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A CRIAÇÃO NO DIÁLOGO ENTRE A FÉ E A CIÊNCIA:


NUMA PERSPECTIVA CRISTOLÓGICA

Larissa Fernandes1

RESUMO
Todo saber deve estar situado dentro de um contexto. Atualmente a teologia encontra-se
diante de um grande desafio: repensar sua visão de mundo, sem com isso negar sua
fonte inspiradora e sua razão de ser. Este cenário pós-moderno exige uma atitude
inteligivelmente mais crítica e reflexiva da fé. Na concretude e unicidade da pessoa de
Jesus Cristo revela-se e realiza-se a redenção de toda a criação, como o lugar do
encontro entre céu e terra, fé e razão, religião e ciência.

Palavras-chaves: Criação. Cristologia. Encarnação. Diálogo. Fé. Ciência.

INTRODUÇÃO
Todo saber deve estar situado dentro de um contexto. Atualmente a teologia
encontra-se diante de um grande desafio: repensar sua visão de mundo, sem com isso
negar sua fonte inspiradora e sua razão de ser (LIBÂNIO; MURAD, 2003, p. 23-25).
Este cenário pós-moderno exige uma atitude inteligivelmente mais crítica e reflexiva da
fé. Na concretude e unicidade da pessoa de Jesus Cristo revela-se e realiza-se a
redenção de toda a criação, como o lugar do encontro entre céu e terra, fé e razão,
religião e ciência. Um olhar dinâmico e aberto da natureza, proposto pelas ciências
modernas, contribui melhor à teologia cristã do que a ótica estática do mundo antes de
Darwin (SANCHES, 2009, p. 7).
Opor evolução e criação impossibilita uma atitude dialógica entre religião e
ciência. Para a teologia, o materialismo científico começa com a ciência, mas encerra-se
em afirmação filosófica, enquanto o fundamentalismo bíblico parte da teologia, mas
encerra-se em afirmações de assuntos científicos. Ou seja, partindo desta premissa, cada
um corre o risco de entrar num campo que não lhe pertence e acabará dar explicações a
respeito daquilo que não lhe compete (SANCHES, 2009, p. 25). O físico ateu Marcelo

1
Bacharel em Teologia pela PUCPR. E-mail: larissa.arca@gmail.com.
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Gleiser, numa atitude de humildade intelectual, apresentando em entrevista televisiva seu


novo livro Limites do Conhecimento, reconhece que existem coisas que a ciência pode
explicar e existem coisas que fogem, escapam ao campo da ciência, pois ela não é um
saber absoluto. Existem modos complementares de descrevermos a realidade. E querer
explicar tudo pela ciência é esvaziar a riqueza do conhecimento humano.
Desenvolver a teologia da criação numa perspectiva cristológica nos possibilita
uma visão mais aberta para o diálogo com as realidades terrestres, como propõe o
Concílio Vaticano II. Em Jesus, Deus se fez carne, fez-se humanidade concreta, tomando
e assumindo nossa criaturalidade, em sua condição biológica, psicológica, sexual, social e
cultural, fazendo-se inteiramente pessoa humana sem deixar de ser inteiramente divino. A
fé cristã não se preocupa apenas com o eterno, com aquilo que está fora do mundo e do
tempo, mas diz respeito ao Deus que entra na história, e se faz história conosco. Deste
modo ele torna-se pontífice que vence o abismo entre o tangível e o inatingível, entre o
eterno e o temporal, entre o visível e o invisível, na encarnação do Verbo divino. “Neste
ponto a fé ganha o grande salto, não mais ao infinito nos arrebatando deste mundo, mas
por ele (Jesus Cristo) a fé nos é apresentada como Revelação. O Filho Unigênito, o Verbo
encarnado torna-se exegese de Deus” (RATZINGER, 2005).
A encarnação não se trata de um momento, mas de toda a marca histórica da vida
de Jesus. No mistério da encarnação toda a dicotomia foi banida, nele não houve
distância entre suas palavras e suas obras, entre o seu ser e o seu agir. Como afirma Karl
Barth, o Deus encarnado é aquele “ponto concêntrico” no qual o Pai encontra a criação e
no qual a criação pelo Filho, único caminho, chega ao Pai (Jo 14,6). Assumindo a
dimensão espaço e tempo Ele mesmo é o ponto de encontro entre Deus e o ser humano. A
criação e, sobretudo, a humanidade foi criada em Jesus: palavra na Palavra, filhos no
Filho, princípio do qual tudo procede e para o qual tudo culmina. Esse fundamento
soteriológico é que dá sustentação às expressões sobre Cristo como o mediador da criação
(MOLTMANN, 1993, p. 113).
A teologia paulina retoma o tema de Gênesis, capítulo 1, versículo 26 como um
dos temas fundamentais transpondo a criação para o nível da ordem da redenção em
Cristo. No ponto central está a sua função cristológica e soteriológica: somente Cristo é a
imagem verdadeira de Deus. Ele restitui e ao mesmo tempo consuma a imagem
obscurecida pelo pecado. Como imagem perfeita de Deus, Cristo é mediador da criação,
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como ser humano perfeito ele é o fim da criação. Gênesis 1,26s é apenas uma promessa
do ser humano verdadeiro Jesus Cristo, o Logos que se fez carne.

