Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
SEMIÓTICA E MÍDIA
textos, práticas, estratégias
SEMIÓTICA E MÍDIA
textos, práticas, estratégias
Unesp – Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
Bauru, São Paulo, Brasil
Reitor
Marcos Macari
Vice-Reitor
Herman Jacobus Cornelis Voorwald
Diretor
Antônio Carlos de Jesus
Vice-Diretor
Roberto Deganutti
Organizadores
Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz
Jean Cristtus Portela
Comissão editorial
Jean Cristtus Portela
Loredana Limoli
Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz
Mariza Bianconcini Teixeira Mendes
Matheus Nogueira Schwartzmann
Revisão
Adriane Ribeiro Andaló Tenuta
Fouad Camargo Abboud Matuck
Mariza Bianconcini Teixeira Mendes
Matheus Nogueira Schwartzmann
Normalização
Dimas Alexandre Soldi
Fouad Camargo Abboud Matuck
Luiz Augusto Seguin Dias e Silva
Tânia Ferrarin Olivatti
organização
SEMIÓTICA E MÍDIA
textos, práticas, estratégias
Unesp/FAAC
2008
Copyright © 2008 Unesp/FAAC
ISBN 978-85-99679-11-1
Os organizadores 265
Os autores 267
Semiótica e mídia: a proposta de integração do GESCom | 9
SEMIÓTICA E MÍDIA
A proposta de integração do GESCom
Realizar a integração entre semiótica e mídia foi sempre o desafio, nos dez
anos de atividade ininterrupta, do GESCom – Grupo de Estudos Semióticos em
Comunicação. Um trabalho difícil no princípio, quando parte da academia e
dos órgãos de fomento olhava ainda com desconfiança a semiótica, sobretudo a
greimasiana ou francesa (SF). No entanto, nossa insistência nessa corrente tem
dupla fundamentação, como veremos.
De um lado, a SF tem como alicerce o projeto pioneiro da teoria científica
de Ferdinand de Saussure, a Lingüística, redescoberta, de início, pela Antro-
pologia, e depois utilizada pela epistemologia geral das ciências humanas. No
entanto, tanto a SF standard, preconizada por Greimas, quanto a SF mais re-
cente, sustentada por seus sucessores, relegam a pura descrição lingüística aos
seus limites, pois nem a morfologia nem a sintaxe nem a gramática nem a le-
xicologia, que embasava os estudos inaugurais de Greimas, são tratadas como
tais na semiótica narrativa (ou da ação), na semiótica discursiva, na semiótica
das paixões ou, ainda, na vertente tensiva. E isso realmente não é apenas uma
impressão sobre a evolução da semiótica, pois o próprio Greimas, depois de
ter defendido duas teses valendo-se de estudos em lexicologia, confessa “eu vi,
depois de trabalhar cinco ou seis anos, que a lexicologia não leva a nada – que
as unidades, lexemas ou signos não levam a nenhuma análise, não permitem a
estruturação, a compreensão global dos fenômenos” e finaliza dizendo: “uma
10 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz
semiótica é um ‘sistema de signos’ desde que ultrapasse esses signos e olhe o que
acontece sob os signos”1.
O que resta, portanto, como a espinha dorsal da SF, é a reflexão epistemoló-
gica da lingüística saussuriana, pois desde o artigo “L’actualité du saussurisme”
(1956)2, concebido para a comemoração do 40° aniversário da publicação do
Curso de lingüística geral, até Semiótica das paixões (1991), Greimas faz diversas
referências àquela ciência demonstrando que os conceitos básicos de seu proje-
to semiótico estão enraizados, certamente, em Saussure e Hjelmslev.
Por outro lado, Greimas teve também um papel importante na fundação das
ciências da informação e comunicação na França, desempenho até hoje pouco
conhecido e pouco difundido. Como pesquisador de renome, foi um dos treze
membros escolhidos para compor o comitê francês para o reconhecimento des-
sa área de estudo pelo Ministério da Educação. E ainda participou, em outubro
de 1970, em Milão, do Congresso Nacional do Instituto Gemelli, que tinha por
tema, já naquela época, “Estado e tendências atuais da pesquisa em comunica-
ção de massa”, discussão que resultou no livro Semiótica e ciências sociais, publi-
cado em 1976, com tradução brasileira em 1981. Relendo esse livro, trinta anos
depois, é notável a acuidade intelectual de Greimas ao afirmar que “a teoria da
comunicação social generalizada deve colocar-se sob a égide não da informação,
mas da significação”. Nas observações finais do capítulo II, descreve os atributos
do que chamou de “uma disciplina difícil de nomear, de objeto vago e meto-
dologia embrionária, aparece, cresce, alastra-se em todos os sentidos, quase se
impõe”, evidenciando sua abrangência então crescente e hoje certamente confir-
mada. Porém, Greimas indica também a fragilidade de tal teoria que, segundo
suas palavras, “recobre um campo de curiosidade científica inexplorado”. Diante
disso, considera que é o momento da disciplina interrogar-se sobre si mesma e
de colocar em causa seus postulados e seu próprio fazer, e aponta a necessidade
precípua de que se instaure “uma investigação semiótica sobre as dimensões e
as articulações significativas das macrossociedades atuais”3.
Para melhor compreender as considerações de Greimas, é importante
revermos o contexto em que a semiótica surgiu. Sua pretensão era construir
uma semiótica da significação, um projeto científico que permitisse chegar à
1 Resposta de Greimas ao ser interrogado por Michel Arrivé no colóquio de Cérisy-la-Salle (1983) sobre o papel
da lexicologia estrutural em sua obra. A. J. Greimas, “Algirdas Julien Greimas mis à la question”, em Michel
Arrivé e Jean-Claude Coquet (orgs.), Sémiotique en jeu. A partir et autour de l’œuvre d’A. J. Greimas, Paris/
Amsterdam, Hadès/Benjamins, 1987, p. 302-303.
2 Publicado em Le Français moderne, n. 24, 1956, p. 191-203, e republicado em A. J. Greimas, La mode en 1830,
Paris, PUF, 2000, p. 371-382.
3 Todas as citações desse parágrafo foram extraídas de A. J. Greimas, Semiótica e Ciências Sociais, São Paulo,
Cultrix, 1981, p. 48.
Semiótica e mídia: a proposta de integração do GESCom | 11
4 Embora nesse artigo Greimas refira-se à linguagem plástica, não há dúvida de que tal fundamento teórico
possa ser estendido a toda forma significante. A. J. Greimas, “Semiótica figurativa e semiótica plástica”, em
Significação, Revista brasileira de semiótica, n. 4, junho/ 1984, p. 29.
Parte I
NOVOS DESENVOLVIMENTOS
EM SEMIÓTICA E MÍDIA
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 17
PRÁTICAS SEMIÓTICAS
Imanência e pertinência, eficiência e otimização1
Jacques Fontanille
1. IMANÊNCIA E PERTINÊNCIA
1.1. Introdução
“Fora do texto não há salvação!” é um slogan que marcou uma época, quan-
do era preciso resistir aos cantos de sereia do contexto e às tentações de práticas
hermenêuticas, especialmente no domínio literário, que procuravam “explica-
ções” num conjunto de dados extratextuais e extralingüísticos. “FDTNHS!” era
o slogan de uma ascese metodológica fecunda, que permitiu levar o mais longe
possível a pesquisa dos modelos necessários a uma análise imanente e delimitar
o campo de investigação de uma disciplina e de uma teoria, a semiótica do texto
e do discurso.
Mas se tais tentações permanecem atuais, hoje a questão é colocada de ma-
neira diferente.
De um lado, as pesquisas cognitivas convidam a semiótica a tomar uma
posição sobre o estatuto das operações de “produção de sentido” que ela iden-
tifica em suas análises de discurso: são operações cognitivas dos produtores ou
dos intérpretes? São rotinas desenvolvidas coletivamente no interior de cada
cultura? São atividades das próprias semióticas-objeto, consideradas como “má-
quinas significantes” e dinâmicas?
1 Este texto foi originalmente publicado na revista Nouveaux Actes Sémiotiques, n. 104 -105-106 (Pulim, 2006).
A presente tradução é de Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz, Adriane Ribeiro Andaló Tenuta, Mariza Biancon-
cini Teixeira Mendes, Jean Cristtus Portela e Matheus Nogueira Schwartzmann. (N.T.)
18 | Jacques Fontanille
como segue2:
2 No texto original, o autor faz referência a Fontanille (2007b). Optamos por apresentar ao leitor uma publica-
ção equivalente em português e inserimos no corpo do texto deste trabalho o quadro dos níveis de pertinên-
cia. (N.T.)
3 Retomando a feliz fórmula de Jean-François Bordron, em uma comunicação oral.
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 21
não cessa de ir e vir entre textos (em geral literários), formas de vida (coletivas
e individuais, tiradas da história russa), entre signos (arquitetônicos ou verbais,
por exemplo) e estratégias (políticas ou militares). É preciso esclarecer ainda
que, se para Lotman a semiosfera é objeto de uma organização precisa e siste-
mática sobre as bases de uma epistemologia cibernética, os níveis de pertinência
não estão explicitados e só podem ser identificados pela diversidade de seus
objetos de análise e de seus exemplos.
O objeto deste estudo é mais especificamente o nível das práticas, mas sem
jamais perder de vista os demais níveis com os quais elas mantêm relações sem-
pre significantes, segundo um princípio já definido por Émile Benveniste (1995:
127-140), o princípio de integração. É verdade que Benveniste limita volunta-
riamente o estudo desse princípio ao domínio das línguas verbais (fonemas,
morfemas, sintagmas, frases), mas o problema do qual ele trata é exatamente
da mesma natureza daquele tratado pela semiótica das culturas, guardadas as
devidas proporções.
Um exemplo permitirá ilustrar concretamente como acontece a integração
semiótica entre os diferentes planos de imanência. É o exemplo banal da corres-
pondência postal. Um texto (o da carta) é inscrito em folhas de papel, que são
colocadas dentro de um envelope, sobre o qual está o endereço do destinatário,
às vezes o do destinador, assim como algumas figuras e marcas (timbre, selos
etc.) pelas quais o intermediário marca sua presença e seu papel.
As mesmas indicações (o nome e o endereço do destinatário) podem ser
encontradas ao mesmo tempo na carta e no envelope. Mas sua inscrição em
duas partes diferentes do objeto de escrita lhe confere papéis actanciais diversos:
(1) na carta, o nome e o endereço do destinatário participam de uma estrutura
de enunciação, um “endereço” que manifesta a relação enunciativa, eventual-
mente implícita, do texto da carta, e determinam sua leitura; (2) no envelope,
o nome e o endereço do destinatário participam de duas práticas diferentes:
por um lado, constituem uma instrução para os intermediários postais, no mo-
mento das operações de classificação, de encaminhamento, de transporte e de
distribuição final, por outro, permitem triar, entre todos os receptores possíveis
da carta, o destinatário legítimo, ou seja, quem tem o direito de abrir o envelope
e ler a carta.
A fronteira entre as duas configurações é o estado do envelope: se ele está
fechado, somente a primeira prática está ativa; se está aberto, a segunda prá-
tica pode ser realizada. Assim, encontramos aqui associados a uma morfolo-
gia particular do objeto de escrita, dois tipos de prática, uma instaurada pelo
22 | Jacques Fontanille
4 Tratar a predicação como uma “cena”, assim como faziam Tesnière, Fillmore, e como fazem muitos outros hoje
em dia, consiste justamente em restituir, no momento de definir um nível de análise pertinente (o do enuncia-
do frástico), uma dimensão de experiência perceptiva: a sintaxe frástica é uma forma pertinente do plano da
expressão, obtida por conversão formal da experiência de uma “cena”.
24 | Jacques Fontanille
5 Sobre a questão da estratégia em semiótica, ver especialmente o prólogo de Eric Landowski em Erik Bertin
(2003) e Landowski (2006). Sobre o “ajustamento” propriamente dito, ver desenvolvimentos mais específicos
em Landowski (2004: 27-32).
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 25
ta” é um puro artefato que não pode ser observado. Mas no nível de pertinência
dos objetos-suportes, e até mesmo no das práticas que os integram, a enuncia-
ção encontra toda sua pertinência: os atores então ganham um corpo e uma
identidade, o espaço e o tempo da enunciação lhes dão uma ancoragem dêitica
e os próprios atos da enunciação podem inscrever-se figurativamente na própria
materialidade dos objetos de inscrição (conforme já dissemos anteriormente
sobre a carta e seu envelope colado ou rasgado).
formais, que só fazem sentido nas práticas. De fato, seus constituintes (modos
semióticos diferentes, modos sensoriais distintos), no momento de sua redistri-
buição nas diferentes composições predicativas, temáticas e figurativas da práti-
ca, aí encontram um lugar, um papel, ambos interdefinidos.
Por exemplo, no funcionamento de um pictograma como “texto-enuncia-
do”, poderemos apenas observar que coexistem semióticas verbais, icônicas e
objetais, e que estamos lidando com uma semiótica-objeto multimodal. Toda-
via, redistribuídos em uma prática cotidiana ou técnica, cada um dos elemen-
tos dessas semióticas multimodais (compreendidas aí as figuras do pictograma)
desempenha um dos papéis que constituem a cena predicativa (instrumentos,
objetos, agentes etc.), ou incorpora uma das modalizações (dêiticas, espaço-
temporais, factuais) desses papéis.
Outro exemplo: no funcionamento de um “prato” culinário, as diferentes
percepções sensoriais (visuais, táteis, olfativas e gustativas, até mesmo auditivas)
formarão associações polissensoriais se tratamos o “prato” como um “texto” (por
uma espécie de detalhamento de todas as propriedades figurativas e sensoriais).
Se esse detalhamento faz aparecer equivalências entre as ordens sensoriais, po-
deríamos até mesmo chegar a uma “sinestesia”, no sentido tradicional do termo.
Mas, se elevamos a análise a um nível superior, o da prática da degustação, cada
um dos modos do sensível encontrará seu lugar nesse conjunto de operações
colocadas em seqüência (anunciar, prometer, verificar, validar, provar etc.), de
maneira que eles estabeleçam, então, não apenas relações paradigmáticas (equi-
valência e diferença), mas sintagmáticas e predicativas (uns anunciam, prome-
tem ou verificam os outros).
Em suma, e mais particularmente na passagem dos “textos-enunciados” às
“práticas” (pelo nível intermediário dos “objetos” e dos “suportes”), a hierarqui-
zação dos níveis de pertinência permite opor dois modos de análise: (1) o deta-
lhamento, que consiste em uma análise de tipo “distribucional” e formal, que se
restringe à análise de um único nível por vez; (2) o realçamento que se apresenta
como “gerativo”, (conforme o “percurso gerativo do plano da expressão”), graças
à integração entre dois ou mais níveis.
Essa distinção (detalhamento/realçamento) exprime, entretanto, o fato de
que, a cada passagem ao nível superior, acrescentamos uma dimensão ao plano
da expressão. Do signo ao texto-enunciado, acrescentamos a dimensão “tabular”
e a consideração da superfície (ou do volume) de inscrição: essa superfície ou
volume de inscrição é dotada de regras sintagmáticas para dispor as figuras (um
tipo de modelo virtual).
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 29
O próprio princípio da integração faz com que os textos inscritos nos obje-
tos, eles mesmos implicados nas práticas, não tenham o mesmo estatuto, nem
34 | Jacques Fontanille
6 Esse exemplo nos foi fornecido por Yasuhiro Matsushita (2005), doutor pela Universidade de Limoges, em sua
tese consagrada aos paradoxos da enunciação e da perspectiva na literatura e na pintura.
36 | Jacques Fontanille
(1) No nível “n”, ela tem uma “forma”, a da cena predicativa, que compreen-
de papéis actanciais, sua identidade modal e temática relativa e os predicados
típicos do ato persuasivo;
(2) No nível “n+1”, ela encontra seu “sentido” em uma estratégia, que im-
plica o tempo, o espaço e os atores suplementares (já que “culturas” e “grupos
sociais” são evocados). Essa “estratégia” leva principalmente em conta a memó-
ria coletiva das interações argumentativas anteriores e a identidade construída
e adquirida dos parceiros.
7 Todas as menções e proposições que remetem, neste estudo, aos trabalhos de Perelman fazem referência a essa
obra.
40 | Jacques Fontanille
que o orador utiliza, já que parecem assim mais determinados pelos prejulga-
mentos a ele atribuídos do que pelo preocupação com a verdade ou com a eficá-
cia do intercâmbio em curso.
No texto, as presunções podem funcionar como simples pressupostos, re-
construíveis a partir de enunciados produzidos: é o caso de todo argumento, por
exemplo, que “faz como se” o acusado já fosse mais ou menos considerado como
culpado, ou de uma maneira mais vaga, como “condenável”.
O estatuto dos pressupostos (e da maioria dos implícitos) poderia com van-
tagem ser reconsiderado à luz das práticas, o que lhe permitiria desfazer-se de
sua definição atualmente muito logicista (por ser indevidamente muito textual).
De fato, o pressuposto resulta, no texto, de um simples cálculo semântico, cujo
produto é considerado virtual. Ao contrário, na prática a presunção é uma atri-
buição de crença ou de “prejulgado”, por um dos parceiros ao outro, e nada mais
tem de virtual. Essa atribuição tem o caráter quer de um julgamento, quer de
um simulacro passional, projetado sobre o outro, e modalizado (crer, poder ser,
querer ser etc.), o que diz respeito a um ato estratégico e não mais a um cálculo
semântico.
Perelman observa, por outro lado, que para neutralizar antecipadamente
toda presunção, aquele que quer criticar deve obrigar-se a elogiar no início, e
aquele que quer elogiar deve dar espaço à crítica e à reserva. Estratégia para-
doxal que, no texto, só poderíamos compreender, depois de ter constatado a
coexistência de duas posições contrárias, como o efeito de uma ética da medida,
do justo equilíbrio.
No entanto, como esclarece Perelman, a justa medida e o sentido do equi-
líbrio são apenas efeitos secundários e superficiais (no texto) de uma estratégia
mais profunda e mais sofisticada (na prática): trata-se de dissuadir previamente
o auditório de atribuir ao orador prejulgamentos desfavoráveis (quando ele quer
criticar) ou favoráveis (quando ele quer elogiar), de inibir um tipo de contra-
estratégia e rotina defensiva que todo auditório pode apresentar.
Em suma, essa estratégia tem por objetivo separar, de um lado, a apreciação
que o auditório fará sobre os argumentos e, de outro, a que ele já faz sobre as
opiniões presumidas do orador: como diz Perelman, trata-se de “frear” a ligação
entre o ato (os argumentos) e a pessoa (os prejulgamentos e o ethos). Mas, na
perspectiva que definimos, trata-se também de “frear” a ligação entre o conteú-
do dos argumentos (o que podemos observar no nível textual) e o ethos adqui-
rido pelo orador (o que só podemos observar no nível práxico).
As estratégias que tratam das presunções apóiam-se, portanto, em parte
42 | Jacques Fontanille
sobre a maior ou menor solidariedade entre o texto (seu conteúdo, sua forma,
seus argumentos, sua credibilidade) e os outros elementos da prática. E, se há
estratégia, é a da integração ascendente e descendente e das síncopes que podem
mascarar ou suspender essa integração. Isso seria, de algum modo, uma prova
particular (limitada ao domínio argumentativo) da existência e da eficiência do
percurso de integração tal como o definimos, cujas modificações pertencem,
justamente, à retórica geral. As “frenagens” e “rupturas” descritas por Perelman
a respeito da prática argumentativa podem então ser aqui definidas como es-
tratégias retóricas, que consistem em fortalecer ou enfraquecer a integração as-
cendente ou descendente entre o texto persuasivo e a prática argumentativa, ou
ainda, a situação englobante.
