerda,
só que no espelho está ao contrário, portanto na verdade, é à direita, bom, não será afinal um
quadro, desses pra escrever e tal, isso aí que você achou que era uma parede? A iluminação recai
sobre ela tingindo e maculando, ah não, era eu, e olha que nenhuma luz acendeu ainda na minha
cabeça. Ou seja que isso que eu estou limpando continua transparente como antes, ou então
simplesmente nem está ali.

Alguém mais inteligente que alguém que fosse uma mulher já teria percebido isso.

Não, ela é minha, essa parede. Eu já desapareci dentro dela. Eu a vejo por assim dizer – não, sem
dizer – de dentro. Ali se vê tudo mais claro. A mulher limpou por tanto tempo, até seu objeto
desaparecer. Pode-se dizer isso de nós? A mulher limpou a coisa que estava dada, e então ela lhe
foi tirada. Não lhe havia sido dada, infelizmente. Foi uma experiência e tanto, posso lhe dizer,
quando um dia eu tive essa sacada! Xô, xô, passarinho, não me coma esse arroz, esse arroz é de
Iaiá, que me mandou apanhar.

Você só está fazendo tudo isso pra ressaltar sua própria determinação como mulher escritora
acima da de outras determinadas mulheres. O que você gostaria mesmo era se enaltecer entre as
mulheres destinadas exclusivamente à beleza. Disso você naturalmente está excluída. Excluída
de pertencer ao grupo delas. Todas nós afinal estamos destinadas à beleza, só que nem todas
seguem a sua destinação. Tanto faz. Você se coloca acima de todas. Você coloca o seu aparelho
autoexaminador, a luz vermelha do cabo acende, está ligado na corrente, tudo certo, e agora você
determina o volume da sua capacidade de autoexame e você examina e examina a si mesma. Eis
então que um transformador é ligado e o que resulta então desse procedimento de autoexame,
simplório, como você mesma, resulta o quê, ah, sei lá, tanto faz, conhecimento? Não. Veredito.
De cara, veredito. Apesar do que se diz, de que os vereditos não devem se contradizer, é só assim
que surge o conhecimento. Eis aqui o conhecimento, sobre quais das cinquenta top models são as
mais bonitas e em que ordem. Mas você não dá nenhum tempo aos vereditos para eles se
contradizerem. Você profere os vereditos, sempre precipitadamente, mas nunca urgente. Eles não
são uma condição, eles são o que está proferido e assim são o seu próprio fim. Esses vereditos se
proferem a si mesmos, na medida em que justamente você os profere. Quero dizer, na medida em
que você os profere justamente agora. Mas quando você os profere, eles já não são mais vereditos.
Os meus vereditos também só me ocorrem sempre depois. Ah, sei lá. Que é que eu posso te dizer:
se você toma como absoluta a essência do conhecimento, da revelação de que você pode
desaparecer dentro da parede, então é próprio que essa contradição, você entende, parede,
desaparecer, parede, desaparecer, se torne um paradoxo, ou seja, que essa contradição se torne o
verdadeiro conhecimento. Senão você já teria arrebentado a cabeça contra a parede faz tempo.
Você já fez isso também, eu sei, eu sei. Você parece esmagada de certo modo mesmo. Entretanto,
você é bonita de um jeito totalmente diferente de mim, mas de certo modo você também é bonita.
É claro que eu sou a mais bonita de todas. Pra saber disso não preciso de madrasta nem de espelho.

O quê? Então eu não sou bonita?

É sim, você também é bonita, mas você é diferente. Eu sou bonita como se deve ser. Você não é
tão bonita como acredita que é. Mais um conhecimento que não pode se referir a nenhum objeto,
pois você de fato não está aqui. Você está dentro da parede e fim. Ou então na frente dela e morta.
Como esse irmão daquele alpinista mundialmente famoso. Ou então embaixo dela e escapou por
pouco. Mas é nenhuma heroína, como já foi dito. Você com certeza vai nos explanar tudo isso
com o máximo de detalhes.

Claro que sim, você também é bonita, enquanto um Eu. Você é diferente, mas é como eu. Estou
falando do movimento do seu corpo contra essa parede. Mas quando nós subirmos nessa parede,
espere só até que seu corpo já não esteja se movendo uniforme e constante num plano horizontal.
Aí você vai esquecer rapidinho a parede, quando estiver pendurada nela. Você ainda vai ter
saudade de não ter visto o bosque de tanta árvore que havia. Pois aquilo que você não vai estar
vendo não vai ser nenhum bosque e mesmo assim você vai arrebentar a fuça contra ele. Com o
batom novo e tudo. Daí ele vai grudar no muro e vai compreender toda a coisa dada, não, a coisa
dada é que vai conceber o batom, ele se chama Terracotta da série mate da Clinique, quer dizer,
da série xeque-mate da Clinique.