E O LOGOS SE FEZ CARNE

No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e o Logos era Deus.
No princípio Ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem Ele
nada foi feito.
E o Logos se fez carne e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória, glória
que Ele tem junto ao Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade
(Jo 1, 1-3.14).

A fé cristã pressupõe crer em um Deus que assume a condição existencial


humana. Ideias meramente especulativas sobre Deus, ou uma espiritualidade alienante ao
ser criado não abraçam o fundamento teológico cristão. O Logos tem nos escritos de
João, principalmente no seu prólogo, um sentido que abarca os diversos aspectos do
termo grego. É esse Logos que se torna realidade humana (Jo 1,14). Jesus como projeto
realizado, que possui a plenitude da vida, é o ser humano em sua expressão máxima de
sentido e o Filho de Deus, expressão de Deus, como um filho o é de seu pai.
Como expressão do projeto de Deus sobre o ser humano Jesus Cristo é a verdade
acerca de Deus e acerca do ser humano mesmo, tornando-se assim, norma de
comportamento para nós (Jo 13,34). Como palavra criadora eficaz, que dispõe da vida e a
comunica (Jo 5,26), é o doador do Espírito (Jo 1,33), que dá a capacidade de tornar-nos
filhos de Deus (Jo 1,12). Como Palavra que manifesta o ser de Deus, é a expressão de sua
intimidade que quer comunicar-se: a manifestação da glória-amor do Pai, que leva à
unidade e comunhão com Ele (Jo 17,22; 1,18).
A encarnação do Logos apresenta-se como a concentração final do pensamento
criador e revelador de Deus. Ele é aquilo que a humanidade fora destinada a ser na
intenção de Deus, chamado por isso, o Filho do Homem. Atingimos o ápice do Prólogo
com as palavras o logos sarks egeneto, ou seja, “o Verbo se fez carne”, frase a qual nos
conduz para além da lógica judaica. Esta expressão é a novidade por excelência de todo o
conceito de divindade até então construído. O público que João buscava alcançar não
teria condições de reconhecer que ele estava falando de um sujeito histórico, até que a
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expressão o logos sarks egeneto o despertasse abruptamente e o preparasse para a


explicação que se segue nos versículos seguintes de João 1, 15 a 18.
O autor do prólogo escolhe uma imagem que indica a condição contingente e
transitória do ser humano: a tenda do nômade e não uma casa estável e segura de uma
cidade. O divino então é revelado historicamente na contingência e na fragilidade da
criatura. Se considerarmos as consequências da proposição o logos sarks egeneto à luz de
toda a história que procede, veremos neste mistério o sentido deste paradoxo. Entretanto,
a vida de Jesus é a história do Logos enquanto encarnado, e esta deve ser, no cenário de
um tempo limitado o mesmo que a história do Logos em relações perpétuas com o ser
humano e com o mundo (DODD, 2003, p. 347-375).

