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Ursula Elin Huws

VIDA, TRABALHO E VALOR NO SÉCULO XXI:


desfazendo o nó1

DOSSIÊ
Ursula Elin Huws *

Costuma-se argumentar que a teoria do valor-trabalho de Marx não mais se aplica ao mundo
contemporâneo, em que partes crescentes da população estão envolvidas em trabalho “imaterial”
ou trabalho “digital”. Este ensaio argumenta que essa teoria ainda é relevante, mas que, a fim de
entender como ela pode ser aplicada ao trabalho imaterial e ao trabalho de modo mais geral, é
necessário analisar criticamente os três principais componentes da teoria: a natureza particu-
lar de qualquer forma de trabalho, o valor que é criado por esse trabalho e os meios de subsis-
tência do trabalhador. Essa análise nos permite não apenas distinguir entre “tempo de trabalho
necessário” e mais-valia, mas também identificar o local de produção. Em um mundo em que
novas atividades estão sendo constantemente trazidas para dentro da esfera das relações sociais
capitalistas e novas mercadorias sendo produzidas, é importante identificar esses locais de
produção e os trabalhadores que estão diretamente envolvidos na produção de mais-valia,
porque são esses trabalhadores que têm o potencial, ao retirar seu consentimento, de se organi-
zar de forma eficaz junto aos interesses comuns da classe trabalhadora global.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria do valor trabalho. Trabalho imaterial. Mercadorização. Monetarização
da internet. Trabalho. Trabalho digital. Trabalho produtivo e improdutivo.

Como o marxismo esteve continuadamente entre produção, distribuição e consumo aos pou-
dentro ou fora de moda, dificilmente há um con- cos se dissolvem e, enquanto alguns trabalhos re-
ceito marxista que, em algum momento, não tenha munerados se transformam em trabalhos não re-
sido questionado como anacrônico à luz das trans- munerados, novos empregos e novas atividades
formações econômicas e políticas que ocorreram econômicas são geradas a partir de áreas da vida
ao longo do último século e meio. A atual renova- que foram tradicionalmente vistas como fora do
ção do interesse nas ideias de Marx não é uma escopo de qualquer mercado. No vai e vem da
exceção. De fato, não é tarefa fácil aplicar conceitos mercadorização,2 o abstrato se torna concreto e o
teóricos desenvolvidos em meados do século XIX concreto, abstrato, lançando dúvidas sobre cate-

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a um mundo onde o capitalismo penetrou em cada gorias conceituais que, a princípio, pareciam
região e em cada aspecto da vida, onde o ritmo da autoevidentes. Pode parecer que nós precisamos
mudança tecnológica é tão rápido, que processos de novas definições dos conceitos mais básicos
de trabalho se tornam obsoletos meses após serem usados por Marx, inclusos os de “classe”, “merca-
introduzidos, e onde a divisão do trabalho é tão doria” e “trabalho”.
intrincada que nenhum trabalhador individual tem Uma ideia em voga, que tem atraído consi-
alguma chance de apreendê-la em toda sua com- derável apoio, especialmente entre os mais jovens,
plexidade. Divisões entre trabalho manual e não é a noção de que a ideia de classe trabalhadora
manual são desfeitas e reconstituídas, fronteiras definida por sua relação direta com a produção é
antiquada. Segundo tais argumentos, como todos
* Doutora em Sociologia pela London Metropolitan
University. Professora do Departamento de Business da os aspectos da vida foram desenhados, de alguma
Universidade de Hertfordshire. forma, no âmbito do nexo capitalista do dinheiro,
Hatfield, AL10 9AB, UK. u.huws@herts.ac.uk
1
Uma versão alterada deste ensaio foi publicada em Socialist
Register, 2014, com o título “The Underpinnings of Class 2
N.T.: ao longo do texto, optamos pelo neologismo
in the Digital Age: Living, Labour and Value”. Tradução: “mercadorização” para expressar o sentido do termo
Sávio Cavalcante e Murillo van der Laan. commodification utilizado pela autora.

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todos aqueles que não são, de fato, parte da classe sob o capitalismo. Esses debates, assim, fornecem
capitalista devem ser considerados como parte de um ponto de partida útil para investigar a própria
uma “multidão” indiferenciada que, na formula- teoria do valor trabalho e como (ou, alguém pode-
ção de Hardt e Negri (2004), assume o lugar da ria se perguntar, mesmo se) ela pode ser emprega-
classe trabalhadora; ou um “precariado” que, se- da no contexto do século XXI.
gundo Standing (2011), constitui uma nova classe Este ensaio sustenta que ainda é possível
em si e para si ao lado do proletariado tradicional. utilizar a teoria de Marx nas condições atuais para
Standing não procura situar esse “precariado” com definir o que é, ou não é, uma mercadoria, para
qualquer precisão em relação aos processos de identificar o local de produção de tais mercadori-
produção capitalistas. Entretanto, muitos dos se- as, sejam materiais ou imateriais, e para definir a
guidores de Hardt e Negri têm se empenhado em classe trabalhadora global em relação a esses pro-
tentativas detalhadas de fazê-lo em relação à “mul- cessos de produção. Para proceder de tal maneira,
tidão”. Duas questões em particular os têm confun- entretanto, é necessário reexaminar a teoria do va-
dido: que tipo de mercadoria está sendo produzido lor trabalho em todas as suas dimensões. Eu con-
pelos membros dessa multidão quando ela se en- cedo atenção particular aos trabalhos de natureza
volve em trabalho “imaterial”, “afetivo” (Hardt; Negri, “digital” ou “virtual”, não apenas porque eles es-
2004) ou “livre” (Terranova, 2000)? E como o valor tão atualmente atraindo muita atenção, mas tam-
produzido por esse trabalho reverterá ao capital? bém porque o trabalho on-line é particularmente
Nesses debates, uma atenção particular tem difícil de conceituar. Ele é, dessa forma, uma fonte
sido dada ao valor criado online pelo trabalho vir- fértil de casos exemplares a partir dos quais po-
tual ou digital. No campo que tem se tornado co- dem ser testadas hipóteses mais amplas. Se uma
nhecido como internet studies, houve recentemen- teoria pode ser aplicada nesse caso, então ela de-
te debates acalorados sobre o trabalho digital3 e veria ser aplicável de maneira geral. O objetivo de
como ele deveria ser conceituado. Esses debates assim proceder é permitir um mapeamento mais
têm abordado as fronteiras crescentemente difusas geral da classe trabalhadora, ao longo de toda a
entre trabalho [labour] e jogo [play] (sintetizadas economia, ao utilizar a teoria de forma mais ampla
pelo termo playbor (Kücklich, 2005) e entre pro- (como Marx o fez). Essa é uma tarefa importante, a
dução e consumo (prosumption4 e cocriação5); têm meu ver, porque, sem uma clara noção dos traba-
discutido a categoria problemática de trabalho li- lhadores que estão diretamente envolvidos na re-
vre6 e questionado se tal trabalho, pago ou não lação antagônica com o capital, o que caracteriza a
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pago, pode ser considerado como produtor de mais- produção de mercadorias, e sem identificar onde
valia e se ele é passível de ser explorado ou aliena- a produção está localizada, é impossível identifi-
do. À exceção de Ross, poucos desses autores têm car estratégias que permitirão que o trabalho con-
esboçado paralelos com outras formas de trabalho fronte o capital no local onde é possível exercer
realizadas off-line. Porém, muitas das questões que algum poder para moldar o futuro de acordo com
eles levantam se aplicam muito mais ao trabalho seus próprios interesses.
3
A teoria do valor trabalho é o nó que está no
Ver, por exemplo: Andrejevic (2009), Arvidsson e
Colleoni (2012), Banks e Humphreys (2008), Fuchs centro da conceitualização de Marx do capitalis-
(2010), Fuchs (2012), Hesmondhalgh (2011), Ross
(2012), Scholz (2012), Terranova (2012). mo como uma relação social. Ela une integralmen-
4
Alvin Toffler cunhou esse termo em seu livro The Third te três coisas: a necessidade de subsistência dos
Wave, de 1980, publicado pela Bantam Books. Desde
então, tem sido usado por diversos outros escritores trabalhadores, seu trabalho e a mais-valia expro-
trabalhando nos marcos do marxismo, incluso Christian
Fuchs e Ed Comer. priada dos resultados desse trabalho, sem a qual o
5
A expressão é de Banks e Humphreys (2008), que usam capital não pode ser acumulado ou o capitalismo
um termo derivado de Prahalad e Ramaswamy (2000).
6
se perpetuar. A expropriação de trabalho é o ato
Termo cunhado por Terranova em seu influente artigo
publicado em 2000. de violência no centro dessa relação, e é o tempo

