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AVALIAÇÃO DE FILOSOFIA GERAL I 1º SEMESTRE DE 2019

Eduarda Salim Veroneze – GRR20190811 – Manhã

O termo mal usualmente remete à desastres, crimes, pecados, dor. Um tsunami destrói uma
cidade. Um casal assassina seu próprio filho. Eventos como esses operam uma ruptura no
ordinário cotidiano e extrapolam a aparente harmonia do universo – ao menos a harmonia do
nosso restrito “universo social” é abalada por tais imprevistos. O que é o Mal, se não o que não
deveria ser? O mal existe antes de ser possível e, por isso, desafia os limites de nossa razão.
Mas, é necessário distinguir: o mal gerado por um tsunami não é o mesmo mal de um
assassinato. Há o mal natural, resultado de fenômenos da natureza, e o mal moral, o qual só
pode ser provocado por agentes morais. Com o tempo e o surgimento de adventos tecnológicos,
o primeiro tornou-se previsível, apesar de inevitável, pois opera segundo as leis das ciências
exatas. Contudo, o segundo ainda é contingente, posto que depende da deliberação humana. Ao
longo da história da filosofia, o problema do mal foi objeto de investigação sob duas
perspectivas e sofreu um laicismo profundo. Se Bem e Mal eram, outrora, objetos da Teologia,
a filosofia moderna representou a cisão entre moral e religião, submetendo esta àquela. Este
trabalho tem como objetivo analisar o primeiro momento deste embate a partir das concepções
de Santo Agostinho, Pierre Bayle e Gottfried Leibniz enquanto tentativas de solucionar o
Paradoxo de Epicuro1.

À priori, se Deus existe, então Deus é onipotente, onisciente e benevolente. Ele contém toda a
potência, todo o entendimento e é o criador de todas as coisas. No livro religioso cristão, consta
em Gênesis 1:31: “Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom”. Tendo
criado todas as coisas boas, logo, Deus deve também ser bom. À posteriori, o Mal existe. Nós
tanto o sofremos quanto o cometemos. Aparentemente, a razão e a experiência são
incompatíveis. Se o Criador é bom e faz apenas o bem, unde malum?2 Como explicar a origem
do mal sem tornar Deus o autor dos pecados? Uma possível hipótese, cuja formulação impede
a atribuição do Mal a Deus, consiste em considerar a existência de dois princípios contrários e
eternos, dos quais um é o sumo Bem e, o outro, o Mal. A partir de tal hipótese, desenvolveu-se
uma seita gnóstico-cristã, fundada por Manes: o Maniqueísmo. Pierre Bayle, no Dicionário
Histórico e Crítico, dedica um verbete aos Maniqueus. Nele, Bayle (1991, p. 144) afirma que

1
Dilema sobre a existência do mal que argumenta contra a existência de um Deus que seja concomitantemente
onipotente, onisciente e benevolente.
2
De onde vem o mal?
foi feliz o fato de Santo Agostinho ter abandonado o maniqueísmo, dado que, versado nas artes
da controvérsia, ele era capaz de remover seus erros mais grotescos e fazer dele um sistema.

Durante o curso de retórica, Agostinho foi atraído por um livro de Cícero, cujo conteúdo
consistia em uma exortação à filosofia. Apaixonou-se pelo fato de o escrito excitar à busca pela
sabedoria, qualquer ela fosse, mas a ausência de Cristo no livro impedia que fosse por este
conquistado inteiramente. Após a leitura de Cícero, a Bíblia Sagrada pareceu, para Agostinho,
uma obra indigna. O continente simples da Sagrada Escritura dificultou que Agostinho, guiado
por seu orgulho, reconhecesse o rico conteúdo que ali existia. Assim, ocorreu a adesão de
Agostinho à seita maniqueia, composta por “homens desvairados pela sua presunção,
extremamente carnais e loquazes” (AGOSTINHO, 2002, p. 68). O maniqueísmo,
aparentemente repleto de raciocínios sofisticados, satisfazia Agostinho tanto intelectual quanto
espiritualmente. O continente venceu o conteúdo:

“Eu ignorava a outra realidade, a verdadeira, e era levado a aceitar o que me parecia o
penetrante raciocínio de estúpidos impostores, quando me faziam perguntas sobre a
origem do mal, se Deus se circunscreve a uma forma corpórea, se tem unhas e cabelos,
se se devia considerar honesto quem tivesse ao esmo tempo várias mulheres, quem
assassinasse homens e quem sacrificasse animais. Na minha ignorância, ficava
perturbado com tais perguntas, afastando-me da verdade enquanto pensava aproximar-
me dela.” (AGOSTINHO, 2002, p. 71)
Inserido em tal doutrina, Agostinho articulou mal e culpabilidade: “Conservava ainda a ideia
de que não éramos nós que pecávamos, mas alguma outra natureza estabelecida em nós.”
(AGOSTINHO, 2002, p. 128). A cosmogonia maniqueia afirma que havia uma massa hostil, a
qual não foi gerada nem descartada por Deus, e esta possuía seu próprio reino e suas criaturas.
Em um dado momento, essa massa rebelou-se contra Deus. Ele, por sua vez, enviou alguma
partícula de sua própria substância e suavizou a força hostil. A partir dessa amálgama, fabricou-
se o mundo. Dessa forma, toda e qualquer criatura teria, em si, a substância do bem e a
substância do mal. Se o homem é constituído naturalmente pelo bem e pelo mal, então suas
ações são apenas resultado de uma inclinação natural, e não de sua vontade. Ou seja, não há
liberdade e, portanto, não há também responsabilidade pelo mal cometido, porque este é
imposto a quem o comete. No maniqueísmo, o mal é um princípio ontológico e material, e a
dualidade de princípios garante a isenção da culpabilidade às criaturas.