Saia da frente do sol de uma vez! Não percebe que eu já estou ali deitada, jazida? Por acaso eu
sou transparente? Eu jazo aqui oras, será que você não está vendo, estou aqui estendida sobre a
rocha, tensiono e relaxo meu corpo sobre o altar e percebo como o Sol me profana
maravilhosamente, me enchendo com a brasa do gigantesco e impessoal deus da natureza.

Nem todo o lugar onde você está, quero dizer, jaz, é igual a um altar! Se agora ainda queres
afirmar que o tronco do teu amado jaz quente e perverso embaixo de ti e que a sensação do seu
corpo escultural seria incomparável, não mole, nem flexível, nem úmido de suor, mas sim seco,
duro, liso, limpo e puro, se disseres isso só mais uma única vez, eu vou embora. Vou embora já!
É isso aí! Estou avisando: vou levar o Apolo comigo! E aí você vai estar livre do seco, do duro,
do liso, limpo e puro de uma vez por todas. E aí também não vai mais poder escrever nenhuma
baboseira a respeito. Ah não, desculpe, o Apolo nem está mais aqui. Se tivesse alguma vez estado,
já teria ido faz tempo. Não admira. Se ainda estivesse aqui nós estaríamos superlotadas,
explodiríamos em gargalhada pra fora da parede, afinal não podemos simplesmente nos calar, e a
parede também teria todas as razões pra ser transparente. Ela iria servir pra dar passagem ao deus
sol em seu novo Porsche.

Me desculpe. Mas o sol, naturalmente, sou eu mesma. Isso que você está vendo não é ninguém
mais que eu. Você está vendo a mim! E mesmo que você exploda: você está me vendo sobre o
meu altar! Mas você preferiu, achou melhor ver uma parede invisível. E isso lá vale a pena? Nã-
nã muito obrigada. Você imaginou tudo isso de um jeito muito geral, mas não compreendeu o
conceito da coisa. E você não conseguiu achar a palavra exata pro conceito e não conseguiu ir até
o ponto do conceito, e agora o ponto se tornou uma parede na frente da sua cabeça e nem sequer
ela você consegue ver! É isso que dá ser sempre tão cruel com homens que, no entanto, pertencem
ao nosso lado. Ali estão eles, como os conceitos costumeiros diante de você, você só precisa
esticar a mão e pegar, mas você não faz isso, prefere fazer você mesma um conceito de alguma
outra coisa. Bom, divirta-se! O conceito talvez ainda fosse um objeto, o homem seria um objeto
para um romance ou uma novela radiofônica, a parede talvez ainda fosse também, mas só se
contemplada através da névoa desse spray limpador que você usa, e com arrogância do alto
superior do seu spray de laquê, bom, mesmo assim, em virtude do spray, dá pra ver tudo
virtualmente até o fundo, de modo que, visto através disso, nem o que é sentido nem o que é
percebido equivalem a um objeto no sentido estrito. Tão pouco quanto o sol. Você não pode
escrever porque não consegue descrever nem a coisa que nomeia nem a que se refere como objeto
do conhecimento. Mas você de antemão já nomeia errado e já se refere errado. Está tudo errado
com você. Você aponta para o homem pra aniquilar com ele, e só então percebe: ele está atrás da
parede transparente, que você limpou tão limpinha por horas a fio, só pra poder vê-lo pertinho ao
alcance da mão, o homem, seu papaizinho querido, mas você não consegue pegar nele. Nem
captar. Ele não dá pra apreender, nem capturar, nem conceber. Ele. Em todo caso, pra você não
dá. Captou? Não dá pra compreender.

2º Ato e Final

As duas mulheres torcem o cadáver do carneiro sobre uma tina, o sangue cai pingando dentro
dela, uma bela tarefa doméstica como boas donas de casa. Nesse meio-tempo elas se trocaram e
cuidam explicitamente para que não pingue mais nenhum sangue nas suas roupas. Só no rosto
ainda estão lambuzadas.

As duas gemem e suspiram um pouco pelo esforço, mas trabalham seguras, com destreza nos
gestos, elas sabem o que estão fazendo. Conhecem o ofício.
1) Eu me decido por uma relação corporal, que inclua relação sexual, como uma parte animal e
libertadora da vida.

2) Eu não posso me satisfazer promiscuamente e ao mesmo tempo manter o respeito e o apoio da


sociedade (essa praga pentelha) – por ser uma mulher: logo: eis aqui uma raiz da inveja da
liberdade dos homens.

3) Uma vez que sou mulher, preciso ser sagaz e angariar tanta segurança quanto possível para os
insuportáveis anos da idade, quando eu – com alta probabilidade – não vou mais conseguir
conquistar nenhum parceiro. Portanto está decidido: Farei tudo que for preciso para conseguir ter
um parceiro pelo caminho costumeiro, leia-se: casar. Isso cria uma infinidade de problemas. Uma
vez que sou adulta o bastante para ter me decidido pelo casamento, preciso agora tomar muito
cuidado. Preciso combater as já mencionadas fraquezas – amor-próprio, ciúme e orgulho – da
forma mais inteligente possível. Não, me enganar não, isso eu não posso!