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de trabalho dos trabalhadores que constitui o âma- ensaio não pretende reescrever toda a teoria de
go da luta dessa mesma relação, de maneira que Marx. Em vez disso, tomará algumas das questões
um entendimento sobre como e sob quais circuns- levantadas nesses debates sobre trabalho digital
tâncias essa expropriação se realiza é crucial para como ponto de partida para examinar os fatores
a compreensão tanto do capitalismo como um sis- que devem ser levados em conta em qualquer ela-
tema quanto para o entendimento sobre que traba- boração contemporânea da teoria de Marx. Isso será
lhadores podem ser considerados como perten- feito ao tentar desembaraçar os três fios – vida (ou
centes à classe trabalhadora. O nó não pode ser subsistência), trabalho e valor –, de modo a
desfeito: cada laço é essencial para manter o siste- categorizar seus componentes em separado, o que
ma unido. Não obstante, parece necessário examiná- faremos em ordem inversa, refletindo as priorida-
lo, fio por fio, para então podermos apreender como des dos atuais debates nesse campo.
ele se une, o que o contrai e o que permite que Esses conceitos são todos muito usados e
novos segmentos sejam emaranhados ou, para os difíceis de ser reempregados sem trazer conjunta-
que já existem, que eles fiquem entrelaçados de mente uma carga grande de significados associa-
uma forma mais elaborada. dos, intencionais ou não intencionais. Portanto
Na sua forma mais básica, o argumento é talvez seja útil começar com duas notas explicativas.
notavelmente simples: o trabalhador, obrigado a A primeira diz respeito à terminologia. Em
fazê-lo para sobreviver, trabalha um número dado sociedades capitalistas avançadas, não apenas a
de horas para o capitalista, produzindo certo valor divisão do trabalho é extremamente complexa como
como resultado. Parte desse valor é essencial para também o é a distribuição de riqueza. A subsistên-
cobrir os custos de subsistência, e as horas traba- cia dos trabalhadores é atingida não apenas como
lhadas para produzir esse valor (“tempo de traba- um resultado direto do trabalho assalariado, mas
lho necessário”) são (usualmente) reembolsadas. também através de redistribuição, por meio do sis-
O restante (“mais-valia”) é apropriado pelo capita- tema financeiro (na forma de crédito, seguro priva-
lista para distribuir como lucro e investir em no- do, planos de previdência, etc.) e por meio do
vos meios de produção. Com base em um exame Estado (em forma monetária, através de taxas e sis-
mais próximo, contudo, praticamente todo elemen- temas de seguridade social, e em espécie, por meio
to dessa simples história se mostra aberto a de serviços providos pelo Estado). Num contexto
questionamentos. O que, exatamente, é trabalho como esse, a conexão direta entre trabalho e valor
(labour)? E, mais particularmente, que trabalho é pode ser obscura. É comum aos analistas segui-

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produtivo? Como a subsistência deve ser defini- rem Marx ao classificar trabalho como “produti-
da? Isso inclui apenas o que o trabalhador indivi- vo” e “improdutivo”. A abordagem que adoto nes-
dual precisa para se manter, ou também inclui o te ensaio se baseia em insights provenientes do
que é requerido para o sustento de todo seu lar? feminismo e estabelece uma distinção ligeiramen-
Se não pudermos definir subsistência de forma te diferente. Trata-se de uma diferenciação entre
precisa, como poderemos calcular o “tempo de tra- trabalho que é diretamente produtivo para o capi-
balho necessário”? E, apenas porque todo valor, talismo como um todo (que pode ser chamado de
no interior do capitalismo, deriva, em última ins- reprodutivo) e trabalho que é diretamente produ-
tância, dos resultados do trabalho humano em- tivo para capitalistas individuais (que, pela falta
pregado às matérias-primas da terra, isso significa de um termo melhor, chamei de “diretamente pro-
que todo o valor que reverte ao capitalista indivi- dutivo”). Traço ainda uma distinção adicional en-
dual é necessariamente mais-valia? tre trabalho que é remunerado e trabalho que não é
Os debates atuais em torno do trabalho di- remunerado. Defendo que (embora dependente de
gital tocam superficialmente algumas dessas ques- outras formas de trabalho para sua reprodução) a
tões e simplificam outras demasiadamente. Este forma por excelência de trabalho que caracteriza o

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capitalismo é trabalho que produz valor para o munerado que produz valor diretamente ao capi-
capital e produz a renda que é necessária para a tal, sem contribuir para a subsistência do trabalha-
sobrevivência do trabalhador; trabalho cujo pró- dor. Em contrapartida, certamente, há trabalho re-
prio desempenho contém, dentro de si, a contes- munerado que contribui para a subsistência sem
tação do tempo de trabalho entre trabalhador e ca- criar valor diretamente ao capital. Depois de pas-
pitalista e em cujo cerne reside a chave da expro- sar algum tempo considerando uma gama de alter-
priação, a experiência que Marx descreveu como nativas, decidi – muito a contragosto e apenas para
“alienação” (um termo que se tornou, infelizmen- os objetivos deste ensaio – usar um termo abrevi-
te, tão contaminado por outros significados, que ado para distingui-lo de outras formas de trabalho
já não pode ser mais usado com a precisão empre- produtivo e assalariado. Com base na metáfora que
gada por Marx); trabalho que, em outras palavras, usei para descrever a teoria do valor trabalho, refi-
está no centro do processo de acumulação. O local ro-me a ele a seguir, portanto, como trabalho que
de trabalho não é, com certeza, o único lugar em está “dentro do nó”. Isso corresponde ao quadrante
que o trabalho confronta o capital, mas, pelo fato C no diagrama acima.
de o capital não poder ser acumulado sem o con- Trabalho “dentro do nó”, nessa definição, é
sentimento dos trabalhadores, é a esfera na qual o o trabalho realizado diretamente para um empre-
trabalho tem o maior poder potencial para arran- gador capitalista por um trabalhador que é depen-
car concessões do capital (sem recorrer a um der- dente desse trabalho para subsistir e é, portanto,
ramamento de sangue). Vejamos o Quadro 1 para um adversário de linha de frente na luta entre ca-
pital e trabalho em
relação a quanto tem-
po de trabalho deve-
ria ser trocado por
determinada quanti-
dade de dinheiro.
Isso pode parecer
uma definição um
pouco limitada. É, de
fato, o tipo de defini-
ção que foi muito
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criticada nas décadas


uma representação diagramática. de 1960 e 1970, por excluir grandes grupos de
A despeito de sua importância fundamen- trabalhadores que frequentemente viam a si mes-
tal, encontrar um termo inequívoco para tal traba- mos como parte da classe trabalhadora, incluindo
lho é surpreendentemente algo diverso. O termo trabalhadores do setor público e alguns trabalha-
“trabalho assalariado” abrange o trabalho que Marx dores de serviços, cuja relação com a produção era
designou como produtivo e improdutivo. Também indireta. Ao usá-la aqui, não estou afirmando que
exclui várias formas de trabalho (trabalho por peça, tais trabalhadores não são produtivos. Pelo contrá-
trabalho freelance, etc.) pagas em formas não assa- rio, muitas das tarefas que eles executam são essen-
lariadas, que contribuem diretamente para a acu- ciais para a reprodução do trabalho. Entretanto, a
mulação de capital e para a subsistência dos traba- exposição desses trabalhadores à dura lógica do
lhadores. Definir trabalho apenas em termos de capitalismo pode ser um pouco atenuada, seja por-
ser produtivo ou não, no sentido de Marx, ignora que eles estão trabalhando sob formas antigas de
a realidade de que há (como será discutido abaixo) emprego (por exemplo, como empregos domésticos
uma quantidade considerável de trabalho não re- ou como pequenos produtores de mercadorias), seja