Também podemos dizer, como Denis Bertrand (1999), e na esteira de Aris-
tóteles, que “a argumentação está situada no tempo”, embora esse tempo seja o
de uma prática discursiva e não o de um texto-enunciado.
Na verdade, a adesão do ouvinte ao discurso oscila em função da rapidez ou
da lentidão, da urgência ou da demora, e “leva algum tempo”, um tempo incom-
primível, mas elástico. A argumentação pode ser repetida, interrompida, retoma-
da: esse tempo não é o do texto, mas o da ação, isto é, o da práxis enunciativa.
Além disso, cada discurso argumentativo visa uma fase que lhe é posterior:
a crença, a adesão, a decisão e a ação deveriam suceder à argumentação, se ela
fosse eficiente. Mas a passagem à decisão ou à ação pode ser retardada: uma
estrutura aspectual permite então estruturar o tempo argumentativo que, aqui
também, ultrapassa não só o texto, mas sua enunciação prática, já que leva a um
programa de ação mais amplo, em cujo âmbito ela está compreendida.
Esses dois primeiros tempos podem estar eventualmente e parcialmente
manifestados no texto, mas apenas sob a forma de simulacros, de representações
virtuais ou projetadas: o texto, efetivamente, pode representar esses tempos da
prática argumentativa, mas unicamente em razão das possíveis integrações des-
cendentes que permitem a “textualização” dos níveis de pertinência superiores.
Além disso, a argumentação pode a qualquer momento ser distendida no
tempo, por digressões (que “ocupam” o tempo), por mudanças de nível (espe-
cialmente os metacomentários). O tempo torna-se então uma “substância estra-
tégica”. Na verdade, enquanto no texto essas flutuações temporais só aparecem
como variantes figurativas, na cena prática elas constituem manipulações cog-
nitivas e passionais do enunciatário. Do mesmo modo, quando a tática argu-
mentativa organiza a ordem dos argumentos (no texto), ela age sobre o tempo
da adesão, das resistências e das aceitações (na cena prática), pois se trata de
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 43
(1) O deliberativo é voltado para o futuro, para o que se deve realizar, para a
programação de ações a praticar, ele antecipa e prevê. São muitos os gêneros de
discurso que exploram essa direção do tempo: debate, sermão, discussões para
“mudar o mundo”, tentativas de prospecção, utopia política, previsão do tempo;
Fica bem claro que essas três orientações temporais (prospectiva, presenti-
ficante e retrospectiva) só funcionam no âmbito da prática argumentativa, e se
elas propõem alguma escolha temporal no próprio texto (o que não é garanti-
do), sua compreensão narrativa não pode nele residir inteiramente. No texto,
por exemplo, o gênero judiciário pode apresentar-se tão simplesmente como
um relato (fatos a reconstituir), e é somente na prática englobante que ele assu-
mirá toda sua dimensão de sanção.
De uma maneira mais abrangente, se existe uma seqüência narrativa canô-
nica subjacente na segmentação da arte retórica em três gêneros, ela pode dar
conta somente da estrutura narrativa (actantes, modalidades, transformações)
de uma prática argumentativa coletiva (uma macrocena predicativa). Cada um
dos três gêneros caracteriza e especifica momentos dessa prática, que definem
8 Os períodos de tempo próprios a cada um desses gêneros são, para o deliberativo, o futuro, para o judiciário,
o passado e para o epidítico, o presente (Aristóteles, 2007).
44 | Jacques Fontanille
2. EFICIÊNCIA E OTIMIZAÇÃO
2.1. Da explicação à prática interpretativa
A opção pelas “práticas” na economia geral da semiótica tem como efeito,
dentre outros, o de modificar o estatuto da descrição e da explicação semióticas:
a própria análise semiótica, na verdade, torna-se, por sua vez, um dos casos
possíveis da prática interpretativa.
A prática semiótica por excelência, que consiste justamente em reformular
a significação numa metalinguagem construída, teve, durante longo tempo, um
estatuto ambíguo. Na verdade, a solução mais simples consiste em tratar essa
reformulação como a “tradução” de um discurso de nível “n” em um discurso
de nível “ n+1”, sendo o primeiro uma semiótica-objeto a ser analisada e o se-
gundo, o próprio discurso da análise. Essa definição permitia definir a prática
semiótica como “descrição” ou “explicação”, isto é, como “tradução metalingüís-
tica” da significação imanente.
Mas essa definição formal já fazia água no próprio campo das teorias da lei-
tura e mesmo no da reflexão hermenêutica. Na teoria da leitura, fomos levados
especialmente a distinguir as “leituras cultas” de outros tipos de leitura9, e assim
fazendo, tropeçávamos então no fato de que umas permitiam a produção de
discurso de análise, enquanto outras só podiam ser consideradas sob a forma de
processos perceptivos e cognitivos (principalmente, nos anos 1960, a teoria das
“fixações”, “varreduras”, “hipóteses” e “verificações de hipóteses”). Entretanto,
ao mesmo tempo, e retrospectivamente, éramos levados a nos interrogar so-
bre as “operações” de leitura relativas à leitura culta, anterior à produção do
9 A. J. Greimas retrucava com a anedota “elitista”: “Não se faz semiótica da música para idiotas musicais”, reafir-
mando, assim, a superioridade originária da análise semiótica, capaz de determinar e articular o conjunto de
condições de toda leitura. Certamente, podemos concordar com esse princípio e sustentar que a análise semi-
ótica não é uma “leitura”, mas uma “proto” ou “meta” leitura, embora isso, por outro lado, não elimine seu es-
tatuto de “prática”. Além disso, nada impede que nos perguntemos se as outras práticas de leitura não propõem
também, mesmo implicitamente, “condições” de leitura diferentes das produzidas pela análise semiótica.
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 45
(1) Cada nível é definido pelo seu próprio campo de expressão, correspon-
dendo a tipos de experiência diferentes, de maneira que cada um é irredutível
ao outro. A metalinguagem de nível “n+1” obedece então a regras de construção
diferentes da língua natural utilizada no nível “n”. Por exemplo, a organização dos
formantes sensíveis em “dimensão plástica” no nível dos textos-enunciados cons-
titui um ganho de articulação irreversível em relação ao nível das figuras-signos.
(2) Cada nível atua então de maneira diferente para produzir um “plano de
expressão” pertinente, do qual já se conhece a hierarquia.
(3) Cada nível é definido pela maneira como entra em relação com os ou-
tros, antecedentes e subseqüentes, graças às operações de integração e/ou de sín-
copes retóricas, e às semióticas-objeto intermediárias.
ciados possam ser integrados como “objetos” nas práticas, na medida em que
certos objetos implicados em uma prática são suportes de “inscrições”. Então, as
“práticas de leitura” distinguem-se entre si, não somente pelos procedimentos
que empregam e pelos seus produtos, mas também pela maneira como tratam o
objeto-suporte do texto (o livro, por exemplo): a leitura culta, diferentemente da
leitura comum cotidiana ou, no outro extremo, da leitura da prática bibliófíla,
confere pouca importância ao objeto-livro. Conseqüentemente, a maneira pela
qual uma prática de leitura concebe os níveis inferiores e superiores caracteriza
sua definição específica.
A título de exemplo, na direção da integração descendente, a prática da
leitura culta, como sugerimos anteriormente, “sincopa” o objeto-suporte e pro-
cura ter acesso direto ao texto, enquanto a prática do bibliófilo, ao contrário,
visa principalmente o objeto-suporte e considera secundário o acesso ao texto
propriamente dito.
Na direção da integração ascendente, a prática da análise procura situar-se
estrategicamente em relação a outras práticas do mesmo tipo e/ou concorrentes
e, por isso, apresenta uma série de garantias que toma a forma de uma filiação
ou de uma rede de atores, representando globalmente o actante destinador: são
as “referências”, as observações de leituras anteriores e de leitores autorizados e
legítimos, sob a garantia dos quais o analista apresenta-se como um actante “he-
terônomo”. A prática da leitura cotidiana, ao contrário, instala um actante “au-
tônomo”, ou até mesmo um simples “não-sujeito”, que obedece aos códigos ge-
néricos e à experiência imediata que lhe oferece a ficção, embora nesse processo
deva “ajustar-se” também às outras práticas concorrentes, mas de tipo diferente
e, sobretudo, deva “proteger-se” de outras práticas cotidianas que solicitam o
leitor. Portanto, ambas integram parcialmente o nível da estratégia, uma graças
à integração de uma filiação crítica, outra pela adaptação ao contexto circuns-
tancial da leitura. No lugar da recursividade ilimitada da primeira concepção e
da reflexibilidade tautológica da segunda, propomos uma terceira via: a da tran-
sitividade integrativa (e retórica).
A princípio, invertendo o raciocínio, podemos dizer, como hipótese de tra-
balho, que toda integração ascendente (isto é, quando o nível “n” integra uma
representação mais ou menos completa do nível “n+1”) é de natureza metasse-
miótica: quando o texto integra representações da prática de leitura ou de análi-
se, ele desenvolve uma dimensão metassemiótica de tipo analítico; quando uma
indicação de uso é afixada numa máquina, esta também passa a integrar em si
mesma uma dimensão metassemiótica de tipo técnico e didático. Pela mesma
48 | Jacques Fontanille
razão, uma prática que exibe, por sua forma sintagmática, sua relação com ou-
tras práticas, integra uma dimensão metassemiótica de tipo estratégico.
Esse raciocínio leva-nos a considerar que: (1) toda prática pode, a esse res-
peito, integrar estrategicamente uma prática metassemiótica ou, mais simples-
mente, uma prática interpretativa; (2) toda prática interpretativa é confrontada
em razão de uma possível integração de uma dimensão estratégica, a outras
práticas. De uma maneira geral, isso nos leva a concluir que o actante operador
de uma prática qualquer, a partir do momento em que ela integra parcialmente
o nível da estratégia, é também um intérprete ao menos em relação a sua própria
prática. O observador e o intérprete envolvidos em sua própria prática interpre-
tativa: eis um motivo bem banal em antropologia e em sociologia que, entre-
tanto, ainda é preciso ser demonstrado e ter seu valor heurístico validado, para
além das declarações encantadoras e das posições ideológicas infalsificáveis.
Não podemos ignorar que mesmo essa tipologia apurada não é sufi-
ciente para dar conta, de maneira exaustiva, do conjunto de combinações
possíveis. Por exemplo, certas formas de conduta associam apenas o poder
e o querer (sem saber), e podem ser designadas, de forma mais corrente,
como maquinações. Do mesmo modo, a participação em rituais pode ser
puramente imitativa, não comportando nenhum saber prévio. Já a repeti-
ção, regular ou episódica, pode modificar cada uma dessas configurações
modais, para produzir: (1) rotinas (nos níveis M1 e M2: a partir da práxis e
do procedimento); (2) hábitos (níveis M3 e M4: a partir das condutas e dos
10 Essa apresentação foi inspirada em uma proposta oral de Jean-Claude Coquet, não publicada.
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 51
rituais); (3) manias, se a simples repetição puder ser substituída pelo querer
ou pelo dever e efetivar-se.
Ademais, modificando alguns outros parâmetros, especialmente a extensão
temporal e a natureza coletiva ou individual do actante responsável, obtemos,
então, os costumes e as tradições.
Tratando-se de realizações práxicas concretas, é preciso, por fim, esperar
que nenhuma pertença exclusivamente a um ou a outro desses tipos, ou ainda
que a maioria adote sucessivamente as propriedades de várias delas. De fato, na
“prática em ato”, confrontações e ajustamentos ocorrem em todas as fases do
percurso, permitindo passar de um tipo modal a outro, de uma combinação
modal a outra, de uma forma aspectual a outra.
A solução mais prudente e a que melhor pode conduzir a análises adequa-
das, consiste em, primeiramente, identificar as variáveis, que são ao menos de
três espécies: (1) as isotopias modais dominantes; (2) as combinações e os níveis
de modalização aceitos; (3) as formas aspecto-temporais (especialmente singu-
lativas, iterativas, originárias etc.). Ainda que a pesquisa e a definição dos tipos
de seqüência canônica sejam necessárias, ela não é uma finalidade em si, menos
ainda o ponto heurístico mais alto da análise.
Na verdade, como tentaremos mostrar agora, o que há de específico na for-
ma semiótica das práticas e que a distingue principalmente da forma semiótica
dos textos-enunciados e dos signos é realmente o processo adaptativo estratégi-
co da “semiose em ato”. Conseqüentemente, o objetivo é a descrição e a mode-
lização das transformações entre os regimes típicos da prática, a transformação
dos modos de adaptação em devir.
11 Numa perspectiva semelhante Eric Landowski (2006: 72) propôs um modelo que interdefine e articula dina-
micamente quatro “regimes de sentido e de interação”: programação, manipulação, ajustamento e acidente.
56 | Jacques Fontanille
12 Sobre a semiótica do acidente e a noção de co-incidência, distinta da noção de inter-ação, ver Landowski (2006:
53-92).
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 57
Sem pretender fazer uma descrição exaustiva das práticas amorosas, pode-
mos, para começar, examinar os motivos estereotipados das “premissas” do en-
contro amoroso: (1) o olhar trocado; (2) o sorriso recíproco; (3) o contato verbal:
a palavra, o gracejo, a afronta... (4) a primeira atividade comum.
A ordem canônica desses quatro primeiros motivos, não necessariamen-
te obedecendo à ordem cronológica, repousa sobre os graus de engajamento
corporal e pessoal na troca e, conseqüentemente, na cadeia de pressupostos
hierárquicos que embasam as eventuais combinações por encaixamento. Por
exemplo, a “atividade” acolhe palavras, olhares e/ou sorrisos, ou ainda o “sor-
riso” compreende, necessariamente, uma “troca de olhares”. São características
de um processo de abertura recíproco: o olhar acolhe o olhar, o sorriso faz ver e
imaginar uma emoção, a atividade partilhada dá lugar à participação do outro
etc. As relações de pressuposição já conduzem aos esboços de uma seqüência
que, no entanto, não é potencialmente reconhecível.
Acrescentemos, agora: (5) a conivência nascente, que resulta da simples rei-
teração das fases 1 a 4. A conivência, que comporta, se não uma verdadeira
confiança recíproca, ao menos uma abertura e um crédito a confirmar (portan-
to, uma fidúcia potencial), é analisada em várias dimensões. Do ponto de vista
modal, a reiteração das fases anteriores permite verificar que elas não dependem
do acaso (o que será confirmado na etapa seguinte, a dos “múltiplos encontros
fortuitos”), mas como cada uma delas guarda a memória das precedentes, pa-
recem resultar de uma pressão que incita à abertura recíproca. Passamos então
do poder não ser ou do não dever ser, para o querer fazer e para o não poder
58 | Jacques Fontanille
13 É exatamente essa etapa que teme o conde Mosca, na Cartuxa de Parma, de Stendhal (2004): que a palavra
“amor” fosse pronunciada entre Sanseverina e Fabrício. Mesmo que a seqüência não tenha sido realizada com-
pletamente, mesmo que sua ordem canônica não tenha sido respeitada, ela se torna o fio condutor de todas as
promessas prospectivas e de suas verificações retrospectivas.
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 61
14 Esse motivo romanesco foi objeto de um primeiro estudo publicado em L’Imaginaire de la table (Boutaud,
2004).
15 As cenas são as seguintes: 1. O jantar no restaurante da Exposição Colonial (I, 1, 40-41); 2. O grande jantar
anual de Paulette Mercadier (I, 5, 68-69); 3. As refeições de férias em Sainteville (I, 8, 83); 4. As refeições em
família do ponto de vista de Pascal Mercadier (I, 13, 125); 5. Uma refeição em Sainteville com os Pailleron (I,
24, 176 e seg.); 6. A refeição festiva da sogra em Sainteville (I, 28, 194-197). 7. O banquete do enterro da sogra
(I, 49, 290-292); 8. Um jantar “morno” em Sainteville (I, 52, 311-312); 9. Um jantar solitário no restaurante de
Veneza (II, 3, 384); 10. Uma refeição no restaurante com Mercadier e seu “biógrafo” (III, 3, 479-487); 11. As
refeições na pensão dos Meyer (III, 5, 488-489; 500-5002).
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 63
(1) do começo até o filé (Ibidem: 480), a conversa não é evocada e o texto
apenas manifesta as impressões de Mercadier, que olha para seu interlocutor: é
o retrato do Sr. Bellemine;
(2) do filé até a escolha do segundo vinho (Ibidem: 481), os dois parceiros
avaliam-se mutuamente, procuram um assunto para conversar. Bellemine está
inquieto a respeito do julgamento de Mercadier sobre sua biografia. Mercadier
demonstra boa vontade, deixando-se levar pela conversa sobre essa biografia,
mas sem compreender o que o outro espera dele;
(3) do segundo vinho até a escolha dos queijos (Ibidem: 484), sempre sem
compreender o que Bellemine quer dele, Mercadier inverte os papéis, interroga
seu parceiro e delimita suas motivações;
(4) do queijo até o café (Ibidem: 486), enfim, Bellemine encontrou seu tema
e interroga Mercadier sobre sua relação com o trabalho, o dinheiro e a vida em
sociedade;
16 “A situação estava invertida: agora era Mercadier que interrogava, que perscrutava Bellemine, que se apaixo-
nava pelo problema Bellemine, sua psicologia.” (Ibidem: 440).
66 | Jacques Fontanille
mentação que destaca dos dois lados uma seqüência pertinente (uma refeição
ordenada e completa, uma prova narrativa conforme a norma), funciona agora
como uma semiótica conotativa, em que uma dessas práticas (falar) confirma
e explicita, de modo reflexivo, a canonicidade da outra (comer). Se as duas
seqüências forem síncronas, a conduta exprime de modo reflexivo a boa forma
do protocolo.
2.5.2.3. A cordialidade
17 É na seqüência dessa mesma refeição que Mercadier exprime sua irritação em relação ao caráter formal e
insignificante do ritual familiar: “Com a família, o essencial é a paciência à mesa”.
68 | Jacques Fontanille
gica. Cada cena de refeição manifesta, na verdade, uma estrutura de troca, base-
ada no modelo do dom e do contra-dom, ao qual a refeição empresta sua forma
sintagmática. Mas essa troca funciona aqui sob uma condição muito peculiar.
Com efeito, entre todos os ritos de troca possíveis, só há um em que o contra-
dom permanece indeterminado, potencial e fixado sine die. No limite, o dom
não tem outro propósito senão suscitar a boa vontade do destinatário.
Esse tipo de troca ritual é característico do sacrifício. Na verdade, no mo-
mento do sacrifício, um bem é destruído ou consumido em benefício direto
ou indireto de um terceiro. É em troca disso que esse terceiro deverá examinar
favoravelmente as eventuais solicitações ou as necessidades futuras do doador.
Independentemente do conteúdo religioso e figurativo desse tipo de prática ri-
tual, podemos conservar as propriedades seguintes: (1) o eventual contra-dom
permanece indefinido, não restrito, e não se espera que ele seja do mesmo tipo
que o dom (não há jamais, por exemplo, trocas de refeição no romance); (2) a
natureza específica dessa estrutura de troca (dom/boa vontade futura), para ser
reconhecível e eficiente, deve obedecer a uma codificação (aspectual e rítmica)
precisa, que funciona como expressão de seu caráter “quase sacrificial”; (3) esse
tipo de troca, por fim, inaugura um tempo social muito particular, indefinida-
mente estendido (já que não há data fixa para o contra-dom), mas suscetível de
ser a todo momento decomposto, interrompido, ou reiterado (por novos sacri-
fícios): a boa vontade indefinida, na verdade, deve ser “mantida”.
