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MIRCEA BUESCU

HISTÓRIA ECONÔMICA
DO BRASIL

LEITURA BÁSICA

Antonio Paim (organizador)

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO
PENSAMENTO BRASILEIRO (CDPB)
2011

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO – Antônio Paim .......................................... 4

MATÉRIA INTRODUTÓRIA
Prefácio – Américo Jacobina Lacombe ...................................... 13
Textos de Mircea Buescu
- Um programa de trabalho para a história
econômica do Brasil ............................................................... 20
- Esquema de história econômica do Brasil .............................. 30

OS TRÊS PRIMEIROS SÉCULOS


- A economia açucareira em 1600 e seus
aspectos quantitativos ............................................................. 52
- Sobre o valor da exportação colonial ..................................... 61

SÉCULO XIX
Nota introdutória – Antônio Paim ............................................... 65
Textos de Mircea Buescu
8. DIVISOR DE ÁGUAS ...................................................... 69
8.1 Balanço do modelo colonialista mercantilista ................... 69
8.2 Chegada da Corte .............................................................. 74
8.3 Política econômica ............................................................ 75
8.4 Gargalo externo ................................................................. 87
8.5 Outras atividades econômicas.............................................91
8.6 Novos rumos ..................................................................... 93
9. O CICLO DO CAFÉ ......................................................... 96
9.1 Perspectiva em meados do século XIX ............................. 96
9.2 Condicionamentos externos .............................................. 98
9.3 Condicionamentos internos ..............................................101
9.4 Empresa e rentabilidade ...................................................113
9.5 Comércio exterior .............................................................118
9.6 Agricultura de subsistência ...............................................135
9.7 Início da indústria .............................................................139
9.8 Moeda e finanças ..............................................................145

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9.9 Balanço do período ............................................................ 158
Revendo a política econômica do Império (1991) ....................... 165
Notas sobre a economia do Segundo Reinado ............................. 188

SÉCULO XX
Apresentação – Antônio Paim ..................................................... 203
TEXTOS DE MIRCEA BUESCU
- Brasil: problemas econômicos e experiência histórica
Cap. VIII – Processo da industrialização ............................... 205
Cap. IX – Papel do Governo .................................................. 222
- Lições da história .................................................................... 230
- A experiência deflacionária de Joaquim Murtinho ................. 247
- Arranco ou transição (1930/1960) .......................................... 289
- Acerca da teoria dos choques externos ................................... 312
- Os objetivos nacionais nos planos econômicos
(1964/1985) ............................................................................ 335
- Progresso e declínio do planejamento econômico
no Brasil ................................................................................. 359
- Os anos 80: a década perdida ................................................. 375
- Desenvolvimento econômico: condicionamentos .................. 396

CORRENTES DE IDÉIAS SOBRE A


ECONOMIA BRASILEIRA (1965-1990)
- Correntes de idéias sobre a economia brasileira
(1965/1990) ............................................................................. 416
- Capitais estrangeiros (um debate no Conselho Técnico)......... 438
- Notas históricas sobre imperialismo, dependência
e dominação ........................................................................... 454
- Inflação, mentalidades e estruturas..........................................474
- O fascínio do discurso marxista ............................................. 490

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APRESENTAÇÃO

Antonio Paim

Nasceu em Bucareste, Romênia, a 14 de setembro


de 1914. Concluiu a Faculdade de Direito de Bucareste
e diplomou-se em estudos superiores da Faculdade de
Direito de Paris. Em sua pátria de origem, foi chefe de
serviço no Ministério do Comércio Exterior. Emigrou
para o Brasil em 1949, aos 35 anos de idade. Em 1954
obteve a nacionalidade brasileira.
Nos anos sessenta, economistas ligados a Roberto
Campos (1917/2001) criaram a Editora APEC – Analise
e Perspectiva Econômica que desenvolveu um grande
trabalho no sentido de recuperar a tradição liberal,
sucessivamente arquivada depois da Revolução de 30.
Além de haver completamente desaparecido de nosso
meio, o liberalismo econômico era criticado e
deturpado. A moda, que não desapareceu de todo, em
matéria de economia, era a vulgata marxista.
A APEC publicou diversos dos livros escritos por
Roberto Campos. Além disto, deu a conhecer a obra de
economistas liberais da época. Progressivamente, os
nomes de Adam Smith e seus seguidores deixaram de
ser satanizados, criando espaço próprio nos cursos de
economia. Sem embargo, remanescentes da vulgata
continuam a insistir nas superadas teses cepalianas, à
cata de culpados, no exterior, pelo atraso que ainda
registramos em parcelas do território e até conseguem

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manter políticas obsoletas como uma reforma agrária
fora do tempo.
Ligando-se à APEC, depois de 1962, da qual seria
diretor, entre 1972 a 1979 e consultor a partir de 1980,
responde em grande medida pelo sucesso do empreen -
dimento, notadamente ao estimular – e contribuir deci-
sivamente – para a elaboração de análises da economia
brasileira, dignas do nome.
Tornou-se professor de história econômica na
PUC-RJ (1965 a 1986) e no Instituto Benett de Ensino.
Deu aulas de economia e história econômica no Instituto
Rio Branco, na Faculdade Santa Úrsula, na Fundação
Getúlio Vargas e ainda em outras instituições do Rio de
Janeiro e de outros estados.
Buescu exerceu ainda a função de assessor no
Gabinete do Ministro da Fazenda, de 1967 a 1986. Sócio
efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Publicou grande número de artigos e ensaios em
jornais (Jornal do Comércio; O Globo, Jornal do
Brasil) e revistas, entre outras a Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Carta Econômica da
APEC e Carta Mensal, órgão do Conselho Técnico da
Confederação Nacional do Comércio, de que era
membro.
O grande feito de Mircea Buescu reside na
notável contribuição que deu para estruturar o estudo do
nosso desenvolvimento econômico em bases estri -
tamente científicas, como se pode ver da Bibliografia
adiante.

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Faleceu no Rio de Janeiro a 16 de maio de 2003,
aos 89 anos de idade.
O levantamento dos dados biográficos de Mircea
Buescu só foi possível graças à recuperação de uma
breve nota, de sua autoria, que havia sido encaminhada
ao Conselho Técnico da Confederação Nacional do
Comércio – a que pertencia – graças à diligência da
secretária Sandra Nascimento. Faltava, entretanto, a
data de falecimento, obtida graças à iniciativa de Arno
Wehling, presidente do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, e à presteza e solicitude da secretária
Tupiara Machareth.
Fica a lacuna relativa aos últimos anos de vida.
Segundo os registros constantes da Carta
Mensal, sua última conferência teve lugar em maio de
1995, isto é, ainda viveria oito anos, caracterizados pela
interrupção abrupta de sua brilhante produção
intelectual. Os quatro ensaios subseqüentes aparecidos
na revista (nos anos de 1996 e 1997, referidos adiante),
sem indicação de que teriam resultado de conferências,
devem ter sido encaminhados diretamente para
publicação, praxe admitida. No elogio dos sócios
falecidos, no caso a cargo de Vitorino Chermont de
Miranda, afirma-se: “presença assídua, nas sessões do
CEPHAS, enquanto a saúde lhe permitiu” (RIHGB, 184
(421): 280; out.-dez., 2003). É de presumir, portanto,
que a inatividade observada haja decorrido do estado de
saúde.

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BIBLIOGRAFIA

Livros

História do Desenvolvimento Econômico do Brasil (1967);


2ª edição, Rio de Janeiro: A Casa do Livro, 1969, 178 p. (em
colaboração com Vicente Tapajós)
Exercícios de História Econômica do Brasil (1968). Rio de
Janeiro: APEC Editora, 1969, 136 p.
História Econômica do Brasil. Pesquisas e análises. Rio de
Janeiro: APEC, 1970, 284 p.
O divisor de águas: 1808/1850. Rio de Janeiro: APEC,
1972.
300 anos de inflação. Rio de Janeiro: APEC, 1973.
Evolução econômica do Brasil (1974). 4ª edição. Rio de
Janeiro: APEC, 1974, 230p.
10 anos de renovação econômica. Rio de Janeiro: APEC,
1974 (em colaboração com Victor Silva)
A moderna história econômica. Rio de Janeiro, 1976 (em
colaboração com Manuel Peláez).
Guerra e desenvolvimento. Rio de Janeiro: APEC, 1976.
Brasil. Disparidades de renda no passado. Rio de Janeiro:
APEC, 1979, 136p.
Métodos quantitativos em história. Rio de Janeiro: Livros
Técnicos e Científicos, 1983.
História Administrativa do Brasil. Organização e Admi-
nistração do Ministério da Fazenda no Império. Rio de
Janeiro: FUNCEP, 1984.
Brasil. Problemas econômicos e experiência histórica . Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1985.
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Artigos e Ensaios

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

 Quantidade e qualidade em história econômica: o caso da


inflação brasileira no século XIX. v. 313, p. 21-45,
out./dez., 1976.
 O café na história do Brasil. v. 321, p. 234 -236,
out./dez., 1978.
 Disparidades regionais, v. 318, p. 88 -91, jan./mar., 1978.
 Inegalités regionales au Brésil das la seconde moitié du
XIX siécle. v. 321, p. 222-232, out./dez., 1978.
 Criação do Banco do Brasil, v. 322, p. 181 -184,
jan./mar., 1979.
 Miguel Calmon e a valorização do café. v. 327, p. 235 -
238, abr./jun., 1980.
 No centenário da Lei Saraiva. v. 330, p. 179 -186,
jan./mar., 1981.
 Novas notas sobre a Lei Saraiva. v. 331, p. 209-211,
abr./jun., 1981.
 O sistema eleitoral após a Lei Saraiva. v. 332, p. 225 -
227, jul./set., 1981.
 Natalidade e mortalidade da população escrava. v. 334,
p. 163-165, jan./mar., 1982.
 Uma interpretação marxista da escravidão no Brasil. v.
334, p. 183-190, jan./mar., 1982.
 Exportação no Brasil colonial. v. 335, p. 129 -132,
abr./jun., 1982.

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 Situação dos escravos no século XIX. v. 336, p. 145 -147,
jul./set., 1982.
 Política econômica do Segundo Reinado. v. 339, p. 7 -12,
abr./jun., 1983.
 Centenário do Motim do Vintém. v. 339, p. 113 -120,
abr./jun., 1983.
 O alvará bicentenário de 1785. v. 350, p. 183 -186,
jan./mar., 1986.
 O reerguimento econômico: 1903-1913. v. 353, p. 1033-
1050, out./dez., 1986.
 Um estadista controvertido: Joaquim Murtinho. v. 365, p.
529-572, out./dez., 1989.
 A Primeira República e o sistema econômico inter -
nacional. v. 379, p. 350-363, abr./jun., 1993.

Carta Mensal

 Desenvolvimento e lazer. v. 36, n. 423, p. 35 -42, jun.