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porque são empregados pelo Estado para oferecer rentes formas de trabalho em sua relação com a
serviços ainda não mercadorizados. acumulação de capital e com a subsistência dos
Naturalmente, tais formas de trabalho ainda trabalhadores, ao cumpri-lo não pretendo produ-
existem, mas, como argumentei em outro momento zir uma classificação de trabalhadores que possa
(Huws, 2012), na atual onda de mercadorização, es- ser lida de maneira simplista a partir dessa tipologia.
sas formas de trabalho estão diminuindo, e os traba- A maioria dos trabalhadores se envolve em vários
lhadores que as executam estão sendo rapidamente tipos diferentes de trabalho, remunerados e não
arrastados para “dentro do nó”. Em outras palavras, remunerados, simultaneamente e ao longo do cur-
a mercadorização de serviços públicos tem produzi- so de suas vidas, transpondo essas categorias sim-
do uma grande mudança de trabalho do quadrante ples. Mais importante ainda, a maioria dos traba-
A para o quadrante C, no diagrama acima. lhadores vive em lares onde diferentes tipos de
Como já afirmei em outra ocasião (Huws, trabalho são realizados por diferentes membros da
19827), essa não é a única mudança que está acon- família, algum dos quais, em dado momento, pode
tecendo. A mercadorização mais geral de bens de estar desempregado. Uma grande questão é se os
consumo e serviços também tem acarretado gran- membros dessa família percebem ou não a si mes-
des mudanças do quadrante B para o quadrante mos, ou podem ser percebidos por outros, como
D, transformando a natureza de trabalho não re- pertencentes à classe trabalhadora.
munerado, de uma produção direta de valores de
uso para membros das famílias, em compra de
mercadorias no mercado, acarretando uma relação A RELAÇÃO ENTRE TRABALHO DIGITAL E
direta com a produção capitalista e atividades de OUTRAS FORMAS DE TRABALHO
distribuição. Em mais uma reviravolta, tem havi-
do também uma mudança do trabalho do quadrante Antes de iniciar essa análise, vale dizer que
C para o quadrante D, visto que as companhias o trabalho digital não pode ser entendido como
capitalistas de produção e distribuição reduziram uma forma destacada de trabalho, separada her-
seus custos de trabalho, aumentando a exploração meticamente do resto da economia. Como afirmei
de seus trabalhadores remunerados ao externalizar em outro momento (Huws, 1999), a existência de
cada vez mais tarefas a consumidores, que têm de uma esfera visível, separada de trabalho não ma-
realizá-las como atividades de autosserviço não nual, não é prova de um novo campo de atividade
remuneradas. Em um processo paralelo, medidas econômica “baseado no conhecimento”, “imaterial”

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de austeridade também estão levando a uma mu- ou “sem peso”; é simplesmente uma expressão do
dança de atividade do quadrante A para o quadrante crescimento da complexidade da divisão do traba-
B, o que, por sua vez, coloca mais pressões sobre lho, com a fragmentação de atividades em tarefas
a mudança ulterior de B para C. separadas, tanto mentais quanto manuais,
Assim, o trabalho “dentro do nó” constitui crescentemente passíveis de serem dispersas geo-
um subconjunto de todo o trabalho e está se ex- gráfica e contratualmente para diferentes trabalha-
pandindo rapidamente rumo a se tornar a esmaga- dores, que podem mal saber da existência um do
dora maioria do trabalho remunerado. outro. Esse é um processo contínuo, com cada ta-
Minha segunda nota de advertência refere- refa sujeita a divisões ulteriores entre funções mais
se ao perigo de se extrapolar uma tipologia do tra- criativas e (ou) de controle, por um lado, e outras
balho em uma tipologia de trabalhadores e, mais de rotina e repetitivas, por outro.
consequentemente, em uma tipologia de classe. Ademais, se houve claramente uma enorme
Enquanto parte de meu objetivo é classificar dife- expansão de trabalho não manual, de rotina e não
qualificado, em contrapartida, ele permaneceu uma
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Reproduzido em Huws (2003, p.35-41). minoria de todo o trabalho. A crescente visibilida-

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de para observadores, nas economias desenvolvi- mo global, qual é a composição dessa força de tra-
das, de trabalho aparentemente desmaterializado, balho, como ela está mudando e que lealdades de
dependente de tecnologias de informação e comu- classe esses trabalhadores podem expressar.
nicação (TICs), tem servido, algumas vezes, para
obscurecer a realidade de que essa atividade “vir-
tual” é dependente de uma base altamente materi- VALOR
al de infraestrutura física e de mercadorias manu-
faturadas, a maioria das quais é produzida fora de Em termos simples, pode-se dizer que exis-
seu campo de visão, nas minas da África ou da tem, principalmente, três modos pelos quais as
América Latina, nas sweatshops8 da China e ou- empresas podem gerar lucro no capitalismo, sen-
tros locais no mundo em desenvolvimento. A do que os dois primeiros também existiram em
internet não poderia ser acessada por ninguém sem outros sistemas. Trata-se de rendas [rent], comér-
a geração de energia, cabos, satélites, computado- cio e geração de mais-valia através da produção de
res, comutadores, telefones celulares e milhares mercadorias. Uma vez que é a forma paradigmática
de outros produtos materiais, sem a extração de de geração de valor no capitalismo, é a produção
matérias-primas que formam essas mercadorias, de mercadorias que recebe a maior atenção de ana-
sem o lançamento de satélites ao espaço para car- listas marxianos. Se o valor está visivelmente sen-
regar seus sinais, sem a construção de edifícios do gerado a partir de alguma atividade, a tendên-
nos quais essas mercadorias são projetadas e mon- cia é buscar pela mercadoria em sua fonte. Se a
tadas e de onde são vendidas, e a manufatura e mercadoria não pode ser facilmente identificada,
operação de veículos nos quais são distribuídas. ou se ela não parece ser produzida através da ex-
A produção física de mercadorias materiais é ain- tração de mais-valia de trabalhadores remunera-
da o método preferido do capitalismo para gerar dos, então se conclui, algumas vezes, que isso sig-
lucro; ela ainda está crescendo e parece provável nifica que a teoria do valor trabalho de Marx não
que continue a empregar a maior parte da força de se aplica e que está obsoleta ou tem necessidade
trabalho mundial. Há, ademais, um continuum en- de adaptação. Todavia, antes de saltar à conclusão
tre tarefas que envolvem predominantemente o de que teorias inteiramente novas são necessárias
exercício da força física ou destreza e aquelas que para explicar as atividades on-line, vale a pena
envolvem agilidade mental, compromisso ou con- analisar essas últimas em relação às formas tradi-
centração. Há poucos empregos que não exigem cionais de geração de valor para conferir se elas se
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dos trabalhadores que tragam seus próprios co- encaixam nessas categorias.
nhecimentos, discernimento e inteligência para a
atividade em questão, e são ainda menos numero-
sos os trabalhos que não envolvem alguma ativi- RENDAS
dade física, mesmo que seja apenas falar, ouvir,
observar uma tela ou bater em teclas. O ponto de partida para muitas das discus-
Dito isso, uma grande e crescente parte da sões atuais sobre o valor que é gerado na internet é
força de trabalho está envolvida na execução de a indiscutível realidade de que companhias on-
“trabalho digital”, do qual os produtos são intan- line, como Google e Facebook, são enormemente
gíveis. Muito desse trabalho é mal remunerado e lucrativas. Se elas estão gerando lucros, argumen-
não qualificado. É importante, portanto, entender ta-se, deve ser porque alguma mercadoria está sen-
que papel seu trabalho desempenha no capitalis- do produzida, o que, por sua vez, coloca a questão
sobre o que seriam precisamente tais mercadorias
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N.T.: literalmente “fábricas do suor”, o termo sweatshops e o trabalho que as produz. No caso do Google e
designa indústrias onde se efetivam formas de
superexploração do trabalho. do Facebook, a principal fonte de ganhos são re-