De acordo com essa hipótese, todas as propriedades de conexão e de sin-
cronização que foram anteriormente estabelecidas – especialmente os nós
axiológicos da co-segmentação – decorreriam dessa condição e contribuiriam
diretamente para garantir a eficácia simbólica da seqüência. É, em suma, a ritu-
alização sintagmática do dom-refeição que permite aos parceiros reconhecê-lo
implícita ou explicitamente como uma troca do tipo sacrificial, produtora de
uma “dívida de boa vontade”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAGON, Louis. Les voyageurs de l’Impériale. Paris: Gallimard, 1996.
ARISTÓTELES. Retórica. Trad. Marcelo Silvano Madeira. São Paulo: Rideel, 2007.
BASSO, Pierluigi. Testo, pratiche e teoria della società. Semiotiche, n. 4, Torino,
2006.
BENVENISTE, Émile. Os níveis de análise lingüística. In: BENVENISTE, Émi-
le. Problemas de lingüística geral I. 4. ed. Trad. Maria da Glória Novak e Maria
Luisa Néri. Campinas, SP: Pontes, 1995.
BERTIN, Érik. Penser la stratégie dans le champ de la communication: une ap-
proche sémiotique. Nouveaux Actes Sémiotiques, n. 89-91, Limoges: Pulim, 2003.
BERTRAND, Denis. Parler pour convaincre. Paris: Gallimard, 1999.
BORDRON, Jean-François; FONTANILLE, Jacques. Sémiotique du discours et
tensions rhétoriques. Langages, n. 137, 2000.
BOUTAUD, Jean-Jacques (org.). L’imaginaire de la table. Paris: L’Harmattan, 2004.
CHODERLOS DE LACLOS. As ligações perigosas. Trad. Fernando Cacciatore
de Garcia. Porto Alegre: L&PM, 2008.
COQUET, Jean-Claude. La quête du sens. Paris: PUF, 1994.
FLOCH, Jean-Marie. Le couteau du bricoleur. In: FLOCH, Jean-Marie. Identités
visuelles. Paris: PUF, 1995. 181-213 p.
FLOCH, Jean-Marie. Sémiotique, marketing et communication: sous les signes,
les stratégies. Paris: PUF, 1990.
FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. Trad. Jean Cristtus Portela. São
Paulo: Contexto, 2007a.
FONTANILLE, Jacques. Textes, objets, situations et formes de vie: les niveaux de
pertinence du plan de l’expression dans une sémiotique des cultures. In: ALONSO,
Juan; BERTRAND, Denis; CONSTANTINI, Michel; DAMBRINE, Sylvain
(orgs.). Transversalité du sens. Parcours sémiotiques. Paris: PUV, 2007b.
76 | Jacques Fontanille
SEMIÓTICA E COMUNICAÇÃO1
José Luiz Fiorin
que só uma divisão disciplinar, que está sendo posta em xeque com os novos
avanços da ciência, que exige abordagens inter ou multidisciplinares, permi-
te estabelecer que seu objeto são apenas os meios de comunicação de massa.
A comunicação é a ação dos homens sobre outros homens, criando relações
intersubjetivas e fundando a sociedade. Isso alarga o objeto da comunicação,
incluindo nele uma gama considerável de fenômenos, que vão desde a conver-
sação cotidiana até a internet. Na verdade, seria preciso, numa concepção me-
nos restritiva, ampliar o campo da Comunicação e não o restringir. No entanto,
consideremos para efeito de argumentação que o objeto dessa área sejam apenas
os meios de comunicação de massa. Eles podem ser estudados do ponto de vista
da significação produzida, do impacto que provocam na sociedade, da recepção
pelos seus destinatários e assim por diante. Em cada um desses casos, as teorias
para estudá-los não são singulares, mas teorias gerais da significação, como a
Semiótica, teorias das mudanças sociais, criadas pela Sociologia, teorias da re-
cepção das linguagens, etc.
Os textos criados pelos meios de comunicação são produtos de linguagens e,
por conseguinte, podem ser examinados pelas teorias lingüísticas e semióticas.
Não há uma teoria para cada uma das linguagens, pois uma teoria singular para
cada uma delas não seria um projeto científico. Afinal, como já ensinavam os fi-
lósofos medievais, Nominantur singularia, sed significantur universalia2. Mesmo
que as ciências humanas não sejam ciências no mesmo sentido em que o são a
Física ou a Química, elas têm compromisso com a generalização das afirmações
e com a verificação das conclusões. Portanto, se os meios de comunicação po-
dem ser estudados do ponto de vista da significação, uma teoria semiótica deve
poder ser empregada no seu estudo, já que a Semiótica se propõe como teoria da
significação. O sentido gerado por um filme não é diferente daquele criado por
um romance. O que distingue um objeto do outro é apenas a forma de manifes-
tar essa significação, é o plano da expressão. No entanto, as teorias semióticas
modernas estão buscando analisar as diferentes manifestações possíveis da sig-
nificação e, portanto, não são alheias a nenhuma forma de exprimir o sentido.
Ouvem-se às vezes razões pelas quais é necessário criar uma teoria particu-
lar para as mídias. Vamos aqui elencar três, que são recorrentes:
A ENUNCIAÇÃO
Benveniste (1995) mostra que a enunciação é a instância do ego, hic et nunc.
O eu é instaurado no ato de dizer: eu é quem diz eu. A pessoa a quem o eu se
dirige é estabelecida como tu. O eu e o tu são os actantes da enunciação, os
participantes da ação enunciativa. Ambos constituem o sujeito da enunciação,
porque o primeiro produz o enunciado e o segundo, funcionando como uma es-
pécie de filtro, é levado em consideração pelo eu na construção do enunciado. O
eu realiza o ato de dizer num determinado tempo e num dado espaço. Aqui é o
espaço do eu, a partir do qual todos os espaços são ordenados (aí, lá, etc.); agora
é o momento em que o eu toma a palavra e, a partir dele, toda a temporalidade
lingüística é organizada. A enunciação é a instância que povoa o enunciado de
pessoas, de tempos e de espaços.
O mecanismo básico com que se instauram no texto pessoas, tempos e es-
paços é a debreagem. Ela pode ser de dois tipos: a enunciativa e a enunciva. A
primeira projeta no enunciado o eu-aqui-agora da enunciação, ou seja, instala no
interior do enunciado os actantes enunciativos (eu/tu), os espaços enunciativos
(aqui, aí, etc.) e os tempos enunciativos (presente, pretérito perfeito 1, futuro do
presente).3 A debreagem enunciva constrói-se com o ele, o alhures e o então, o
que significa que, nesse caso, ocultam-se os actantes, os espaços e os tempos da
enunciação. O enunciado é então construído com os actantes do enunciado (3ª
pessoa), os espaços do enunciado (aqueles que não estão relacionados ao aqui) e
os tempos do enunciado (pretérito perfeito 2, pretérito imperfeito, pretérito mais
que perfeito e futuro do pretérito ou presente do futuro, futuro anterior e futuro
do futuro4). A debreagem enunciativa produz, basicamente, um efeito de sentido
de subjetividade, enquanto a enunciva gera, fundamentalmente, um efeito de sen-
tido de objetividade. Como se vê, a enunciação deixa marcas no enunciado e, com
elas, pode-se reconstruir o ato enunciativo. Este não é da ordem do inefável, mas
é tão material quanto o enunciado, na medida em que ele se enuncia. Podemos
distinguir, pois, nos textos, a enunciação enunciada e o enunciado. Aquela é o
conjunto de elementos lingüísticos que indica as pessoas, os espaços e tempos da
enunciação, bem como todas as avaliações, julgamentos, pontos de vista que são
de responsabilidade do eu, revelados por adjetivos, substantivos, verbos, etc. O
enunciado é o produto da enunciação despido das marcas enunciativas.
3 Chamamos pretérito perfeito 1 a forma verbal que indica anterioridade ao momento da enunciação e pretérito
perfeito 2 a forma que assinala a concomitância a um marco temporal pretérito.
4 Presente do futuro é a forma verbal que indica uma concomitância a um marco temporal futuro, futuro ante-
rior é a forma que assinala anterioridade a um marco temporal futuro e futuro do futuro é a forma que marca
uma posterioridade a um marco temporal futuro.
Semiótica e comunicação | 81
A IMAGEM DO ENUNCIADOR
Quando falamos em eu e tu, falamos em actantes da enunciação, ou seja,
em posições dentro da cena enunciativa, aquele que fala e aquele com quem se
fala. No entanto, nos diferentes textos, essas posições são concretizadas e esses
actantes tornam-se atores da enunciação. O ator é uma concretização temático-
figurativa do actante. Por exemplo, o enunciador é sempre um eu, mas, no texto
Memórias póstumas de Brás Cubas, esse eu é concretizado no ator Machado de
Assis. Nunca é demais insistir que não se trata do Machado real, em carne e
osso, mas de uma imagem do Machado produzida pelo texto.
A questão é então ver como se constrói a imagem do enunciador, isto é, o
ator da enunciação. Para pensar a questão, voltemos à Retórica de Aristóteles.
Numa determinada passagem, o estagirita afirma:
Esse passo da obra do estagirita deve ser lido, como nos mostram os comen-
tadores, como uma descrição do éthos do orador. Um orador inspira confiança
se seus argumentos são razoáveis, ponderados; se ele argumenta com honesti-
dade e sinceridade; se ele é solidário e amável com o auditório. Podemos, então,
ter três espécies de éthe: a) a phrónesis, que significa o bom senso, a prudência,
a ponderação, ou seja, que indica se o orador exprime opiniões competentes e
razoáveis; b) a areté, que quer dizer a virtude, mas virtude tomada no seu sen-
tido primeiro de “qualidades distintivas do homem” (latim uir, uiri), portanto,
a coragem, a justiça, a sinceridade; nesse caso, o orador apresenta-se como al-
guém simples e sincero, franco ao expor seus pontos de vista; c) a eúnoia, que
denota a benevolência e a solidariedade; nesse caso, o orador dá uma imagem
agradável de si, porque mostra simpatia pelo auditório. O orador que se utili-
za da phrónesis se apresenta como sensato, ponderado, e constrói suas provas
muito mais com os recursos do lógos do que com os dos páthos ou do éthos (em
outras palavras, com os recursos discursivos); o que se vale da areté se apresenta
como desbocado, franco, temerário e constrói suas provas muito mais com os
recursos do éthos; o que usa a eúnoia apresenta-se como alguém solidário com
seu enunciatário, como um igual, cheio de benevolência e de benquerença, e
erige suas provas muito mais com base no páthos.
Dominique Maingueneau diz que o éthos compreende três componentes: o
caráter, que é o conjunto de características psíquicas reveladas pelo enunciador
(é o que chamaríamos o éthos propriamente dito), o corpo, que é o feixe de
características físicas que o enunciador apresenta; o tom, a dimensão vocal do
enunciador, desvelada pelo discurso (1995: 137-140).
Quando se fala em éthos do enunciador, estamos falando em ator e não em
actante da enunciação. Um ator é “uma unidade lexical, de tipo nominal, que,
inserida no discurso, é suscetível de receber, no momento de sua manifesta-
ção, investimentos da sintaxe narrativa de superfície e da semântica discursiva”.
(Greimas e Courtès 1979: 7) Por ser o lugar de convergência e de investimento
de um componente sintáxico e de um componente semântico, o ator deve ter,
pelo menos, um papel actancial e um papel temático. O ator pode, enfim, ser
figurativizado. Lembram Greimas e Courtès:
A IMAGEM DO ENUNCIATÁRIO
Como já se disse, o eu sempre se dirige a um tu e, portanto, a cada instância
da enunciação, em que um actante diz eu, corresponde um tu. Ao enunciador
está em correlação o enunciatário; ao narrador, o narratário; ao interlocutor, o
interlocutário. Cabe ainda lembrar que ensina Greimas que enunciador e enun-
ciatário constituem o sujeito da enunciação. (1979: 125) Ao colocar o enuncia-
tário como uma das instâncias do sujeito da enunciação, Greimas quer ressaltar
seu papel de co-enunciador. Com efeito, a imagem do enunciatário constitui
Semiótica e comunicação | 87
uma das coerções discursivas a que obedece o enunciador: não é a mesma coisa
produzir um texto para um especialista numa dada disciplina ou para um leigo;
para uma criança ou para um adulto. O enunciatário é também uma construção
do discurso. Não é o leitor real, mas um leitor ideal, uma imagem de um leitor
produzida pelo discurso. Assim como no texto particular se constrói a imagem
do narrador, enquanto é numa totalidade discursiva que se encontra o éthos do
enunciador, também num texto singular se constrói a imagem do narratário,
seja ele explícito ou implícito, enquanto numa totalidade discursiva, recortada
para os fins da análise, constrói-se a imagem do enunciatário. Essa distinção
remete à possibilidade de uma diferença entre as duas imagens.
É preciso analisar como se constrói a imagem do enunciatário, isto é, esse
ator da enunciação, que não é uma instância abstrata e universal, o tu, pressupos-
ta pela existência do enunciado. Ao contrário, é uma imagem concreta a que se
destina o discurso. O enunciatário, como vimos, não é um ser passivo, que ape-
nas recebe as informações produzidas pelo enunciador, mas é um produtor do
discurso, que constrói, interpreta, avalia, compartilha ou rejeita significações.
Para pensar o enunciatário como ator da enunciação, vamos voltar novamen-
te à Retórica, de Aristóteles. Num ato de comunicação, três elementos acham-se
envolvidos: o orador, o auditório e o discurso, ou, em outros termos, o éthos, o
páthos e o lógos. Atualmente, poder-se-ia dizer que, num ato comunicativo, há
uma relação entre três instâncias: o enunciador, o enunciatário e o discurso.
Mostra o estagirita que os argumentos válidos para certos auditórios
deixam de sê-lo para outros; os argumentos adequados em certos momen-
tos não o são em outros; os argumentos apropriados em determinados luga-
res não atingem o resultado esperado em outros. O orador, portanto, para
construir seu discurso, precisa conhecer seu auditório. Mas conhecer o
quê? O páthos ou o estado de espírito do auditório. O páthos é a disposição
do sujeito para ser isto ou aquilo. Por conseguinte, bem argumentar implica
conhecer o que move ou comove o auditório a que o orador se destina. (I,
II, 1356a). Aristóteles trata longamente das paixões que movem o auditório
no livro II da Retórica. Cícero, no De oratore, afirma: “...nobis tamen, qui
in hoc populo foroque uersamus, satis est, ea de moribus hominum et scire
et dicere quae non abhorrent ab hominum moribus” (I, 219)5. Por essa ra-
zão, assim o romano define as qualidades do orador: “Acuto homine nobis
opus est, et natura usuque callido, qui sagaciter peruestiget, quid sui ciues,
5 Para nós que nos ocupamos desse povo e do foro, basta conhecer os costumes das pessoas e dizer aquelas
coisas que não contrariam a opinião delas.
88 | José Luiz Fiorin
6 É necessário um homem agudo, hábil por natureza e experiência, que tenha uma sagaz percepção do que
pensam, sentem, opinam e esperam seus cidadãos e aqueles a quem deseja persuadir pelo seu discurso.
Semiótica e comunicação | 89
gosta de pobreza é intelectual. Por outro lado, seu estilo era politicamente in-
correto: por exemplo, um homossexual que foi reclamar que seu parceiro era
sexualmente insaciável foi objeto de todos os tipos de brincadeiras; as histórias
das pessoas que iam pedir exame de DNA para comprovação de paternidade
eram representadas sob o modo do escárnio; permitia-se e incentivava-se que
as mulheres que acompanhavam o homem que ia ser submetido a exame para
comprovação de paternidade brigassem entre si e, portanto, fossem apresen-
tadas como desequilibradas, enquanto o homem ficava olhando e um letreiro
dizia: “e o bonitão nem aí”. Muitas vezes, o que era dito era permeado de expres-
sões de duplo sentido ou francamente grosseiras.
Ratinho apresentava um bom senso rude, em que não havia lugar para
nenhuma finura intelectual nem para nenhuma elaboração das idéias. Sobre
ecologia, repressão à criminalidade, vida conjugal, etc. repetia preconceitos e
chavões. O cantor Waguinho, preso por não pagar pensão alimentícia, foi ao
programa, para defender-se, segundo ele, do que dizia sua ex-mulher. Num
dado momento, Ratinho diz para seu auditório que o cantor não poderia ficar
como o mau na história, pois um homem não faz um filho sozinho. Deslocou
a questão do pagamento da pensão alimentícia para a geração de um bebê e,
portanto, tornou a ex-mulher culpada do que aconteceu.
O apresentador mostrava indignação contra o sistema político. Considera-
va que os políticos não faziam nada e eram, em geral, corruptos. Apresentava-
se como alguém que não tinha medo, que era franco no falar, que afrontava a
tudo e a todos, inclusive as leis e as decisões judiciais. Com freqüência, afirmava
que podiam processá-lo porque ele não tinha medo. As ONGs eram parte do
sistema contra o qual se insurgia. Era o caso das instituições que se dedicavam à
preservação do meio ambiente e da Sociedade Protetora dos Animais.
O registro lingüístico utilizado era o popular, muitas vezes beirando o chulo.
A norma culta era muitas vezes usada com afetação, como que dizendo que se
tratava de uma linguagem de homossexuais. Tudo era anárquico no programa,
de sua decoração a sua condução. O programa recusava a cerimônia e a ritua-
lização das classes mais elevadas. Era um texto que não parecia pronto, pois as
marcas de sua feitura estavam nele presentes. Era antes um texto in fieri do que
um texto factus. Tudo era apresentado hiperbolicamente, no modo do excesso.
A intensidade da voz do apresentador era bem forte. Na verdade, pode-se dizer
que ele gritava. O andamento do programa era acelerado.
Essas características permitem-nos traçar o éthos do apresentador e o pá-
thos de seu auditório. O enunciador apresentava um éthos masculino, franco no
Semiótica e comunicação | 93
falar, “espaçoso”, que não tem medo. Seu enunciatário também era o estereótipo
do papel masculino tradicional. Para ele, o mundo não era lugar de conheci-
mento nem campo de ação ou de mudança, mas lugar de diversão com base
em estereótipos e preconceitos. Por isso, no programa, não se buscavam a ob-
jetividade ou o distanciamento reflexivo, mas a subjetividade e o envolvimento
cúmplice. Suscitava o riso preconceituoso e o bom senso grosseiro. Nada havia
no programa do grotesco regenerador ou da carnavalização, pois não havia no
que era apresentado nenhuma positividade, mas uma negatividade fundada no
escárnio, que buscava reiterar os papéis sociais tradicionais. Nada devia ser mu-
dado no mundo, nele cada um devia desempenhar bem seu papel.
O programa do Ratinho era um discurso eficaz, porque o enunciatário re-
conhecia nele seu discurso, já que ele foi criado a partir de uma imagem sua
muito bem feita. Aderia a um enunciador, em que se via. Isso explica a longevi-
dade e a audiência do programa.
Os atores da enunciação, imagens do enunciador e do enunciatário, consti-
tuem simulacros do autor e do leitor criados pelo texto. São esses simulacros que
determinam todas as escolhas enunciativas, sejam elas conscientes ou incons-
cientes, que produzem os discursos. Para entender bem o conjunto de opções
enunciativas produtoras de um discurso e para compreender sua eficácia é pre-
ciso apreender as imagens do enunciador e do enunciatário, com suas paixões e
qualidades, criadas discursivamente.