O DESÍGNIO SALVÍFICO DA HISTÓRIA REVELADO EM JESUS CRISTO

A encarnação de Jesus Cristo não é um acontecimento ou mero evento histórico, e


sim a entrada da eternidade no tempo. Tampouco sua ressurreição é um acontecimento
dentro da história, e sim a irrupção do Ressuscitado desde a história na eternidade (Mt
11,25-26). Com isso, a história não é apenas palco provisório de um futuro eterno.
Seguindo a linha de Irineu de Lyon, a encarnação conduz a seu termo toda a criação que
espera, no seu próprio pecado, sua libertação e salvação. É no fragmento e na
precariedade, na carne e na vulnerabilidade, que o eterno se faz presente. O mundo não é
apenas o espaço onde o ser humano vive, mas é também o espaço onde Deus se encontra
(SANCHES, 2009, p. 71). Por aí passa a recapitulação em Jesus Cristo, Senhor de todas
as coisas, que vem para realizar o sentido originário da criação (EICHER, 2005, p. 785).
A espiritualidade, como a teologia, procura extrair os significados deste evento da
salvação como desencadeamento escatológico de Deus na história. Propriamente Jesus é
a vida de Deus mesmo traduzida na história da humanidade. Na teologia clássica da Idade
Média dava-se a impressão de explicar a vinda do Logos ao mundo por causa do pecado
de Adão, sem o qual não teria acontecido o mistério pascal. A doutrina do pecado original
cumpre a função de tornar presente a necessidade para todo ser humano do dom gratuito
de Cristo e de sua capacidade absoluta para adquirir autonomamente a salvação.
A humanidade é, desde toda a eternidade, querida por Deus em vista de Jesus
Cristo, único recapitulador em Si mesmo de toda a criação (Ef 1,1-14). Pela fé em sua
ressurreição, apesar das aparências e, embora desde o começo exista dois dinamismos: o
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do pecado e da graça, ele é o Senhor dos tempos, o Senhor da história. Após sua
ressurreição, Jesus dizia a seus discípulos na noite de despedida: “a vós convém que eu
vá” (Jo 16,7). A solidão dos discípulos é para sua salvação. Ela permite que eles passem
de uma existência com Jesus, concentrada na intuição sensível para uma existência
pessoal como testemunhas. Quer dizer, agentes responsáveis, sujeitos que seguem
criativamente o paradigma de Jesus (TRIGO, 1988, p. 157).
Portanto, a fé na ressurreição de Jesus Cristo entende a história como algo que
está nas mãos de Deus o seu grande finale. Ela não está decifrada em cada uma de suas
figuras, em seus fragmentos, mas apenas na solução final que amarra e lhe dá seu sentido
pleno. Existe um dinamismo de pecado anterior, mas também, interior a cada pessoa. E
existe, de um modo mais poderoso e determinante, o dinamismo da graça de Cristo, este
também anterior e interior a cada pessoa. Estes dinamismos entram no mundo de cada um
como leque de possibilidades, facilidades e dificuldades, inclinações, redes de
solidariedade, cristalizadas muitas vezes em estruturas e situações. Mas eles se
concretizam propriamente nas decisões (TRIGO, 1988, p. 156-157).
Sob a visão veterotestamentária a imagem original de Gênesis 1,26s é o início da
salvação e promessa profética do Cristo vindouro com a consumação que lhe dará sentido
e que Deus tinha em vista desde o princípio (GARCÍA RUBIO, 2001, p. 202). Com
efeito, contemplando Jesus Cristo temos certeza do que significa ser imagem de Deus, ou
seja, do que significa ser humano, conforme o projeto salvífico do Pai. Sendo Cristo o
primogênito de toda a criação, Ele ostenta certa primazia cósmica, não como primeira
criatura, mas como o primeiro por supremacia, ou seja, não de uma série homogênea, mas
por um primado de excelência no desígnio salvífico de toda a criação (LA PEÑA, 1989,
p. 60-61).