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ceitas advindas de publicidade, que podem ser lucros que aumentam em proporção à escala de
atingidas com grande precisão, resultantes das cada produção”. Essa definição distingue mercadorias
vez mais sofisticadas análises dos dados gerados capitalistas como fundamentalmente diferentes da-
pelos usuários. Aqui, o conceito de Smythe (1977) quelas produzidas em outros sistemas. Um car-
da “mercadoria audiência” tem sido aproveitado pinteiro tradicional, que faz cadeiras e as vende
por certo número de comentadores, incluindo diretamente ao público, recebe mais ou menos o
Fuchs (2012). Originalmente desenvolvido como mesmo lucro em cada cadeira. O capitalista que
parte de uma tentativa marxiana de entender a eco- abre uma fábrica e emprega trabalhadores para a
nomia da publicidade no rádio e na TV comerci- produção em massa de cadeiras tem de fazer um
ais, esse conceito retrata a audiência midiática como investimento em maquinaria, edifícios, e assim por
a mercadoria que é vendida aos anunciantes para diante, e não terá um lucro na primeira cadeira,
gerar receita: “porque o poder da audiência é pro- mas quanto mais cadeiras forem produzidas nessa
duzido, vendido, comprado e consumido, ele con- fábrica, maior será o lucro em qualquer uma delas.
trola o preço e a mercadoria” (Smythe, 1981, p.233). Isso dá às cadeiras produzidas na fábrica um cará-
Fuchs aplica essa lógica à internet: “... o tempo de ter fundamentalmente diferente, em relação a seu
trabalho produtivo que é explorado pelo capital [...] valor, daquelas produzidas pelo artesão individu-
envolve [...] todo tempo que é gasto online pelos al. Há uma série de serviços, incluindo os intangí-
usuários”. E continua: “... a taxa de exploração con- veis (tais como apólices de seguro ou softwares), que
verge rumo ao infinito se os trabalhadores são não tem a mesma característica das mercadorias. É a rela-
remunerados. Eles são infinitamente explorados”. ção social na qual elas são produzidas (o trabalho
Outros colaboradores do debate do trabalho digital coagido de trabalhadores assalariados sob o controle
sugerem que a “reputação” (Hearn, 2010) ou mes- do capitalista) que lhes concede esse caráter.9
mo a vida produzida pelo “biotrabalho” (Morini; Se elas não derivam da venda de mercado-
Fumagalli, 2010) tornaram-se mercadorias. rias, como podemos entender os lucros feitos por
O conceito de Smythe, indubitavelmente, redes sociais online ou companhias de mecanis-
gerou insights úteis acerca da natureza da mídia de mos de busca? Há uma explicação alternativa, e
massa, mas também trouxe certa confusão. A su- que tem extensos antecedentes no mundo off-line:
posição subjacente entre os seguidores de Smythe eles derivam de rendas de aluguel [rent]. Um sim-
parece ser a de que o termo “mercadoria” pode ser ples exemplo histórico de uma maneira semelhan-
usado para se referir a qualquer coisa que possa te de gerar rendimento poderia ser fornecido pelo

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ser comprada e vendida. Há certa lógica circular mercado de rua, onde o aluguel [rent] cobrado por
operando aqui. Uma vez que Marx (1867) declara espaços de tendas é maior em áreas onde a maio-
que “mercadorias não são mais que trabalho cris- ria dos clientes (ou os clientes mais ricos) irá pas-
talizado” e que “um bem apenas tem valor porque sar. Exemplos concretos podem ser encontrados
há trabalho objetivado ou materializado nele”, na Quinta Avenida de Nova Iorque, na Oxford
deve-se concluir, de acordo com essa lógica, que Street de Londres, ou em qualquer outra rua com
qualquer coisa descrita como uma mercadoria deve um grande e lucrativo trânsito de pessoas: quanto
ser o resultado de trabalho produtivo. Mas quão mais bem movimentado o local, maior o aluguel.
útil é tal concepção ampla do termo? Por mais de um século, propriedades que margeiam
Parece-me que, para entender a natureza rodovias de tráfego intenso foram capazes de fazer
distinta da forma mercadoria no capitalismo, uma dinheiro ao alugar espaço para outdoors. Essas
definição um pouco diferente precisa ser usada. companhias não seguem, simplesmente, a mesma
Defini mercadorias, em outro momento (Huws,
9
2003, p.17), como “produtos ou serviços padroni- Esse argumento é feito de maneira ligeiramente diferen-
te na discussão acerca da distinção entre trabalho pro-
zados à venda em mercados cuja venda irá gerar dutivo e improdutivo realizada por Marx (1863).

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lógica, embora com locais que são virtuais, em vez de forma bem mais simples dizendo que são os
de pavimentados, e com meios bem mais sofistica- publicitários (produtores de mercadorias para ven-
dos de identificar os consumidores mais lucrati- da) que estão pagando as mídias sociais e as com-
vos e de adquirir conhecimento sobre seus dese- panhias de mecanismos de busca pela oportuni-
jos? O valor que se reverte para a rede social e para dade de anunciar para seus usuários.
sites de mecanismos de busca deriva, de fato, em Há diversas outras atividades que contam
última análise, da mais-valia produzida pelo traba- com alguma combinação de cobrança pelo uso com
lho. Mas esse é o trabalho de trabalhadores que pro- taxas de comissão a prestadores de serviços e (ou)
duzem as mercadorias que são anunciadas nesses a usuários de serviços e (ou) a anunciantes – em
sites, não o trabalho das pessoas que usam os sites.10 outras palavras, rendas de aluguel [rent].
Alguns participantes do debate sobre traba-
lho digital, como Arvidsson e Colleoni (2012),
contestam a noção de Fuchs de que usuários de COMÉRCIO
mídias sociais estão produzindo mais-valia. Eles
também argumentam que o valor gerado pode ser O comércio envolve adquirir algo por um
mais bem considerado como rendas de aluguel preço (o que também inclui roubá-lo) e vendê-lo
[rent]. Entretanto, eles usam o termo “renda” [rent] por um preço maior, obtendo um lucro nesse pro-
para se referir ao valor que se reverte aos investi- cesso. Algumas formas de roubo, como a apropria-
dores financeiros nessas empresas. Mas, nesse ção da propriedade intelectual de outras pessoas,
aspecto, eles não dizem o que distingue as compa- podem acontecer on-line. No entanto, há também
nhias on-line de quaisquer outras companhias um grande número de companhias que vendem on-
cotadas nas bolsas de valores e que atraem investi- line (Amazon é provavelmente a mais famosa) de
mentos financeiros. Na tentativa de classificar o uma forma que reproduz o comércio off-line. De
que, precisamente, gera o valor que atrai tais in- fato, muitos comerciantes agora compram e vendem
vestidores, eles desenvolvem uma explicação se- tanto on-line quanto off-line. Embora possa haver
gundo a qual “[...] plataformas de mídias sociais, alguma indefinição de fronteiras tradicionais entre
como o Facebook, funcionam como canais por meio as atividades de distribuição de fabricantes, ataca-
dos quais investimentos afetivos por parte da distas e varejistas, e alguns processos de trabalho
multidão podem ser convertidos em formas possam ser bem diferentes, não há nada misterioso
‘objetificadas’ de afeto abstrato que sustentam ava- em relação a como o valor é gerado por tais compa-
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liações financeiras”. Argumentam ainda que tais nhias. A escala de muitas dessas companhias, acres-
companhias ganham suas parcelas de “mais-valia cida ao fato de que elas tiveram de colocar em fun-
produzida socialmente” por meio “da habilidade cionamento uma ampla infraestrutura para proces-
de atrair investimentos afetivos [...] da multidão sar pagamentos internacionais, significa que algu-
ou do público global”. Esse modelo, um tanto com- mas delas têm sido capazes de diversificar em ativi-
plicado, escamoteia a questão bem mais prosaica dades rentistas, o que tem criado, por sua vez, as
sobre quem está pagando quem para o quê, no bases para novas formas de produção de mercado-
intuito de gerar retorno sobre o investimento dos rias, discutidas na próxima seção.
acionistas. Em minha opinião, pode-se responder
10
Exceto em algumas circunstâncias especiais, tais como
o caso do modelo pay per click, em que os trabalhadores PRODUÇÃO DE MERCADORIAS
são pagos para ir ao Facebook e clicar em “curtir” deter-
minados websites comerciais. Mas aqui eles não são
empregados pelo Facebook, mas por companhias ligadas Isso nos leva à categoria final: valor que é
a esses websites comerciais, que têm alguma mercadoria
a vender. Portanto, eles deveriam ser mais precisamente gerado da produção de mercadorias. Aqui, o ana-
considerados como pertencentes à cadeia de valor des-
sas companhias produtoras de mercadorias. lista que procura isolar o papel do trabalho digital