Como se observa, o sujeito coletivo da produção dos objetos midiáticos não
existe do ponto de vista da significação, pois ele deve constituir-se numa ima-
gem unitária do enunciador, para que a significação possa ser apreendida como
totalidade. Por outro lado, o papel co-enunciativo do receptor, como já mostra-
va Aristóteles, está presente em qualquer tipo de comunicação e não constitui
uma especificidade dos objetos criados pelos meios de comunicação de massa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPOS, Norma Discini de. O estilo nos textos. São Paulo: Contexto, 2003.
CÍCERO, Marcus Tullius. De oratore. Paris: Les Belles Letres, 1972.
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e
tempo. São Paulo: Ática, 1996.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Sémiotique. Dictionnaire
raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette, 1979.
LANDOWSKI, Eric. La société réfléchie: essais de socio-sémiotique. Paris:
Éditions du Seuil, 1989.
MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins
Fontes, 1995.
MOURA, Mariluce. Dilemas da comunicação. Revista Pesquisa. São Paulo,
FAPESP, nº. 82, dez, 2002. 8-10 p.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 95
SEMIÓTICA MIDIÁTICA
E NÍVEIS DE PERTINÊNCIA
Jean Cristtus Portela
1 Algumas publicações francesas e brasileiras no domínio da semiótica midiática (em alguns casos, em sua
derivação mercadológica) serão citadas e comentadas ao longo deste artigo. Quanto às italianas, as seguintes
obras constituem uma pequena mas representativa amostra da produção editorial em semiótica midiática na
Itália: Bertetti e Scolari (2007), Pezzini (2006), Marrone (2005, 1998), Rutelli e Pezzini (2005), Semprini (2005)
e Bettetini (1996).
96 | Jean Cristtus Portela
2 Todo inventário corre o risco de pecar por inclusões e exclusões obscuras. Preocupei-me aqui em citar, sem
qualquer pretensão de exaustividade, alguns livros recentes e periódicos já consolidados que atestam a ferti-
lidade da pesquisa em semiótica midiática, especialmente em sua vertente greimasiana. Vale lembrar que a
influência da mídia na pesquisa semiótica atual é tão abrangente que chegou até mesmo a revistas como Alfa
(Unesp) e Estudos Lingüísticos (GEL), em que é cada vez mais comum encontrar análises lingüísticas e semió-
ticas da mídia impressa, televisiva, radiofônica e digital.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 97
3 Cf. o diagrama dos níveis de pertinência no artigo de Fontanille traduzido para esta coletânea (p. 18). Aqui, o
diagrama será chamado de “percurso gerativo da expressão”, “percurso da expressão” ou, ainda, “percurso dos
níveis de pertinência”.
4 Essa e as demais traduções de obras sem tradução em língua portuguesa são de minha autoria.
98 | Jean Cristtus Portela
“distância” que ele mantém de seu objeto, estamos sempre diante do problema
da esquematização e da valoração das unidades de significação e da forma como
nos relacionamos com elas. De uma maneira geral, o que está sempre em jogo
na nossa relação com o mundo dos signos são as questões (1) da abstração e da
figuração, das (2) propriedades intrínsecas e das contingentes e dos (3) valores
de esquema e de uso.
Os signos, mesmo tomados como entidades isoladas, exercem um fascínio
inegável sobre nossa inteligência. O menor ruído, a quase imperceptível osci-
lação da luz, a ínfima variação na temperatura ambiente ou o discreto irrom-
pimento de um gosto ou cheiro desconhecidos convidam o sujeito senciente a
mobilizar sua visada na busca de uma apreensão.
É essa propriedade de espontânea e imediata captação do fluxo de atenção
que dá ao nível de pertinência dos signos uma fértil aplicação no campo da se-
miótica midiática, na medida em que as mídias vivem em busca daquilo que de
forma mais rápida e eficiente toca a sensibilidade do sujeito. O ícono-texto que
é a primeira página do jornal, por exemplo, deixa claro o papel proeminente da
seleção e combinação de signos (formas, cores, contrastes, projeções, volumes).
atribuída a São Cipriano de Cartago: “fora do texto não há salvação, todo o tex-
to, nada mais que o texto, nada fora do texto” (Greimas, 1974: 25).
O estudo do texto midiático impresso, televisivo, radiofônico e digital pro-
vavelmente jamais será deixado de lado, pois a preocupação com a concreção
dos textos-enunciados, por mais que a semiótica atual coloque-a em questão, é
uma característica fundadora da episteme semiótica greimasiana. No entanto,
na abordagem do texto midiático percebe-se que o problema-chave da análise
não é descrever a enunciação enunciada e o enunciado enunciado simplesmente,
mas recuperar, por catálise, os elementos enunciativos que permitem ao analista
restituir o sentido do enunciado não enunciado.
A problemática da depreensão do enunciado na mídia impressa cotidiana,
por exemplo, passa por algumas questões fundamentais que nos fazem pensar
sobre a natureza e os limites do nível de pertinência do texto: (1) a notícia ou
o artigo são enunciados resultantes de uma demanda contínua e orientada, de-
terminada pela organização das pautas do jornal; (2) esses enunciados têm um
contexto de ocorrência preestabelecido (a página, o caderno, a publicação como
um todo, o grupo de comunicação no comando); (3) eles tratam de narrativas
e valores cuja elaboração quase sempre está inacabada (a produção da notícia,
segundo as várias tendências editoriais, tenta estabilizar, por exemplo, as narra-
tivas políticas, mas o fato é que ela não tem controle – ou não deveria ter – sobre
os acontecimentos políticos).
Assim, fica evidente como o nível de pertinência do texto-enunciado por si
só não consegue sincretizar de forma coerente e satisfatória toda a problemática
da depreensão do enunciado nas mídias. É o percurso da expressão que orga-
niza, então, essa heterogeneidade multimodal (cada modo de funcionamento
equivalendo a um nível do percurso) a partir da introdução e da articulação de
outros níveis de pertinência, sendo este o fenômeno que Fontanille (2005: 32-3)
chama de resolução sincrética.
5 O campo mercadológico, tanto pelos objetos que tem analisado (jornal, cartaz, panfleto, música, vídeo, websi-
te e artefatos em geral) quanto por sua tessitura enunciativa (que supõe a primazia do actante coletivo), pode
ser situado no interior do campo midiático, que seria responsável pelo instrumental (os gêneros e os formatos
das diversas mídias) que a empresa, seja organização pública ou privada, dispõe para comunicar-se com seus
destinatários.
6 A esse respeito, é exemplar a frase visionária de Floch (1990: 12): “A semiótica pode ajudar a administrar um
sucesso”.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 105
Cenas práticas
Assim, por meio de uma programação prévia que prevê sucessivas adapta-
ções (ajustamentos) e combinações com outras práticas, a cena predicativa es-
tabiliza o sentido da significação valendo-se de uma narrativização da situação
semiótica, que faz as vezes de “contexto” do texto prático.7
A importância da experiência prática na compreensão da mídia revela-se
pertinente, por exemplo, nos trabalhos de Oliveira (2006a; 2006b) que estudam
o jornal impresso tanto em sua plasticidade quanto na experiência corporal for-
necida por sua leitura. De maneira semelhante, é com a cena predicativa e sua
experiência prática que estamos lidando quando Diniz (2002) reflete sobre as
práticas orais e escritas e seus estereótipos consagrados pelo uso, investigan-
do sua manifestação no telejornal. Ainda no domínio da mídia televisiva, é só
pensar na maneira como o mobiliário de um programa de comportamento e
sua distribuição topológica participam das práticas de troca conversacional do
apresentador com os entrevistados, com o auditório e com os telespectadores
(Soldi, 2008).
7 A semiotização do “contexto” em situação semiótica (Landowski, 1989: 189-99; 2004: 15-37) é amplamente
aceita na semiótica atual, que se preocupa, aliás, em desvencilhar-se da noção de “contexto”, que supõe um
acréscimo exterior ao texto propriamente dito e não uma mudança de nível de pertinência da ordem da conti-
nuidade do fenômeno semiótico. Cf. Fontanille (2008; 2007).
106 | Jean Cristtus Portela
8 No caso da televisão, a proposta de organização dos gêneros televisivos de François Jost (1999: 21-34), que
prevê a existência dos modos lúdico, autentificante (real) e ficcional, pode servir de base para uma abordagem
socioletal das formas de vida, em detrimento das abordagens de cunho idioletal que até hoje predominaram.
9 Nesse sentido, são oportunas as críticas que lhe fazem Sémir Badir (2006; 2007; 2008) para quem o percurso
da expressão de Fontanille mistura expressão e conteúdo e não leva em consideração a distinção entre práticas
interpretativas e práticas produtivas.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 109
pergunta a essa resposta virá certamente com o tempo: tempo de análise e veri-
ficação, tempo de experimentação, partilha e consolidação do saber semiótico.
O devir do percurso gerativo da expressão seguirá de perto o devir da pró-
pria semiótica e dependerá, entre outros fatores, do lugar que a semiótica ocu-
pará em um futuro próximo nas ciências humanas e sociais, na medida em que
a elaboração dos níveis de pertinência de que trata uma disciplina está intima-
mente ligada à maneira como a disciplina recorta o campo científico.
Diante da produção constante e fecunda e de sua penetração generalizada
na elaboração dos novos desdobramentos em semiótica geral, à semiótica mi-
diática caberá provavelmente a tarefa de liderar o projeto que estabelecerá os
limites da atuação da semiótica enquanto aventura axiológica.
110 | Jean Cristtus Portela
ANEXO
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 111
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALONSO, Juan. Les drogues comme forme de vie: pour une sémio-narcotique.
In: ALONSO, Juan et al. (orgs). La transversalité du sens: parcours sémiotiques.
Saint-Denis: PUV, 2006.
ARABYAN, Marc; KLOCK-FONTANILLE, Isabelle (orgs.). L’écriture entre sup-
port et surface. Paris: L’Harmattan, 2005.
BACHELARD, Gaston. Estudos. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2008.
BADIR, Sémir. La production de la sémiosis: une mise au point théorique. RSSI
– Recherches Sémiotiques/ Semiotic Inquiry, número ainda no prelo, Association
Canadienne de Sémiotique, Montréal, 2008.
BADIR, Sémir. La sémiotique aux prises avec les médias. Semen, n. 23, Presses
Universitaires de Franche-Comté, 2007.
BADIR, Sémir. La production de textes. Comunicação oral apresentada no Co-
lóquio “Arts du faire: production et expertise”, na Universidade de Limoges, em
4 de março de 2006.
BERTETTI, Paolo; SCOLARI, Carlos. Mediamerica: semiotica e analisi dei me-
dia in America Latina. Torino: Cartman, 2007.
BERTIN, Erik. Penser la stratégie dans le champ de la communication. Une ap-
proche sémiotique. Nouveaux Actes Sémiotiques, n. 110. Janeiro de 2007. Dis-
ponível em: <http://revues.unilim.fr/nas/document.php?id=70>. Acesso em: 23
de setembro de 2008.
BERTIN, Erik. Image et stratégie: la sémiotique au service des fabricants de
sens. In: HÉNAULT, Anne (org.). Questions de sémiotique. Paris: PUF, 2002.
BETTETINI, Gianfranco. L’audiovisivo: dal cinema ai nuovi media. Milano:
Bompiani, 1996.
BOUTAUD, Jean-Jacques. Sémiotique ouverte: itinéraires sémiotiques en com-
munication. Paris: Hermès, 2007.
CAVASSILAS, Marina. Clés et codes du packaging: sémiotique appliquée. Paris:
Hermès, 2006.
112 | Jean Cristtus Portela
JORNALISMO IMPRESSO
E TELEVISADO
Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 119
1 Para as obras que não têm versão em língua portuguesa, as citações baseiam-se em traduções feitas especial-
mente para este trabalho.
122 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira
Podemos perceber, assim, que o que se passa com as cartas na mídia im-
pressa assemelha-se muito à definição semiótica de interação, que é uma troca
regida pelas competências modais e cognitivas, entre dois sujeitos colocados
em presença. Mas no nosso caso, a preocupação primeira é essa “colocação em
presença”, já que se trata na verdade de uma relação entre sujeitos disjuntos no
tempo e no espaço. A troca epistolar é uma forma de comunicação que simula
textualmente alguns dos processos mais gerais da interação comunicacional por
manifestar marcas tanto de uma enunciação enunciada, que reproduz o fazer
enunciativo no discurso, quanto de uma práxis enunciativa, que é o pressuposto
lógico do enunciado.
A práxis desenvolve-se e fixa-se no campo do discurso, que é o domínio es-
paço-temporal em que são geradas as configurações propriamente semióticas:
o percurso gerativo do sentido, com destaque para temas, figuras e isotopias do
nível discursivo. E para que exista comunicação entre dois sujeitos, individuais
ou coletivos, é preciso que um mesmo campo discursivo seja estabelecido entre
eles. No caso das situações de comunicação em estudo – editoriais e cartas de
leitores – cada texto está englobado num contexto maior, que implica tanto a
linha editorial do órgão de imprensa quanto seu público alvo.
É nesse campo que se dão as trocas, a passional e a axiológica: o escritor-
destinador tem sempre algo a dizer e o leitor-destinatário tem sempre algum
interesse, ainda que potencial, na leitura da carta. Esse interesse é regulado pelos
valores cognitivos, pragmáticos e especialmente afetivos que o campo comu-
nicacional construído pela revista põe em causa. Podemos ver, dessa maneira,
que a carta só tem sentido se for escrita em função de um outro, de um leitor
pressuposto. Mais uma vez tal tipo de interação parece-nos concretizar um ato
de comunicação humana e seu modo de produção de sentido, já que eviden-
Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 123
cia, no próprio ato de escrita da carta, alguns dos seus elementos processuais,
textualizando-os nos vocativos comumente empregados, que estabelecem uma
espécie de presença “real”.
Para entender melhor como isso é possível, é preciso observar como Lan-
dowski trata duas questões que, na comunicação por carta, são primordiais, a
constituição de um “outro” (o interlocutor) e o processo de interação:
Podemos perceber que as duas primeiras revistas da tabela optam por um es-
quema canônico, mais próximo da prática epistolar, fórmula que parece ser a mais
freqüente na mídia impressa em geral. As outras duas “importam” outras práti-
cas, ligadas certamente à comunicação epistolar, mas com um estilo de linguagem
oral, buscando provavelmente fortalecer sua relação com o público jovem.
Para melhor explanação de nossa análise, vamos dividi-la em duas partes.
Na primeira, a que nos interessa de modo especial, vamos descrever como se
constroem, no espaço jornalístico, os editoriais e as seções de cartas dos leitores
nas duas revistas de noticiário geral: Caros Amigos e Revista do Brasil. Na segun-
da parte, vamos examinar as duas revistas ditas “científicas”: Superinteressante
e Galileu. Mas é preciso dizer que tal cientificidade aparece diluída, sem pro-
fundidade, satisfazendo um público de “consumação rápida”, que busca apenas
curiosidades científicas.
Convém ainda ressaltar que, no caso das duas últimas, há uma profusão
de anúncios comerciais, algumas vezes disfarçados de “matérias científicas”, ou-
tras vezes incorporados à própria identidade da revista (no uso das cores, por
exemplo). Esse procedimento aponta para uma busca de “eficiência” na prática
publicitária dentro da prática jornalista. Essa eficiência inclui também, eviden-
temente em todas as ocorrências semelhantes na mídia impressa, a forma como
as cartas publicadas são escolhidas em cada edição, sempre segundo um cri-
tério preestabelecido pelos editores. Tal critério manifesta-se no fato de que,
comumente, as cartas selecionadas ou contêm elogios para o próprio órgão de
imprensa, ou favorecem de algum modo a construção de sua identidade, fun-
cionando também como uma alternativa de autopromoção.
126 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira
Já em outra edição (nº 130, janeiro 2008), o editorial tinha um título intri-
gante – “feliz ano novo?” – e expunha aos leitores, como fazemos com amigos
íntimos, a difícil situação financeira da empresa e suas razões: “a receita de pu-
blicidade nas páginas de Caros Amigos não cobre os nossos custos”. Ao dizer
que a empresa não conseguia o mínimo de anúncios para ir em frente, o editor
acrescentava que a colocação era feita segundo um “princípio jornalístico aber-
to, sem peias e quase íntimo com o leitor”. Como vemos, a Caros Amigos vale-se,
mais que suas congêneres, do artifício epistolar, para caminhar na direção de
uma diluição da força editorial e de uma concentração da força dos leitores,
figurativizados na revista como os “caros amigos” e também como os “articulis-
tas-amigos” que dela participam.
A segunda revista noticiosa, com um nome óbvio, mas sugestivo – Revista
do Brasil – é uma publicação recente: surgiu há dois anos, com distribuição
gratuita para os sindicatos que a patrocinam, bem como para os associados que
reivindicam a entrega domiciliar. A venda nas bancas, pela metade do preço
normal de uma revista do mesmo tipo, começou em junho de 2008. A revista
dá espaço ao editorial – anunciado como “Carta ao leitor”, mas com um título
relacionado ao tema principal da edição – na primeira página, à direita do su-
mário, que se chama “Conteúdo”. A seção dos leitores chama-se simplesmente
“Cartas” e vem na segunda página, ao lado dos créditos da publicação. A pre-
sença da foto da capa da edição anterior (à qual se refere a maioria das cartas
de leitores) é uma prática comum em quase todas as revistas, mas só nesta no-
tamos fotos de várias edições, inclusive no espaço do editor, funcionando como
“autopromoção”, justamente por ser uma publicação recente. O “diálogo” a ser
destacado está no desafio de um leitor pró-FHC, que aproveita para questionar
a “gramática” da redação:
Até gosto de alguns bons artigos publicados por vocês (grifo nosso).
Quando FHC fala que quer brasileiros “melhor educados” ele se refere
à formação escolar, melhor educados nas escolas [...] e não “mais bem
educado”, cujo antônimo é mal-educado. Percebe-se que vocês são pró-
Lula, mas acho que o “Por qué non te callas?” vai para vocês [...] (RdB,
nº 21, fevereiro 2008).
128 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira
Nossa análise quer ver como a revista se vê: talvez seja por sua crença na
pluralidade de opiniões que o conselho editorial é formado por representantes
de diversos sindicatos. Do ponto de vista da prática editorial e seu cruzamento
com a prática epistolar, podemos dizer que a Revista do Brasil é a mais tradicio-
nal entre os exemplos que analisamos: apresenta-se, logo de início, numa carta
editorial e abre espaço, na seqüência, para as cartas dos leitores. Não há novida-
de nos títulos, nem ruptura com a ordem “editorial + cartas dos leitores”, a mais
freqüente na mídia impressa de um modo geral. No entanto, dentro dessa regra,
encontramos ao menos uma exceção, já que na edição de dezembro de 2007, por
um lapso, um erro de diagramação ou talvez intencionalmente, há uma quebra
da norma, que só faz confirmar nossa hipótese: as cartas dos leitores passam à
frente, surgindo antes do sumário e do editorial, sugerindo, embora num caso
isolado, que são eles, os leitores, que encaminham a linha editorial da revista.
Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 129
SUPERINTERESSANTE E GALILEU
Na Superinteressante, a mais original nos títulos das seções em foco, o sumá-
rio chama-se [CARDÁPIO] – “As opções do mês”, reforçando nossa classificação
da revista como “alimento de consumação rápida”. A seção dos leitores exibe o
título [DESABAFA] – “Solte o verbo”, e às vezes ocupa duas páginas inteiras. Os
editoriais vêm depois, com o interessante título [AGORA ESCUTA] – “Direto da
redação”, ao lado dos créditos próprios de uma publicação da Editora Abril.