Não dá pra responder com um pergunta dessas. Não dá pra perguntar com uma resposta dessas.
Os heróis estão todos mortos. O resto se lambe mutuamente. Também o que mais lhes resta.
Vamos lhes dar algo que fazer, por exemplo dando algo pra eles comerem! Vamos enfiar alguma
coisa na boca deles que não sejam os próprios rabos! Não é uma boa ideia? Isso vai aumentar a
digestibilidade do reino dos mortos, o que é bom pra todos nós, e afinal queremos que seja
agradável pra nós e pra eles, é ou não é? No reino das sombras, que é o que eles são. Sombras
avassaladoras das quais eles mesmos aparecem de um salto, se apoiando no cavalo-de-pau, que
na verdade é um bode, e balançando suas clavas se erguem no ar, mas só que esse bode terrível
está morto! Eles só percebem quando já estão pendurados no ar com as pernas abertas por cima
dele. E assim se acaba rapidamente o pulo sobre a carniça do cavalo desse bode. A mulher não
pode se apoiar em mais nada. Os heróis podem finalmente se lançar por si mesmos do seu aparelho
ali plantado, mas só depois de comeram da nossa sopa revigorante, sopinha boa, hmm hmm, soa
como amor sob o aprumado, crepitante véu do paladar, essa sopa. Isso, assim. Agora eles
lamberam sangue! Ei, queridos mortos, venham aqui. Olha que essa sopa pode acordar os mortos,
eu acho, só temos agora que experimentar. (Chama: ) Therese! Marlen! Mulher, agora eu não
sei mais, você é a Therese ou quem é, ah tanto faz, como ela se chama, estou falando da ceguinha,
fala pra ela vir também! Os aleijados estão na fila até agora, mas não vão esperar mais. Até eles
estão se ardendo pra cair em cima dessa sopa. Mas primeiro é a vez da Therese, ela só tem que
nos contar simplesmente a verdade pra gente poder verificar se ela, sob condições alteradas, é
realmente ela. Pra que a gente possa então cumprir também a meta de trasladar metástase, digo
metade desses refugiados, essas pobres ilusões de vida, olha só, já vão eles lá correndo. Então,
precisamos primeira examiná-la, a verdade. Nós somos assim mesmo. Falsas médicas.
Curandeiras confusas. Confiando em recursos que no fundo erraram o curso antes mesmo de
começar o caminho. E se nós afinal não podemos alcançar nenhum conhecimento porque não
podemos ter nenhuma experiência e porque só muito raramente podemos estudar física e muito
raramente estudar matemática e tão raramente podemos entender a ciência, só nos resta portanto
o conhecimento humano geral. E a natureza. Nesses dois nós somos verdadeiras especialistas
(torce com energia o corpo do carneiro).

O sangue vai escorrendo na tina.


Eu agora conclamo as sombras à realidade. Já pra mesa, por favor! Ajoelhem e digam a oração
de graças, então encham a pança. Se embebedem com sangue. Deixem escorrer o sangue também
em absorventes e obês, se preciso no meio de alguma afirmação importante. Isso vai desviar as
cabeças que é uma beleza, como uma mosca na janela. A afirmação então vira alienação da mulher
com suas doces inquietudes. Já se apressam em acudir, as heroínas mortas, só que no momento
ainda não as vejo. Elas que desencadearam tudo isso e agora a gente nem sequer as vê. Pra que
todo o esforço? Já faz horas que estamos junto ao fogão, mas só quanto tivermos tirado a mesa, é
que elas virão se sentar, hesitantes, olhando do alto do seu cavalo desmilinguido, Grane, ou seja
lá como se chame, Silver, ah não, esse não, esse não é de valquíria, amazona, olhando lá embaixo
pro vale da desolação inimaginável, onde as sombras ainda se erguem e se fazem de importantes,
pra que se veja de imediato seu gênero, sua estirpe, as sombras, que são elas mesmas e que
também podem ver a si mesmas na televisão. Como se elas por si mesmas já não fossem demais
da conta. Como se elas já não fossem há muito tempo mesmo muitas, demais. A tela da tevê as
projeta pra trás, pra dentro de si mesma, um eterno pingue-pongue das bolinhas perdidas. Daí se
falar em projetor de imagens, que já dizíamos muito antes de existir algo assim, só que quando
elas finalmente regressam, não se parecem em nada com suas imagens. Elas são suas imagens e
ao mesmo tempo não são. Quando o objeto que foi projetado para dentro dessa existência chega
finalmente ao estado de repouso, porque a mão já enfraqueceu, a gente o chama de entendimento.
Só porque elas se empinam, essas sombras, não quer dizer que são grandes, longe disso. Significa
apenas que o sol está na posição errada. Ele não tem nada que nos dar ordens. Agora as mortas
vem. Da escuridão. Do reino das sombras. Nós as mandamos partir e agora mortas elas voltam
pra nós. Uma sacanagem tudo isso. Essa gritaria, está ouvindo? A gente fica horas na cozinha e
daí isso. Elas querem todas encher a pança antes da Therese, mas não querem comer da mão da
Therese, e nem sequer se atrevem a sentar na mesa antes dela. Sabe lá o que a Therese vai lhes
dizer, e ela vai dizer antes de que aconteça, pois senão ela não valeria o seu honorário de sangue.
Provavelmente elas tem medo de ter ajudá-la a pôr ou remover a mesa. Mas pra isso afinal temos
um removedor próprio, remove até as tripas. Ele já vai chegar. Tem um caminhãozinho-baú de
vícios e leva todas com ele quanto tiver terminado com eles.