20
Ursula Elin Huws

na criação de valor se vê diante de desafios consi- força de trabalho (tais como processamento de da-
deráveis. A disseminação da computação na mai- dos da folha de pagamento ou recrutamento de
oria dos setores da economia, combinada com o pessoas ou treinamento), aqueles que contribuem
uso quase universal de telecomunicações para a para a gestão mais geral da empresa (incluindo a
comunicação, significa que há poucas atividades gestão financeira), aqueles que estão envolvidos
econômicas que não envolvem algum elemento de em atividades relacionadas a compras, vendas e
trabalho digital, não importa se eles ocorrem em marketing, e aqueles que estão envolvidos com a
fazendas, fábricas, depósitos, escritórios, lojas ou distribuição. Todas essas categorias incluem ati-
em veículos em movimento. Ademais, essas ativi- vidades que são realizadas on-line e (ou) usam uma
dades estão ligadas umas às outras em cadeias com- combinação de tecnologias de informação e comu-
plexas que atravessam as fronteiras entre empre- nicação. No entanto, estão se tornando mais e mais
sas, setores, regiões e países. Traçar a conexão de difíceis de serem distinguidas, por diversas razões
qualquer atividade de volta às suas origens, ou ir ligadas entre si.
adiante em direção à mercadoria final para a qual a A primeira delas é a natureza cada vez mais
produção tem contribuído, não é tarefa fácil. No genérica de muitos processos de trabalho. Traba-
entanto, não é, de forma alguma, impossível. Uma lhadores que alimentam dados numéricos em um
abordagem útil aqui é analisar as atividades eco- teclado, por exemplo, podem estar fazendo isso
nômicas em termos funcionais.11 para um banco, um departamento de governo ou
As funções de pesquisa e desenvolvimento uma indústria, para fins totalmente desconheci-
e de design, por exemplo, criam, claramente, dos para eles. Operadores de teleatendimento po-
insumos diretos para o desenvolvimento de no- dem estar usando scripts padrões para lidar com
vas mercadorias (ou para a adaptação das antigas). vendas, atendimento ao cliente, cobrança de dívi-
Grande parte do trabalho envolvido nessas ativi- das, pesquisas governamentais, levantamento de
dades, nos dias de hoje, se insere na categoria de fundos ou uma variedade de outras funções, cor-
trabalho digital, que envolve ferramentas baseadas tando transversalmente qualquer sistema puro, que
em computadores e (ou) é entregue em formato poderia classifica-los em diferentes categorias por
digital para os trabalhadores que vão levá-lo às função. Os engenheiros de software podem estar
próximas fases de produção. O mesmo vale para trabalhando no desenvolvimento de novos produ-
atividades cujo objetivo é desenvolver conteúdo tos, ou na manutenção dos já existentes.
para livros, filmes, CDs ou outros produtos cultu- Intimamente ligada a essa forma de padro-

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rais. O trabalho digital também está envolvido de nização está a crescente propensão de tais ativida-
várias maneiras nos processos de produção, quer des serem terceirizadas, muitas vezes para empre-
se trate da operação de ferramentas de comando sas que reúnem uma série de funções diferentes
digital, da manutenção de software, da geração de para clientes diversos em clusters de atividades
produtos imateriais ou da supervisão de outros realizadas em centros de serviços compartilhados.
trabalhadores ocupados nesses processos. A possibilidade de esses e outros serviços serem
Quando se trata de atividades de “serviço”, realizados on-line borrou ainda mais a distinção
é útil (embora cada vez mais difícil) fazer uma dis- entre os serviços prestados às empresas e aqueles
tinção geral entre aqueles que contribuem direta- fornecidos diretamente aos clientes finais. Se qual-
mente para a produção (como a limpeza do chão quer um pode encomendar produtos on-line, para
de fábrica ou manutenção das máquinas), aqueles serem entregues à porta, vindos de um depósito
que contribuem para a manutenção ou gestão da central, então a distinção entre “atacado” e “vare-
jo” se torna artificial. De forma similar, há uma
11
Discuti o conceito de “função de negócio” e sua relação gama crescente de produtos imateriais padroniza-
com a análise marxista em algumas publicações. Ver, por
exemplo, Huws (2006, 2007). dos, que vão desde licenças de software a contas

21
VIDA, TRABALHO E VALOR NO SÉCULO XXI ...

bancárias e apólices de seguro, que pode ser pron- serviço de entrega, em suma, toda a cadeia de va-
tamente vendida tanto para indivíduos como para lor do portão da fábrica (ou do local de desenvol-
empresas. vimento de software) ao consumidor final deve ser
A existência de plataformas on-line através considerada como trabalho produtivo. No entan-
das quais o trabalho pode ser coordenado levou to, apenas aquelas tarefas realizadas por trabalha-
ao desenvolvimento de uma forma extrema de sub- dores remunerados estão “dentro do nó”, onde
divisão de tarefas, às vezes conhecida como sua relação com o capital é direta e (real ou poten-
microtrabalho, trabalho de massa [crowd work] cialmente) contestada.
(Kittur et al, 2013) ou crowd-sourcing (Holts, 2013).
Se tais atividades, ainda que dispersas, são
realizadas por trabalhadores remunerados, a servi- TRABALHO
ço de empresas criadas para obter um lucro, então
elas podem ser atribuídas, sem problemas, à cate- Qualquer tentativa de classificar as diferen-
goria de trabalho que produz diretamente mais-va- tes formas de trabalho tem de começar enfrentan-
lia para o capital – o trabalho “dentro do nó”. No do a questão extraordinariamente difícil de saber o
entanto, como as fronteiras entre produção, distri- que o trabalho realmente é. A palavra em si abran-
buição e consumo tornam-se cada vez mais vagas, e ge um espectro vasto de significados, desde o es-
a mesma atividade pode ser realizada indistintamen- forço físico de dar à luz, em um extremo, à partici-
te por trabalhadores remunerados e não remunera- pação formal em um emprego ou à representação
dos, essa colocação simples precisa de alguma política das pessoas que fazem isso, no outro.
modificação. Marx foi um tanto ambivalente sobre Se o considerarmos em referência a ativida-
o trabalho de distribuição, considerando como des que são, real ou potencialmente, pagas com
produtivos os trabalhadores de transporte, mas não salários em um “mercado de trabalho”, então te-
os do varejo. No entanto, em certo momento, nos mos de incluir uma grande variedade de ativida-
Grundrisse, afirmou que todo o processo de trazer des que a maioria das pessoas realiza sem remu-
um produto para o mercado deve ser considerado neração, incluindo o sexo, o cuidar de crianças,
como trabalho produtivo: “Considerada economi- cozinhar, limpar, a jardinagem, cantar, fazer as pes-
camente, a condição espacial, trazer o produto para soas rirem e discorrer longamente sobre temas que
o mercado pertence ao próprio processo de pro- nos interessam.
dução. O produto está realmente pronto apenas Se aplicarmos um filtro mais subjetivo e ten-
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quando está no mercado.” (Marx, 1857).12 tarmos excluir as atividades que são realizadas por
Seguindo essa lógica, uma ampla gama de prazer, somos confrontados, então, com a estra-
funções encontradas em uma empresa moderna nha realidade de que a mesma atividade pode ser
pode ser atribuída a essa categoria diretamente pro- vivenciada como uma obrigação ou uma alegria,
dutiva, incluindo marketing, gestão de logística, sob circunstâncias diferentes, e, ainda, que algu-
distribuição, transporte, atendimento ao cliente, mas atividades, remuneradas ou não remunera-
vendas no varejo e atacado (on-line ou off-line) e das, podem ser simultaneamente onerosas e agra-
dáveis. O bebê, por exemplo, pode dar a você um
12
Deve-se ressaltar que há controvérsias na interpretação
dessa passagem. Frequentemente se considera que Marx sorriso radiante enquanto sua fralda malcheirosa
faz aqui uma exceção especial relacionada aos trabalha- está sendo trocada; a longa viagem solitária de um
dores do transporte (talvez porque eles fossem um gru-
po com forte potencial de organização sindical – um motorista de caminhão, de repente, pode lhe ofe-
potencial que foi mais do que efetivado no século XX,
quando os trabalhadores do transporte tiveram um pa- recer uma emocionante bela visão da paisagem; o
pel-chave nas ações coletivas industriais). De minha
parte, considero que o argumento se aplica igualmente a trabalho físico intenso, em ambientes desagradá-
outras formas de trabalho envolvidas em levar os pro- veis, pode engendrar uma camaradagem entre os
dutos ao mercado, muitas das quais eram inconcebíveis
no tempo em que Marx escrevia. trabalhadores que deixa um caloroso conforto muito