1990.
 Inflação: mentalidades e estruturas. v. 36, n. 427, p . 7-
14, out. 1990.
 Progresso e declínio do planejamento econômico no
Brasil. v. 36, n. 428, p. 53-61, nov. 1990.
 Os objetivos nacionais nos planos econômicos (1964/
1985). v. 36, n. 430, p. 23-37, jan. 1991.
 A experiência deflacionária de Joaquim Murtinho. v. 36,
n. 431, p. 37-56, fev. 1991.
 Comentários à margem da perestoika. v. 36, n. 432, p.
41-49, mar. 1991.
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10
 A inflação como combate pela renda. v. 37, n. 436, p. 23-
32, jul. 1991.
 Primórdios do protecionismo alfandegário no Brasil. v.
37, n. 437, p. 7-23, ago. 1991.
 Revendo a política econômica do império, v. 37, n. 441,
p. 3-13, dez. 1991.
 Correntes e idéias sobre a economia brasileira (1965 -
1990). v. 37, n. 444, p. 49-58, mar. 1992.
 Os anos 80: a década perdida. v. 38, n. 447, p. 53 -62,
jun. 1992.
 Variações sobre um tema ecológico. v. 38, n. 452, p. 11 -
19, nov. 1992.
 Arranco ou transição. v. 38, n. 455, p. 21 -30, fev. 1993.
 Notas históricas sobre imperialismo, dependência e
dominação. v. 39, n. 460, p. 29-36, jul. 1993.
 Acerca da teoria dos choques externos. v. 39, n. 466, p.
50-59, jan. 1994.
 Lições da história. v. 40, n. 471, p. 41 -48, jan. 1994.
 Desigualdades regionais: primórdios. v. 40, n. 474, p. 54 -
63, set. 1994.
 A investigação quantitativa do passado. v. 41, n. 484, p.
3-10, jul. 1995.
 Desenvolvimento econômico. v. 41, n. 485, p. 33-43,
ago. 1995.
 Drácula: história e fantasia. v. 41, n. 487, p. 56 -65, out.
1995.
 Notas históricas acerca da dívida externa. v. 41, n. 492,
p. 75-83, mar. 1996.
 O fascínio do discurso marxista. v. 42, n. 498, p. 77 -85,
set. 1996.
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 Notas sobre a economia do Segundo Reinado. v. 43, n.
502, p. 13-20, jan. 1997.
 Capitais estrangeiros: um debate no Conselho Técnico. v.
43, n. 508, p. 17-26, jul. 1997.

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MATÉRIA INTRODUTÓRIA

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PREFÁCIO
Américo Jacobina Lacombe

Por estranho que pareça, num tempo em que


tanto se fala em economia, nossa bibliografia de
história econômica é escassíssima. O mais recente e
completo de nossos estudos de metodologia histórica e
historiografia, a Teoria da História do Brasil, do prof.
José Honório Rodrigues, 3ª ed. (São Paulo, 1969), mal
conclui uma página com a relação das obras principais
nesse setor, e assim mesmo incluindo as de pura
documentação, as biografias, as histórias das finanças e
as monografias sobre produtos especiais ou aspectos
parciais. Os trabalhos de conjunto sobre a história da
economia brasileira contam-se pelos dedos.
Em primeiro lugar, os Pontos de Partida para a
História Econômica do Brasil, de Lemos Brito, que são
de 1923, e representam um esforço de organização dos
dados constantes da historiografia corrente, sem muita
preocupação técnica.
De 1929 é a obra de Lúcio de Azevedo, Épocas de
Portugal Econômico. Ainda que não vise ao Brasil
especialmente, a maneira pela qual encarou a economia
colonial e o método que empregou no estudo dos ciclos
econômicos (termo que daí por diante vai ser sempre
empregado) transformaram este livro num modelo de
cujo plano e terminologia dificilmente escapam os
continuadores.
De 1935 é o livro de J. F. Normano: Brazil – A
study of Economic Types, inteligente exposição que não
13
14
tomou conhecimento do historiador português, mas
contribuiu, por sua vez, com algumas idéias que se
incorporam aos relatos subseqüentes.
Em, 1937 surge a obra clássica de Roberto Si-
monsen. Criando em 1933 a Escola Livre de Sociologia
e Política de São Paulo, viu-se o homem de empresa,
doublé de intelectual, com a responsabilidade im-
prevista de ministrar pessoalmente o curso de história
econômica. Daí resultou a História Econômica do
Brasil, cujas edições se sucedem ininterruptamente. Sem
ser um historiador por formação, mas homem de boa
cultura geral e econômica, Simonsen empregou sua
notável inteligência e sua invejável capacidade de
organização na feitura de uma obra magistral.
Submeteu-a ao crivo de eruditos do nível de Rodolfo
Garcia, Afonso d”E. Taunay e Eugênio de Castro. Daí
resultou um livro básico, lúcido e metódico, em que se
vão abeberar os seguidores inevitavelmente.
De 1938 é a maravilha de exposição representada
pelas aulas ministradas em Montevidéu pelo professor
Afonso Arinos de Melo Franco e editadas pelo Mini s-
tério da Educação: Síntese da História Econômica do
Brasil, várias vezes reproduzidas. Tudo o que apareceu
precedentemente foi esquematizado de maneira tal que
os compêndios não fazem, pela maior parte, daí por
diante, senão seguir a esteira do conferencista.
Com Caio Prado Junior, na História Econômica
do Brasil em 1945, escrita para um público estrangeiro
(encomenda que foi do Fundo de Cultura Econômica do
México) temos uma visão diferente do problema. O
14
15
autor lamenta justamente ser escassa a produção
brasileira em matéria de literatura econômica que
examina e seleciona. Mas proclama a dificuldade de
elaborar cientificamente o assunto segundo suas
concepções dialéticas, já que é uma “ilusão ingênua
esta idéia muito corrente de uma possível e suposta
imparcialidade filosófica que não existe e não pode
existir”. Verdade esta que já fôra proclamada por
Aristóteles: a de que para deixar de filosofar, ainda é
preciso filosofar.
Completamente outro é o ponto de vista de Celso
Furtado na sua Formação Econômica do Brasil, de
1959. O problema historiográfico não o preocupou.
“Omite-se quase totalmente a bibliografia histórica
brasileira”, previne ele na Introdução, “pois escapa ao
campo específico do presente estudo, que é sim-
plesmente a análise dos processos econômicos e não a
reconstituição dos eventos históricos que estão por trás
desses processos”. E realmente toda a massa de
informações necessária ao raciocínio é colhida nos
trabalhos antecessores.
A intervenção do prof. Mircea Buescu no campo
de nossos estudos de história econômica, com os
Exercícios de História Econômica do Brasil, e com a
História do Desenvolvimento Econômico do Brasil (em
colaboração com o prof. Vicente Tapajós), traz-nos uma
contribuição importantíssima.
Espírito formado no trato contínuo dos
problemas econômicos, formado por uma profunda
preocupação pelo material historiográfico empregado
15
16
na elaboração dos estudos, o professor Buescu
empreendeu uma exaustiva revisão nos dados
elementares nas fontes primárias de nossa evolução. Na
falta de estatísticas e relatórios oficiais, em vista da
política de sigilo característica dos governos da era
moderna, nossas fontes vêm sendo os cronistas e os
missionários coloniais. Não se pensara, porém, até
agora em submeter os dados multifários extraídos
desses trabalhos, nem sempre com a exatidão ne-
cessária aos raciocínios históricos e econômicos, a uma
costratação rigorosa. Sobre eles se apoiaram os
historiadores até aqui. Mas o professor Buescu
demonstra que muita coisa precisa ser posta em dúvida
e repensada. Pelo menos não é lícito chegar a certas
conclusões sem averiguar certos pontos assaz
duvidosos.
Urge um trabalho preparatório de apuradas
pesquisas para obter uma série de dados quantitativos
essenciais ao reestudo de vários capítulos que
enganosamente julgávamos documentados. Como se
verá das páginas que se seguem, o Autor fez sérias
tentativas neste sentido, no curso que ministra na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Os
resultados não corresponderam totalmente aos esforços
empregados mas, de qualquer modo, demonstraram a
possibilidade de se chegar a conclusões muito
importantes.
A solução que ocorre ao professor Buescu é a de
um Instituto especializado em História Econômica do
Brasil, capaz de centralizar as tentativas nesse sentido.
16
17
Óbvia a conclusão. Mas, por outro lado, parece-me que
mais rapidamente se poderia organizar tal instituto à
sombra de instituições já existentes, interessadas nas
pesquisas histórico-econômicas. E são muitas as que
estão sentindo a necessidade de dar uma base sólida e
documentada a um setor perigosamente exposto aos
ventos das paixões.
Como companheiro de trabalhos e de lutas no
campo universitário – e só a esse título estou ocupando
estas páginas – não me resta senão desejar
ardentemente que o apelo do Autor encontre eco no
meio dos esclarecidos. Não faltam, mercê de Deus,
jovens dispostos e livres para pesquisas trabalhosas,
mas empolgantes. Dêem-nos ambiente e meio e nós, os
professores, auxiliares e estudantes, os transfor -
maremos em elementos para uma sólida construção
científica futura.
É o que já antevejo com otimismo e confiança.
Que as palavras deste mestre frutifiquem.

(Transcrito de História Econômica do Brasil.


Pesquisas e análises, de Mircea Buescu – Rio de
Janeiro, APEC, 1970, págs. 13-16)

Nota do editor
Américo Jacobina Lacombe (1909/1974) concluiu o curso de
direito aos 22 anos, em 1931. Ainda nos anos trinta, teve atuação
destacada no Centro Dom Vital – que exerceu grande influência
nos círculos católicos durante largo período – e foi secretário do

17
18
Conselho Nacional de Educação. Integrou o grupo que lançou as
bases da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde,
a partir de 1941 passou a lecionar História do Brasil. Graças a
essa condição, viria a produzir extensa bibliografia dedicada ao
tema, o que o tornaria renomado historiador e o levaria ao
exercício da Presidência do Instituto Histórico Brasileiro. Seria
também diretor da casa de Rui Barbosa e responsável pelo
ordenamento de sua obra para edição. Pertenceu à Academia
Brasileira de Letras.

18
19

TEXTOS DE MIRCEA BUESCU

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20

UM PROGRAMA DE TRABALHO
PARA A HISTÓRIA ECONÔMICA DO BRASIL

O desvio do estudo da História Econômica do


Brasil do caminho que normalmente devia seguir – isto
é, pesquisa exaustiva dos dados informativos (em
grande parte quantitativos); depois, síntese coerente
destes dados; e finalmente outra síntese integrando a
realidade econômica no conjunto da realidade cultural –
esse desvio, queimando as etapas e passando
diretamente para o terceiro estágio do caminho normal,
foi, sem dúvida, em grande parte, obra das escolas
materialistas, estruturalistas e outras semelhantes que
enfatizaram demasiadamente o aspecto social e
institucional – os problemas das classes sociais, dos
sistemas, das estruturas, dos regimes, das instituições
políticas, etc. É de estranhar que doutrinas que
sublinharam até além dos limites lógicos a importância
do fator econômico na evolução da Humanidade,
contribuíram para a marginalização do estudo
especificamente econômico na História.
Um caso típico é o estudo da evolução econômica
do Brasil no período moderno até a Segunda Guerra
Mundial. No prefácio do seu excelente livro
recentemente publicado no Brasil (1), Frédéric Mauro
escrevia: “Após essa fase colonial de nossas pesquisas
históricas, sentimo-nos atraídos eventualmente pelos
séculos XIX e XX, cuja economia os historiadores
20
21
brasileiros negligenciaram em extremo”. Entretanto,
procure-se nos livros “clássicos” da história econômica
do Brasil, e encontrar-se-á um número imenso de
páginas dedicadas àquele período. Só uma perquirição
mais atenta descobrirá o sentido, perfeitamente justo,
das palavras de Mauro: é que, apesar da extensão dos
comentários (todos, de acordo com uma certa filosofia
política e social), a base informativa, o documento, a
estatística não existem – o que torna extremamente
precário o respectivo comentário.
Ninguém pode minimizar a importância dos
sistemas, das instituições, das classes, das forças
políticas e sociais em jogo, e assim por diante.
Entretanto, uma avaliação objetiva destes fatores, em
termos econômicos, só pode ser feita depois da análise
do processe econômico e dos seus efeitos. Para fixar -se
bem essa posição, talvez seja conveniente, mais uma
vez, indicar os caminhos a seguir – mesmo se, às vezes,
esta tarefa pareça repisar o terreno do óbvio.