Bom, não chegou ninguém ainda. Será que nós é que somos as sombras? Somos nós mesmas que
temos que vir? Nosso animal de sacrifício parece nos fitar ainda com os olhos arregalados como
as vidraças despedaçadas de uma casa que há muito tempo ninguém habita. Será que só nos resta
a parede? A parede era nosso destino. Cain era o destino de um outro. Você já está vendo a
Therese?

Não. Imagino que agora mesmo ela se debruça sobre nosso Caldeirão de Variedades e separa uns
fiapos de carne que restaram e come direto do tacho. Você sabe como ela é. Ela sempre fuça e
escarafuncha a comida até tirar os melhores bocados. Senão, ela não consegue tirar o que vai
acontecer. O resto ela deixa estar. É assim com essas videntes. Fazem um com a verdade um
comércio de ar, pura fachada, mas mesmo assim as ações sobem. Só veem sempre o que elas
querem ver. E quando alguma vez veem algo terrível, sempre tem a ver com animais que
pertencem ao deus sol, que também nunca está em posição de poder vir à terra e finalmente dar
uma mão na lavoura, ou então tem a ver com alguma outra mulher, nunca nós mesmas, tem a ver,
a gente já conhece essa história, com mulheres que são assediadas por pretendentes – e clientes –
e daí, pra escapar dos homens, inventam uma boa história pra encapar a verdade, ou senão uma
bela capa de revista. Ali qualquer umpode pegar nelas mas elas não sentem. Oh sim. Mulheres
também morrem! Só que bem mais tarde. Suas imagens podem durar bem mais que elas mesmas.
Sabe, os cegos talvez não possam escolher o que querem ver ou não.

Acho que agora há pouco vi minha mãe, tentando chegar na tina de mansinho antes da Therese e
abocanhar e devorar tudo. Pra não sobrar nada de nada pra Therese. Provavelmente a mamãe
queria pelo menos uma vez na vida comer alguma coisa que não foi ela mesma que cozinhou.
Mas se você não aceita o que ela oferece, ela logo se ofende. Mamãe! Eu já falei, primeiro a
Therese, mas ainda na porta de casa minha mãe já me proibiu de convidar alguém pra comer.
Nem ao menos alguém que já esteja morta, muito menos então alguém que está viva, seria uma
concorrência insuportável pra ela. Mas qualquer forno autolimpante já seria isso pra ela: uma
concorrência! Mamãe acha que as mortas não sabem se comportar, não são companhia pra mim.
Ou elas devoram demais de uma só vez e vomitam tudo em cima da gente, ou então são enjoadas,
talvez porque precisem da comida pra serem, por sua vez, engolidas por ela. E aí é que o bruto
entra em jogo. Aquiles, ou é um outro, aquele, eu acho que a Christa conhece. Ela queria me dar
o telefone dele e o email dele. Claro que ele pode vir em casa amanhã e com ele pode vir logo
uma dúzia de outros. Se eu conseguir falar com ele até lá. Quanto mais, melhor.

Engolidas pela sopa! Ah vá, Sylvia!

Não, eu tenho razão, acredite. As sombras acabam de afirmar que deixaram a porta aberta a noite
toda, mas que o mensageiro com a comida, com seu rebanho de onde a gente podia ter escolhido
alguma coisa, tocou na porta errada. Na casa do lado. Agora somos nós que queremos fornecer a
nossa bela comida, mas só ninguém vem buscar. Esse bruto não pode ser afastado. Esse bruto
ainda tem que matar e devorar muitos outros e então caiar de novo o muro e pendurar imagens
sobre as sombras pra que não se veja mais nada.

Depois de jogarem o cadáver espremido fora sem nenhum cuidado, elas enchem potes de
tupperware com o sangue e os amontoam cada uma numa mochila, por fim colocam as mochilas
nas costas e escalam a parede.

Quando eu digo ao sol bom dia, ele não me diz nada, esse Hélios se acha fino demais pra
cumprimentar, mas eu agarro a pedra, ela está tão quente, portanto o sol que eu não posso
reconhecer, tem que existir ali, senão quem mais iria esquentar a pedra? Eu repito a observação
com tempo nublado: a pedra permanece fria. Eu giro um botão, coloco a sopa, e o sol esquenta
ela pra mim que é uma beleza. Eu não giro um botão, coloco a sopa, e o sol deixa a sopa
completamente fria. Pude determinar judiciosamente que uma coisa dada pode ser modificada, a
saber, segundo as diversas condições em que eu dispuser a coisa dada. É o seguinte: o sol
resplandece e esquenta a sopa quando eu giro este botão... Se eu não girar, nenhum sol comparece,
e as árvores podem ficar ali olhando uma pra cara da outra feito idiotas, porque também estavam
à espera do sol. Eu impedi que ele viesse. Mas também pode ser que esse Hélios simplesmente
não esteja a fim da gente.