22
Ursula Elin Huws

depois de a dor muscular diminuir; resolver um sões, a principal questão levantada foi se o traba-
problema complicado pode liberar um súbito ar- lho doméstico [housework] não remunerado po-
roubo de satisfação, mesmo que o problema não deria ser considerado como produtor de mais-va-
seja daquele que o resolveu. lia, pois, sem ele, o capitalismo não poderia exis-
Outra dimensão que pode ajudar a distin- tir. A reprodução da força de trabalho depende
guir “trabalho” e “prazer” é se a atividade é realiza- fundamentalmente, argumentou-se, de trabalho
da de forma voluntária ou por coerção, sob a dire- não remunerado no lar, não apenas por criar a pró-
ção de outra pessoa ou organização. Aqui, nova- xima geração de trabalhadores, mas também para
mente, o que parece uma simples distinção se tor- fornecer a alimentação, limpeza e serviços de ma-
na notavelmente difícil de ser verificada na práti- nutenção do corpo que permitem que a força de
ca. Uma dificuldade resulta das maneiras histori- trabalho atual aja com eficiência no mercado de
camente determinadas pelas quais coisas – como trabalho. Em 1976, Weinbaum e Bridges publica-
os papéis de gênero, os conceitos de dever, ou ram um artigo pioneiro, no qual argumentaram que,
mesmo divisões de trabalho baseadas em castas – no contexto do capital monopolista, muito desse
são internalizadas, tornando padrões de poder e trabalho não envolve apenas a produção de servi-
coerção invisíveis para todas as partes e, de fato, ços em casa, mas também consumir mercadorias
dando a muitos atos de serviço uma qualidade produzidas no mercado. O conceito de “trabalho
subjetiva de dádivas de amor livremente ofereci- de consumo”, no qual o trabalho não remunerado
das, mesmo quando a análise objetiva pode suge- é substituído por aquilo que era anteriormente o
rir que envolvem a exploração do trabalho de uma trabalho remunerado dos trabalhadores de distri-
pessoa por outra. A coerção também pode ser buição, é algo que continuei a desenvolver no fi-
exercida de forma mais indireta. Um jogador vici- nal dos anos de 197013 e, nesse momento, afirmo
ado, por exemplo, pode perceber sua compulsão que é relevante para a compreensão de algumas
como gerada internamente, não reconhecendo as das novas formas de trabalho não pago que ocor-
pressões sociais que o impelem. O mesmo pode- rem on-line e off-line.
ria ser dito, talvez, de muitas das atividades on- Baseado em alguns desses trabalhos, propo-
line nas quais as pessoas gastam muito tempo, nho aqui uma tipologia um tanto provisória do tra-
incluindo jogos on-line e a interação com outras balho não remunerado, na esperança de que possa
pessoas em sites de mídia social. É, talvez, uma fornecer um ponto de partida para uma categorização
alusão a essas pressões sociais que leva tantos que irá trazer alguma clareza a esses debates.

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comentadores, nos debates de mídia digital, a in- A primeira categoria é o trabalho que é rea-
sistir que essas atividades não remuneradas são lizado independentemente do mercado para a pro-
uma forma de trabalho “livre” (Terranova, 2000). dução de valores de uso em casa – a categoria de
O trabalho não remunerado não é, natural- trabalho localizado no Quadrante B no diagrama
mente, um fenômeno novo. No entanto, tem rece- acima. É “improdutivo” no sentido de que não
bido atenção bastante irregular de estudiosos mar- produz valor direto para o capital na forma de mais-
xistas, exceto como uma espécie de repositório valia a partir do trabalho direto de alguém, mas
vestigial de relações sociais pré-capitalistas, a par- sim “reprodutivo” no sentido de que é necessário
tir das quais, depois, emergiu o trabalhador assa- para a reprodução da força de trabalho. Inclui
lariado. Afora debates entre historiadores sobre a muitas das tarefas tradicionalmente realizadas na
escravidão, muito da atenção dada ao trabalho não agricultura de subsistência e no trabalho domésti-
remunerado, até recentemente, se deu no contexto co. Se alguém é empregado, pelo usuário direto
do que poderia ser vagamente chamado de “traba- do serviço, para fazer esse tipo de trabalho (por
lho reprodutivo”, em particular nos debates femi- 13
Ver, por exemplo, Huws (1982), republicado em Huws
nistas durante os anos de 1970. Nessas discus- (2003).

23
VIDA, TRABALHO E VALOR NO SÉCULO XXI ...

exemplo, uma empregada doméstica, uma babá, A terceira categoria compreende o trabalho
um faxineiro ou jardineiro), esse trabalhador é, na criativo. Aqui, Marx (1861-1864b) tornou sua po-
opinião de Marx, um trabalhador improdutivo; mas sição clara.
se for empregado por meio de um intermediário
capitalista (por exemplo, uma creche comercial, ou Milton, por exemplo [...] foi um trabalhador im-
produtivo. Em contraste, o escritor que fornece
uma empresa de limpeza ou jardinagem), então trabalhos fracionados sob encomenda para seu
esse trabalhador desloca-se para a categoria de tra- editor é um trabalhador produtivo. Milton pro-
duziu O Paraíso perdido do mesmo modo que
balhador produtivo14 (em termos do diagrama aci-
um bicho-da-seda produz seda, como expressão
ma, do Quadrante A para o Quadrante C). Na me- de sua própria natureza. Mais tarde, ele vendeu
dida em que a manutenção da saúde emocional de o produto por cinco libras e, nesse sentido, tor-
nou-se um comerciante de uma mercadoria [...]
uma família e a manutenção das redes sociais em A cantora que canta como um pássaro é um tra-
que está inserida é uma parte necessária para asse- balhador improdutivo. Se ela vende seu canto
por dinheiro, ela é, nesse sentido, um trabalha-
gurar a sobrevivência de um lar, então uma série
dor assalariado ou um comerciante de mercado-
de atividades não físicas pode ser incluída nessa rias. Mas a mesma cantora, quando empregada
categoria. Muitas dessas atividades são realizadas por um empresário que usa seu canto com vistas
a obter dinheiro, é um trabalhador produtivo,
on-line nos dias de hoje, assim, pelo menos uma pois ela produz diretamente o capital.
parte da atividade de redes sociais on-line pode
ser identificada por essa categoria (representada De acordo com essa concepção, na medida
pelo Quadrante B no diagrama). em que é realizado para fins de autoexpressão, o
A segunda categoria de trabalho não remu- trabalho artístico não remunerado, como “blogar”
nerado é a que me referi acima como “trabalho de ou postar fotos, música ou vídeos na internet, vai
consumo” (Quadrante D no diagrama). Isso impli- diretamente para a categoria de trabalho “impro-
ca o consumidor assumir tarefas no mercado que dutivo” de Marx (que eu prefiro considerar como
anteriormente eram realizadas por trabalhadores trabalho reprodutivo não remunerado, produzin-
pagos como parte dos processos de distribuição do valores sociais de uso). Se o produto desse tra-
da produção de mercadorias. Como essas tarefas balho for posteriormente vendido, ou roubado, para
são necessárias para a distribuição dessas merca- se tornar a base de uma mercadoria, isso também
dorias e para aumentar os lucros das empresas não muda essa condição. Apenas se o trabalhador
produtoras de mercadorias, ao eliminar as formas for contratado para fazer o trabalho por um salário
de trabalho que antes eram remuneradas, há fortes é que sua atividade se torna trabalho produtivo,
CADERNO CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p. 13-30, Jan./Abr. 2014

argumentos para classificar esse tipo de trabalho no sentido do termo utilizado por Marx – ou seja,
como “produtivo”, mesmo quando não é remune- ela muda do Quadrante B para o Quadrante C no
rado. No entanto, por não gerar renda diretamente diagrama. Como Ross assinalou, muitos trabalha-
para o trabalhador, tem de ser tratado de forma dores artísticos podem oscilar entre essas formas:
diferente do trabalho remunerado em relação à sua “os criativos enfrentaram esse tipo de escolha, desde
contribuição para a subsistência, um tema a que o século XVIII, quando o aparecimento de merca-
voltarei adiante. Está, em outras palavras, “fora do dos comerciais de cultura ofereceu a eles a opção
nó”. Como já foi mencionado, quantidades cres- de ganhar a vida penosamente como escriba na
centes de trabalho de consumo são realizadas on- Pope’s Gub Street ou construir uma relação de re-
line, pois a internet abriu um leque de novas for- putação com um público inconstante.” (Ross,
mas de externalizar15 trabalho à distância.
14
Ver Marx (1861-1864a). ses últimos para consumidores não pagos, na forma de
autosserviços, seja pela operação de máquinas, como
15
Aqui, uso o termo externalizar fazendo referência às caixas eletrônicos ou autosserviços de supermercados,
maneiras pelas quais os empregadores aumentam a pro- ou atividades online, como a compra de ingressos, pre-
dutividade de seus trabalhadores remunerados através enchimento de declarações de imposto ou encomenda
da transferência de algumas ou de todas as tarefas des- de mercadorias.