***

O que é a História Econômica? É o estudo dos


fatos econômicos sob perspectiva temporânea – isto é, o
estudo do modo como os homens resolveram o seu
problema de bem-estar material, produzindo mais para
poderem consumir mais. Do ponto de vista teleológico
interessa o consumo, do ponto de vista genético, a
produção: dada a escassez da natureza, inclusive no que
21
22
tange à capacidade do homem, é a produção que
constitui o aspecto dramático do problema econômico.
De forma simplificada, a História Econômica deve
pesquisar e explicar como o homem organizou a pro -
dução e, em face dessa organização, quais os resultados
alcançados em termos de consumo (implicando,
também, num problema de distribuição da renda). A
história dos fatos econômicos é a descrição cronológica
e a análise dos esforços humanos criadores de valores
econômicos, a luta pela redução dos custos e aumento
das satisfações obtidas. Evidentemente, nisso intervém
uma série de elementos institucionais e estruturais –
porém, num primeiro estágio da análise não é permitido
preterir o fato simples, mas fundamental, de como e
quanto se produziu – uma avaliação dos fatores de
produção aproveitados e dos produtos realizados.
Essa análise será obrigatoriamente quantitativa.
Isto não quer dizer que os fatores qualitativos
devam ser desprezados. O desenvolvimento econômico é
função do homem, envolvendo, portanto, todo o
comportamento da comunidade humana no respectivo
momento histórico. A necessidade de quantificar a
História Econômica para efeito de melhor apreciar os
fatos econômicos – único meio objetivo e comparar
custos e benefícios sociais – não implica em desprezar
ou minimizar os fatores qualitativos.(2)
As etapas inevitáveis para a construção de uma
História Econômica do Brasil – como de outras
comunidades – seriam, portanto: 1º) a análise dos fatos
econômicos – produtos, fatores de produção, custos,
22
23
preços, rendas, etc. – quase totalmente quantitativa (3);
2º) síntese dos fatos econômicos – aspectos
macroeconômicos, estruturas, instituições, etc.; 3º)
síntese final, englobando todos os fatos culturais em
cada momento histórico para determinar-se sua
interdependência (4). Obviamente, pelas necessidades
de exposição, as três etapas poderiam ser atacadas em
conjunto, porém nunca com a preterição das etapas
iniciais.

***

Um programa de trabalho para a História


Econômica do Brasil, deveria seguir as mesmas etapas,
sob pena de chegar a conclusões inadequadas ou
incoerentes.
Esta formulação programática não implica na
negação do que foi feito até agora no campo das
pesquisas e da elaboração de sínteses quantitativas.
Quanto às primeiras, não podem ser citados aqui todos
os trabalhos realizados – apesar de, em muitos casos, a
pesquisa puramente histórica ter tido prioridade em
detrimento da pesquisa da história econômica (5). O que
falta, no que foi feito, é uma “consolidação” dos
elementos objetivos, atualmente espalhados em várias
publicações, para que se proceda a seu confronto
verificando-lhes a coerência. E seriam necessárias
muitas novas pesquisas referentes a todas as épocas – e,
sobretudo, a épocas mais recentes.

23
24
Como dizia Mauro, o século XIX foi pouco
estudado – apesar de muito “interpretado” e comentado
(o período a partir da Segunda Guerra Mundial, foi
analisado com maior objetividade pelos economistas
brasileiros). Fala-se, por exemplo da economia
brasileira do século XIX sem se ter, até agora, um
estudo da inflação naquela época, a não ser o trabalho
pioneiro, e valioso sob muitos aspectos, de Oliver
Ónody (6). Entretanto, a quantificação da inflação é,
como não podia deixar de ser, bastante precária, e
exigiria novas pesquisas para sua confirmação ou
retificação. Os dados encontram-se esparsos em jornais,
revistas, livros, documentos oficiais e privados,
testamentos, inventários, registros, e só pela sua coleta e
ulterior confronto poderia construir-se uma escala, algo
mais completo, dos preços no século XIX. O trabalho
não será fácil, porque se trata justamente de uma
quantidade enorme de dados informativos espalhados
em todo o Brasil e numa imensa variedade de fontes.
Tentei fazer, por exemplo, um levantamento dos
preços em períodos decenais entre 1835 e 1875, através
dos anúncios classificados do “Jornal do Commercio”,
mas os resultados foram inexpressivos: poucas mer-
cadorias são comparáveis, não se podendo chegar a um
resultado ponderado (7). Por exemplo, entre aquelas
duas datas, o preço do açúcar mascavo subiu 79,4%, o
do açúcar refinado 56,8% e o do arroz 52,9%. Os
resultados parecem coerentes. Entretanto, durante o
mesmo período o preço da carne seca elevava-se de
224.2%. As variações a prazo mais curto são ainda mais
24
25
traiçoeiras: entre 1835 e 1845 o açúcar mascavo s obe de
5,3%, o refinado de 21,2%, a carne seca de 63,2%, o
milho de 75,5%, enquanto o preço do arroz acusa queda
de 3,6%. (Foram comparados preços médios, elimi -
nando-se aqueles que destoavam, por razões desco-
nhecidas, do conjunto). Trabalho evidentement e pre-
cário e insuficiente, que talvez possa ser valorizado pela
comparação com outras informações similares. O levan -
tamento completo fica para ser feito, com paciência e
espírito crítico. Como na maioria das vezes, a infor -
mação sobre o preço da mercadoria dá poucas indi-
cações quanto à qualidade. Só juntando um grande nú -
mero de informações será possível eliminar as eventuais
distorções. E entre um número reduzido de fontes a
comparação é irrealizável, como, por exemplo, entre as
informações fornecidas por Leithold e Rango em
1819(8) e as de Davatz uns quarenta anos mais tarde (9).
Entretanto, este é o único caminho. Sem esta
construção, embora muitas vezes precária, as discussões
em torno dos temas da História Econômica do Brasil
continuarão dominadas pelas interpretações doutri-
nárias, na falta de uma base objetiva de interpretação.
Um exemplo típico é a construção, aparentemente
coerente, da teoria da “exportação das crises pelos
países industrializados para o Brasil” e da “transferência
do ônus da crise pelos exportadores de café para a massa
dos consumidores brasileiros”. Não é desprovida de
base verídica essa dupla teoria, porém a sua
apresentação de forma radical e excessiva, não parece
justificar-se pelos dados estatísticos disponíveis(10).
25
26
Inúmeros exemplos poderiam ser dados que
justificassem a obra de pesquisa e reconsideração da
História Econômica do Brasil. Esta afirmação não
implica em negar o que até agora foi feito(11). Mas,
mesmo para o que tem sido feito, seria indispensável
aquele trabalho de “consolidação”, a fim de medir a
coerência dos vários resultados (12).

***

Seria preciso organizar pesquisas sistemáticas


(obra de um eventual Instituto de História Econômica do
Brasil, desejo meu talvez bastante utópico), sobre os
aspectos micro e macroeconômicos da economia
brasileira no período entre o Descobrimento e fim da
Segunda Guerra Mundial (período que, por analogia
com a terminologia clássica na História, constituiria, em
muitos pontos, a fase “pré-literária” da História
Econômica do Brasil, época em que não houve
levantamentos estatísticos sistematizados, a não ser em
alguns poucos setores).
Este programa de pesquisas deveria conter, entre
outras (a enumeração não é exaustiva):
– evolução da população – não apenas para
permitir o calculo da renda per capita, mas também,
através do perfil dos grupos raciais (brancos, pretos,
índios) e sociais (rurais e urbanos, livres e escravos),
para ajudar no cálculo das rendas, uma vez que a

26
27
estimativa direta do produto real poderia ser mais difícil
(13).
- avaliação da produção; muito difícil no que
tange aos produtos de consumo interno, seria mais fácil
para os produtos de exportação, mas, mesmo para estes,
uma reavaliação será necessária, e a base será en -
contrada na estatística do movimento marítim o (14);
– levantamento da evolução dos preços locais;
– levantamento da evolução dos preços de ex -
portação;
– estatísticas sobre os salários e outros ren-
dimentos;
– volume das importações dos escravos e de seus
preços(15);
– quantificação do fiscalismo colonial e do ônus
resultante da intermediação comercial e financeira da
Metrópole – aspecto extremamente importante para
determinar-se a parte de renda efetivamente aproveitada
pela Colônia;
– despesa pública (para a época colonial) a fim de
saber-se a parte da renda que, captada pela Metrópole,
voltava para a Colônia;
– volume monetário; para a época independente:
emissões de papel-moeda e volume de meios de
pagamento;
– investimentos estrangeiros e seus lucros.(15 bis)

Evidentemente, uma primeira operação consistiria


no levantamento do que foi feito até agora – e há muitas
pesquisas extremamente valiosas; em segundo lugar, o
27
28
material existente deveria passar pelo crivo crítico para
avaliar-lhe a coerência; novas pesquisas deveriam ser
prosseguidas paralelamente, e à medida que chegassem
os resultados, os dados anteriores seriam novamente
submetidos à análise crítica. Por fim, haveria a
construção de conjuntos macroeconômicos, objetivos e
coerentes, que dariam a imagem global da evolução
econômica. Tentativas desse tipo já foram feitas, tais
como as construções de Roberto Simonsen no que tange
à evolução das exportações, de Maurício Goulart sobre a
importação de escravos, de Celso Furtado concernente à
evolução da renda em algumas épocas e regiões.
Tentei levar adiante essas construções referentes
ao fim do século XVI para melhor caracterizar, em
termos quantitativos, a evolução da economia nacional.
Utilizei (16), para calcular a evolução da renda, as
estimativas da exportação colonial construídas por
Simonsen, e os dados disponíveis para o período
independente, estabelecendo, depois, uma escala de
proporções entre o valor da exportação e o da Renda
Interna. Tive a satisfação de encontrar um método
análogo, embora apresentado sob forma de um modelo
matemático mais sofisticado (porém admitindo
basicamente uma relação entre as flutuações da
exportação e da Renda Interna), num notável trabalho
feito por Teodoro Oniga (17).
A diferença fundamental entre os dois métodos é
que adotei uma relação variável entre a renda gerada
pelas exportações e a renda global, enquanto Oniga
admite que entre 1830 e 1960 o crescimento da renda
28
29
num período decenal corresponde constantemente a 40%
do valor total das exportações no respectivo decênio.
A aplicação de uma relação constante
exportação/renda parece uma inadvertência no cálculo
final, pois o próprio Oniga, com seu penetrante poder de
análise, fala em que a dependência renda/exportação se
é válida “num intervalo em que as exportações
representam uma fração relativamente pequena e
decrescente (entre 19% e 7.5% - entre 1947 e 1960), ela
tem maiores chances ainda de exprimir uma realidade
econômica no passado, quando as exportações
contribuem com uma fração muito mais importante no
total da produção” (nosso grifo).(18) Devo lembrar que
eu tinha aplicado, entre 1600 e 1950, uma escala de
relação exportação/renda partindo de 80% e chegando a
10%. Os resultados globais da evolução da renda são os
seguintes:

£ 1000 US$ milhões


1800 8.750 72,6
1850 22.080 183,3
1900 132.933 1.103,3
1950 1.387.070 11.512,7

Estes dados diferem bastante dos apresentados em


livro anterior (19) por duas razões: a) adotou-se para
1850 a relação E/RI de 35% (em vez de 40%) e para
1900 de 25% (em vez de 30%); b) a fim de evitar as
distorções resultantes das flutuações da exportação, a
base do cálculo não foi o valor da exportação dos anos
29
30
1850 e 1900, e sim a média do valor da faixa de 10 anos
em torno das respectivas datas.
Os estudos contidos no presente livro representam
tentativas de completar e reajustar os trabalhos
realizados por outros, a fim de se chegar, com o tempo,
a uma História Econômica do Brasil quantificada,
objetiva e coerente, constituindo uma experiência
aproveitável para a compreensão dos árduos problemas
do desenvolvimento econômico.