As cartas dos leitores são apresentadas antes do editorial, depois de uma
seqüência de anúncios. O título “Desabafa” remete a uma prática falada, como
se a revista, ao invés de cartas, propusesse um bate-papo com os leitores – jo-
vens em sua maioria. A oralidade e o bate-papo estão confirmados no título do
editorial, como se os editores dissessem “Você desabafou? Agora escuta”. Essa
informalidade procura escapar do ambiente restrito da mídia impressa, pois a
revista propõe a leitura de sua página na internet, numa espécie de “contágio”
(Landowski, 2004) entre seu suporte de papel, estático e concreto, e a prática
dinâmica e virtual da internet. Tal dinamismo aparece em diversas seções da
revista, nem sempre “linkadas” com a internet, como a própria seção de cartas
dos leitores, em que podemos ver uma nota, dentro de um círculo, indicando
quantas mensagens a revista recebeu, o que nos lembra certamente os contado-
res de acesso dos sites e blogs. Uma coluna comenta o teor da maioria das cartas
recebidas sobre a edição anterior e há ainda um espaço para a correção de erros
da edição passada. Dessa maneira, a leitura não é apenas linear, o olho do leitor
pode passear pelas diversas regiões da página, sem seguir necessariamente uma
ordem de leitura tradicional, da esquerda para a direita, de cima para baixo. Mas
essa observação pode ser feita a respeito da mídia impressa em geral, talvez pela
própria prática da leitura de hipertextos, nos dias atuais.
Por todos esses aspectos, a Superinteressante acaba sendo uma revista “rui-
dosa”, pela alta quantidade de informações que ela pretende veicular, mais uma
vez nos lembrando a internet. E, assim como acontece no mundo virtual, o au-
mento na quantidade de textos, imagens e infográficos impõe, no suporte mate-
rial do texto escrito, uma diminuição da profundidade dos temas. A linguagem
informal entre amigos, proposta nas seções de abertura das revistas (trocas de
cartas entre leitores e editores), frutifica na Superinteressante, aliando-se à sua
prática editorial, e a informalidade acaba por contagiar outras seções.
A revista Galileu, da Editora Globo, assim como a anterior, divide e mistu-
ra espaços de curiosidades científicas, anúncios comerciais e seções epistolares.
130 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira
REFLEXÕES FINAIS
Queremos crer que nossas análises mostraram o princípio de integração
entre os níveis de pertinência do percurso gerativo da expressão nas práticas de
Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 131
comunicação por carta na mídia impressa. Como vimos, é nesse percurso – uma
sistematização do fenômeno semiótico da semiose – que se percebe a diferença
entre os níveis de pertinência: no nível inferior, as figuras-signos compondo os
textos-enunciados, que se materializam nos objetos-suportes, no nosso caso,
o papel impresso. No nível superior, a práticas integram-se às estratégias (mo-
dos de manipulação enunciativa dos leitores e dos editores) e às formas de vida
(procedimentos sociais e culturais na comunicação entre editores e leitores),
buscando sempre a eficiência e a otimização.
A eficiência da prática epistolar na mídia impressa, analisada nas revistas
do nosso corpus, depende da construção, na dimensão enunciativa, de papéis
actanciais e actoriais preestabelecidos. No caso dos editoriais temos sempre im-
plícitos os editores como sujeitos-enunciantes, que se dirigem aos destinatários-
leitores, no papel temático de assíduos companheiros da revista, seguindo aten-
tamente a trajetória das matérias publicadas. E no caso contrário, os leitores são
os sujeitos-enunciantes, que contam com a presença de um destinatário coletivo,
o corpo editorial. No entanto, a prática torna-se realmente eficiente quando se
adapta estrategicamente às possíveis variações a que a revista está sujeita. É essa
capacidade de adaptação estratégica (o ajustamento entre duas práticas, a epis-
tolar e a editorial) que a torna eficiente. Mudam-se os anos, mudam-se os temas
políticos, científicos, e as revistas mantêm-se ativas, pois para tanto se valem
de uma “prática sociossemiótica que se articula em diversos planos diferentes”
(Landowski, 2004: 213-214), já consagrada pelo uso, que é a prática epistolar.
Não importa, para a conquista dos leitores, apenas o conteúdo da revista,
mas também a forma como ela o organiza, no plano da expressão. Enquanto
mantiver a mesma organização, terá os mesmos leitores e outros mais, numa
espécie de processo de fidelização. Por essa razão, os casos pontuais que destaca-
mos, tanto da Caros Amigos, quanto da Revista do Brasil, tornam-se justamente
exemplos do processo de adaptação eficiente de uma prática interativa: uma
seção específica (carta aos leitores) cede parte de seu espaço às características de
outra seção (editorial), em favor da manutenção da prática de trocas de cartas
na mídia impressa.
132 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAROS AMIGOS. São Paulo: Casa Amarela, nº. 130, janeiro 2008; nº. 136, julho
2008; nº. 137, agosto 2008.
GALILEU. São Paulo: Globo, n°. 201, abril 2008; n°. 205, agosto 2008; n°. 206,
setembro 2008.
GREIMAS, Algirdas Julien. Préface. In: CALAME, Claude (org.). Actes du VI
Colloque Interdisciplinaire: La lettre. Approches sémiotiques. Fribourg: Editions
Universitaires, 1988.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Trad.
Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1983.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Sémiotique. Diccionnaire
raisonné de la théorie du langage. Tome 2. Paris: Hachette, 1986.
LANDOWSKI, Eric. Passions sans nom. Paris: PUF, 2004.
REVISTA DO BRASIL. São Paulo: Atitude, nº. 19, dezembro 2007; n°. 21,
fevereiro 2008.
SUPERINTESSANTE. São Paulo: Abril, nº. 250, março 2008; nº. 251, abril 2008;
nº. 254, julho 2008.
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 133
PRÁTICAS DE DIRECIONAMENTO DO
FLUXO DE ATENÇÃO NO TELEJORNAL
Juliano José de Araújo
INTRODUÇÃO
O telejornal desempenha na sociedade brasileira papel fundamental tanto
na produção como na divulgação de informações. A maioria da população de
nosso país informa-se diariamente sobre os principais acontecimentos de seu
cotidiano através dos telejornais, gênero televisivo que é uma espécie de pro-
pagador da “verdade” e, sempre que necessário, invocado como um argumento
seguro. As emissoras de televisão aberta têm dedicado atenção especial aos tele-
jornais1. A Rede Globo, por exemplo, conta atualmente com quatro telejornais
transmitidos em caráter nacional: Bom dia Brasil, Jornal Hoje, Jornal Nacional e
Jornal da Globo. E isso sem contar os telejornais locais e os plantões que irrom-
1 É importante destacar que, conforme estabelece o decreto lei 52.795, de 31 de outubro de 1963, que trata do
regulamento dos serviços de radiodifusão, as emissoras devem dedicar o mínimo de 5% do horário de sua
programação diária à transmissão de notícias (Curado, 2002: 15).
134 | Juliano José de Araújo
2 Prova da crescente importância dos telejornais na grade de programação das emissoras pôde ser vista recen-
temente com o lançamento do canal Record News, da Rede Record, que se dedica 24 horas ao jornalismo. A
emissora criou um canal jornalístico nos moldes da Globo News, que está no ar desde outubro de 1996. No
entanto, o Record News é veiculado na rede aberta de televisão, diferentemente da Globo News, que é um
canal cujo acesso se faz mediante assinatura.
3 Segundo Capparelli e Lima (2004: 46), a Rede Globo tem uma cobertura de 99,86% dos domicílios com TV; o
SBT, 97,18%; a Bandeirantes, 87,13%; e a Record, 76,67%.
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 135
DO MÉTODO
A semiótica do discurso, assim como as ciências cognitivas, não pode mais ignorar
a interação do sensível e do intelígivel. Na verdade, a formação das categorias
e a significação em ato são elas próprias submetidas ao regime do sensível.
Fontanille (2007: 30)
4 A edição do JN que será analisada neste artigo foi veiculada em 1º de junho de 2004.
5 Para uma discussão sobre os gêneros televisivos, veja Machado (2005), em especial, o capítulo “Gêneros televisuais e o
diálogo”, p. 67-113.
6 Segundo classificação de Briggs e Burke (2004), as mídias são classificadas em impressas e eletrônicas.
7 É importante observarmos que o atual estágio de desenvolvimento da televisão, e de seus gêneros e formatos,
não deve ser entendido de forma isolada dos demais meios de comunicação, mas a partir das conquistas e
aperfeiçoamentos de outros meios, como por exemplo, a literatura, o teatro, a música e, sobretudo, o cinema
e a fotografia (Squirra, 1990: 19). Todos esses meios, com características próprias, fornecem elementos que
são empregados na televisão e engendram uma sintaxe complexa, na medida em que há uma longa tradição
de diálogo e colaboração entre cinema, televisão e meios eletrônicos em geral, pois as mídias operam em um
processo de interseção de linguagens (Machado, 1997: 189-190).
136 | Juliano José de Araújo
Dessa forma, percebemos que o sentido pode ser entendido, por um lado,
como uma “grandeza realizada”, ou seja, presente “nos” enunciados e imanen-
te aos discursos; por outro, o sentido também pode ser entendido como uma
forma permanentemente “em vias de construção”, “em ato” e, desse modo, em
situação, no momento exato em que o processo se realiza. Landowski (2002:
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 137
166) esclarece-nos que “menos que o texto, como produto, como enuncia-
do que tem um sentido (ou, por que não, vários), é o discurso, enquanto ato
de enunciação efetuado em situação e produzindo sentido, que nos interessa,
neste quadro”. Nessa perspectiva, Fontanille (2007: 17) afirma que “pode-se
apreender o sentido do discurso somente na atualidade que define o ato de
discurso” e completa: “o projeto da semiótica do discurso está assim delimita-
do: a enunciação carrega em si uma semiose em ato e é dessa semiose que deve
a semiótica do discurso tratar”.
O conceito de discurso em ato, ao trazer a discussão sobre a percepção e a
sensibilidade para os estudos semióticos, interessa-nos sobremaneira, pois bus-
camos evidenciar as práticas que o telejornal emprega para direcionar o fluxo de
atenção dos telespectadores que, segundo nossa hipótese de análise, concretiza-
se a partir da dimensão sensível do sentido. Zilberberg (2002: 111) explica-nos
que essa perspectiva implica em considerar que a significação é conduzida pela
afetividade, a qual recebemos a partir da articulação da intensidade e da exten-
sidade. Dessa forma, Fontanille afirma que:
perceber algo – antes de reconhecer esse algo como uma figura perten-
cente a uma das macrossemióticas – é perceber mais ou menos intensa-
mente uma presença. De fato, antes de identificar uma figura do mundo
natural, ou ainda uma noção ou um sentimento, percebemos (ou “pres-
sentimos”) sua presença, ou seja, algo que, por um lado, ocupa uma certa
posição (relativa a nossa própria posição) e uma certa extensão e que,
por outro lado, nos afeta com alguma intensidade. Algo, em suma, que
orienta nossa atenção, que a ela resiste ou a ela se oferece (2007: 47).
8 O zoom é uma possibilidade de aproximar ou distanciar os objetos que estão sendo focalizados, a partir de
movimentos óticos, realizado com o emprego de lentes próprias. O zoom mostra uma cena com maior ou
menor grau de detalhe. O movimento de aproximação é o zoom-in, o de afastamento, o zoom-out.
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 139
DA ANÁLISE
O jornalismo hoje é essencial para a vida em sociedade. Os telejornais cumprem
uma função de sistematizar, organizar, classificar e hierarquizar a sociedade.
Dessa forma, contribuem para a organização do mundo circundante.
Vizeu (2006: 4)
Tipo de enunciado
Assunto Tempo de duração
englobado
Bloco 2
11. Nota simples Presídios / Corte Interamericana de Direitos Humanos 22min36s – 23min
12. Nota coberta Chuva deixa mortos e desabrigados em Alagoas 23min01s – 23min35s
13. Previsão do
------------------------- 23min36s – 24min05s
tempo
a) Exportações brasileiras / recorde;
Passagem de
b) Novo presidente / Iraque; 24min06s – 24min20s
bloco 3
c) Nélson Mandela / vida pública
Bloco 4
14. Nota coberta Nélson Mandela anuncia que deixará a vida pública 24min21s – 25min
Novo presidente do Iraque é anunciado em meio a
15. Reportagem 25min01s – 26min36s
protestos
16. Nota simples Preço do petróleo atinge recorde em 21 anos 26min36s – 26min56s
20. Charge do
Crítica ao governo Lula 27min56s – 28min08s
Chico
22. Reportagem ONGs indígenas desviam verba do Ministério da Saúde 28min34s – 30min26s
Bloco 5
9 Segundo Verón (2003: 17), a interpelação pelo olhar através do eixo “O-O” (“olhos nos olhos”) é um aspecto
fundamental da televisão, o qual remete ao corpo significante.
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 145
10 A montagem vertical parte do princípio da justaposição de uma série de elementos (visual, dramático, sonoro)
em uma única imagem. A montagem vertical de Eisenstein procura explorar toda a expressividade do meio
em termos de articulação de diferentes linguagens, ou seja, de diferentes sistemas semióticos, que são coloca-
dos em relação em um mesmo texto.
11 Segundo Greimas e Courtés (1983: 357), proprioceptividade, termo de inspiração psicológica, designa o con-
junto dos traços semânticos usados para denotar a percepção (eufórica ou disfórica) que o homem tem de seu
próprio corpo.
12 Do lado do sistema visual, podemos destacar: 1) a linguagem verbal escrita; 2) a linguagem cinética (imagem
em movimento); 3) a linguagem gestual (incluindo a expressão facial dos apresentadores e repórteres); 4) a
linguagem cenográfica (cenários do telejornal e figurinos dos apresentadores e repórteres); 5) a proxêmica (dis-
tribuição e movimentação de atores no espaço); 6) os recursos técnicos de gravação; 7) de edição; 8) recursos
visuais (o gerador de caracteres, por exemplo); 9) gráficos; e 10) de câmera (planos de gravação, zoom-in e out).
Já do sistema de áudio, teríamos: 1) a linguagem verbal oralizada (incluindo a entonação dos apresentadores e
repórteres); e 2) todos os recursos de sonoplastia, como o áudio ambiente, música ou background. A classificação
ora apresentada retoma, em partes, o modelo do sistema audiovisual, apresentado por Herreros (citado por
Campos, 1994: 56-57).
13 Cf. “Os jornalistas da TV Globo Ali Kamel, Fátima Bernardes, Willian Bonner e Zileide Silva discutem as
escolhas de pauta, edição e linguagem do Jornal Nacional no Intercom”. Disponível em: <http://www2.uerj.
br/~agenc/agenciauerj/htmmaterias/materias/2005mes_09_06/05.htm>. Acesso em 25 de junho de 2006.
148 | Juliano José de Araújo
CONSIDERAÇÕES FINAIS
... é preciso que a análise se dê conta de que não é (nem poderia jamais
ser) a explicação última de seu objeto. Mesmo quando eficiente, ela não
pode almejar mais que o diagrama da obra analisada, algo assim como
um mapa abstrato de seu funcionamento como produção de sentido.
Machado; Vélez (2007: 13)
se uma prática de comunicação cuja força social está cada vez mais presente
em nossa cultura. Ela influencia, inclusive, outras práticas, como a da vida em
família, a das relações de amizade, a das relações no trabalho. Daí decorre a im-
portância e a necessidade de estudar o telejornal e suas práticas, pois apesar da
mediação tecnológica imposta pela televisão, é através dele que experienciamos
a significação dos acontecimentos do mundo natural.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
VINHETAS
Break comercial: estratégia e eficiência | 157
BREAK COMERCIAL
Estratégia e eficiência
1 Break é o nome utilizado, principalmente na área de Propaganda e Publicidade, para designar os intervalos da
programação televisiva nos dias de hoje.
158 | Jaqueline Esther Schiavoni
Nosso intuito, então, não é apenas descobrir como as coisas funcionam, por
assim dizer, mas também por que funcionam de tal modo. De certa forma, é uma
pergunta que antecede a prática, mas que pode ser por ela mesma revelada.
Interessante notar que os modelos canônicos de que falamos anteriormen-
Break comercial: estratégia e eficiência | 159
te, justamente por se valerem de certas estratégias, têm êxito nos seus propósitos
e por isso mesmo se perpetuam. E muitas vezes, em vista da segurança que es-
ses modelos nos proporcionam, investimos neles todas as nossas fichas, mesmo
sem entender exatamente a estratégia por trás da prática. Passamos, então, a
copiar aquilo que deu certo.
Mas no caso das práticas televisivas, especialmente os breaks, esse caráter
ordinário – ou da ordem usual das coisas, rotineiro – não é suficiente para expli-
car sua existência: não é porque desde os primórdios da televisão existem inter-
valos comerciais que eles ainda reinam na telinha. Queremos descobrir, então,
que razões impulsionariam tal prática até hoje. Muitos diriam, sem titubear, que
os intervalos comerciais surgem da necessidade de financiar esquemas caros
e complexos de produção televisiva, e nisso, sem qualquer sombra de dúvida,
reside boa parte da resposta. A própria história da televisão brasileira deixa evi-
dente esse aspecto, como vimos no início deste texto.
É importante observar também que, em suas primeiras décadas, a televisão
não atingia um grande público e por isso mesmo também não conseguia atrair
muitos anunciantes. Na própria TV Tupi, o primeiro ano de faturamento pu-
blicitário foi garantido por apenas quatro grandes patrocinadores: Seguradora
Sul Americana, Antarctica, Laminação Pignatari e Moinho Santista. Resultado:
como a produção contava com poucos mas grandes anunciantes, os patrocina-
dores determinavam os programas que deveriam ser produzidos e veiculados,
bem como todo o seu conteúdo.
Por isso, nas duas primeiras décadas da televisão brasileira, os programas
costumavam ser identificados pelo nome do patrocinador. Em 1952, e por vá-
rios anos subseqüentes, os telejornais, por exemplo, tinham como títulos: “Te-
lenotícias Panair”, “Repórter Esso”, “Telejornal Bendix”, “Reportagem Ducal” ou
“Telejornal Pirelli”. Os demais programas também levavam o nome do patroci-
nador: “Gincana Kibon”, “Sabatina Maizena” e “Teatrinho Trol”. A programação
vinha da cabeça dos patrocinadores, que muitas vezes agiam como ditadores
(Mattos, 2002: 70-1).
Hoje em dia, as produções televisivas são financiadas por uma variedade de
marcas e isso, sem dúvida, contribui para a independência dos programas. Sen-
do assim, perguntamo-nos: se há dezenas de marcas financiando as produções
televisivas, como é feita a venda do espaço publicitário? Como os comerciais
são organizados?
Observemos que há muitas formas de se comercializar o espaço publicitário:
a) Nos comerciais, a venda é feita em múltiplos de 15 segundos. O padrão é 30.
160 | Jaqueline Esther Schiavoni
Nam June Paik (1963) apresentou na Alemanha. Mas, para citar um exemplo
próprio da televisão, basta pensar na vinheta de abertura do Jornal da Globo:
ao trabalhar figurativamente com uma imagem-luz, de aspecto granuloso, cuja
forma somente aparece a partir do momento em que a câmera se distancia, o
artista-criador está, na verdade, colocando em evidência características da pró-
pria imagem televisiva, discutindo seu processo de formação, já que é ela mes-
ma uma imagem-mosaico, formada de pequenos pontos luminosos que são os
pixels (Schiavoni, 2008).