Com todo esse seu falatório até as sombras se encabritam! Como aviõezinhos de papel de seda
que caíram no falatório e agora tremeleiam por aí preguiçosos na brisa que se levanta, depois que
desligaram o microfone. Farfalhando como asas mortas de insetos esvoaçam seus mantos ao sabor
do vento. Mas um vento hoje em dia até o The Voice cria. Bom. Cadê agora esse botão do vento?
Pra acionar esse botão do vento vou ter que primeiro tirar a sopa do sol. Só tenho uma chapa nesse
meu fogão, redonda, é meu disco, o único que tenho, mas mesmo assim eu deixo ele sempre
ligado, sempre ligado. Ele já está em brasa mas eu não me canso dele, não enjoo. Afinal é
justamente pra isso que eu me casei. Agora já passou muito tempo. E agora eu tenho esse belo
forno a gás e posso tranquilamente enfiar a minha cabeça nele até que ela ficar no ponto. Não
esquecer: ligar antes o relógio da cozinha! Enquanto isso minhas crianças podem fritar lenta e
calmamente no quarto ao lado, nós agora temos um fogão com mais de uma chapa. Nós vamos
inclusive ter um com quatro chapas, quando tivermos comprado o fogão novo, já faz anos que
está planejado! Elas também vão todas pro fogão, as crianças. Como se chama mesmo o colega
que logo depois ainda comeu suas crianças? Bom, algo cruel assim eu jamais faria! Algo cruel
assim eu não quero nem imaginar, embora já se tenha feito tanto por aí. Tudo o que existe já foi
experimentado. E se eu agora experimentar alguma coisa diferente, amanhã estará disponível em
toda parte. Olá! São as sombras que já chegaram.

Então, as sombras só vieram porque você não colocou o botão no número recomendado no livro
de cozinha e não ligou o sol.

Mas eu quero sim que as sombras venham e nos contem o que as nossas amigas caídas estão
fazendo!

Elas caem muito bem. Que mais iam fazer? É o que elas fazem desde sempre. Aliás você precisa
posicionar o botão pra sopa ficar no ponto médio, em equilíbrio, no três ela já queima um pouco
no fundo. E em algum momento o sol então vai partir, já só pelo medo de se queimar, de se perder
em aconchegante inconsciência, ainda por cima perder a posição e se derreter, alô gerações
futuras!, se derreter feito uma torrada americana, se é que alguém ainda conhece isso, e se entregar
feito a Britney Spears, se é que alguém ainda conhece essa, não, essa não, essa é a única que não,
e em algum momento o sol parte como um flash, não como um relâmpago mesmo pra dentro da
sopa. Eletrólise. Mas alguma coisa sai daí! Daí tudo vem à tona. Hidrogênio e oxigênio. Invisíveis
como quase tudo. A especialidade da Therese. Mas talvez seja a nossa própria sombra a sair dali,
já que a gente cozinhou uma coisa tão bonita aqui, mas não, ela não quer. Não quer vir. Therese!
(Ambas chamam: Therese! Marlen! Therese! Marlen!) Você tem que nos dizer com quem nossas
heroínas mortas andam trepando! Pra que gente poder contar adiante. Talvez até pra uma revista,
quem sabe, talvez ela venha nos entrevistar.

A Therese com certeza pode lhe contar também com quem elas vão trepar. Nenhuma razão pra
inveja. Totalmente supérfluo o que daí será , pois até lá já não vai fluir mais. Eu adentro a sua
reflexão e por isso já não posso reconhecê-la como reflexão, ela agora está em todo meu redor e
se tornou totalmente desimportante se ela é a verdade em seu uso fluente, saltitando faceira sobre
seixos, e logo deslizando de novo calmamente, a verdade que a Therese vai nos comunicar, mas
ela não quer a nossa sopa. O sol também não quer esquentar a sopa de jeito nenhum, e o que é
manifesto então acontece: um curto-circuito à massa de aterramento, de onde a massa, como
sempre, tira o falso entendimento de que finalmente seria sua vez sobre a terra. A sopa coagula e
engasga, retém o seu pé de jeito totalmente involuntário, e em seguida contorce o tendão, porque
não está à altura da objetificação dessa coagulada verdade. Há um instante atrás ela lhe saía
fluindo dos lábios, a verdade, agora ela é só uma papa lamacenta meio insossa cheia de migalha
incompreensível dentro. Tinha que ter mexido mais, quem é que ainda vai comer isso agora?
Agora eu infelizmente me perdi, em compensação a Therese vai chegar, ou não vai também. Ela
não nos diz qual é a real da coisa. Mas oxalá ainda nos diga. Agora só está nos faltando a Therese,
que poderia nos predizer o que ela vai dizer e se é que vai dizer alguma coisa.