ESQUEMA DA HISTÓRIA ECONÔMICA


DO BRASIL

1. Ciclos e subciclos:
- Formação econômica determinada pelo binômio mer can-
tilismo/colonialismo: organização da Colônia de modo a
garantir a balança comercial favorável da Metrópole
(através da produção de metais pr eciosos ou de produtos
conjunturais de exportação).(20) Concentração dos fatores
de produção no produto conjuntural (tendência para a
monocultura); instrumentos institucionais favorecendo o
produto conjuntural.

- Ciclos:
períodos em que a exportação é concentrada num certo
produto conjuntural.

- Efeitos:
- o produto conjuntural liderando a exportação;(21)
- a exportação (com a intermediação inevitável da
Metrópole) constituindo a principal fonte criadora da renda

30
31
colonial, o produto conjuntural ( cíclico) desempenha papel
decisivo na criação da renda;
- atração dos fatores da produção:
- expansão territorial;
- expansão demográfica;
- entrada de capitais; alta rentabilidade (reinves --
timento);
- reflexo sobre outras atividades econômic as (fluxos de
renda);
- estratificação social correspondendo às necessidades
do produto cíclico;
- criação de instituições políticas e sociais adequadas.
- Ciclos:
períodos em que o centro dinâmico da economia é cons -
tituído por um certo produto co njuntural de exportação.
- Subciclos:
períodos em que produtos secundários sustentaram a
balança comercial, sem o dinamismo de um verdadeiro
ciclo; ligação com o consumi interno.(22)

Cronologia dos ciclos:


1503- 1550: ciclo do pau-brasil (23)
1550-1650: ciclo do açúcar (24)
1560 até o fim do período colonial: subciclo do gado
1642 até o fim do período colonial: subciclo do fumo (25)
1694-1760: ciclo da mineração (diamantes: a partir de 1729)
1780-1790: subciclo do algodão
1790-1810: ressurgimento do ciclo do açúcar
1825-1930: ciclo do café

2. Do Descobrimento até meados do século XVI

2.1 Quadro histórico


1492 – Bula Inter Caetera do papa Alexandre VI
1994 – Tratado de Tordesilhas
1500 – Pedro Álvares Cabral no Porto Seguro
1501-1503 – Expedições de reconhecimento
31
32
1504 – Incursões francesas no Brasil
1506 – Novos progromos contra os judeus nos países
ibéricos
1516-1519 e 1526-1528 – Expedições de Cristóvão Jacques
1519-1521 – Conquista do México por Cortês
1524-1532 – Conquista do Peru por Pizarro
1530-1532 – Expedição de Martim Afonso de Souza
1532 – Fundação de São Vicente
1534 – Criação das primeiras Capitanias Hereditárias
Constituição da Companhia de Jesus
1545 – Descobrimento das minas de prata de Potosi (Peru)
1548 – Regimento de Tomé de Souza
1549 – Constituição do Governo Geral do Brasil
Fundação da cidade de Salvador
Chegada dos padres jesuítas (Manuel da
Nóbrega)

2.2 Ciclo do pau-brasil

Condicionamentos externos – aumento das rendas e do


consumo na Europa Ocidental; demanda de tecidos;
expansão do artesanato; demanda de corantes (preços
altos, suportando o alto custo do transporte transoceâ -
nico); rentabilidade (custo local: 1.000 réis por quintal;
venda para o consumidor: 4.00 0 réis).

Condicionamentos internos – fatores de produção:


- recursos naturais: planta nativa, sem exigir cuidados
especiais;
- mão-de-obra; índios (livres ou escravos), para derru -
barem as árvores e transportarem-nas até o local de
embarque;
- tecnologia: rudimentar (corte de árvores), conhecida
pelos índios;
- capital: reduzida exigência no local (pagamento dos
índios in natura ou sua utilização como escravos; cons -
tituição de feitorias temporárias para o embarque do pau -
32
33
brasil); necessidade de volumosos capitais para transporte
e comercialização (apelo para os cristãos novos).

Funcionamento:
- monopólio da Coroa;
- arrendamento (1º) grupo de cristãos -novos liderados por
Fernão de Noronha – 1503);
- limitação da renda pela demanda (± 20.00 0 quintais por
ano = ± £ 80.000); (26)
- dificuldades criadas pelos ataques dos índios e pelas
incursões dos corsários, piratas, comércio entrelopo;
- substituição por um produto mais rendoso (açúcar); (27)
- persistência da exportação de pau-brasil durante o
período colonial;
- liquidação do produto pela invenção dos corantes
artificiais (índigo artificial).

Efeitos:
- prioridade na pauta de exportação (até 1540 -1550,
provavelmente, 90-95% do valor anual da exportação);
- criação de renda (fora da Colonia);
- valor da exportação de pau-brasil no período colonial: £
15.000.000 (2,8% da exportação total, 1,7% da Renda
Interna colonial);
- poucos reflexos no conjunto econômico -social: sem
penetração territorial, sem crescimento demográfico (a não
ser, ambas muito superficiais); sem criação de classes
sociais, e outras atividades reflexas (quase sem caráter de
verdadeiro ciclo); entretanto, justificando a necessidade da
criação de um sistema político -militar da defesa:
capitanias hereditárias. (28)

3. De meados do século XVI a meados do século XVII

3.1 Quadro histórico


1551 – Criação do bispado da Bahia
1554 – Fundação do Colégio Jesuíta de São Vicente
33
34
1555-1565 – Franceses no Rio de Janeiro (Villegaignon)
1565 – Fundação da cidade do Rio de Janeiro
1571 – Batalha de Lepanto
1573-16578 – Instituição de dois governos
1578 – Batalha do Alcácer-Québir
1580-1640 – Portugal unido à Espanha
1583-1591 – Ataques ingleses ao Brasil
1584 – Conquista da Paraíba
1588 – Desastre da Invencível Armada
1589 – Conquista de Sergipe
1591-1595 – Primeira visitação do Santo Ofício
1594-1597 – Ataques franceses
1599-1604 – Ataques holandeses
1599 – Conquista do Rio Grande
1600 – Constituição da Companhia Inglesa das Índias
Orientais
1602 – Constituição da Companhia Holandesa das Índias
Orientais
1608-1612 – Instituição de dois governos
1609 – Trégua Espanha-Holanda
1612-1615 – Franceses no Maranhão
1618-1648 – Guerra de Trinta Anos
1621 – Fundação do Estado do Maranhão e Grão -Pará
Constituição da Companhia Holandesa das Índias
Ocidentais
1624-1625 – Holandeses na Bahia
1630-1654 – Holandeses em Pernambuco, Itamaracá, Rio
Grande, Paraíba, Sergipe e Maranhão
1637 – Expedição de Pedro Teixeira na Amazônia
1637-1644 – Governo de Nassau
1642 – Tratado Portugal-Inglaterra
1645 – Insurreição pernambucana
1648 – Reconquista da Angola pelos portugueses
1651 – Ato de Navegação de Cromwell
1652-1653 – Guerra Inglaterra-Holanda

34
35
3.2 Ciclo do açúcar – 1550-1650

Condicionamentos externos:
- elevação das rendas na Europa Ocidental;
- aumento do consumo de açúcar;
- dificuldades do abastecimento do Oriente Próximo e
Extremo Oriente;
- elevação geral dos preços em decorrência do afluxo de
metais preciosos do Novo Mund o (arroba de açúcar em
1500: 400 réis; em 1650: 1.800 réis).

Condicionamentos internos – fatores de produção:


- recursos naturais: terra disponível de qualidade
relativamente boa (massapé), clima, florestas próximas
(lenha para fornalhas), rios (força motriz e transporte); em
toda a extensão da costa, mas sobretudo de Sergipe a Rio
Grande do Norte; necessidade de animais de carga (v.
subciclo do gato);
- mão-de-obra: índios (livres ou escravos) inadaptados;
reduzida mão-de-obra branca; importação maciça de
escravos africanos (29)
- tecnologia: experiência anterior dos portugueses
(Madeira);
- capital: necessidade de capitais volumosos (um engenho:
£ 10-15.000); dificuldades financeiras dos donatários (30);
papel dos cristãos-novos e dos intermediários comerciais e
financeiros; capitalização na própria economia açucareira,
porém com dificuldades de capital de giro (31);

Funcionamento:
- unidade de produção: engenho de açúcar (economia
autárquica); formação: donos de engenho, trabalhadores
livres, escravos, cultivadores livres (arrendatários
fornecedores de cana); agregados, forros, artesãos, etc.;
- favores oferecidos aos donos de engenho pela Me -
trópole(4);

35
36
- fiscalismo: dízimo do açúcar (1/10 da quantidade
produzida); intermediação obrigatória da Metrópole na
exportação (papel dos grandes centros europeus de
comercialização: Antuérpia);
- insegurança: ataques dos índios, corsários, piratas e
comércio entrelopo; ocupação holandesa(33);
- expansão durante a conjuntura ascendente (1550 -1650):
aumento das quantidades produzidas e exportadas (1600?
1.200.000 arrobas; 1650: 2.000.000 arrobas), ao mesmo
tempo que os preços se elevavam;
- alta rentabilidade;
- mudança da conjuntura após 1650: concorrência
antilhesa, queda dos preços (fim da inflação européia);
- ressurgimento por causa da revolução nas Antilhas
(1789);
- Bloqueio Continental (1806): açúcar de beterraba.