Tanto para Agostinho quanto para Bayle, o argumento maniqueu é inconsistente. Contudo,
Bayle diferencia argumentos à priori de argumentos à posteriori. Para ele, toda teoria necessita
de duas coisas para ser considerada boa, respectivamente: i) deve possuir ideias distintas e ii)
deve levar em conta a experiência. No verbete Paulicianos, Bayle elucida: “Do ato à potência,
a inferência é válida.” (1991, p. 168). Assim, apesar da inconsistência teórica do maniqueísmo
– em outras palavras, a fraqueza de argumentos à priori -, a força do maniqueísmo está em seu
potencial explicativo dos fenômenos da experiência, isto é, em seus argumentos à posteriori.
Bayle complementa: “o modo como o mal foi introduzido sob o governo de um supremo,
infinitamente bom, infinitamente santo, e infinitamente poderoso ser é não somente
inexplicável, mas também incompreensível.” (1991, p. 168-169). Destarte, seria o maniqueísmo
a melhor resposta ao problema do mal? Para Agostinho e Leibniz, não.

De acordo com Agostinho, as inconsistências maniqueias iniciam-se com a narrativa da gênese


do universo. O que poderia fazer a massa hostil contra Deus, se não quisesse lutar contra ela?
Pois, se Deus é incorruptível, não há nenhum dano que tal massa pudesse causar-lhe. Em
contrapartida, o pressuposto da corruptibilidade de Deus é racionalmente abominável. Se Deus
é corruptível, então é fácil imaginar qualquer outro ser melhor do que ele. Nesse sentido,
corrobora Bayle: “eles [os argumentos à priori] levam-nos necessariamente a rejeitar essa
hipótese [dois princípios] e a admitir apenas um princípio em todas as coisas.” (1991, p. 145).
Em relação ao mal e à culpabilidade, admitir que o homem não é responsável pela sua má
conduta é pensar que Deus pode sofrer o mal – visto que, no que tange ao maniqueísmo, Deus
necessariamente luta contra a força hostil – em vez de reconhecer que o homem possa fazê-lo.
Se não há livre-arbítrio e vontade, como pregam os maniqueus, Agostinho (2002, p. 173)
questiona de onde surgiu a vontade perversa que transformou o anjo, feito inteiramente pelo
Criador, em diabo. Pois, se nele não havia o princípio do mal, posto que é exclusivamente uma
criação divina, o mal só pode ter sido originado de sua própria vontade, assim como Agostinho
supõe que o homem seja capaz de fazê-lo por si.

Outra inconsistência do maniqueísmo situa-se na materialidade dos princípios. Anteriormente


ao contato com os livros platônicos, Agostinho associava o Ser à matéria e o Não-ser ao vazio.
Dessa forma, tudo o que é deveria ter uma existência corpórea. Como o bem e o mal existem,
deveriam existir também dois tipos de matéria, cada uma contendo um dos princípios. Contudo,
Deus não pode ser concebido por intermédio da experiência e não há mal na criação divina.
Inspirado pela leitura das obras platônicas, Agostinho (2002, p. 186-187) busca a verdade no
próprio íntimo e a encontra no inteligível. Deus é infinito, mas não difuso por lugares finitos e
infinitos. Se o fosse, Agostinho (2002, p. 171) exemplifica, Deus estaria presente em maior
parte em um elefante do que em um pardal, por ser maior e ocupar mais espaço – o que é
absurdo. Assim, o filósofo concebe dois níveis ontológicos. Deus é o Ser, e é verdadeiro ser o
que permanece imutável. As coisas abaixo de Deus classificam-se tanto como seres, porque são
provenientes do verdadeiro Ser, mas também não seres, porque não são o que Deus é. O Ser
absoluto é absolutamente incorruptível e corresponde ao sumo Bem. As coisas passíveis de
corrupção não são integralmente boas, pois, se o fossem, não seriam corruptíveis. No entanto,
também não podem ser destituídas de todo o bem, uma vez que não haveria o que corromper
nelas se não fossem boas. Consequentemente, toda a criação é boa, porque, se perder todo o
bem, absolutamente não será. E o mal não é substância, porque, se o fosse, seria bom.