Se você me pergunta, ela só tem que olhar para a sopa pra não querer comer. Com um
entendimento, quero dizer uma contorção, quero dizer uma objetificação essa sopa nunca vai virar
coisa concreta, objetiva. É por isso que ela também não esquenta, não importa o botão que a gente
gire. Se você me pergunta, ela não é nem um pouco apropriada à ingestão no corpo humano, e
nós não devíamos ter gasto tanto esforço com ela.

As duas mulheres escalam agora a parede com seus potes cheios de sangue.

Chamam: Papai! Papai!

Berram alto feito loucas: Papai! Papai!

Seu papai foi um nazi e você diz que ele era pacifista!

Seu papai foi pacifista e você afirma que ele era nazi!

Seu papai foi pacifista e você afirma que ele era um judeu!

Essa história da sopa ainda não deu certo. A sopa ficou séculos por um fio e agora simplesmente
caiu. Peço desculpas. Você me explicou por que, mas eu ainda não entendo. Vamos ter que nós
mesmas meter a nossa colher e ajeitar essa sopa, só porque não tem crianças e nem tem casa e
nem tem mais rebanho e nem tem mais nada de que a gente precise se proteger? É isso que você
quer dizer, minha estrondosa amiga? Eu estou dentro do forno, as crianças estão nas suas
frigideiras, onde eu as estourei como ovos estrelados. Então nos deitemos e aquietemos, afinal
não nos resta nada mais além de desprender a razão pra ainda podermos ao menos nos entender
com ela! Ela é a única coisa que ainda não está por aí, estendida no chão à espera da morte.

Acho que eu medi mal, eu estendo e esclareço a razão mais uma vez direitinho, metodicamente,
mas ela simplesmente não chega pra nós duas. Que bom que você está no forno. Não tem mais
nenhuma chapa livre, nenhum disco em que eu pudesse me apresentar. Acho que vou ter que me
acender sozinha mesmo. Um método ancestral. Mas comprovado.

Ao medir você devia ter calculado de antemão o quanto ela encolhe.

Pra isso não tenho como julgar.

Mas julgamentos é o que você está sempre proferindo. Vereditos.

É verdade, mas estranhamente eles não tem força. Já reparei nisso.


Bem, eu percebo que para quem está vivo não é difícil chegar até as sombras. Eu imaginava que
era bem mais trabalhoso. Um fogão. Um cigarro. Uma camisola de nylon. A pele nua. A gente
pode pegar tudo isso e preparar um apetitoso menu, mesmo quando parece que nada disso
combina. As sombras não vieram até nós, portanto vamos nós até elas. Pra que elas pelo menos
uma vez tenham motivo pra se queixar. Não é do seu destino que elas se queixam, mas sim de ter
que dividi-lo com a gente de agora em diante. E isso que somos nós que lhes trazemos a comida.
Pra que elas se lembrem. Se lembrem de que não estão sozinhas.

Seja lá o que for que elas vão se lembrar, de nós é que não vai ser. Nós sempre trazemos a comida,
até mesmo quando nós mesmas somos a comida. Elas não vem até em casa, então somos nós que
vamos até elas e trazemos. O sangue. Para as sombras. O negócio só fica difícil quando nós,
enquanto vivas, queremos ir e voltar. Esse é um bilhete só de ida. Está escrito bem aqui, eu
verifiquei. E quando fiz o check-in pedi pra verificarem de novo. Isso é mesmo a parte mais difícil,
voltar viva de entre os mortos. Só pra vir alguém lhe dizer: essa mala de rodinhas a senhora não
pode levar na cabine! Até ressuscitar é mais fácil, pois o ressuscitado afinal já não está entre os
vivos, ele não voltou completamente, está num plano intermediário. Pra ninguém poder vir lhe
fazer comentários idiotas, pois ali ninguém o vê. Em compensação a gente lê um monte sobre ele.
Totalmente ao contrário de nós, pois justo após a nossa morte é que nós queremos muito
especialmente ser vistas! Uma parede invisível dessas – não seria nada pra nós! Nós queremos
ser visíveis e ser servidas com uma guarnição cativante como convém, pra Inge a camisa de Nesso
derretida, quero dizer, a camisa de Narciso que ninguém lhe presenteou. Ela mesma teve que se
comprar uma no outlet da Hope. Mulheres assim precisam sempre comprar tudo pra elas mesmas.
Desculpe, Inge. Mas eu estou dando a real. Bacana mesmo seria se o ressuscitado tivesse voltado
de verdade para o meio dos homens. Pra nós heroínas não é completamente tão difícil como pra
ele, só precisamos viajar bem longe rumo oeste, Cabo da Boa Esperança, eu diria, o ponto
extremo, mais além não precisa, senão a gente cai no mar. Porque a gente já esqueceu onde é em
cima e onde é embaixo. E então precisamos continuar sempre cozinhando nossa sopa de sangue,
que de qualquer jeito ninguém quer e o sol de qualquer jeito não quer esquentar e o botão de
qualquer jeito não quer girar e que o vidente cego seja como for não quer meter a colher e ajeitar
pra nós. Mas eis que. Mas eis que. Que nós vamos chegar. E daí a gente vai saber que valeu a
pena, daí os mortos vão chegar até nós e nós até eles. Mas primeiro vem o papai (as duas berram
feito loucas: Papai! Papai! Cara! Papai! Meu! Papai! Que foi que você fez? Papai! Etc.), daí vem
a mamãe, e então oxalá finalmente vem a Therese. Tarde demais, como sempre, e aí acontece que
ela corre direto pra cima daquilo que vem vindo e que ela na verdade deveria predizer e aí ela
arrebenta a cabeça. Mas dali de dentro não vai sair heroína nenhuma rastejando. Ela vê, ela vê o
que você não vê. Mais que isso não. Provavelmente ela vai vir justo quando nós de qualquer modo
já soubermos tudo. Quem está morto e quem não. Mamãe e papai vão até comer por delicadeza,
digo eu, mas a Therese, essa é enjoada. Ela se ri toda pra dentro como que pra dentro de um quarto
desarrumado de onde ela quer escapar com a ajuda de uma entrada de cinema, em vez de ao menos
lavar a louça. Se ri toda pra dentro como que pra um senhor bem-alinhado e bem-humorado que
ela arrumou pra ir apressada ao encontro, de braços abertos, em vez de arrumar o próprio poleiro.
Tudo invenção. De repente nós vamos parar de descer as escadas com a nossa comida, porque
vamos subir escalando a parede que nunca tínhamos visto.