Efeitos:
- prioridade na pauta de exportação: 1600 - £ 2.100.000
(90% do total); 1650 - £ 3.800.000 (95% do total); no
período colonial: £ 300 milhões – 56% da exportação total
(34);
- importante receita para a Coroa (e para os intermediários
comerciais e financeiros);
- criação de renda (talvez 2/3 fora da Colônia); do total da
renda colonial, 33% gerados pelo a çúcar;
- fixação dos colonos; ocupação territorial (embora apenas
litorânea);
- expansão demográfica: atração dos colonos, integração
de índios, importação maciça de escravos africanos;
- estruturação social (criação de latifúndios, situação
subserviente dos demais cultivadores); isolamento dos
engenhos; hábitos de consumo mais elevados nos
engenhos (em grande parte, com produtos importados);
reduzida urbanização (35);

36
37
- criação de atividades conexas: presa de escravos (índios:
bandeirantes; pretos: mercadores); atividades adjuntas no
engenho; criação de gado.

3.3 Subciclo do gado

Condicionamentos:
- ligação indireta com o setor exportador: fornecimento de
força motriz, meio de transporte, alimentação e matéria -
prima artesanal para os engenhos d e açúcar (mais tarde,
sustentação no ciclo da mineração, inclusive para gado
cavalar e muar);
- ligação direta: exportação de couro (também como
envólucro para fumo);
- para consumo interno: alimentação e artesanato (aspecto
anticíclico) (36);
- facilidade para fatores de produção: extensão territorial;
mão-de-obra índia adequada; pouca necessidade de capital
(capitalização natural no próprio setor).

Funcionamento:
- pontos de expansão: Bahia, Pernambuco, São Vicente;
- expansão ao longo dos rios (São Fr ancisco); limitações
legais para não prejudicar a cultura da cana;
- grandes currais (em torno dos engenhos) e pequenos
currais;
- rentabilidade modesta.

Efeitos:
- sustentação da balança comercial (sobretudo nas épocas
de crise do açúcar); total da exp ortação no período
colonial: £ 15.000.000 (2,8% do total);
- receita para a Metrópole;
- fortalecimento do setor autônomo (composição do setor:
agricultura de subsistência – mandioca, algodão, etc. –
pesca de baleia, criação de gado, colheita tropical,
pequenas ocupações agropecuárias e hortigranjeiras;
37
38
reduzido artesanato; inexistência de um grande mercado:
níveis baixos de renda, falta de ligações entre os núcleos,
pouco interesse dos investidores, economia não -
monetária);
- criação de uma classe média rural (maior mobilidade
social);
- grande expansão territorial (37).

4. A Segunda Metade do Século XVII

4.1 Quadro histórico


1632 – Criação do Conselho Ultramarino
1649 – Constituição da Companhia Geral do Comércio do
Brasil
1654 – Expulsão dos holandeses
Tratado Portugal-Inglaterra
1657 – Instituição do Governo de Pernambuco
Lutas na fronteira Sul
1661 – Tratado Portugal-Inglaterra
Tratado de paz da Haia
1665 – Franceses em São Domingos
1669 – Dissolução da Companhia Holandesa das Índias
Ocidentais
1680 – Fundação da Colônia do Sacramento
1681 – Tratado de Lisboa
Perda das Índias Portuguesas
1682 – Constituição da Companhia do Comércio do
Maranhão
1633-1713 – Guerra dos Bárbaros (Confederação dos Cariris)
1684 – Revolta de Beckman
1695 – Destruição do quilombo de Palmares
1703 – Tratado de Methuen

4.2 Hiato econômico – Subciclo do fumo


- queda do ciclo do açúcar: baixa das cotações (aumento
da oferta em decorrência da criação dos centros produtores
nas Antilhas; queda geral dos preços); o açúcar mantém-
38
39
se, entretanto, como principal produto de exportação do
Brasil; queda da rentabilidade - descapitalização do setor
(38);
- medidas de defesa da receita colonial:
- criação do Conselho Ultramarino;
- constituição de organizações monop olistas para comer-
cializar os produtos da Colônia: Companhia Geral do
Comércio do Brasil (1649-1663) e Companhia do
Comércio do Maranhão (1632-1685); sucesso relativo da
primeira, apenas;
- monopólio do fumo (1642);
- monopólio do sal (1658);
- liberação do comércio em navios estrangeiros (1671);
- navegação obrigatória em frotas (1688);
- importância relativamente maior dos produtos sub -
cíclicos na exportação e na geração da renda: couro,
algodão (Maranhão), fumo.

Subciclo do fumo (a partir da segunda metade do século XVII)


- conjuntura: aumento do consumo na Europa Ocidental;
produto importante para o escambo dos escravos africanos; em
pequena proporção, para o consumo interno (39);
- condicionamentos: planta indígena; tecnologia tradicio nal;
mão-de-obra local ou escrava; necessidade reduzida de capital;

- funcionamento:
- rentabilidade relativamente reduzida;
- monopólio da Coroa – importante receita pública;
- participação da economia colonial: exportação total £
12.000.000 (2,2% do valor da exportação colonial, 1,3% da
Renda Interna do período colonial).

Resultados do período
- queda da exportação, apesar das medidas de defesa e da
participação dos subciclos;
- queda da Renda Interna, sendo dependente da exportação;

39
40
- crescimento relativo do setor autônomo da economia (não
dependente da exportação): mandioca, milho, plantas
alimentícias, frutas, trigo, etc. (fumo, algodão, pecuária – na
medida em que não se exportavam); artesanato (muito
reduzido);
- em termos per capita a exportação caiu, entre 1650 e 1700,
de 23.10.0 para £ 6.14.0, a Renda Interna, de £ 29.8.0 para £
11.8.0.

4.3 Panorama do século XVII

- Evolução da exportação (aspecto cíclico) – reflexo sobre


a geração de renda (boa parte da Renda Interna – talvez
2/3 – ficava fora da Colônia) – crescimento relativo do
setor autônomo (40).

Setor autônomo
Exportação (E) Renda Interna (RI)
(RI-E)
£ 1000 variação £ 1000 variação £ 1000 variação
% % %
1600 2.400 ... 3.000 ... 600 ...
1650 4.000 + 67% 5.000 + 67% 1.000 + 67%
1700 2.400 – 40% 4.000 – 20% 1.000 + 60%

- Composição da exportação:
1600 1650 1700
% do % do % do
£ 1000 £ 1000 £ 1000
total total total
açúcar 2.160 90% 3.800 95% 1.800 75%
pau-brasil 100 4% 75 2% 45 2%
fumo 15 0 ... ... ... ...
couro ... ... ... ... 100 4%
mineração – – – – 310 13%

40
41
- Expansão territorial e demográfica:
Área ocupada População Densidade
(km2) (hab) (hab / km2)
1600 25.800 100.000 3,9
1650 ... 170.000 ...
1700 110.700 350.000 3,2 (41)

5. A primeira metade do século XVIII

5.1 Quadro histórico


1693 – Ouro em Taubaté
1694 – Fundação da Casa da Moeda (Bahia; no Rio de
Janeiro em 1702)
1700 – Tratado de Lisboa
1704-1705 – Ataques espanhóis a Sacramento
1708 – Guerra dos Emboabas
1709 – Criação da Capitania de São Paulo e Minas Gerais
1710 – Guerra dos Mascates
Corsários franceses na Costa do Rio de Janeiro
1715 – Tratado de Utrecht
1720 – Criação da Capitania de Minas Gerais
Brasil Vice-Reinado
1725 – Criação de Casas de Fundição
1729 – Diamantes em Serro Frio
1735-1737 – Ataques espanhóis a Sacramento
1744 – Criação da Capitania de Goiás
1747 – Primeira tipografia no Rio de Janeiro
1749 – Capitania de Mato Grosso
1750 – Tratado de Madrid
1763 – Mudança da capital para o Rio de Janeiro

5.2 Ciclo da mineração (1693-1760)

Condicionamentos externos:
- importância do ouro como moeda internacional;

41
42
- mercantilismo – crisofilia (procura constante desde o
Descobrimento: entradas, bandeiras).

Condicionamentos internos:
- condições naturais: ouro e diamantes a flor da terra em
grandes quantidades;
- mão-de-obra: novos colonos ou atraídos de outras zonas;
importação de escravos;
- tecnologia: bastante simples, conhecida na Metrópole e
até pelos negros;
- capitais: necessidade de pouco capital (escravos,
equipamento); transferido de outras zonas, trazido pelos
novos colonos ou criado pela própria mineração.

Funcionamento:
- descoberta de ouro em Taubaté (1693); extensão para
Mato Grosso e Goiás; diamantes em Serro Frio (1729);
- fiscalismo: quinto do ouro (1735-1750: capitação);
derrama; monopólio dos diamantes (1731);
- obrigação da cunhagem (Casas de Fundição);
- medidas de defesa em relação ao contrabando
(organização administrativa na região da mineração);
importância do contrabando (20% de produção );
- entrada maciça de novos colonos na região da mineração
(guerra dos Emboabas);
- queda da produção na segunda metade do século XVIII;
excesso do fiscalismo (Inconfidência Mineira -Tiradentes –
1789). (42)

Efeitos:
- exportação: no período colonial, £ 170 milhões (31,7%
da exportação total);
- importante fonte da receita para a Coroa;
- criação de renda (no período colonial, 19,0% da Renda
Interna total);
- reflexos sobre outras atividades (comércio, artesanato);

42
43
- elevação (passageira, dos níveis de c onsumo; urbaniza-
ção (comércio, artesanato, administração);
- novas classes (parcialmente desaparecidas após a queda
do ciclo – proletariado rural e urbano);
- monetização da economia;
- elevação dos preços (inflação) na região mineira. (43)

6. De meados do século XVIII até a Mudança da Corte

6.1 Quadro histórico


1750-1777 – O marquês de Pombal, secretário de Estado
1751 – Criação do Estado do Grão-Pará e Maranhão
1759 – Expulsão dos jesuítas
1762 – Capitulação de Sacramento
1763 – Mudança da capital para o Rio de Janeiro
1772 – Criação do Estado do Maranhão e Piauí
1774 – Escolas Régias no Rio de Janeiro e
São João del Rei
1778 – Guerra da Independência dos Estados Unidos
1789 – Revolução Francesa – Revolta no Haiti
Inconfidência Mineira
1798 – Conjuração Baiana
1802 – Revolta em São Domingos
1807 – Bloqueio Continental
Criação da Capitania do Rio Grande do Sul
1808 – Mudança da Corte para o Rio de Janeiro

6.2 Hiato econômico – Subciclo do algodão


- queda do ciclo da mineração (esgotamento das r eservas
facilmente alcançáveis);
- contínua decadência do açúcar (entretanto, pequeno res -
surgimento após a revolta nas Antilhas, destruindo ins -
talações e eliminando temporariamente um concorrente);
golpe definitivo com o aparecimento do açúcar de
beterraba;
- fraqueza da economia de subsistência;
- medidas de defesa:
43
44
- constituição da Companhia Geral do Comércio do
Grão-Pará e Maranhão (1755-1777) e da Companhia
Geral do Comércio de Pernambuco e Paraíba (1759 -
1780);
- políticas de Pombal: criação da Mesa de Inspeção
(1759), maior liberdade de navegação (1765), redução
dos fretes marítimos (1766);
- proibição das indústrias (1785).