Binômio céu e terra


A relação entre religião e ciência é composta por Ian Barbour - estudioso
americano renomado no campo entre ciência e religião - de quatro categorias: conflito,
independência, diálogo e integração. Percebe-se que as duas primeiras são negativas e
não contribuem no processo das relações entre ambas. As outras duas, positivas, possuem
um contributo de valorização para a religião e ciência em vista da construção de um
mundo melhor (SANCHES; DANILAS, 2012).
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Com a secularização, o “espírito novo” (autônomo), separado do Pai, não geme


Abba, pois não necessita de oração. O “sujeito forte” da modernidade se conserva em
subjetividade concentrada. Com relação à Igreja, há uma confiança maior na associação
de indivíduos livres e iguais, no exercício do poder que emana do povo para legislar
(democracia). Com essa “eclesiologia” sem hierarquia e sem códigos religiosos, houve
uma secularização de todos os âmbitos da moral, do direito, da catequese. Por fim, a
concepção moderna da história não é a história de Deus ou da salvação, mas
simplesmente história do ser humano no mundo. Uma historicidade radical sem antes e
nem depois, que se liga a uma evolução que parte “de baixo” e não de uma criação vinda
do alto (SUSIN, 1995, p. 13-20).
Em contrapartida, há uma escatologia antimoderna. A modernidade é uma luta de
libertação das estruturas anteriores que supervalorizaram a alma em detrimento do corpo,
o céu em detrimento da terra. Esta concepção platônica e aristotélica dualista e a-histórica
penetrou o cristianismo enfraquecendo-o de sua bagagem hebraico-semítica. No universo
católico do Renascimento ressaltava-se uma ambiguidade insuportável entre céu e terra.
Fora das elites imperava uma obsessão pelo além, pela salvação da alma, pelo mérito e
pela graça. No universo protestante com a Reforma acentuou-se ainda mais a
interiorização, a graça. Então a mediação comunitária perdeu ainda mais transparência,
deslocando-se para uma escatologia mais individual.

A ciência pode lançar uma luz brilhante nos processos da natureza e pode
aumentar vastamente o poder humano sobre o ambiente. Usada corretamente,
pode melhorar notavelmente as condições de vida aqui na Terra. Futuras
descobertas científicas sobre evolução irão, presumivelmente, enriquecer a
religião e a teologia, uma vez que Deus se revela através do livro da natureza
bem como através da história redentora. A ciência, entretanto, realiza um
desserviço quando clama ser a única forma válida de conhecimento,
descartando a estética, a interpessoal, a filosófica e a religiosa (DULLES,
2007).
Enfim, a terra em si mesma contou pouco nessa época pré-moderna. Neste
dilema, os extremos se tocam: o céu sem a terra é tão trágico quanto a terra sem o céu. E
no limiar da pós-modernidade irrompem-se espiritualismos, misticismos puramente
estéticos e emocionais, tais como: neopentecostalismo, new age, esoterismo, enfim, uma
religiosidade light e psicologista. Com isso, há uma experiência escatológica imediata,
sem mediações institucionais (autoridades) e sem mediações racionais (razão). Estes
dois binômios, o céu e a terra, o visível e o invisível, têm por base uma representação
cósmica do mundo, tal como se apresenta aos nossos olhos. Assim, pois, tudo o que
existe tem por origem um ato criador de Deus. Não há nada na criação que seja fruto de
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um deus antagônico, de um deus do mal, indiferente, ou de uma emanação consequente


de qualquer mal anterior (SUSIN, 1995, p. 136).