Respondida a questão “unde malum?”, resta a pergunta: unde malum faciamus?3

Agostinho atesta: “O fato de estar sem culpa e de não dever confessar o mal após tê-lo cometido
satisfazia o meu orgulho; desse modo eu não permitia que curasses minha alma que pecara
contra ti preferindo desculpá-la e acusar não sei qual outra força, que estava em mim, mas não
era eu. Na realidade, tudo aquilo era eu, mas a impiedade me dividia contra mim mesmo.”
(2002, p. 128-129). O mal que fazemos, em outras palavras, o mal moral, é decorrente do livre-
arbítrio. Nós somos dotados de vontade. A criação de Deus é boa. A vontade é a inclinação
natural para o bem. Contudo, Deus é o bem supremo, uma vez que é incorruptível, e a sua
criação representa um bem ínfimo, posto que é corruptível e não corresponde ao que Deus é.
Diante disso, quando a nossa vontade tem como fim apenas as coisas do mundo, tal vontade é
pervertida. Assim, o mal moral é efeito da vontade perversa ao aproximar-se do ínfimo quando
deveria objetivar o bem infinito, que é Deus.

Aproximadamente XVIII séculos após Agostinho, durante a modernidade, Leibniz reformula a


defesa da bondade de Deus, dado que a privação do bem como resposta ao problema do mal
não necessariamente isenta Deus da autoria dos pecados, como alega o filósofo em L’auteur du
peché: “Ce seroit donc se moquer du monde, que de dire, que le peintre est l’auteur de tout ce
qu’il y a de reel dans les deux tableaux, sans estre pourtant l’auteur du privatif.”4 Após criar o
mundo, Deus contemplou sua criação e tudo havia ficado muito bom. Entretanto, o mundo não
é bom porque Deus o fez, mas Deus fê-lo por ser bom. Isto posto, Leibniz submete a vontade
divina ao seu entendimento. Se Deus agisse apenas segundo sua vontade, então nada o
diferenciaria de um tirano. De maneira oposta, por ser Deus onisciente e possuir o entendimento
sobre todas as possíveis realidades, a sua vontade é posterior a sua razão de querer. Ademais, a

3
De onde vem o mal que fazemos?
4
“Isso seria então zombar do mundo, dizer que o pintor é o autor de tudo que há de real nos dois quadros, sem
ser, contudo, o autor do privativo.” (Tradução livre)
perfeição divina pressupõe que Deus aja sempre com igual perfeição, visando uma regra geral
da bondade, em detrimento de uma bondade arbitrária, sem razão de querer.

Nesse contexto insere-se o melhor dos mundos possíveis do otimismo leibneziano. Leibniz
distingue as verdades de fato e as verdades de razão. De um lado, as verdades de fato são
contingentes e seu oposto é possível. Estas se referem a eventos particulares. Por outro, as
verdades de razão são necessárias e seu oposto é impossível. São estas as “verdades eternas da
metafísica e da geometria e, por conseguinte, também as regras da bondade, da justiça e da
perfeição.” (LEIBINIZ, 2017, p. 15). Não se pode conhecer os pormenores das razões pelas
quais Deus escolheu esta ordem universal e não outra, ou seja, não se pode conhecer as verdades
de fato, mas se pode conhecer as condutas gerais da Providência; em outras palavras: as
verdades de razão. O ótimo está na escolha de Deus pelo mundo que despende o menor número
de vias para a maior riqueza de efeitos. Se a opção pela existência do mal configurou tal
ordenação, então, para garantir a otimização, Deus o permitiu.

Assim, para ausentar Deus da autoria dos pecados, Leibniz diferenciou querer e permitir.
Primeiramente, deve-se considerar que Deus possui uma vontade geral ou consequente e uma
vontade particular ou antecedente. A vontade antecedente visa sempre o bem e, logo, tem como
escopo o objeto nele mesmo. A vontade consequente alude aos objetos de sua vontade geral,
ou seja, as ações das outras criaturas. Dessa forma, faz-se necessário separar as ações boas em
si mesmas e as ações acidentalmente boas. As ações boas em si mesmas são objetos do querer
de Deus, entretanto, as ações acidentalmente boas são más em si, mas Deus as permite porque,
do mal por elas causado, encontra-se mais perfeição no fim do que se não houvesse mal.

Para Agostinho, o mal é privatio boni. Bayle, ao retomar e indicar a força do maniqueísmo,
mostra como a resolução agostiniana é insuficiente para a modernidade, pois a existência de
Deus uno em um mundo onde há o mal não é somente inexplicável como também
incompreensível. Leibniz, por sua vez, discorda de Bayle e não deixa sua razão calar: tece a
Teodiceia e descreve logicamente os caminhos da providência. O mal nos é estranho,
indesejável, rude e indelicado, mas garante que vivamos o melhor dos mundos possíveis.

Bibliografia

AGOSTINHO. Confissões, 2002. São Paulo: Editora Paulus

BAYLE, Pierre. Historical and Critical Dictionary: Selections, ed. by Richard H. Popkin and Craig Bush
(Hackett, 1991)

LEIBNIZ, Gottfried W. Discurso de Metafísica, 2017. Edições 70.

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