24
Ursula Elin Huws

2012, p.15). O fato de que a mesma pessoa faça os procura de emprego que ameaçam a retirada do
dois tipos de trabalho não invalida, contudo, a seguro desemprego daqueles que recusam aceitar
distinção entre eles. O trabalho criativo, portanto, tais estágios. No entanto, como o já discutido tra-
tem de ser visto de modo a abranger um número balho de consumo não remunerado, ainda que con-
de diferentes posições no mercado de trabalho,16 tribua claramente para a produção de valor na pro-
incluindo o autoemprego, o emprego remunerado dução de mercadorias, ele não desempenha ne-
e a pequena produção mercantil, o que leva, mui- nhum papel na geração atual de renda para o tra-
tas vezes, a identidades contraditórias nos traba- balhador e deve, portanto, ser considerado como
lhadores criativos. “fora do nó”, mesmo se está produzindo valor in-
A mesma lógica aplica-se até mesmo ao caso diretamente para o trabalhador não remunerado
muito discutido do “trabalho livre”, que construiu na forma de “empregabilidade”.
a internet, muito do qual foi projetado por É claro que, a fim de dar sentido à relação
desenvolvedores de software idealistas, que doa- de trabalho não remunerado para o capital, temos
ram seu trabalho de graça, na crença de que esta- de levar em conta a terceira corda do nó, que cons-
vam criando um benefício comum para a humani- titui a teoria do valor trabalho: a subsistência do
dade (em outras palavras, eles estavam produzin- trabalhador ou “vida”.
do valor de uso social sem remuneração, colocan-
do-se no Quadrante B no diagrama). Como disse
Marx (apud Ross, 2012), “[...] trabalho com o mes- VIDA
mo conteúdo pode ser tanto produtivo quanto
improdutivo”. Nesse caso, parece que, embora os A questão de como o trabalhador paga os
resultados de seu trabalho tenham sido apropria- custos de subsistência está surpreendentemente
dos pelo capital para incorporá-los em novas mer- ausente da maioria dos debates sobre o trabalho
cadorias, seu trabalho não remunerado original não digital “livre”. Talvez porque os próprios pesqui-
pode ser considerado como produtivo no sentido sadores, em muitos casos, têm empregos acadêmi-
de produzir mais-valia para o capital em condi- cos estáveis, a maioria dos autores que contribuiu
ções coercitivas (ou seja, não está “dentro do nó”). para essas discussões não se pergunta como esses
Em vez disso, o valor que foi produzido a partir trabalhadores dedicados, que construíram a internet
dele deveria mais corretamente ser colocado na com o seu trabalho livre, realmente ganham a vida.
categoria de comércio, o que, como já mencionei Também não é sempre claro, entre aqueles que

CADERNO CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p. 13-30, Jan./Abr. 2014


acima, também inclui o roubo. defendem um “Creative Commons” na internet, para
A quarta forma (ainda que sobreposta) de o qual todos os autores deveriam doar gratuita-
trabalho não remunerado, que é cada vez mais dis- mente seu trabalho, como se espera que esses au-
cutida, é o uso generalizado de estágio não remu- tores paguem o aluguel e sustentem suas famílias.
nerado ou de trabalho “voluntário”17 Situado am- No entanto, a teoria do valor trabalho não
biguamente entre a educação e a autopromoção, pode ser operacionalizada sem essa informação. A
ele é, sem dúvida, utilizado de forma altamente fim de saber quanto e como a mais-valia é gerada a
exploradora por parte dos empregadores como um partir de qualquer unidade de trabalho, precisa-
substituto direto para o trabalho remunerado. Al- mos saber o custo de reprodução desse trabalha-
gumas vezes, a coerção direta implica obrigar o tra- dor e quanto do seu tempo de trabalho é “tempo
balhador a se comprometer com “estágios não re- de trabalho necessário” exigido para manter sua
munerados”, por exemplo, as agências estatais de vida. Só então poderemos ver o quanto resta para
ser apropriado como mais-valia e começar a for-
16
Analisei minuciosamente a questão em Huws (2010). mular exigências para sua redistribuição. Isso não
17
Ver, por exemplo, Perlin (2011). é, obviamente, um cálculo mecânico. É perfeita-

25
VIDA, TRABALHO E VALOR NO SÉCULO XXI ...

mente possível que os trabalhadores sejam empre- ra, menores e crianças são comprados, o trabalha-
gados abaixo do custo de subsistência. O que faz o dor vende agora esposa e filho – ele se torna um
empregador se importar se eles morrerem, se há negociante de escravos.” (1956, p.69).
muito mais de onde eles vieram? Da mesma for- No século XXI, quando as mulheres repre-
ma, é possível que grupos bem organizados de tra- sentam quase metade da força de trabalho nos pa-
balhadores com habilidades escassas se sobressai- íses mais desenvolvidos e apenas uma minoria é
am, a despeito de suas limitações, e exijam do ca- economicamente inativa, tal explicação não é sufi-
pital um salário maior do que o necessário para a ciente. Todo trabalhador, ao ser empregado, preci-
mera sobrevivência – e que lhes permita, até mes- sa ser contabilizado separadamente como um in-
mo, empregar outros trabalhadores como empre- divíduo com seu próprio custo de subsistência a
gados domésticos. No entanto, o capitalismo como ser conquistado. O fato de que as pessoas convi-
um sistema, no modelo de Marx, requer uma clas- vem com outros trabalhadores pode, no entanto,
se trabalhadora que é obrigada a vender o seu tra- significar que esse “tempo de trabalho necessário”
balho a fim de sobreviver, assim como requer ca- deve ser considerado, por produzir uma fração,
pitalistas que sejam capazes de empregar esse tra- em vez do todo, do custo de subsistência de qual-
balho para produzir mercadorias cujo valor coleti- quer indivíduo ou, em outras palavras, que o con-
vo no mercado excede o salário total da força de ceito de “salário-família” é redundante na maioria
trabalho necessária para produzi-las. E é a experi- das circunstâncias. Uma série de outros fatores
ência direta de ser obrigado a disputar com o em- também interveio no sentido de dificultar a identi-
pregador a posse de seu tempo de trabalho que pro- ficação de uma simples correspondência entre o
duz a alienação suscetível de conduzir à consciên- que uma pessoa ganha e quanto custa sobreviver,
cia de classe. Não é possível se esquivar, portanto, pelo menos em situações em que ela coabita ou é
da questão do “tempo de trabalho necessário”. responsável por dependentes econômicos. Esses
Mas, mesmo em Marx, esse é um conceito fatores complicadores incluem transferências so-
bem problemático. Uma razão para isso é que, ciais na forma de pensões, benefícios sociais ou
embora os trabalhadores normalmente entrem no créditos fiscais, transferências intergeracionais no
mercado de trabalho como indivíduos separados, seio das famílias, remessas de emigrantes que tra-
sua subsistência ocorre em domicílios onde várias balham no exterior e outras formas de subsídio
pessoas podem coabitar.18 Pelo fato de esses domi- para alguns (ou pressões sobre os recursos de ou-
cílios variarem consideravelmente em tamanho, tros). Apesar dessas dificuldades reais de cálculo,
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composição e no número de membros ocupados é possível, no entanto, analisar o rendimento de


com trabalho remunerado, o mesmo salário pode qualquer indivíduo em qualquer domicílio e pro-
ter de se esticar para cobrir a subsistência de um duzir certa estimativa de como é gerado.
número variável de pessoas. Marx e Engels (1845) No caso do “trabalho livre” na internet, é
discutiram a divisão “natural” (sic) do trabalho na provável que uma série de fontes diferentes de ren-
família, o que eles consideraram como uma forma dimento possa estar envolvida. Parte desse traba-
de “escravidão dissimulada”, que pode até mes- lho pode ser realizada por pessoas que são econo-
mo ser considerada como a origem de toda propri- micamente dependentes de seus pais, alguns por
edade. A partir dessa premissa, de que as mulhe- pessoas sustentadas por pensões ou que recebem
res e as crianças são propriedades do chefe de fa- alguma outra forma de benefício social, alguns
mília, foi possível para Engels (1956) concluir que: podem ser feitos por pessoas com salários regula-
“[...] antigamente, a compra e venda da força de res de trabalhos que os deixam com tempo livre
trabalho era uma relação entre pessoas livres; ago- suficiente para blogar, navegar na net ou escrever
verbetes da Wikipédia. Alguns podem ser feitos
18
Escrevi mais extensamente sobre isto em Huws (2012). por pessoas (tais como jornalistas independentes,