Os novos céus e a nova terra


Segundo Santo Irineu de Lyon é para a glória que viemos à existência. A criação e
a escatologia, mediadas pela história, são a glória de Deus e do ser humano. A teologia da
criação requer também um horizonte escatológico. Por isso, deve-se levar em conta a
unidade: criação-história-escatologia. O Concílio Vaticano II apresenta três chaves
hermenêuticas de leitura que compõe um fio condutor para a escatologia: a primeira delas
trata-se da dimensão comunitária da escatologia: Igreja celeste, koinonia, comunhão dos
santos. A humanidade como grande comunidade é ambiente, “lugar” da escatologia. O
evento da Aliança ilustra bem esse primeiro aspecto. A segunda chave interpretativa
aborda a positiva relação entre história e escatologia, entre mundo e reino escatológico,
entre terra e céu. A Páscoa é o evento que traça o caminho histórico da escatologia. E por
fim, a escatologia como horizonte, como dimensão última de toda realidade humana e
terrestre, e horizonte também de toda a teologia.
Os escritos bíblicos de Israel dão testemunho, não apenas da experiência do êxodo
e da fé na criação, mas também, no âmbito da profecia, da esperança messiânica de um
êxodo novo e definitivo. Moltmann vai explanar essa percepção em consonância também
com a esperança escatológica no resgate final da criação do caos e sua transfiguração
eterna na presença de Deus. Em face da nova escravidão do povo, na Babilônia, o
Dêutero-Isaías anuncia expressamente um novo êxodo, um novo servo de Deus e um
novo evento salvífico. Com isso, altera-se também a imagem do mundo como criação
desse Deus: ele passa a ser o palco da sua glória que há de vir (VON RAD, 1974, p. 229-
252).
A visão messiânica do novo êxodo recupera o primeiro, mas é-lhe superior em
virtude da esperança que transcende a história. Os emigrantes não passarão sede nem
fome (Is 48,21), seu caminho será fácil, porque todos os obstáculos serão varridos (Is
49,11). A retirada não será às pressas, mas sim festiva, como em uma procissão,
conduzida pelo próprio Deus (Is 52,12). A natureza participará da alegria da libertação
final do povo de Deus, as montanhas prorromperão em aclamações, e as árvores do
campo aplaudirão (Is 49, 13; 55,12), águas fluirão no deserto, e torrentes correrão sobre a
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terra árida (Is 35,6). Todos os povos verão isso e reconhecerão no Deus de Israel a sua
salvação e a sua força (Is 41,11; 42,17; 45,24).
Dessas esperanças salvíficas proféticas surge uma nova compreensão da criação.
Na visão do chamado do profeta Isaías abre-se uma perspectiva de futuro: “a terra inteira
está cheia da sua glória” (Is 6,3). A criação e a escatologia, mediadas pela história, são a
glória de Deus e do ser humano. A teologia da criação requer também um horizonte
escatológico. Por isso, deve-se levar em conta a unidade: criação-história-escatologia. O
futuro messiânico da criação consumará a criação inicial. Ao êxodo do caos, e das
condições vitais sob a constante ameaça desse caos, seguirá a transfiguração da criação,
em face da eterna e aberta presença de Deus. E Deus mesmo habitará no seu mundo
(MOLTMANN, 2000, p.112-113). Deus no mundo e o mundo em Deus, isso significa a
transfiguração do mundo pelo Espírito. Isso representa a morada da Trindade.