Mas o aspecto que queremos destacar neste momento não é o da auto-re-
flexividade, mas o da auto-referencialidade, que diz respeito ao caráter meta-
lingüístico da programação televisiva. Entendemos isso melhor se atentarmos
para a Tabela 3 (ver Anexos). Essa tabela traz o conjunto de breaks comerciais
de alguns programas (telejornais, novelas, seriados, revistas eletrônicas etc.) da
televisão brasileira – escolhidos aleatoriamente – discriminando-os, conforme
as ocorrências encontradas:
(C) Comerciais (de caráter nacional ou local)
(I) Comerciais institucionais – relativos/financiados pela emissora ou afi-
liada
(R) Comerciais auto-referenciais – relativos à grade de programação
(A) Comerciais de apoio à programação – marcas que financiam determi-
nados programas.
(G) Comerciais de produtos do grupo – ex: Tele-sena, Som livre etc.
(P) Programas
( _____ ) Intervalo entre programas
Como pode ser observado nos dados da tabela, faz parte da estética da tele-
visão a auto-referência. Se, de modo geral, considerarmos em cada emissora ape-
nas os blocos que não têm comerciais de apoio à programação2, a porcentagem
2 Os comercias de apoio à programação constituem um tipo “híbrido”, pois ao mesmo tempo em que destacam
um produto ou marca independente da emissora, seu uso está atrelado à programação televisiva, o que lhes
confere uma aparição diferenciada. Por essa razão, optamos por estabelecer as porcentagens em blocos sem
comerciais de apoio.
Break comercial: estratégia e eficiência | 163
Uma análise, mesmo que breve, dos telejornais veiculados atualmente pode
revelar o processo de homogeneização a que estão submetidos. Não se trata
apenas de questões estéticas, tal como a disposição da bancada de apresenta-
ção, o enquadramento realizado, a vestimenta sóbria de seus apresentadores
– problemas que outros tipos de programas (infantis, femininos, de entrevista)
também enfrentam. Mas, especialmente no caso do telejornalismo, a homoge-
neização se dá também em aspectos relacionados ao conteúdo dos programas.
A possibilidade de recorrer às mesmas agências de notícias, somada às facilida-
des proporcionadas pelas novas tecnologias – tanto para captação e transmissão
de imagens como produção e veiculação “ao vivo” de conteúdos em qualquer
parte do mundo – parece ter permitido o fim das maiores disparidades entre
os telejornais. Desse modo, podemos observar uma correspondência tanto na
estrutura dos programas (quanto às editorias: esporte, economia, internacional)
164 | Jaqueline Esther Schiavoni
de apoio. Esse tipo de comercial funciona como uma espécie de resumo da pro-
paganda e, em decorrência disso, seu tempo de exibição é menor. Dessa forma,
uma seqüência de 3 a 4 comerciais de apoio e uma locução dinâmica imprime
um ritmo diferente ao break. Quando ocorre esse tipo de construção, o telespec-
tador pressente – pelo hábito – que o intervalo terminará em breve.
No desenvolvimento de alguns programas, tais como as revistas eletrôni-
cas, o papel da vinheta é também fundamental. É ela que marca a organização
dos assuntos abordados, fazendo a separação entre as sessões. Em todos esses
casos, a vinheta aparece estrategicamente, de modo a operacionalizar a fluidez
do tempo, já que a serialidade é uma das principais características da televisão
analógica e, portanto, componente formador de sua identidade (Williams, 1979;
Machado, 2000).
ANEXOS
TABELA 14
Ano Televisão Jornal Revista Rádio Outros
1962 24.7 18.1 27.1 23.6 6.5
1964 36.0 16.4 19.5 23.4 4.7
1966 39.5 15.7 23.3 17.5 4.0
1968 44.5 15.8 20.2 14.6 4.9
1970 39.6 21.0 21.9 13.2 4.3
1972 46.1 21.8 16.3 9.4 6.4
1974 51.1 18.5 16.0 9.4 5.0
1976 51.9 21.1 13.7 9.8 3.2
1978 57.8 16.2 14.0 8.1 3.9
1980 57.8 16.2 14.0 8.1 3.9
1982 61.2 14.7 12.9 8.0 3.2
1984 61.4 12.3 14.3 6.8 5.2
1986 55.9 18.1 15.2 7.7 3.1
1988 60.9 15.9 13.9 6.6 2.7
1991 56.0 27.4 9.2 5.1 2.3
1993 53.0 34.0 7.0 5.0 1.0
1995 55.0 28.0 9.0 5.0 3.0
1997 60.4 26.9 6.6 4.6 1.5
1999 62.7 23.3 6.0 5.0 2.9
2001 58.1 24.3 7.8 5.8 4.0
2003 56.6 21.0 7.0 5.3 10.0
2005 60.2 17.2 6.7 4.5 11.4
2007 60.2 16.9 7.0 4.4 11.6
Distribuição percentual da verba de mídia por veículo
TABELA 2
EXEMPLO 1 EXEMPLO 2 EXEMPLO 3
Supermercado A Telefonia celular Tinta de cabelo
Loja de roupas Macarrão instantâneo Sandálias
Construtora Supermercado Loja de eletrodomésticos
Drogaria Loja de eletrodomésticos Sabão em pó
Concessionária Automóvel Maquina de lavar
Loja de presentes Banco Chá
Supermercado B Laxante Loja de roupas
4 Para o período que vai de 1962 a 1997, baseamo-nos em Mattos (2002: 56). Dessa data em diante, servimo-nos
de: Intermeios. Disponível em: <http://www.projetointermeios.com.br>. Acesso em: 20 de Abril de 2007.
168 | Jaqueline Esther Schiavoni
TABELA 3
REDE GLOBO DE TELEVISÃO
TELEJORNAL NOVELA REVISTA ELETRÔNICA
1ºbloco P1RCCCRIAAAACR2P P1RCCCCRGCCCR2P 1P2RICCRCCCR2P
2ºbloco P2RCCCRICCR2P P2RCCRCRCCCIR2P P2RCCIRCICCRA2P3
3ºbloco P2RCRCIAAAAACCR2P P2RCCRRCGRA2P3 _______
_____ RP1 RARP RCP
REDE BANDEIRANTES DE TELEVISÃO
PROG. FEMININO PROG. DE ESPORTE TELEJORNAL
1ºbloco 1P2RCCCRCCCCR2P 1P2CCICRCIRACCCRRAA2P 1PI4CRAAA2P
2ºbloco P2RCCCCCCCR2P P2RCCCCCCRRA2P P2RACCCCCRIAA4RA2P
3ºbloco P2RCCCCRR4CCCR2P P2RCCCCCCCIRAAA2P3 P2RACCCIR2P
_____ P34P RAAAIIRAA P3RAAAI4RAP
SISTEMA BRASILEIRO DE TELEVISÃO
PROG. ENTREVISTA TELEJORNAL PROG. MUSICAL
1ºbloco P1P2RACCCCCCCC2P P1P2CCCCC2P 1PRCCCCCCCC2P
2ºbloco P2RAAACCCCCCCAA2P P2CGCI2P P2CCGGCCCCCI2P
3ºbloco P2RACCCCG2P3 P2GCGCG2P P2RCGCGCCCCCC2P3
_____ R4P RAAIR RAAAAARIRAA
FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA
TELEJORNAL REVISTA ELETRÔNICA PROG. ENTREVISTA
1ºbloco P1P2RAAARCCRCR42P 1P2RAACCCCCR42P 1P2RAACCCIR42P
2ºbloco P2RACCRCCR42P P2RAACCCCCR42P P2RACRCIR42P
3ºbloco P2RIRCR4P P2CCCCCCCIA RAA2P3 P2RCRCIR42P3
_____ 4RAARRAAAACR4 4RAAARCCRAA 4RAAARR4
REDE RECORD DE TELEVISÃO
TELEJORNAL NOVELA REALITY SHOW
1ºbloco P1P2CCCRAAAARCCR2P P1RCCCCCCRAACCCCCI2P 1P2RCCCRRCCCCIR2P
2ºbloco P2CIAAAAACCCC2P P2RCCCCCCCC2P P2RCRCRCCCCRAAAAAAA2P
3ºbloco P2CCRAAAARCI2P3 PRCRAACCCCCC2P3 _______
RICRP RIP PRP
A auto-referencialidade na produção estética da televisão
Break comercial: estratégia e eficiência | 169
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FIGURALIDADE E SEMI-SIMBOLISMO
NA ABERTURA DA TELENOVELA
BELÍSSIMA
Loredana Limoli
[...] e eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos,
para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da
arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento;
o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos...
(Chklovski, 1971:45)
Identidade Alteridade
(insólito) (cotidiano)
(moça) (outros)
Cinético durativo Cinético terminativo
Nítido Embaçado
Predominância de senóides Predominância de linhas retas
narração visual e sonora na própria filmagem dos capítulos, o que acentua ainda
mais o caráter plurienunciativo da narrativa telenovelística.
Esse transbordamento do texto televisivo por ação de enunciadores distintos
do produtor da novela, embora à primeira vista incontrolável, está sujeito às normas
fixadas pela produção: aquilo que não se traduz em aumento ou, pelo menos, manu-
tenção de audiência, deve ser imediatamente descartado. Mas, de qualquer maneira,
ele se torna um elemento importante dentro da estratégia comercial que acompanha
(e gera) esse tipo de programação. Primeiro, porque esse “público-alvo” a que se
destina a novela é, na realidade, um público vasto e heterogêneo e, portanto, quanto
maior for a disponibilização de pontos de vista, a multiplicidade de personagens e a
gama de interesses ideológicos vinculada aos participantes da produção comunica-
tiva, maior será a chance de ampliação do horizonte de penetração de audiência.
A diversificação de enunciadores e a presentificação da novela (Belíssima
simula uma concomitância com o presente extralingüístico) são aspectos im-
portantes do estabelecimento do contrato fiduciário entre o destinador da men-
sagem (produtor + diferentes enunciadores) e o destinatário (público-alvo).
Trata-se do contrato enunciativo, “que visa estabelecer uma convenção fiduci-
ária entre o enunciador e o enunciatário sobre o estatuto veridictório (o dizer-
verdadeiro) do discurso-enunciado”. (Greimas, 1979:71). Há, a princípio, dois
contratos principais em jogo: um primeiro contrato estabelece o limite entre
a realidade e a ficção, e apresenta-nos a totalidade enunciativa como verdade
(é e parece ficção); o outro contrato diz respeito às relações de internalização
do enunciatário-telespectador, que crê nos possíveis narrativos em virtude da
semelhança dos fatos com o real vivido ou vivível. Neste último caso, a parciali-
dade enunciativa (uma cena, um capítulo, um “núcleo”) é entendida ao mesmo
tempo como ilusão (parece real, mas não é) e como verdade (é e parece possí-
vel). Essa ambigüidade do contrato enunciativo, que nos faz oscilar entre uma
adesão total e uma desconfiança do que vemos, ocorre porque as “verdades” do
texto-ocorrência (a novela) são validadas exclusivamente no interior do mundo
da ficção. Em nossos mecanismos de recepção da mensagem ficcional, há uma
espécie de válvula de escape que nos permite distanciar da trama vivida sempre
que nossas crenças forem incapazes de validar determinadas verdades textuais.
Optamos, nesses momentos, por uma saída do enunciado rumo à enunciação, o
que provoca uma opacização do significante.
À medida que os participantes da comunicação (enunciador e enunciatário) to-
mam seus lugares da enunciação, a TV propõe seus pactos enunciativos e o público
responde com adesão a crenças diversas, entregando-se ao universo ficcional pre-
Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 179
gem – filho de Katina, que quer ser modelo. Embora bonito, não tem talento
e vê-se obrigado a posar seminu para um outdoor, como forma de integrar o
ingrato mundo da publicidade da moda.
- Mateus, neto de Katina, que se torna garoto de programa das ricas socia-
lites Ornella e Bia. Indolente e desavergonhado, o rapaz é a representação mais
flagrante de transformação do valor estético em valor econômico.
sua busca da beleza como realização pessoal. Sem ser personagem da novela,
a modelo é a representação sensível do belo e sintetiza a idéia de individuação
pela posse do valor estético.
O estudo da dimensão temático-figurativa da abertura é um requisito ne-
cessário, porém não suficiente, para o entendimento dos processos de produção
de sentidos desse texto sincrético. Como nos lembra Barros (2004b), além da
semântica do discurso, podemos recorrer, também, às relações intertextuais e
interdiscursivas, para termos acesso a elementos sócio-históricos que partici-
pam da construção de sentidos.
Ao observarmos a moça da vitrine, notamos que o conjunto de sua gestuali-
dade assemelha-se aos movimentos de uma tocha, uma labareda de fogo. Pode-
mos pensar que o fogo está associado à vida, ao princípio divino e provoca, aqui,
por metáfora visual, o efeito de sentido de incandescência do amor sensual.
Observemos, agora, a logomarca de um dos principais anunciantes da no-
vela, o Banco Santander (fig. 1):
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Publicidade e figurativização. Alfa, São Paulo, v.
48, n. 2, 2004a. 11-31 p.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz
(org.). Introdução à lingüistica II. São Paulo: Contexto, 2004b.
CHKLOVSKI, Viktor. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionísio (org.).
Teoria da Literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1971.
FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l´oeil et de l´esprit - pour une
sémiotique plastique. Amsterdam: Hadès-Benjamins, 1985.
FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. Trad. Jean Cristtus Portela. São
Paulo: Contexto, 2007.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Sémiotique. Dictionnaire
raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette Université, 1979.
SILVA, Ignacio Assis. Figurativização e metamorfose. São Paulo: Ed. UNESP,
1995.
O Nu de Boubat e a Globeleza | 185
O NU DE BOUBAT E A GLOBELEZA
Adriane Ribeiro Andaló Tenuta
INTRODUÇÃO
Em seu texto sobre “práticas semióticas” (ver artigo nesta coletânea), Jac-
ques Fontanille chama-nos a atenção para o fato de que a teoria semiótica de
linha francesa já ultrapassou os limites do texto, no sentido do célebre slogan
defendido por A. J. Greimas: “Fora do texto não há salvação”.
Para ele, a semiótica da atualidade vem revendo sua posição a respeito do
estatuto das operações de “produção de sentido” e redefinindo sua preocupação
com a natureza das inúmeras semióticas-objeto, “consideradas como máquinas
significantes e dinâmicas”, a fim de assumir pesquisas conduzidas fora do texto,
porém, sem abandonar os princípios da imanência e da pertinência, ou seja, sem
caminhar para “fora da semiose” (solidariedade entre expressão e conteúdo).
Diferentemente de outros semioticistas, J. Fontanille define o percurso gera-
tivo do plano da expressão e assim apresenta sua hierarquia de níveis: (1) signos
e figuras, (2) textos-enunciados, (3) objetos e suportes, (4) práticas e cenas, (5)
situações e estratégias, (6) formas de vida. É assim que o autor amplia o espaço
de análise, acrescentando à conhecida semiótica concentrada e focalizada no
percurso gerativo do sentido (dedicada ao plano do conteúdo) uma outra, que
considera o plano da expressão e caminha em direção à semiótica da cultura.
Fontanille ainda postula outra hipótese, que chama de forte e produtiva,
186 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta
A “GRAMATICALIDADE” DA IMAGEM
A nudez feminina sempre foi tema recorrente em artes plásticas, e algumas
esculturas e telas tornaram-se famosas, sendo copiadas e reproduzidas através
dos séculos. Por exemplo: Vênus de Milo e O nascimento de Vênus, de Botticelli,
a Vênus de Urbino, de Ticiano, a Vênus do espelho, de Velazquez, La Maja Desnu-
da, de Goya, Olímpia, de Manet, Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, Nu Azul
4, de Matisse1 e muitas outras. Mas o que diferencia alguns nus femininos, acei-
tos como prática artística, de outros tantos, considerados como simplesmente
eróticos e imorais?
Conforme Antonio Vicente Pietroforte (2004: 24-36), a apresentação do
corpo humano em sua nudez, tanto o masculino como o feminino, aparece de
forma diferente conforme o discurso: se for conotado teremos beleza estética,
Figura 1
Trata-se de uma jovem vista quase de costas (não se vê o rosto), com o busto
e os braços nus, os cabelos negros cortados bem curtos e, da cintura para baixo,
envolta por uma saia de tecido estampado com flores. Observamos que com a
2 Essa foto foi e ainda continua a ser publicada na França. Podemos encontrá-la em Boubat (1972; 1974) e, no
Brasil, em Pietroforte (2004: 25).
188 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta
mão direita a jovem segura uma parte do tecido, que poderia ser a blusa que
cobriria o busto. Mas o que faz com que essa fotografia seja vista como prática
artística?
Inicialmente, poderíamos dizer que esse tipo de fotografia foge ao conven-
cional, que seria a modelo completamente nua, posando para uma foto eróti-
ca ou completamente vestida, como se fosse apresentar-se na passarela de um
desfile de modas. O que significa esse momento entre estar vestida e ao mesmo
tempo despida? Como podemos descobrir as camadas de sentido que são ima-
nentes e pertinentes a ela, ou seja, de que modo o plano da expressão estrutura
o plano de conteúdo e diferencia essa fotografia de tantas outras?
Em seu texto3, Floch inicia a análise separando, em diferentes tipos, o que
ele chama de unidades do discurso plástico ou “contrastes”. São contrastes sim-
ples, que fazem parte do paradigma do sistema fotográfico, como a oposição
entre nítido e não-nítido (flou) ou claro e escuro, elementos de base das lingua-
gens plásticas. Porém, em sua proposta, o autor encontra outras oposições, que
resultam em contrastes complexos, como o modelado vs achatado4.
O semioticista francês trabalha, então, com camadas de significação que
ressaltam contrastes sobre contrastes, ou seja, a partir do contraste simples claro
vs escuro, o analista acrescenta o contraste modelado vs achatado, ambos do
plano da expressão, para dividir a fotografia em quatro espaços, conforme suas
características picturais e topológicas: (1) o fundo escuro; (2) o espaço negro
dos cabelos; (3) o espaço claro do busto e dos braços e 4) o espaço que apresenta
a textura do tecido estampado.
Assim a figura total da jovem aparece iluminada contra um fundo de nu-
anças entre o cinza e o preto, mais escuro à direita (sombra da própria jovem,
causada pela iluminação da esquerda para a direta), sendo que as costas, o pes-
coço, os braços e o seio direito aparecem modelados, isto é, com volume. Já os
cabelos curtos e negros e a saia de tecido estampado aparecem sem volume, sem
nuanças, ou seja, achatados (chapados), “recortados” contra o fundo.
Definida a análise do plano da expressão, apresentada aqui de maneira mui-
to resumida, Floch começa sua argumentação a fim de construir ou constituir
relações semióticas com o plano do conteúdo. Para tanto, busca estabelecer uma
categoria semântica que dê conta de justificar o contraste modelado vs achatado,
do plano da expressão, agora no plano do conteúdo:
3 Os comentários sobre o texto de Jean-Marie Floch estão em português, traduzidos para este trabalho.
4 A tradução de modelé/aplat (Floch, 1985: 26-29) como modelado/achatado segue o uso de tais vocábulos no
artigo de Jorge Coli publicado em Novaes (1988: 231).
O Nu de Boubat e a Globeleza | 189
A LINGUAGEM SEMI-SIMBÓLICA
Segundo o Tomo II do Dicionário de Semiótica de Greimas e Courtés (1991:
227-229), a investigação sobre o semi-simbólico tem sido estimulada para res-
ponder a questões sobre o estatuto semiótico de unidades sintagmáticas que os
pintores costumam chamar de contrastes plásticos. Mas o que vem a ser o siste-
ma semi-simbólico da linguagem ou a linguagem semi-simbólica?