Mas quando nós a vimos, a parede, aí já não podíamos mais contorná-la. Não tínhamos como
tratar com ela. Ela era transparente, totalmente transparente, mas não tinha travessia ilesa. Então
toca pra cima. Não tem outro jeito! Nós trazemos a comida aos heróis mortos. Elas berram:
Papai! Papai!

Meu papai era um judeu!

Não era não. Ele era um nazi.

Não era não, ele era pacifista.

O Pacífico? Não, não era não, ele era um outro. Ele era o outro. Esse aí não era Oceano, em que
as superestrelas vão se banhar, ele era só o Otto, o diabético teimoso. Era muito pouco pra você.
Nem sequer a própria diabete ele queria reconhecer. Isso está como comprovado. Ele podia
tranquilamente continuar vivendo. Nem todo aquele que deseja acolher os heróis mortos depois
que os alimentamos é, só por isso, igual ao Oceano Pacífico. E nem todo aquele que morre é um
herói. O Oceano é alguém que mata e então engole os mortos. Mas qualquer outro também recebe
heróis com muito prazer. Nós queremos ser engolidas por alguém, mas de maneira que depois
ainda sejamos vistas. Que sejamos vistas inclusive até muito mais do que antes de alguém nos
traçar. Aquelas três no aviãozinho, olha só, ele as recebeu também. Ele que flui ao redor do disco
do mundo. Mal dá pra crer. Mal alguém faz alguma coisa, já milhares de mulheres lindas olham
pra ele e ainda se atiram com tudo em cima dele. Uma de suas tantas desculpas pra tirar a roupa.
Apesar de tudo. Aquela história do aviador esportivo não pode ter valido a pena. Um golinho de
nada, e mais nada. E lá do outro lado, quase duzentos. O que vai ser de nós? Sentar à mesa em
meio às baratas andando por cima da louça cheia crosta ancestral? E então abrir as pernas pro
Oceano todo? Não. Já pra fora da cama, antes que ainda nos façam isso, não, pra fora, feita é a
cama, agarra rápido a roupa desconcertada, dilacerada, joga por cima da cabeça, e claro,
esquecemos de vestir as meias. Tanto faz. Não tem mais ninguém aqui com quem a gente pudesse
se entender sobre a nossa aparência.

Ali tem uma calcinha suja, lá uma meia, aqui alguém deixou o relógio, a pulseira está toda
ensebada. Essa camiseta fede que é um horror, como um cadáver esportivo dilacerado, no fundo
ainda cheio de vida. Senão não estaria fedendo tanto. Eu posso qualificar como minha obra o fato
de poder afirmar que essa camiseta precisa ser lavada, e rápido, logo, esta é a verdade, a falsidade,
o conhecimento, a supervalorização, a subestimação do estimado inventário da nossa
permanência. Sobre e acima de tudo. Você acredita mesmo que foram heróis que estiveram por
aqui? Você acredita que eram mesmo heróis os que foram heróis?

Oxalá que não. Senão nos chegaríamos tarde demais com a nossa comida. E a Therese não vai de
jeito nenhum chegar logo, me parece. Nem sequer pediu desculpas. Deve acreditar que com a
gente ela não precisa. A variante amistosa: ela acredita que de qualquer modo a gente já sabe
tudo.