Subciclo do algodão

Condicionamentos:

externos: revolução Industrial na Inglaterra: demanda


maior de algodão; guerra da Independência
norte-americana: falta de matéria-prima norte-
americana.
internos: condições ecológicas (planta indígena); mão -
de-obra escrava (índia); pouca necessidade de
capital;

- Sustentação da balança comercial: exportação £


12.000.000 durante o perío do colonial (2,2% da expor-
tação total);
- Ligação com o setor autônomo (consumo local);
- Criação de renda (importância regional: Norte).

Resultados do período
- queda da exportação;
- queda da Renda Interna;
- crescimento relativo (embora em condiçõ es precárias) do
setor autônomo da economia;
- queda da exportação per capita (£ 2 9/10 em 1750, £ 1
1/10 em 1800) e da renda per capita (£ 4 8/10 em 1750, £
2 2/3 em 1800).

44
45
6.3 Panorama do século XVIII

- Nova variação cíclica graças à mineração; depois, queda


da exportação (porém menor, graças à intervenção de
outros produtos); contudo, ligeiro crescimento da renda
(graças ao desenvolvimento relativo a o setor autônomo)
(44).

Setor autônomo
Exportação (E) Renda Interna (RI)
(RI-E)
£ 1000 variação £ 1000 variação £ 1000 variação
% % %
1700 2.400 – 40% 4.000 – 20% 1.600 + 60%
1750 4.300 + 79% 7.200 + 80% 2.900 + 81%
1800 3.500 – 19% 8.800 + 22% 5.300 + 83%

- Composição da exportação:
1700 1750 1800
% do % do % do
£ 1000 £ 1000 £ 1000
total total total
açúcar 1.800 75% 2.000 47% 1.100 31%
pau-brasil 45 2% 30 0 60 0
fumo ... ... 100 2% 225 6%
couro 100 4% 110 2% 200 6%
mineração 310 13% 2.035 47% 855 24%
algodão ... ... ... ... 200 6%

- Expansão territorial e demográfica:


Área ocupada População Densidade
(km2) (hab) (hab / km2)
1700 110.700 350.000 3,2
1750 ... 1.500.000 ...
1800 324.000 3.300.000 10,2 (45)

45
46
NOTAS

(1) Frédéric Mauro, LXXIX, pág. 10.

(2) Apesar da insistência quanto à necessidade de quantificar a


História Econômica do Brasil, como metodologia analítica,
enfatizei sempre a importância primordial do conjunto dos fatores
culturais em que se processa o desenvolvimento econômico (v.
Mircea Buescu-Vicente Tapajós – XXI).

(3) Não se pode negar a precariedade dos estudos quantitativos


referentes a épocas remotas em que as informações estatísticas são
muito escassas, principalmente por causa do desinteresse dos
cronistas pela quantificação do fenômeno social até, pelo menos,
o século XVI (v. John V. Nef – LXXXVI bis). Caso típico é a
crítica feita a Earl J. Hamilton pela precariedade dos cálculos
sobre a evolução dos preços nos séculos XVI e XVIII.
Evidentemente, os cálculos devem ser aceitos com cautela, mas de
qualquer forma a tentativa de quantificação represen tou um
progresso com vistas a uma interpretação mais objetiva do
fenômeno. Como diz Frédéric Mauro, “o que fez é melhor que
nada” (op. cit., pág. 18). Os estudos publicados no presente
volume são tentativas no mesmo sentido – e sou o primeiro a
compreender as limitações de tais “exercícios” de quantificação.
Insisti em quão audaciosa é a tentativa de calcular a renda inte rna
do Brasil em 1600 (v. infra, págs. 81-90: “BRASIL 1600”), mas
achei que este é o caminho para um estudo mais objetivo do
passado brasileiro. Tive a satisfação de encontrar um apoio,
embora não referente ao meu estudo, em Frédéric Mauro (op. cit.,
pág. 28): “Mas, será objetado, para que serve estudar a renda
nacional do século XVII, quando, naquela época, ninguém
pensava nisso? Duas razões para fazê-lo nos parecem essenciais.
De uma parte, é este o único meio de compreender a organização
de conjunto da economia nesta época e de opô -la à organização
das economias seguintes. De outra parte, é este o único meio de
compreender as flutuações a longo prazo desta economia, de
discernir as variáveis mais interessantes para estudar, de precisar
seu valor e sua significação”. (Para a perspectiva da evolução da
renda no Brasil, v. infra, o gráfico da pág. 224).

(4) O livro citado de Frédéric Mauro, d epois de adotar, teori-


camente, as mesmas posições quanto à metodologia da História
Econômica, contém vários estudos enquadrando -se nas duas

46
47
etapas mencionadas. De um lado, pesquisas quantitativas micro e
macroeconômicas contribuindo para o conhecimento do compor-
tamento da economia em várias épocas: atividades do mercador
Fernão Martins na primeira metade do século XVII, contabilidade
do Engenho Sergipe do Conde na mesma época, análise do livro -
razão de Antônio Coelho Guerreiro no fim do século XVII e o
início do século XVIII. De outro lado , sínteses como o “Império
Português e o Comércio Franco-Português nos meados do século
XVIII”, ou, sobretudo, o brilhante estudo “Acerca de um modelo
intercontinental: a expansão ultramarina européia entre 1500 e
1800”. (Sobre o assunto, v. do mesmo autor – LXXVIII).

(5) É o caso dos excelentes trabalhos divulgados pelos


“ESTUDOS HISTÓRICOS” da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Marília – exemplo de dedicação e entusiasmo pela
pesquisa histórica.

(6) Oliver Ónody – LXXXVIII.

(7) v. infra, págs.244-249: “Preço de escravos no século XIX”.

(8) T. von Leithold – L. von Rango – LXX.

(9) Thomas Davatz – XLI. Um livro excelente cujas fontes de


informação foram, também, os anúncios de jornal, mas que
oferece igualmente poucas possibilidades de comparação entre os
preços no período imperial: Delso Renault – CII.

(10) v. infra, págs. 250-268: “Café, câmbio e inflação no Brasil


(1850-1900)”. Outro caso interessante é aquele da “política da
defesa do nível de renda” durante a Grande Crise de 1929, através
da compra e da queima pelo Governo dos excedentes de café: v.
uma refutação da tese tradicional em Carlos Manuel Pelaez – XC.

(11) v. na bibliografia final os grandes trabalhos de Capistrano de


Abreu, Roberto Simonsen, Afonso Taunay, Celso Furtado,
Maurício Goulart e outros.

(12) No que concerne à quantificação da economia brasileira em


fins do século XVI por Celso Furtado, v. infra, págs. 81 -90:
“Brasil 1600”. Quanto à reconsideração da estimativa feita por

47
48
Simonsen para a receita da exportação no período colonial, v.
infra, págs. 196-198: “Sobre o valor da exportação colonial”.

(13) Foi esta a técnica que utilizei para o cálculo da Renda Interna
no fim do século XVI – v. infra, págs. 81-90: “Brasil 1600”.

(14) Frédéric Mauro (LXXiX, pág. 78), insiste, com razão, nessa
pesquisa. Exemplos de levgantamentos dessa natureza encontram -
se nos grandes trabalhos de Pierre Chaunu – XXXIX bis e do
próprio Mauro – LXXVI.

(15) v. infra, págs. 201-208: “Notas sobre o volume da importação


de escravos”; págs. 209-218: “Novas notas sobre a importação de
escravos”.

(15 bis) Enquanto se aprontava o presente livro, um grupo de


professores e alunos, do qual faz parte o autor, constituiu o Centro
de Pesquisas de História Econômica do Bra sil (CEPHEB). Espera-
se que, com o tempo, este Centro consiga preencher a lacuna
apontada no texto.

(16) v. infra, págs. 81-90: “Brasil 1600”; também, M. Buescu – V.


Tapajós – op. cit., pág. 166.

(17) Teodoro Oniga LXXXVII bis.

(18) As mesmas ponderações são válidas a respeito das esti-


mativas feitas por Sérgio Nunes de Magalhães Junior (LXXII bis);
v. infra, págs. 272-279: “A Renda interna (1920-1940): uma
tentativa de quantificação”.

(19) M. Buescu – V. Tapajós – ibidem.

(20) O mercantilismo pode ter sua filosofia sintetizada no sorites:


o poder é dado pela riqueza; a riqueza é dada pelos metais
preciosos; os metais preciosos são dados pela balança comercial
superávitária.

(21) Para certas limitações a essas características, v. Mircea


Buescu – Vicente Tapajós – XXI – págs. 24-25.

48
49
(22) Podem ser chamados “anticiclos” na medida em que
contribuíram para interiorizar a economia – conf. M. Buescu – V.
Tapajós – op. cit., pág. 25.

(23) Sobre o fim do ciclo do pau-brasil, v. infra, págs. 45-50:


“Novas indicações sobre o primeiro século do Brasil”.

(24) Sobre o fim do ciclo do açúcar, v. infra, págs. 109 -131: “O


Engenho Sergipe do Conde no século XVII: um levantamento
quantitativo”.

(25) v. infra, págs. 74-80: “Contribuição para a história do


subciclo do gado”.

(26) v. Roberto C. Simonsen – CXII, págs. 63-64 – um cálculo


sobre a rentabibilidade do ciclo.

(27) Sobre a persistência do ciclo do pau -brasil, v. infra, págs. 45-


50: “Novas indicações sobre o primeiro século do Brasil”.

(28) v. Vicente Tapajós – CXXI.

(29) Sobre a rentabilidade do escravo, v. M. Buescu – V. Tapajós


– XXI, pág. 124.

(30) v. supra, págs. 45-50: “novas indicações sobre o primeiro


século do Brasil”.

(31) v. infra, págs. 169-174: “Uma controvérsia em torno de


Antonil”.

(32) Sobre os direitos dos donatários – V. Tapajós – CXXI.

(33) v. infra, págs. 139-149: “Invasão holandesa no século XVII:


perdas da economia açucareira”. Dois livros são fundamentais:
Hermann Wätjen – CXXXIX e C. R. Boxer – XIII.

(34) A quantificação da exportação colonial foi feita por Roberto


Simonsen (CXII). Sobre uma possível reavaliação dos números, v.
infra, págs. 196-198: “Sobre a exportação colonial”.

49
50
(35) Sobre a vida social da época, é fundamental o livro de
Gilberto Freyre – LIV.

(36) A importância relativa do gado aparece quando relacionamos


o número de cabeças existentes em 1600 (650.000) com o número
de habitantes (100.000): isso dá 6,5 cabeças por habitante. No
Brasil de 1960, a relação não passava de 0,8.

(37) v. infra, págs. 167-168: “Panorama do século XVII”.

(38) Sobre a decadência do setor açucareiro, v. infra, págs. 169 -


174: “Uma controvérsia em torno de Antonil”.

(39) v. infra, págs. 189-193: “A economia do fumo segundo


Antonil”.

(40) As estimativas aqui alinhadas, forçosamente precárias , são


resultado de um método de cálculo que foi exposto em M. Buescu
– V. Tapajós – XXI, págs. 132-140.

(41) A queda da densidade (N.B.: em relação à área econo -


micamente ocupada) pode ser interpretada como reflexo do sub -
ciclo do gado, atividade tipicame nte extensiva.

(42) Livro fundamental é o de C. R. Boxer – XII.

(43) Informações valiosas em Andreoni (Antonil) – IV.