Na verdade, foi Hjelmeslev que opôs a linguagem que ele chamou de “mo-
noplana” ou simplesmente simbólica à linguagem semi-simbólica: a primeira
caracterizada pela conformidade entre as unidades do plano da expressão e do
plano do conteúdo e a segunda pela não conformidade entre as unidades dos
dois planos, mas pela conformidade entre categorias. Ou seja, na linguagem
monoplana, a distinção entre elementos repousa apenas em discriminação sim-
ples, por exemplo: um desenho infantil é reconhecido como desenho infantil,
O Nu de Boubat e a Globeleza | 191
cobre um dos seios, deixando o outro à mostra e seu olhar está direcionado para
algo distante do observador-destinatário.
Por sua vez, a Vênus de Urbino, de Ticiano (1538), que também está em Flo-
rença, na mesma galeria, encontra-se recostada (a cabeça da esquerda para a direi-
ta) sobre cama acolchoada, os olhos baixos, os cabelos longos, porém castanhos e
a mão esquerda também cobre o púbis e ela traz uma pulseira no pulso direito.
A Vênus do espelho, de Velásquez (1644-1648, National Gallery, Londres),
diferente das duas Vênus citadas acima, apesar de também estar nua e recostada
sobre cama acolchoada, apresenta-se de costas, em posição semelhante à Vênus
de Urbino, ou seja, deitada da esquerda para a direita, porém os cabelos casta-
nhos e longos estão presos num penteado e podemos ver seu rosto, que encara o
destinatário através de um pequeno espelho que um cupido segura diante dela.
La Maja desnuda de Goya (1799, Museu do Prado, Madri) também encara
o destinatário, porém está recostada em posição inversa, ou seja, da direita para
a esquerda e seus braços estão atrás da cabeça o que dá destaque para os seios.
Esse nu repete a mesma pose de outra tela em que a modelo está vestida. Trata-
se de La Maja vestida, do mesmo ano e no mesmo museu.
Já na Olímpia, de Édouard Manet (1863, Paris, Museu d’Orsay), o pintor
retoma a posição da esquerda para a direita e o gesto da mão esquerda que
cobre o púbis, porém a atitude da modelo é outra, pois seus olhos encaram atre-
vidamente o observador e, apesar de nua, ela está enfeitada ou adornada com
alguns adereços: uma flor nos cabelos ruivos cortados curtos, colar no pescoço
e pulseira no braço direito.
Chegando ao século 20, com Picasso e Les Demoiselles d’Avignon (1907,
Moma, Nova Iorque), apesar da geometrização cubista da tela, parece que esta-
mos diante de uma síntese de todas as mulheres nuas retratadas anteriormente.
Nessa tela, famosa por ter inaugurado o Cubismo, as cinco figuras femininas
repetem gestos e poses semelhantes às demais. Senão vejamos: duas delas estão
centralizadas e encaram o destinatário; uma delas, assim como a Vênus de Milo,
apresenta “panejamentos” que lhe cobrem o púbis; uma está de perfil, outra está
sentada de costas, porém, seu rosto, estranhamente voltado para o destinatário,
o encara, como se a cabeça estivesse inteiramente virada para as costas; quatro
delas têm os braços erguidos atrás da cabeça; entre elas vemos figuras geométri-
cas que estamos interpretando como pedaços de um espelho estilhaçado (talvez
o espelho de Velásquez?). O Nu Azul 4, de Matisse, é uma colagem do tipo si-
lhueta, construída com papel azul, que representa uma mulher nua, sentada.
Embora possamos analisar cada “nu” individualmente, em suas unidades
O Nu de Boubat e a Globeleza | 193
de pintores famosos com mulheres nuas. Agora, porém, passamos para a te-
levisão, suporte cuja característica principal é a imagem em movimento que,
como no cinema, reproduz, além das imagens, os sons das falas dos atores, das
músicas orquestradas e cantadas, como também caracteres escritos, o que nos
coloca diante do sincretismo, ou seja, diante da presença de várias linguagens de
manifestação em um só produto audiovisual, ou seja, um todo de sentido.
Conforme a explicação encontrada no Tomo I do Dicionário de Semiótica
(1983: 426), não só a ópera ou o cinema (a televisão inclusive) acionam várias
linguagens de manifestação, mas também a comunicação verbal do nosso dia-
a-dia, pois inclui, além da língua falada, os gestos, a proxêmica, o tom de voz, o
nível de linguagem formal, coloquial, regional e outros possíveis aspectos.
Embora não haja espaço neste trabalho para discussão tão complexa, queremos
crer que o sincretismo não leva à criação de uma nova linguagem ou de linguagens
paralelas, mas acrescenta substâncias ao plano da expressão, porém todas elas cor-
respondentes ou homologáveis ao plano do conteúdo de uma mesma linguagem.
Continuando, quando acompanhamos a análise da foto de Boubat feita
por Floch, com a percepção dos procedimentos técnicos que conferem uma
descrição e interpretação à expressão e sua correspondência a uma descrição
e interpretação de um conteúdo específico (modelado: achatado :: nu : com
adereços e ainda nu : natural :: com adereços : cultural) achamos possível
transpor essa fórmula para a vinheta televisiva da Globeleza que, completa-
mente nua, porém “coberta” com adereços, invadia nossas casas para anun-
ciar o Carnaval carioca.
O autor do clip da Globeleza foi o famoso artista da mídia televisiva, o aus-
tríaco Hans Donner que, enquanto chefe de equipes de designers, ilustradores,
técnicos em computação e especialistas em animação da Rede Globo criou vi-
nhetas de abertura para programas como o Jornal Nacional e o Fantástico, assim
como para as novelas Sinal de alerta (1978-79), Brilhante (1981-82), Champagne
(1983-84), Corpo a corpo (1984-85), além de vinhetas de chamada, como a que
apresentava a modelo Valéria Valenssa (sua esposa), na pele da Globeleza.
Embora muitas pessoas possam ter se escandalizado com as primeiras
aparições de uma mulata dançando nua na tela de sua televisão, anunciando a
cobertura que a Rede Globo faria dos desfiles das escolas de samba do Rio de
Janeiro, nunca se soube de censura que proibisse sua apresentação, o que nos
leva a dizer que se trata de um produto audiovisual aceito como prática social e
cultural, possível durante o período das festas de Momo. Mas de que maneira a
vinheta foi construída para chegar a tal resultado?
O Nu de Boubat e a Globeleza | 195
O mesmo autor ainda diz que com essa vinheta a Rede Globo prepara-
va o espírito do espectador para suas transmissões “em forma de um grande
festival de simulacros, festa e alegria com música e imagens de nus durante
mais de um mês de carnaval”, enquanto explorava o mito do carnaval cario-
ca “espetáculo global, subproduto da indústria cultural, para ser consumido
nacionalmente e no exterior, revelando um estereótipo da mulher brasileira”
(Petrini, Ibidem).
Como podemos observar, Petrini faz uma análise da vinheta como produto
da cultura de massa, a ser vendido pela Globo, com críticas ao acréscimo da
autopromoção da emissora, mas sem tocar nos aspectos artísticos da apresen-
tação do nu da modelo Valéria Valenssa, como é o nosso objetivo. Na verdade,
as seqüências do clip, quando visto em movimento, são muito rápidas e seguem
o ritmo da batucada: a modelo apresenta-se em nudez completa, sempre dan-
çando ao som da música de Jorge Aragão. A imagem se afasta e se aproxima
do telespectador, num vaivém constante, em sincronia com o ritmo da trilha
sonora; há seqüências muito rápidas de nu frontal, mas, quase sempre a edição
corta o corpo em pedaços, ou seja, mostra a cabeça, o rosto e em seguida os pés;
mostra pernas, coxas e nádegas de perfil, cortando a cabeça e os pés; os seios
estão à mostra e os braços em constante movimento ao ritmo da música; os
pés sempre calçados com sandálias prateadas ou douradas, de salto alto e pla-
taforma, lembrando aquelas usadas pela legendária Carmen Miranda; o púbis
apresenta-se sempre coberto com um tapa-sexo. Vamos, então, observar como
a apresentação desse nu se encaixa na prática do “nu artístico”.
196 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta
À GUISA DE CONCLUSÃO
Assim como Jacques Fontanille nos ensina que o campo de exercício da
semiótica é a significação em ato, a significação viva, “é o discurso e não o signo:
a unidade de análise é um texto, seja ele verbal ou não-verbal” (2007: 29), para
concluir nosso trabalho, vamos posicionar a análise da vinheta da Globeleza na
hierarquia criada por ele (ver texto nesta coletânea):
a) fotos, telas, videoclips são textos-enunciados que contêm signos e figuras;
b) a foto de Boubat, uma tela de Boticelli, a vinheta da Globeleza são objetos
O Nu de Boubat e a Globeleza | 197
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PRÁTICAS ENUNCIATIVAS
COMO ESTRATÉGIAS DE INTERAÇÃO
Big Brother Brasil
PREMISSAS
O formato reality show foi inaugurado em 1999, em um canal de televisão
holandês, o Veronica. Dois anos depois já se via difundido por 19 países, entre
eles, Estados Unidos, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Portugal, Suécia, Suíça
e Bélgica. Sempre acompanhado de altos índices de audiência, o programa de
caráter voyeurístico foi se adaptando às tevês dos territórios pelos quais passou,
conforme determinações das emissoras que adquiriram seus direitos.
Apesar do inegável sucesso desses programas, ainda hoje a eles atribuído,
não se pode negar uma lenta, porém contínua, queda de interesse do público em
todo mundo. Esse fato pode ser constatado ao observar o curto tempo de vida
de alguns desses programas. Depois de amargar fracassos mantendo o mesmo
esquema do modelo inicial, cada rede, em diferentes países, buscou construir
um formato que fosse bem recebido pelo público. Alguns são mal sucedidos,
204 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo
1 No Brasil, algumas emissoras tentaram fazer certas adaptações e foram mal sucedidas, assim como na França,
por exemplo, em 2006, em que o programa foi adaptado à Idade Média e interrompido por declínio signifi-
cante de audiência. Recentemente, França e Inglaterra realizam, todo ano, um formato similar para eleição do
melhor intérprete entre cantores amadores provenientes de todas as regiões, com altos índices de audiência e
incrível repercussão até internacional.
2 Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.
Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 205
PRÁXIS ENUNCIATIVA
[...] a todo momento da evolução de uma cultura e dos discursos que a
constituem, em todo ponto de sua difusão, convivem ao menos dois tipos
de grandezas: as engendradas a partir do sistema e as fixadas pelo uso. De
tal forma que, como todo discurso dispõe, hic et nunc, desses dois tipos
de grandeza, a exigência mínima de coerência impôs, de certo modo, o
conceito de práxis enunciativa, para explicar sua co-presença discursiva
(Fontanille; Zilberberg, 2001: 174).
das na casa (lá), detalhando fatos passados (então) no momento atual (agora),
evidenciando a coexistência actancial, espacial e temporal que cria o efeito de
sentido de fusão.
coexistência do
desdobramento do
ele, lá, então eu, aqui, agora eu/ele; aqui/lá;
eu e aqui
então/agora...
PARA TERMINAR
Esses quatro regimes de presença aqui apontados e descritos representam
formas diferentes de persuasão ideologicamente construída dentro dos parâ-
metros midiáticos, nos quais, além de uma simples narrativa, há interesses ou-
tros, no nível profundo da elaboração do discurso, como o do merchandising.
Quando, por exemplo, um prêmio é ofertado para um participante, dentro de
um determinado capítulo do reality show, todo um processo de discurso apela-
tivo fica subjacente à história narrada. Esse objeto oferecido como prêmio não
é apenas o objeto-valor do personagem (vencedor de uma prova do jogo), mas
duplamente valorizado: como objeto-valor da entidade enunciadora, que busca
recursos financeiros para sustentar o programa, e como objeto-valor da entida-
de financiadora, que faz sua publicidade. O que queremos dizer é que, muito
além de um simples prêmio conquistado, há uma seqüência de manipulações: a
do candidato que é manipulado para “entrar no jogo”, a da empresa que mostra
seus produtos (automóvel, viagem, jóia, etc.) e a da própria empresa de televi-
são, que premia angariando recursos e faz a publicidade indireta da empresa e
do produto no reality show.
No entanto, o que realmente importa é que o candidato escolhido (ven-
214 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo
cedor daquela etapa ou no final da série) pareça ter sido aquele desejado pelo
telespectador (afinal, é ele quem vota!). O observador atento, que assiste ao BBB,
poderá perceber a presença constante do enunciador coletivo (equipe de res-
ponsáveis), sobretudo no primeiro regime, na apresentação do material pré-gra-
vado5. Não é possível apresentar o volume total da gravação de todas as câmeras
localizadas na casa-confinamento. Logo, é feita uma seleção, uma escolha, que
deve trazer benefícios a um candidato e danos a outro. O processo de votação
exige do espectador um posicionamento, que se fundamenta em sua aprovação
ou repulsão ao candidato, diante dos valores registrados em seu comportamen-
to apresentados no vídeo. Assim sendo, uma cadeia de manipulações subjaz à
trama como um todo. Predominam os interesses comerciais (publicitários e de
audiência), sem dúvida, pois as atividades da casa-confinamento fomentam a
competitividade, a discórdia e o embate, ingredientes que garantem a audiência
e forjam o merchandising na narrativa. O telespectador-enunciatário é mani-
pulado e envolvido nesse jogo. E, instigado a fazer prevalecer seus “próprios”
valores, elege “seu” candidato, num processo de identificação exemplar.
Apontamos e tentamos descrever aqui apenas quatro regimes de presen-
ça que representam estratégias eficientes para a interação com o telespectador.
Há outras fomas, algumas já identificadas, tais como as chamadas do BBB ao
longo da programação da emissora, em que telespectadores (pessoas comuns
abordadas na rua) opinam sobre os candidatos e instigam a curiosidade do te-
lespectador. Além disso, a oitava edição, iniciada em janeiro de 2008, inaugurou
outros dispositivos: instalação de telefone na casa-confinamento, redação de di-
ários pelos candidatos, páginas que são publicadas no site oficial do programa,
avaliação diária do “humor” que reina na casa e do “humor” pessoal de cada
candidato, dentre outros. Assim, há um feixe de depoimentos (tanto dos can-
didatos quanto dos telespectadores), muitas vezes controversos, que somados
às quatro práticas enunciativas identificadas e descritas, representam o que em
jornalismo chamamos as várias versões do fato, ângulos que revelam pontos de
vista diferentes, constituindo também um feixe de informações cada vez mais
necessário para a formação de opinião, uma exigência conduzida pelas novas
tecnologias, como a internet, que se impõe progressivamente ao homem da so-
ciedade contemporânea.
Apesar dos oito anos sucessivos de Big Brother Brasil, sempre nos mesmos
moldes originais, observa-se um certo cansaço. Insistindo nos mesmos propó-
5 Não esquecer que o apresentador também conduz, ou seja, exerce a manipulação tanto sobre os telespecta-
dores (prática enunciativa do regime 2), quanto sobre os candidatos (regime 3). Conseqüentemente, dirige
ambos de forma quase “possessiva” e dominadora, direcionando o percurso narrativo ou a diegese.
Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 215
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4o ed. São Paulo:
Ática, 2005.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3ª
ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2002.
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 1996.
FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. Trad. Jean Cristtus Portela. São
Paulo: Contexto, 2007.
FONTANILLE, Jacques; ZILBERBERG, Claude. Tensão e significação. Trad.
Ivã Carlos Lopes et al. São Paulo: Discurso Editorial: Humanitas/FFLCH/USP,
2001.
GREIMAS, A. J; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima
et al. São Paulo: Cultrix, 1983.
MACHADO, Arlindo. Televisão levada a sério. São Paulo: Senac, 2000.
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 217
PRÁTICAS PASSIONAIS
NA MÍDIA TELEVISIVA
Programas de comportamento
Durante os anos 80, a análise das paixões era uma análise dos lexemas
ou dos papéis passionais: a cólera, o desespero, a nostalgia, a indiferença,
a avareza ou o ciúme. No curso dos anos 90, ela se consagra cada vez
mais ao estudo da dimensão passional do discurso e, notadamente, às
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 219
PROGRAMAS DE COMPORTAMENTO
E SUAS PRÁTICAS PASSIONAIS
O objeto de pesquisa deste trabalho é composto por dois programas tele-
visivos de comportamento: (1) Casos de família – exibido diariamente em rede
nacional pelo SBT, Sistema Brasileiro de Televisão, desde 2004. Trata-se de um
programa temático em que os participantes discutem assuntos íntimos, relacio-
nados ao tema familiar. Apresentado pela jornalista Regina Volpato, está no ar
há mais de quatro anos; (2) Programa Silvia Poppovic – versão exibida pela TV
Cultura, emissora pública de televisão, como os tradicionais programas apre-
sentados por Silvia Poppovic. Estreou em rede nacional, no início de 2005, com
exibição inédita e com reprises semanais. Os assuntos discutidos no programa
faziam parte do tema “qualidade de vida no mundo contemporâneo”. Saiu do ar
no final de 2006, um ano e meio após seu início.
Cada programa, à sua maneira, estabelece contratos passionais com seu
enunciatário, tendendo a uma maior ou menor sensibilização, que depende das
práticas adotadas. No primeiro programa, dois convidados expõem, em con-
frontação, um assunto relacionado ao tema da emissão. Após essa apresentação,
um especialista e a apresentadora fazem “julgamentos” direcionados especifica-
mente aos “casos” narrados. Em Silvia Poppovic, os convidados apenas relatam
suas histórias pessoais, comentadas por um especialista e pela apresentadora,
que não se limitam a discutir os fatos, mas tentam ampliar o enfoque.
Essas duas diferentes práticas de organização televisiva constituem diferen-
tes estratégias passionais, a partir das quais podemos perceber maior ou menor
envolvimento do telespectador com o enunciado. Vejamos como isso ocorre em
dois exemplos retirados dos programas.
222 | Dimas Alexandre Soldi
1 Edição exibida em 26/06/2006. A análise desse item foi dividida em três partes para ficar em sintonia com o
formato do programa Casos de família, no qual os convidados são entrevistados um de cada vez até formar
uma dupla sobre o mesmo caso. Na primeira parte, é realizada uma análise da primeira entrevista com um
dos participantes da dupla, a Cristiane; na segunda, a análise centra-se na entrevista realizada com o segundo
membro da dupla, o marido de Cristiane, José; e por fim, na última parte, é realizada uma avaliação do “jul-
gamento”, que compõe o fim do programa. As constantes citações das entrevistas e do “julgamento” final do
segmento, introduzidas nas análises, dispensam a apresentação em anexo da transcrição de todo o material.
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 223
2 J. Courtés (1979) analisa algumas versões da história de Cinderela que em muito se relacionam com a história
de Cristiane.
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 225
Onde:
(1) a relação é do tipo conversa: quanto mais, mais...;
(2) o efeito orientado pelo modo de junção concessivo intensifica-se pela
extensidade;
(3) a vergonha relaciona-se apenas à cor e à classe social de Cristiane; a humi-
lhação, à cor, à classe social, ao tempo e ao espaço;
(4) a humilhação é acionada em função do tempo e do espaço. Num primeiro
momento, José tem vergonha de Cristiane pela cor e pela classe social; a humi-
lhação só se inicia, de fato, a partir do momento em que o tempo da disjunção
torna-se longo (“sete anos”) e o espaço curto (“aqui em São Paulo!”).