Bom. Essa foi a versão um. A versão dois eu vou simplesmente perder. A versão três nunca vai
existir. Tudo o que nós podemos captar, conceber e formular está nos nossos tupperwares. É o
que nos basta.
As duas escaladoras chegaram em cima do penhasco com seus frascos de sangue. Respiram com
dificuldade.

Ali em cima está sentado um ser todo envolto em bandagens, inclusive o rosto. Junto a ele está
apoiado um bastão de esqui (ou dois, como os de caminhada nórdica), e ele usa uns óculos de
sol muito escuros da última moda. Ele come de uma mesa de bonecas, com louça de bonecas.
Depois de recuperar um pouco o fôlego, as duas mulheres se encostam no penhasco, tiram sua
sopa de sangue da mochila e enchem com ela as xícaras e pratos de boneca. Tudo transborda, o
sangue escorre penhasco abaixo. As mulheres realizam o seu lanchinho sangrento.

O ser fala, mal se pode compreendê-lo, afinal o rosto está todo envolto firme em bandagens.
Aqui, mas também em tudo o que segue, pode-se com certeza trabalhar com textos projetados
sobre uma tela.

Fácil é o que me haveis perguntado, mas mesmo assim eu vos digo. São as frases mais terríveis
que já foram algum dia proferidas. Por isso peço expressamente silêncio, pois não poderei
pronunciá-las outra vez: Aquele dos recolhidos mortos que permitirdes agora se aproximar do
sangue, vos dirá coisas verdadeiras. Mas aquele a quem o proibirdes, este há de se retirar calado.

Continuam lanchando com a louça de boneca durante o que se segue. “Brincam de comer”, por
assim dizer, como fazem as crianças.

De um antiquado rádio portátil escutamos uma voz masculina que lê com toda dedicação:

Dois companheiros mantinham o animal preso pelas pernas, de modo que a cabeça com a garganta
cortada pendia para baixo. Isso vocês já viram, senhoras e senhores. Odisseu, com o pé sobre a
terra extraída da cova, o braço esquerdo pousado sobre a coxa, na mão direita a espada com que
mantinha para trás as sombras, espreitava o vulto venerável do encurvado vidente cego. Isso vocês
já viram, senhoras e senhores. O branco cabelo dava fé de sua idade, o cajado na mão esquerda,
de sua cegueira. Isso vocês já viram, senhoras e senhores. Dentre as pálidas sombras chamaram-
nos a atenção alguma mulheres em vestes amarelas e três vultos um pouco afastados. Isso vocês
já viram, senhoras e senhores. As mulheres eram Anticleia, mãe de Odisseu, com quem ele travou
uma dolorosa conversa, e uma série de heroínas, que eram as mães ancestrais de muitos heróis
com quem Odisseus viajara até Tróia. Isso vocês já viram, senhoras e senhores. Os homens no
entanto eram certamente Agamemnon, Aquiles e Ajax, com quem Odisseu evocou os
desafortunados dias do fim de cada um deles. Isso vocês já viram, senhoras e senhores.

Ao mesmo tempo, escutamos bem baixinho – necessariamente em grego clássico! – com suave
voz feminina, talvez uma criança, uma aluninha de alguma cidade, o bacana mesmo seria se as
atrizes ou pelo menos uma delas pudesse falar ou ler da Teogonia de Hesíodo [pag. 92-93 –trad.
de Jaa Torrano] as seguintes encantadoras palavras:

Quantos da Terra e do Céu nasceram, filhos os mais temíveis, detestava-os o pai dês o começo:
tão logo cada um deles nascia a todos ocultava, à luz não os permitindo, na cova da Terra.
Alegrava-se na maligna obra o Céu. Por dentro gemia a Terra prodigiosa atulhada, e urdiu dolosa
e maligna arte. Rápida criou o gênero do grisalho aço, forjou grande podão e indicou aos filhos.
Disse com ousadia, ofendida no coração: “Filhos meus e do pai estólido, se quiserdes ter-me fé,
puniremos o maligno ultraje de vosso pai, pois ele tramou antes obras indignas”. Assim falou e a
todos reteve o terror, ninguém vozeou. Ousado o grande Crono de curvo pensar devolveu logo as
palavras à mãe cuidadosa: “Mãe, isto eu prometo e cumprirei a obra, porque nefando não me
importa o nosso pai, pois ele tramou antes obras indignas”. Assim falou. Exultou nas entranhas
Terra prodigiosa, colocou-o oculto em tocaia, pôs-lhe nas mãos a foice dentada e inculcou-lhe
todo o ardil. Veio com a noite o grande Céu, ao redor da Terra desejando amor sobrepairou e
estendeu-se a tudo. Da tocaia o filho alcançou com a mão esquerda, com a destra pegou a
prodigiosa foice longa e dentada. E do pai o pênis ceifou com ímpeto e lançou-o a esmo para trás.
Mas nada inerte escapou da mão: quantos salpicos respingaram sanguíneos a todos recebeu-os a
Terra; com o girar do ano gerou as Erínias duras, os grandes Gigantes rútilos nas armas, com
longas lanças nas mãos, e Ninfas chamadas Freixos sobre a terra infinita.

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