(44) Detalhes quantitativos em M. Buescu – V. Tapajós – XXI –


Para um balanço da Colônia, v. infra, págs. 219 -224: “Desen-
volvimento econômico do Brasil – raízes históricas”.

(45) Numa economia de agricultura extensiva, o aumento da den -


sidade demográfica, não acompanhado por progressos tecnoló -
gicos, poderia explicar, em parte pelo menos, a queda global da
renda “per capita”.

(Transcrito de História Econômica do Brasil, Rio de Janeiro:


APEC, 1970, págs. 25-33).

50
51

OS TRÊS PRIMEIROS SÉCULOS

51
52

A ECONOMIA AÇUCAREIRA EM 1600


E OS SEUS ASPECTOS QUANTITATIVOS

O fenômeno econômico é essencialmente


quantificável. Pelo caráter específico do seu suporte
material o valor econômico, ao contrário das outras
categorias axiológicas, apresenta duas dimensões: ao
lado das conotações qualitativas, definem-no, e de
maneira mais patente, as conotações quantitativas. Não
deve ser exagerado o mérito destas últimas, pois atrás
do quantitativo, de aparência rigorosa, sempre aparece o
qualitativo – mas, do ponto de vista formal, a
quantificação resolve o problema, como, por exemplo, o
preço unido do mercado estabelece o equilíbrio aparente
entre as partes, embora tenha, muito provavelmente,
significado qualitativo diferente para cada uma delas. A
apreciação objetiva do fenômeno econômico no seu
desenrolar histórico ficará extremamente precária se não
se basear na quantificação. Como se poderá falar
objetivamente em progresso ou retrocesso se a
afirmação se sustenta, apenas, em sinais exteriores, bem
precários?
Afirmar a necessidade da quantificação na
História Econômica não significa minimizar as
dificuldades de empreendê-la por falta de documentos.
Como se sabe, a tendência de precisar o fenômeno
52
53
social em termos numéricos é hábito recente que,
mesmo na Europa, mais avançada culturalmente, não
apareceu antes da segunda metade do século XVI.(1). É
fácil imaginar a penúria de elementos num Brasil
Colonial que a Metrópole manteve em quarentena
cultural. Contudo, as informações existem: por exemplo,
se em 1618, Brandônio, apesar de sua origem e
profissão, se apega bastante pouco aos números,
Gandavo, uns 70 anos antes, já tratava em termos
quantitativos a economia açucareira incipiente.
Lá onde os dados faltam, poder-se-á interpolar ou
extrapolar – método matemático de usar a imaginação.
Deverá aplicar-se com cautela e prudência, exigindo-se
que a construção resultante seja racional e coerente. Nã o
será fácil chegar a uma quantificação de uma certa
amplitude, abrangendo todo o passado da economia
brasileira. Até lá, será preciso juntar dados, conferi -los,
completá-los, construindo-se, aos poucos, a imagem
quantificada. Brilhante exemplo foram dados por
Roberto Simonsen(2) e Celso Furtado(3). Tentativas
mais ousadas, portanto mais aleatórias, foram feitas num
livro meu, em co-autoria com o Prof. V. Tapajós (4).
A necessidade de reconsiderar e conferir alguns
dados tornados tradicionais aparece ao analisar-se um
documento recentemente elaborado pelo XXI Curso da
CEPAL – BNDE (5).
Não vou referir-me aos valores indicados em
várias ocasiões e transformados em moeda atual, pois
parecem mais um erro gráfico. Por exemplo, diz -se que
o rendimento do açúcar era de “300.000 cruzados ou
53
54
Cr$ 28 mil”. O equívoco é evidente. Simonsen fala em
28 contos da sua época. Na realidade, 300 mil cruzados
do início do século XVII correspondiam a 120 contos
daquela época, ou seja, pouco mais de £ 115.000 (ouro).
Em valor atual (numa equiparação muito precária
quando se trata de épocas tão distantes), seriam cerca de
US$ 955.000.
Essa confusão entre valores atuais e valores da
época de Simonsen (que também não teve o cuidado de
indicar o que era objetivamente o valor da moeda d a sua
época) repete-se em várias ocasiões, Mais grave é a
imprecisão de um trecho referente ao rendimento total
do pau-brasil durante 30 anos de exploração. Indica -se a
soma de 120.000 contos, porém sem precisar-se em que
moeda. Poderia presumir-se que se trata da moeda do
século XVI, mas, então, o valor indicado seria 100 vezes
o calculado por Simonsen para toda a exportação
colonial do pau-brasil, isto é, em 300 anos, e não apenas
em 30. Cem vezes o valor e dez vezes o período, a
diferença seria de 1 para 1.000. Isto mostra mais uma
vez a necessidade de adotar-se um instrumento de
medição objetivo e unitário na quantificação do passado
(6).
Incidentalmente, vale lembrar, também, os núme-
ros indicados no Relatório CEPAL-BNDE a respeito da
população escrava, quando se diz que “em 1700 já havia
três milhões (de escravos) aproximadamente”. Ora, de
acordo com as fontes mais seguras de informação e
cálculo, toda a população do Brasil em 1700 devia
situar-se em torno de 350 mil almas. Como pode
54
55
explicar-se o número de três milhões inscritos en toutes
lettres no Relatório? Nem um eventual erro gráfico
(1700 em vez de 1800) salva a situação. Em 1800 o
Brasil tinha aproximadamente 3.300.000 habitantes, do
que resultaria que a população escrava teria
representado 91% do total – o que seria um absurdo
evidente. Admite-se que no ponto culminante da
participação dos escravos na composição demográfica,
no período 1750-1800, essa participação devia ser de
cerca de 50%.
Voltando para a economia açucareira, vale a pena
confrontar, mais uma vez, os números concernentes à
produção de açúcar em 1600. Repetindo Porto Seguro
(apesar das sérias restrições feitas por Simonsen), o
Relatório CEPAL-BNDE indica 120 engenhos “com
produção de 70.000 caixas de 10 quintais a unidade”.
Uma pequena análise mostra, entretanto, a incoerência
da informação: 70.000 caixas a 10 quintais são 700.000
quintais ou cerca de 41 milhões de quilos ou 3,7 milhões
de arrobas. Divididos entre 120 engenhos, estes 3,7
milhões de arrobas dariam 30 mil arrobas por engenho e
por ano.
Ora, as informações são abundantes no sentido de
que a produção anual de um engenho, por maior que
fosse, era muito mais modesta. Em 1570, Gandavo
falava numa média de 3.000 arrobas por ano, e outra
informação sua sugeriria ainda menos (cita, para a
Bahia, uma produção excepcional de 50.000 arrobas
para 23 engenhos – pouco mais de 2.000 arrobas por
engenho). Brandônio, em 1618, diz que havia engenhos
55
56
pequenos de 3 a 5.000 arrobas e outros, maiores,
constituindo provavelmente a maioria, de 6 a 10.000
arrobas. Laet, na época da ocupação holandesa, dá um
mínimo de 3.000 e um máximo de 8.000. O próprio
Relatório CEPAL-BNDE adota os extremos de 3.000 e
10.000 arrobas. Como poderiam ser 30.000?
Mesmo adotando, conforme a advertência de
Simonsen (baseada na informação de Antonil), o peso de
35 arrobas por caixa, as 70.000 caixas dariam 2.450.000
arrobas, as quais, divididas para 120 engenhos,
corresponderiam a pouco mais de 20.000 arrobas por
engenho e por ano o que é, também, inadmissível (7).
O problema deve ser reconsiderado sob os dois
aspectos, do número de engenhos e da produção, a fim
de se chegar a um conjunto coerente de dados. No que
tange ao primeiro aspecto, deve-se, mais uma vez (8), e
apesar da autoridade de Varnhagen e Capistrano de
Abreu (que aderiu ao cálculo – cf. prefácio aos Diálogos
das Grandezas do Brasil), verificar se o número de 120
engenhos para o ano de 1600 é sustentável. Este exame
crítico parece ousado face à aceitação, quase unânime,
do número oferecido por Varnhagen, aceito en passant
por Capistrano, discutido, porém sem conclusão
definitiva, por Simonsen, adotado por Celso Furtado e,
finalmente, pelo Relatório CEPAL-BNDE.
Um levantamento das principais informações a
esse respeito permite estabelecer o seguinte quadro, com
os engenhos apontados pelos respectivos informantes
nas várias Capitanias do Brasil (9):

56
57
1570 1583 1584 1587 1612 1627
Rio Grande - - - - 1 -
Paraíba - - - - 12 18-20
Itamaracá 1 - - 3 10 18-20
Pernambuco 23 66 60 50 99 100
Bahia 18 36 40 36 50 50
Ilhéus 8 3 - 6 5 -
Sergipe - - - - 1 -
Porto Seguro 5 1 2-3 2 1 -
Espírito Santo 1 6 4-5 6 - -
Rio de Janeiro - 3 - 2 - 40
São Vicente 4 - 3-4 3 - -
Fontes: 1570 – Gandavo; 1583 – Fernão Cardim; 1584 – Anchieta; 1587 –
Gabriel Soares; 1612 – LIVRO DE DÁ RAZÃO DO ESTADO DO BRASIL;
1627 – Frei Vicente do Salvador.

Observa-se que nenhuma fonte abrange todas as


Capitanias. Portanto, para estabelecer a situação de
1600 deve-se proceder a uma corroboração, e a uma
interpolação dos dados disponíveis. Mas será p ossível
admitir que o número de engenhos cresceu de 60 em
1570 para 115 em 1583, isto é, de 90% em 13 anos,
para, depois, passar em outros 17 anos (de 1583 a 1600)
de 115 para 120, ou seja, um crescimento de apenas 3%?
A época foi de intensa expansão do ciclo, e o fato é que,
em 1627, corroborando os dados de Frei Vicente do
Salvador com os anteriores, pode-se aceitar um número
global de 240 engenhos.
Comparando-se os dados existentes, constata-se,
como era previsível, a redução da taxa de crescimento –
em decorrência da elevação dos números absolutos. No
período 1583/1612 é de 2-2,5%: em 1612/1627 é pouco

57
58
superior a 1%. Isto permitiria a interpolação da taxa de
crescimento de 3 a 4% para o subperíodo de 1583 a
1600. As várias hipóteses poderiam levar a cifras entre
160 e 190 engenhos em 1600, porém, face à informação
do Livro que dá Razão, etc., pareceria mais plausível a
cifra menor, 160 ou170 engenhos. O número poderia ser
ligeiramente aumentado levando-se em conta as
inevitáveis omissões das fontes informadoras. Isto nos
levaria perto de 200 engenhos em 1600, bem longe dos
120 tradicionalmente admitidos.
Se, outra vez, ao tentar quantificar a economia
açucareira, em 1600, adotei o número de 200 engenhos
foi para chegar a um conjunto coerente de dados, pois ,
aceitando a quantidade anualmente exportada de açúcar ,
tal como foi calculada sob a autoridade de Simonsen
(1.200.000 arrobas), chega-se à média de produção
anual de 6.000 arrobas por engenho, que parece
adequada, conforme as informações já citadas sobre a
capacidade produtiva dos engenhos. Afinal de contas,
poder-se-ia dizer que, face à penúria de dados, o número
de 200 é apenas indicativo, e 190 ou 180 engenhos são
da mesma ordem de grandeza. Pareceria ate que o
número mais baixo – de 160 engenhos – seria coerente,
pois corresponderia à média anual de 7.500 arrobas
(contando que se aceite o volume global de 1.200.000
arrobas por ano, e não mais). Isso sugeriria que os
pequenos engenhos eram muito poucos – o que, em
termos gerais, está certo. Mas até que ponto a maioria
era de engenhos de 7,8 ou 10 mil arrobas? Proceda -se,
como exercício, a imaginar uma distribuição de
58
59
engenhos, com a maioria de capacidade de 8-10.000
arrobas, mas admitindo-se, também, a existência de
engenhos médios e pequenos, ainda que em reduzida
proporção, e verificar-se-á difícil admitir a média de
7.500 arrobas por engenho. Por isso, parece-me mais
plausível uma cifra aproximando-se de 200 engenhos.
Uma pesquisa mais detalhada da produção dos engenhos
ajudará à elucidação da questão (10).
Essa pesquisa não seria tão estéril quanto poderia
parecer à primeira vista. É com base em informações
setoriais desse tipo que se poderá proceder à construção
de uma imagem mais objetiva, quantificada, da
realidade econômica do Brasil histórico (11) .