O julgamento
Por fim, após ouvirem os envolvidos, Cristiane e José, chega o momento da
“sentença”, do julgamento, da moralização, última etapa do esquema canônico do
sujeito passional. Ela ocorre quando um observador social encarrega-se de interpre-
tar o percurso passional realizado por um sujeito, pressupondo e ao mesmo tempo
mascarando a sensibilização, que foi responsável pela patemização do discurso. Nas
palavras de Fontanille e Greimas, o julgamento se realiza da seguinte forma:
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 229
Em que:
(1) indica o momento inicial, quando a apresentadora anuncia Rosangela,
apontando uma passionalidade marcada pela “decepção” de um amor mal-re-
solvido: “Longe das capas de revistas e da televisão, os casais levam, às vezes,
muito tempo pra reconhecer que o conto de fadas acabou, em primeiro lugar. E,
às vezes, quando descobrem que acabou, eles não podem acreditar que acabou
porque aquela pessoa se fazia passar por alguém que ela não era...”;
Entrevista longa
Entrevista curta (poucos detalhes)
(são relatados detalhes variados)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2001.
BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Trad. Grupo CASA.
Bauru, SP: EDUSC, 2003.
COURTÉS, Joseph. Uma leitura semiótica de “Cinderela”. In: COURTÉS, Joseph.
Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Coimbra: Livraria Almedina, 1979.
DINIZ, M. L. V. P. O telejornal como experiência hiperbólica: uma questão de
tensividade. Anais do XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação
- Intercom, Santos, 2007. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/
nacionais/2007/resumos/R0930-1.pdf>. Acesso em: 30 de setembro de 2008.
FONTANILLE, Jacques; ZILBERBERG, Claude. Tensão e significação. Trad.
Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Discurso Editorial:
Humanitas/FFLCH/USP, 2001.
GREIMAS, Algirdas Julien. Da imperfeição. Trad. Ana Claudia de Oliveira. São
Paulo: Hacker, 2002.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Trad.
Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1983.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Semiótica. Diccionário
razonado de la teoria del lenguaje – Tomo II. Trad. Enrique Ballón Aguirre.
Madrid: Editorial Gredos, 1991.
GREIMAS, Algirdas Julien; FONTANILLE, Jacques. Semiótica das paixões: dos
estados de coisas aos estados de alma. Trad. Maria José Rodrigues Coracini. São
Paulo: Ática, 1993.
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Trad. Jasna Paravich Sarhan.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984.
ZILBERBERG, Claude. Louvando o acontecimento. Trad. Maria Lúcia Vissotto
Paiva Diniz. Galáxia, Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação
e Semiótica da PUC, N0 13, São Paulo: EDUC, 2007.
ZILBERBERG, Claude. Síntese da gramática tensiva. Trad. Luiz Tatit e Ivã
Carlos Lopes. Significação – Revista Brasileira de Semiótica. N. 25. São Paulo:
Annablume, 2006. p. 163-204.
Parte V
NOVAS MÍDIAS
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 239
INTRODUÇÃO
Alcance, acessibilidade, circulação ilimitada de mensagens, descentraliza-
ção da produção. Esses termos com freqüência aparecem nos estudos sobre a
internet e, sem dúvida, ajudam a caracterizá-la. Mas indo além das análises so-
bre essa semiótica-objeto como mídia, é preciso olhar para seu conteúdo e seus
usuários, refletir sobre as formas de significação inauguradas (ou reinaugura-
das) a partir da rede.
Nessa perspectiva, o que as inúmeras pesquisas sobre a mídia digital bus-
cam compreender não deve ser somente seu caráter contemporâneo, seus re-
cursos, ferramentas e a forma como a informação é arquitetada no ambiente
virtual. O fazer do analista deve incidir (este nem todos tenham plena consciên-
cia disso) sobre o desvelamento daquilo que a semiótica francesa de vanguarda
tem chamado de “práticas semióticas”, bem como sobre os “contratos” firmados
nesse novo ambiente.
Este trabalho apresenta hipóteses relacionadas aos vídeos veiculados no site
de compartilhamento de vídeos YouTube1. Uma pesquisa paralela ainda em an-
O VIÉS COMUNICACIONAL
Ainda que apenas cerca de 40 milhões de pessoas no Brasil tenham acesso à
internet2, é preciso considerar as mudanças que o ciberespaço tem provocado nos
conceitos até então conhecidos sobre os fenômenos comunicacionais, “transfor-
mando nossa ‘cultura material’ pelos mecanismos de um novo paradigma tecno-
lógico que se organiza em torno da tecnologia da informação” (Castells, 1999: 67).
A dimensão desses fenômenos é claramente demonstrada por Vilches:
2 Os números equivalem a 22,5% da população e são referentes ao acesso em qualquer ambiente, como casa,
trabalho, escola, cybercafés e bibliotecas. O dado foi divulgado em 27 de junho pelo Ibope/NetRatings, e
refere-se ao primeiro trimestre deste ano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/informati-
ca/ult124u416776.shtml>. Acesso em: 26 de agosto de 2008. Pesquisa não tão recente, publicada em 2005
pelo IBGE em parceria com o Comitê Gestor da Internet (CGI), aponta que 21% da população brasileira
tem acesso à Internet. Disponível em: <http://www.ibge.com.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.
php?id_noticia=846&id_pagina=1>. Acesso em: 26 de agosto de 2008.
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 241
comprou o YouTube em outubro do mesmo ano por US$ 1,65 bilhão. A transa-
ção comercial mostra, além de um bom negócio para seus criadores, o interesse
e o impacto que a imagem causa na sociedade atual:
o SBT Brasil, com sua pesquisa de opinião diária4), o público teve tanta chance
de interagir e principalmente produzir, como a internet vem permitindo. Essa
relação “íntima” entre TV e internet possibilitou o inusitado: nunca antes os
receptores tiveram a oportunidade de se transformar em emissores/produtores
de imagens que pudessem ser transmitidas em tal escala e velocidade, como
ocorre no site YouTube.
Depois de conquistar os processos de troca de textos, bate-papos, fóruns e
outras formas de comunicação “todos para todos” oferecidas pela internet, o site
YouTube, com seu crescimento exponencial, abriu as portas para a democracia
da imagem:
4 Esse telejornal realiza todos os dias, por telefone, uma “pesquisa” sobre determinado tema, ouvindo opiniões
de dez telespectadores por programa, que se manifestam a favor ou contra determinado assunto.
244 | Tânia Ferrarin Olivatti
5 Os reality shows surgem na esteira dessa sociedade imagética. Podemos caracterizar então dois tipos de su-
jeitos: 1) os que querem ser “ouvidos” e encontram na produção de materiais audiovisuais uma forma de
expressão; 2) os que querem simplesmente “aparecer” (são comuns histórias frustradas de indivíduos que se
inscreveram no Big Brother Brasil e não foram selecionados). Quando esse segundo querer não é alcançado na
mídia tradicional, resta-lhe apelar para meios mais “democráticos”, como a internet.
6 Em meados de 2006, quando o YouTube se popularizou, cerca de 65 mil novos vídeos eram colocados na pági-
na diariamente. Quanto ao acesso, o número chegava aos 100 milhões por dia. Disponível em: <http://oglobo.
globo.com/tecnologia/mat/2006/08/31/285490135.asp>. Acesso em: 26 de agosto de 2008.
246 | Tânia Ferrarin Olivatti
7 Daniella Cicarelli foi filmada em cenas íntimas com o namorado numa praia da Espanha. O vídeo foi parar
no YouTube em setembro de 2006. A modelo e o namorado entraram na justiça contra o site, processo que se
alongou por cerca de seis meses, sem êxito para Cicarelli, que ainda foi obrigada a pagar as custas do processo.
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/post.asp?cod_post=63188>. Acesso em: 23 de agosto
de 2008.
8 Disponível em: <http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=420MON012>. Acesso em:
23 de agosto de 2008.
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 247
9 Segundo consta na página, Midiatrix foi postado em 18 de outubro de 2006, sendo exibido – até a última
data de acesso – 190.229 vezes. Não existe na página um campo indicativo da procedência (país) do filme,
mas o conteúdo e os comentários postados (quase 500) pelo público e pelo próprio autor (que se apresenta
como “Ferrorama”) evidenciam que o vídeo é brasileiro. Disponível em “Midiatrix” <http://br.youtube.com/
watch?v=Sv55JusfEC8&feature=related>. Acesso em: 26 de agosto de 2008.
10 Trilogia: Matrix (1999), Matrix Reloaded (produzido em 2002, mas lançado em 2003) e Matrix Revolutions
(2003). Os gêneros ação e ficção científica marcam a produção realizada pelos irmãos Wachowski e protago-
nizada por Keanu Reeves no papel de Neo. Matrix tem como tema a luta do ser humano, por volta do ano de
2200, para se livrar do domínio das máquinas que evoluíram após o advento da inteligência artificial. Dispo-
nível em: <pt.wikipedia.org/wiki/Matrix>. Acesso em: 26 de agosto de 2008.
248 | Tânia Ferrarin Olivatti
11 “Num sentido muito geral, pode-se entender por contrato o fato de estabelecer, de ‘contrair’ uma relação inter-
subjetiva que tem por efeito modificar o estatuto (o ser e/ou o parecer) de cada um dos sujeitos em presença.
Sem que se possa dar uma definição rigorosa dessa noção intuitiva, trata-se de propor o termo contrato, a
fim de determinar progressivamente as condições mínimas nas quais se efetua a ‘tomada de contato’ de um
sujeito para com o outro, condições que poderão ser consideradas como pressupostos do estabelecimento da
estrutura da comunicação semiótica” (Greimas; Courtés, 1983: 84, grifos dos autores).
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 249
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda que não seja conclusivo (certezas irrefutáveis podem ser encontradas
nas ciências humanas?), o presente ensaio procurou refletir sobre questões que
perpassam as maiores mudanças ocorridas nos meios de comunicação nos úl-
timos anos. Optar por tais questões sem dúvida causou (e ainda causa) descon-
forto. Tendo consciência de que o objeto escolhido é intrínseco a um universo
de acelerada mutabilidade, que tange nosso presente, perdemos, de antemão, a
chance de buscar amparo no distanciamento histórico. Por outro lado, as mais
recentes teorizações sobre os níveis de pertinência semiótica não contam ainda
com aplicações exaustivas, o que aumenta a responsabilidade desta análise.
A internet tem progressivamente deixado de ser um meio elitista e, hoje, faz
parte do cotidiano de uma parcela considerável da população. Da mesma forma,
os recursos de captação de imagens e som são cada vez mais acessíveis e seu
manuseio cada vez mais simples. Esse progresso tecnológico provavelmente é
fruto da também crescente necessidade do homem de viver em comunhão com
a imagem (a imagem de si e a imagem do outro), seja por impulsos narcisísticos,
emancipatórios, ou mesmo associativos.
Nessa perspectiva, será que as práticas tratadas aqui não representam uma
forma de vida ávida pelos elos perdidos? Se a grande rede criou “solidões inte-
rativas” (ou foram elas que criaram a internet?), estaria esse ethos em busca de
uma espécie de comunhão? O que se pode afirmar é que a prática construída por
enunciados audiovisuais criou a necessidade de novos objetos-suporte e que esses
novos objetos imaginados e criados pelo homem estimulam, por sua vez, o surgi-
mento de novas práticas, em uma espécie de semiose cíclica e auto-adaptada.
Longe de tentar descobrir a exata relação de precedência entre o “ovo e a
galinha” das práticas semióticas e sociais, esperamos que estas considerações
acerca das práticas realizadas pelo usuário/produtor na internet possam servir
de terreno fértil aos que procuram analisar os objetos das novas mídias à luz da
semiótica de origem greimasiana.
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 251
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
RÁDIO E PODCAST
Intersecção das práticas
1 Entendemos por ciberespaço “uma estrutura virtual transnacional de comunicação interativa” (Trivinho,
1996).
254 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann
O CONCEITO DE PODCAST
Neologismo criado a partir dos termos “iPod” (tocador de MP3 da Apple) e
“broadcasting” (transmissão, sistema de disseminação de informação em larga
escala), o podcast surgiu no final de 2004, a partir da idéia do ex-VJ da MTV
americana, Adam Curry, de reunir (agregar) automaticamente, em um mesmo
lugar, as produções em áudio espalhadas pela internet3. O podcast seria então
um sistema de produção e difusão de arquivos sonoros em que um usuário,
mediante o que se convencionou chamar de assinatura4 e com a ajuda de um
software agregador de conteúdo5, recebe o áudio automaticamente, sem para
isso ter que acessar o site em que foi inicialmente publicado.
Com um computador doméstico, um microfone e softwares de edição de
áudio, o podcaster6 grava e edita sua produção, salva como arquivo em formato
MP3 e o disponibiliza em sites indexados aos agregadores. O usuário faz o do-
wnload do arquivo para o computador podendo, na seqüência, transferi-lo para
seu tocador de MP3.
O fenômeno do podcast é recente, mas tem atingido índices exponenciais
de crescimento. Em 2005, podcast foi considerada a palavra do ano pelo dicio-
nário New Oxford American Dictionary e, em menos de seis meses de existên-
cia, foram encontradas no Google mais de 4.940.000 referências para a palavra
podcasting. Estima-se que há mais de 6 milhões de usuários do sistema no
mundo.
A completude desse sistema, cujos arquivos em áudio guardam similitudes
com o formato dos programas de rádio, significa a definitiva liberação dos pólos
de emissão, possibilitando que cada vez mais usuários tornem-se produtores
2 Cruzamento de mídias.
3 Informações extraídas do verbete “podcasting”, da enciclopédia livre Wikipédia.
4 Neste procedimento, o usuário copia o endereço do feed\xml do podcast selecionado e cola no software agre-
gador que, a partir de então, verificará automaticamente se há novos arquivos publicados e iniciará seu down-
load.
5 Os “agregadores” são softwares responsáveis por fazer a busca dos feeds, com base nos sites (feeders) que
foram assinados pelo usuário. Graças aos agregadores, podemos usufruir dessa ferramenta em que o usuário
não é mais obrigado a visitar os sites um a um, para ler notícias e novidades ou novas postagens dos blogs.
Dessa maneira, são as notícias, as novidades e as postagens que vão até ele. Existem tipos diferentes de agre-
gadores, que têm formas distintas de gerenciar e organizar as informações coletadas. No caso dos podcasts,
os agregadores vasculham automaticamente a internet à procura dos podcasts assinados, baixando-os para o
computador, e descarrega-os em seguida num MP3 player conectado.
6 Pessoa que produz o podcast.
Rádio e podcast: intersecção das práticas | 255
7 O site não se encontra mais publicado na internet. Para acessar o seu conteúdo, sugerimos o site de busca
de podcasts <http://www.podnova.com/>, mais especificamente o canal <http://www.podnova.com/chan-
nel/35700/>.
8 Hospedagem de podcasts na internet.
258 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann
9 Utilizamos aqui o termo para referendar o hibridismo de papéis na contingência da comunicação no ciberes-
paço.
10 Aqui a idéia de campo é aquela a que se refere Bourdieu (1974) como sendo o campo em que os sujeitos vali-
dam suas práticas e desenvolvem o hábito.
260 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann
Outra característica desse meio (e não apenas dos sujeitos que nele circu-
lam) é o sincretismo. O podcast é um tipo de emissão sonora alocada na internet
e, por esse motivo, dispõe também dos recursos visuais disponíveis no site, o
que não acontece com o rádio tradicional. Apesar de o sistema RSS permitir que
o arquivo de áudio seja disponibilizado automaticamente no computador do
usuário, normalmente sua apresentação encontra-se num site, onde estão dis-
poníveis textos de apresentação, informações adicionais sobre o áudio, imagens
e até mesmo animações.
Devemos evidenciar também seu particular modo de distribuição através
do RSS, um sistema cujas propriedades também podem ser analisadas enquanto
desencadeadoras de práticas, pois nos podcasts, ao contrário da instantaneidade
do rádio, a oferta de conteúdo é permanente. Nele, é o ouvinte quem decide a
hora e o lugar da audição. É na relação com essa propriedade que enunciadores
e enunciatários (não esquecendo que ambos podem, ou não, ser um único indi-
víduo) desenvolvem hábitos de publicação e consumo.
Todas as propriedades sensíveis e materiais elencadas são responsáveis por
desencadear as práticas específicas do meio, cuja reflexão faz-se necessária para
que esse enunciador consiga estabelecer contratos com o enunciatário, satisfa-
zendo assim a sua necessidade de fazer conhecer a si e as suas produções.
A tabela a seguir apresenta algumas características do podcast e do rádio,
em relação tanto à produção quanto à consumação das suas diversas produções,
capazes de gerar práticas específicas, desenvolvidas certamente a partir das pro-
priedades do próprio suporte podcast. Vejamos:
Rádio e podcast: intersecção das práticas | 263
publicação.
6. Interações reativas.
5. Atemporalidade do conteúdo.
7. Linguagem sonora exclusiva e indepen-
6. Abertura para comentários e participações dos dente.
ouvintes (interações on-line).
8. Rigidez técnica.
7. Interação da produção sonora com a lingua-
gem visual do site onde se hospeda (confluên- 9. Rigidez estilística.
cias de práticas). 10. Produção centralizada (prática estática).
8. Descompromisso com a qualidade técnica.
9. Descompromisso estilístico.
10. Mobilidade para produção (prática dinâmica).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Miceli et al.
São Paulo: Perspectiva. 1974.
FONTANILLE, Jacques; ZILBERBERG, Claude. Tensão e significação. Trad. Ivã
Carlos Lopes et al. São Paulo: Humanitas, 2001.
LEMOS, André. Cidade e mobilidade. Telefones celulares, funções pós-massi-
vas e territórios informacionais. Matrizes – Revista do Programa de Ciências da
Comunicação da Universidade de São Paulo. São Paulo, Ano 1, N. 1, outubro
de 2007.
LEMOS, André. Podcast. Emissão sonora, futuro do rádio e cibercultura.
404nOtF0und – Revista do Centro de Estudos e Pesquisas em Cibercultura da
Faculdade de Comunicação da UFBA. Salvador, Ano 5, N. 46, Vol. 1, junho de
2005.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São
Paulo: Cultrix, 1964.
MÉDOLA, Ana Sílvia Lopes Davi. Globo Média Center: Televisão e internet
em processo de convergência midiática. In: LEMOS, André; BERGER, Chris-
ta; BARBOSA, Marialva (orgs.). Narrativas Midiáticas Contemporâneas. Porto
Alegre: Sulina, 2006.
266 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann
OS ORGANIZADORES
Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz é Pós-doutora em Comunicação (Rádio
e Televisão) como bolsista da CAPES em Limoges e Paris. É professora do curso
de Comunicação Social, vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universi-
dade Estadual Paulista (Unesp) e líder do GESCom-Unesp. Tem numerosa pro-
dução bibliográfica no campo da semiótica midiática, dedicando-se atualmente
a sua corrente tensiva.
mlvissotto@uol.com.br
OS AUTORES
Adriane Ribeiro Andaló Tenuta é Mestre em Comunicação pela Unesp/
Bauru e membro do GESCom. Autora de Alfabetização, Letramento, Produção
de Texto – Em busca da palavra-mundo (FTD, 2000). Foi professora na rede
pública, tendo sido Delegada de Ensino de Bauru.
aandalobr@yahoo.com.br
Semiótica e comunicação
JOSÉ LUIZ FIORIN
O Nu de Boubat e a Globeleza
ADRIANE RIBEIRO ANDALÓ TENUTA