CONCLUSÃO
Jesus Cristo não é uma figura dualista, que se fecha em oposição entre o terreno e o
celestial. Nele estão definitivamente reconciliados e em perfeita síntese Deus e o ser
humano, a revelação e a fé, a terra e o céu, a carne e o espírito (BINGEMER; FELLER,
2003, p. 68-69). Sendo assim, a nova criação em Jesus Cristo possui como pedra de toque
o princípio da encarnação que tem por implicância radical a necessidade de nos deixarmos
afetar pela realidade que nos circunda com todo o seu contexto sócio-econômico-cultural.
Assumindo com Cristo, por Cristo e em Cristo toda a dimensão humana e histórica da
criação, seremos capazes de construir pontes de diálogo e solidariedade entre a religião e a
ciência, entre a fé e a razão.
O pensamento ocidental oscila, por assim dizer, entre dois extremos: por um lado, o
primado de Deus no assunto da graça parece ameaçar a dignidade do ser humano; por
outro, receia que a glorificação do ser humano possa prejudicar a soberania de Deus,
colocando-o em um dilema distorcido: “ou Deus ou o ser o humano”. A evolução é artigo
da ciência e pode ser provada com base em posições empiricamente estabelecidas enquanto
a criação é um artigo de fé, que exige crença para ser afirmada. O importante é que ambas
podem ser aceitas sem contradição, pelo cientista que crê ou pelo religioso que busca uma
visão científica do universo (SANCHES, 2009, p. 30). Embora seja infinitamente maior
que toda a criação, por ser sua causa primeira, Deus está presente no mais íntimo de todas
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as coisas, porque é amor! Deus transcende à criação, mas está presente a ela, mantendo-a e
sustentando-a (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 300-301).
Jesus Cristo é a solidariedade histórica de Deus para com os seres humanos. E se o
aceitamos como Deus encarnado, necessariamente, como Igreja, como comunidade de
seguidores de Jesus Cristo, teremos de revisar e transformar nossa teologia e nossa práxis.
Pois não é para fugir da angústia de um povo sofrido e fragmentado que se deve promover
o papel terapêutico da espiritualidade, mas cabe-lhe romper o medo do novo, atestando a
fidelidade das promessas de Deus. O princípio da encarnação não nos deixa acomodados
em nossas reflexões cristãs, uma vez que, quando autênticas, elas nos arremessam no
mundo como elemento transformador da realidade.
A relação dialética e sincrônica de comunhão com a criação e conosco mesmos é
perpassada pela presença de Deus. Deus é relação e esse dado torna-se constitutivo da
identidade humana. É importante lembrar que, pela própria humanidade de Jesus Cristo,
somos chamados a ir além, moldando-nos a sua Pessoa. O que deturpa e nos desumaniza é
quando essa dimensão de corporeidade e materialidade é vista como um fim em si mesmo.
Uma concepção parcial e alienante da criação pode legitimar atos contra a vida, como o
aborto, a eutanásia, a fome, a miséria, a violência, pesquisas científicas sem critério ético, a
exploração da natureza e do meio ambiente, e tantos outros pecados da humanidade.
A evolução da ciência e da teologia consegue hoje estabelecer pontes de diálogo,
pelo fato de ambas terem identificado melhor seu objeto de estudo, sua competência e seus
limites. Longe de ser mero criticismo ou um desserviço, as ciências oportunizam à teologia
uma crítica que também purifica a fé (RIBEIRO, 1995, p. 32). Os conceitos de criação e
evolução, portanto, não só podem ser inter-relacionados como na verdade se explicam
mutuamente (SANCHES, 2009, p. 31). A premissa cristológica da encarnação deixa claro
que não pode haver oposição entre a racionalidade da fé e das demais ciências. Na criação
do universo nosso planeta é incomensurável nas suas formas de vida e subsistência. O fato
de sermos raros e preciosos neste cosmos deveria despertar em nós atitudes de cuidado e
proteção por aquilo que temos. Hoje, a inter e transdisciplinaridade têm de dialogar e
somar forças para, em uma busca conjunta, encontrarem respostas às questões latentes da
vida humana e da criação como um todo.

REFERÊNCIAS

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