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Ursula Elin Huws

consultores ou acadêmicos) cujos empregos as pontos críticos nos processos de produção e dis-
obrigam a se ocuparem com autopromoção. E ou- tribuição nos quais a ação dos trabalhadores pode
tros podem estar sendo sustentados por rendas ser implementada com algum resultado. E, se não
de aluguel [rent], jogos, lucros provenientes do pudermos identificá-los, os trabalhadores não po-
comércio, do crime ou de outras atividades. O que dem entender seus poderes de consentir, ou recu-
está claro, porém, é que elas não poderiam exercer sar o acordo específico que é oferecido a eles. Isso
tal atividade não remunerada sem algum tipo de os impede de renegociar ativamente os termos do
subsídio advindo de algum lugar. Caso contrário, acordo – única opção para melhorar sua situação.
como elas iriam comer? Ao falhar na organização Sem esse conhecimento, também não podemos ver
no local da produção, elas entregam a sua mais que grupos de trabalhadores têm interesses em
forte arma: o poder de retirar o seu trabalho no comum, como esses interesses comuns podem se
local onde atingem diretamente o capital. tornar mutuamente visíveis, ou como seu trabalho
pode ser interligado.
Cada uma das diferentes formas de traba-
CONCLUSÃO lho não remunerado descritas acima tem um im-
pacto sobre o trabalho remunerado, abrindo a
Vivemos em uma sociedade onde o capital potencialidade de tensões e fissuras no seio da
está altamente concentrado, com a maioria da pro- classe trabalhadora. Estagiários que trabalham de
dução de mercadorias sendo realizada por empre- graça, para se tornarem empregáveis, corroem o
sas cujos destinos são, em grande parte, molda- poder de barganha dos trabalhadores remunera-
dos por investidores financeiros. As mercadorias dos nos mesmos papéis. Realizar um trabalho de
que produzem, materiais ou imateriais, nos são consumo não remunerado afeta os trabalhadores
disponibilizadas em um mercado global, entregues do serviço, ao reduzir os níveis gerais de emprego
através de complexas cadeias de valor, em cuja e ao intensificar o trabalho através da introdução
operação nosso trabalho não remunerado como de novas formas de padronização e taylorização,
consumidores é cada vez mais envolvido. levando à deterioração das condições de trabalho.
Tecnologias da informação e comunicação têm afe- Escrever verbetes da Wikipédia, “blogar” ou pos-
tado tanto a divisão espacial e temporal do traba- tar vídeos ou fotografias on-line sem remuneração
lho que, para muitos de nós, as fronteiras entre ameaçam a subsistência de jornalistas, pesquisa-
trabalho e vida privada formam um emaranhado dores e outros trabalhadores criativos que não têm

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confuso e poucas relações não são mediadas pela a subvenção de um salário acadêmico, ou outra
tecnologia. Em tal situação, não seriam os tipos de fonte, e dependem de seu trabalho criativo para
distinções feitas neste ensaio algo minuciosamen- gerar um rendimento. Em muitos casos, as mes-
te ridículo? Será que não deveríamos apenas acei- mas pessoas ocupam vários desses papéis remu-
tar que todos nós somos, de uma forma ou outra, nerados e não remunerados em diferentes âmbi-
parte de uma enorme força de trabalho tos. Ainda mais comumente, membros diferentes
indiferenciada, produzindo valor indiferenciado da mesma família podem estar fazendo isso. Con-
para um capital indiferenciado? siderar trabalhadores não remunerados como fura-
Argumento que não. O capitalismo é uma greves que estão minando os trabalhadores pagos
relação social na qual os trabalhadores desempe- é, certamente, simplista demais, ignorando os im-
nham papéis específicos em relação à produção perativos que impulsionam esses comportamen-
específica de mercadorias. Essa relação depende, tos e a realidade mais ampla de que a exploração
fundamentalmente, do consentimento dos traba- ocorre para todos eles, embora de formas diferen-
lhadores. Se não pudermos entender essa relação tes. Mas uma análise que iguale uma exploração
em sua especificidade, não podemos identificar os comum a um papel idêntico na geração de mais-

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VIDA, TRABALHO E VALOR NO SÉCULO XXI ...

______. Material World: the myth of the weightless


valia, e que coloque todas essas posições separadas economy. Socialist Register, [S.l.], n. 35, p. 29-56, 1999.
em uma identidade coletiva comum, como uma “mul- _____. The Making of a cybertariat: virtual work in a real
tidão”, faz com que seja impossível identificar o local world. New York: Monthly Review Press, 2003.

da produção: o ponto em que os trabalhadores têm o _____. The restructuring of global value chains and the
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poder para desafiar o capital: o centro do nó. corporate power: (re)integrating companies into
international political economy Lynne Rienner Publishers,
Embora possa ser tedioso desvendar as com- 2006. p. 65-84, (International Political Economy Yearbook
v. 15),
plexidades das cadeias globais de valor e posicionar
_____. The emergence of EMERGENCE: the challenge of
nossos processos de trabalho em relação a eles, isso designing research on the new international division of
me parece ser uma tarefa absolutamente necessária labour. Work Organisation, Labour and Globalisation,
London, v.1, n. 2, p. 20-35, 2007.
se quisermos saber como esse sistema pode ser al- _____. Expression and expropriation: the dialectics of
terado, como agir coletivamente para mudá-lo e que autonomy and control in creative labour, Ephemera:
Theory & Politics in Organization, v. 10, n. 3/4, 2010.
alternativas a ele podemos começar a imaginar.
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VIDA, TRABALHO E VALOR NO SÉCULO XXI ...

LIVING, LABOUR AND VALUE IN THE XXIST VIE, TRAVAIL ET VALEUR AU 21e SIÈCLE:
CENTURY: unpicking the knot défaisant le noeud

Ursula Elin Huws Ursula Elin Huws

It is often argued that Marx’s labour theory La théorie de la valeur-travail de Marx est
of value no longer applies in the contemporary souvent considérée comme une théorie ne
world in which increasing proportions of the s’appliquant plus au monde contemporain où une
population are involved in “immaterial” or “digi- partie de plus en plus grande de la population est
tal” labour. This article contends that the theory is impliquée dans un travail “immatériel” ou un
still relevant, but that in order to understand how travail “numérique”. On démontre dans cet article
it can be applied both to immaterial labour and to qu’elle est toujours d’actualité mais que pour
labour more generally, it is necessary to examine comprendre la manière dont elle peut être appliquée
critically the three key components of the theory: au travail immatériel et au travail en général, il est
the particular nature of any given form of labour, nécessaire de faire une analyse critique des trois
the value that is created by that labour, and the principaux éléments de cette théorie : la nature
worker’s means of subsistence. Such an analysis particulière de toute forme de travail, la valeur
enables us not only to distinguish between engendrée par ce travail et les moyens de
“necessary labour time” and surplus value but also subsistance du travailleur. Cette analyse nous
to identify the point of production. In a world in permet non seulement de faire la distinction entre
which new activities are constantly being brought le “temps de travail nécessaire” et la plus-value
within the sphere of capitalist social relations and mais aussi d’identifier le lieu de production. Dans
new commodities are being produced, it is un monde où de nouvelles activités sont
important to identify these points of production continuellement introduites dans la sphère des
and the workers who are directly engaged in the relations sociales capitalistes et que de nouveaux
production of surplus value because it is these produits sont fabriqués, il est important d’identifier
workers who have the potential, by withdrawing ces lieux de production ainsi que les travailleurs
their consent, to organise effectively in the common directement impliqués dans la production de la
interests of the global working class. plus-value car ce sont ces travailleurs qui sont
capables de s’organiser de manière efficace pour
défendre les intérêts de la classe ouvrière mondiale.

KEY WORDS: labour theory of value, immaterial labour, MOTS-CLÉS: Théorie de la valeur-travail. Travail
commodification, monetisation of the Internet, immatériel. Marchandisation. Monétarisation
labour, digital labour, productive and unproductive d’internet. Travail. Travail numérique. Travail
labour. productif et improductif.
CADERNO CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p. 13-30, Jan./Abr. 2014

Ursula Elin Huws – Doutora em Sociologia pela London Metropolitan University. Professora do Departamen-
to de Business da Universidade de Hertfordshire. Integra o Núcleo de Pesquisa Labour and Globalisation,
desenvolvendo pesquisas na área de trabalho virtual. Suas mais recentes publicações, são: Socialist register,
2012; Crisis as capitalist opportunity: new accumulation through public service commodification, 2011;
Expression and expropriation: the dialectics of autonomy and control in creative labour. Ephemera: Theory &
Politics in Organization v. 10, n. 3/4. 2010.

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