NOTAS

(1) John U. Nef. – LXXXVI bis.

(2) Roberto C. Simonsen – CXII. Parece-me, contudo, que certos


números deveriam ser reconsiderados. V. infra: “Sobre o valor da
exportação colonial”, (págs. 196 -198).

(3) Celso Furtado – LVI. Há excelentes tentativas de


quantificação macroeconômica dos ciclos açucareiro e mineiro,
bem como de outras épocas e setores. Demonstrei, entretanto, em
outra ocasião, que o confronto dos dados fornecidos para o ano de
1600 mostrava certa incoerência (V. infra, págs. 81 -90).

(4) Mircea Buescu – Vicente Tapajós – XXI.

(5) A Economia do Nordeste vista pelo XXI Curso da CEPAL -


BNDE (JORNAL DO BRASIL – 27.10.1967).

59
60
(6) M. Buescu – V. Tapajós, op. cit., págs. 30 e 145.

(7) Rocha Pombo (Simonsen – op. cit., tabela da pág. 382) admite
200 engenhos e 2.800.000 arrobas por ano – o que daria, ainda,
14.000 arrobas em média por engenho, bem acima do máximo
indicado por todas as fontes.

(8) Para uma primeira análise, v. M. Buescu – V. Tapajós, op. cit.,


págs. 21-22.

(9) Brandônio não figura por ser sua informação totalmente


imprecisa: em Pernambuco os engenhos são “infinitos”, na Bahia
são “muitos”, na Paraíba “não poucos”, no Espírito Santos
“alguns”, e assim por diante (v. infra, pág. 92).

(10) A pouca probabilidade da média de 7. 500 arrobas por


engenho aparece, por exemplo, da leitura das contas do Engenho
Sergipe do Conde (o admirável levantamento feito pelo Dr. Gildo
Moura, sob a égide do IAA e publicado no II volume de
DOCUMENTOS PARA A HISTÓRIA DO AÇÚCAR – XLVI).
Num grande engenho, como aquele, a produção média anual
oscilava em torno de 10.000 arrobas. Não se deve esquecer que as
informações mais numerosas se referem a médias menores:
Gabriel Soares dá 120.000 arrobas para 40 engenhos na Bahia/
Fernão Cardim, 350.000 arrobas para 115 engenhos. Nestes, a
média situa-se em torno de 3.000 arrobas.

(11) Assim foi tentada uma quantificação da Renda Interna e da


Renda per capita em 1600, para comparação, mediante
interpolações, com as épocas subseqüentes: v. M. Buescu – V.
Tapajós, op. cit., págs. 165-168 e 174-176; v. também infra, págs.
81-90.

(Transcrito de História Econômica do Brasil. Rio de Janeiro:


APEC, 1970, págs. 62-67).

60
61

SOBRE O VALOR DA EXPORTAÇÃO


COLONIAL

Roberto Simonsen foi um grande pioneiro na


tarefa árdua de quantificar a economia colonial
brasileira, partindo de dados esparsos, incompletos e
incertos. (1) Outros trabalhos foram feitos com o mesmo
intuito, mas nenhum, excetuando-se as tentativas de
Celso Furtado, com mesmo sentido amplo de oferecer
uma visão global da economia brasileira, em termos
numéricos, objetivos. (2)
A sua estimativa do valor da exportação colonial
tornou-se ponto pacífico e indiscutível: £ 536 milhões,
das quais £ 300 milhões a cargo do açúcar. O quadro
que ele redigiu o seu clássico tratado (3) indica,
segundo diversas fontes, os valores da exportação de
açúcar em várias épocas, escolhendo aqueles que lhe
pareceram mais válidos.
Não se trata, nesta pequena nota, de proceder à
análise crítica das fontes e, conseqüentemente, dos
valores-base adotados para a construção do quadro
global. Quero apontar apenas – data venia – uma
contradição interna nos próprios dados adotados por
Simonsen, aspecto até agora despercebido pelos
estudiosos.

61
62
Para isso, é suficiente dirigir um olhar
“estatístico” para o gráfico que consigna, no mesmo
local do livro, as conclusões estatísticas, referentes à
exportação de açúcar. Numa apreciação muito
aproximada, mas válida como ordem de grandeza,
encontram-se as seguintes posições:

Nº de Valor médio Valor do período


Período anos (£ 1000) (£ 1000)
(a) (b) (a x b)
1536-1570 35 300 10.500
1571-1580 10 450 4.500
1581-1600 20 1.500 30.000
1601-1630 30 2.400 72.000
1631-1641 11 3.100 34.100
1642-1650 8 3.600 28.800
1651-1670 20 3.000 60.000
1671-1710 40 2.000 80.000
1711-1760 50 2.000 100.000
1761-1776 16 1.900 30.400
1777-1783 7 1.600 11.200
1784-1795 12 1.300 15.600
1796-1814 19 1.200 22.800
1815-1820 6 1.800 10.800
1821-1822 2 2.300 4.600
Total 286 anos ------- 515.300

O resultado agregado é bem diferente do valor


indicado por Simonsen: £ 5151 milhões, contra £ 300
milhões, ou seja, 71,6% a mais. Evidentemente, nessas
condições, a exportação total não podia ser de £ 536
milhões, e um cálculo semelhante ao do acima leva a um
valor de, aproximadamente, £ 752 milhões, ou seja,
40,3% superior ao de Simonsen. (4)

62
63
Onde está a verdade? Nos dados parciais que
levam ao valor global de £ 752 milhões, ou no dado
global de £ 536 milhões? De qualquer forma, a opção só
poderá ser feita depois de novas pesquisas e
levantamentos. Uma modificação das conclusões, até
agora admitidas a esse respeito, terá vários reflexos não
destituídos de importância. É suficiente considerar que,
com o novo valor global da exportação e admitindo uma
tributação metropolitana, direta e indireta, de 60% do
valor exportado, a espoliação colonial subiria de £ 322
milhões para £ 451 milhões, valor-ouro. Uma diferença
de £ 129 milhões – ou seja, 948 toneladas de ouro ou, de
uma forma bem aproximada, mais de um bilhão de
dólares, em valor atual constitui elemento objetivo para
apreciar o ônus do colonialismo.

NOTAS

(1) Roberto C. Simonsen – CXII.

(2) Celso Furtado – LVI. Tentativas foram feitas, também em M.


Buescu – V. Tapajós – XXI.

(3) Roberto C. Simonsen – op. cit., - quadro e gráfico entre as


páginas 381 e 383.

(4) Observe-se que, conforme esses novos números, a participação


do açúcar na exportação colonial, seria muito maior do que
conforme o cálculo global de Simonsen (68,5%, contra 56,0%).

(Transcrito de História Econômica do Brasil, Rio de Janeiro:


APEC, 1970, pág. 196-198).

63
64

SÉCULO XIX

64
65

NOTA INTRODUTÓRIA

Mircea Buescu não dividiu por séculos a história


econômica de nosso país. Essa opção é da res -
ponsabilidade do organizador, com vistas à sim -
plificação da tarefa. Essa simplificação, contudo, não
constitui nenhuma violação de seu pensamento, como
explico nesta breve Nota.
Tendo chegado ao Brasil em 1949, vê-se que no
texto que divulgou, menos de vinte anos depois, na
segunda metade da década de sessenta, revelava pleno
domínio da língua portuguesa. Contudo, tornar-se-ia a
única síntese global de sua lavra. Tenho em vista a
História do História do Desenvolvimento Econômico
do Brasil (1967). Sentiu necessidade de respaldá-la com
a presença do conhecido historiador (Prof. Vicen te
Tapajós – 1917/1998), certamente por considerar
insuficiente o seu domínio da História do Brasil. Toda a
volumosa – e de excepcional qualidade – obra posterior
corresponde a aprofundamento de determinados
aspectos, de retificações de maior precisão de avaliações
ali constantes, bem como de complementação do
processo básico que se acha apenas esboçado naquela e
nas obra que de imediato lhe seguiram, vale dizer, a
industrialização.

65
66
Assim, por exemplo, o primeiro livro subsequente
– História Econômica do Brasil: APEC, 1970 – resulta
do curso que ministrava na PUC-RJ e além do programa
de que se valia para ministrá-lo “Esquema de História
Econômica do Brasil”, antes transcrito, consiste de
ensaios de aprofundamento de temas relacionados aos
primeiros séculos, notadamente à economia açucareira.
Vê-se como soube valer-se da documentação disponível
a fim de obter coeficientes capazes de produzir
consistente quantificação do processo econômico. Acha -
se nesse caso o exame minucioso que efetivou da
documentação divulgada da atividade produtiva do
“Engenho Sergipe do Conde”, no século VII. Embora,
pelas características do tipo de divulgação que se
pretende com esta seção (LEITURA BÁSICA) não seria
adequado transcrever a todos, acredito que a amostra
selecionada é representativa. Além disto, foi o próprio
Buescu que reuniu em separado os ensaios que dedicara
àquele período de nossa história.
Evolução econômica do Brasil – de poucos anos
depois, 1974 – tem certamente maior amplitude desde
que, além de aprofundar a caracterização dos diversos
ciclos econômicos, refere aquilo a que corresponderia a
sua superação, isto é, a nova dinâmica representada pela
industrialização. Ainda assim, o maior desenvolvimento
ali existente diz respeito ao século XIX, notadamente ao
ciclo do café. A temática que efetivamente mereceria a
denominação de complementação da revolução indus-
trial, com base no programa estabelecido pela Comissão
Mista Brasil-Estados Unidos – da qual origina-se o seu
66
67
efetivo suporte, o BNDE – é posterior ao período
considerado.
O ápice da industrialização (década de setenta) e
problemática subseqüente (inflação, década perdida;
etc.) mereceria abordagens muito expressivas, em en -
saios autônomos. Devido a esse entendimento, pareceu -
nos que expressaria melhor a inteireza de sua con-
tribuição que transcrevêssemos – como século XIX -, os
estudos que o próprio autor subdividiu em primeira e
segunda metade daquele século, deixando assim, a
abordagem do período subseqüente para consideração
autônoma, inserida a seguir.

67
68

TEXTOS DE MIRCEA BUESCU

68
69
8. DIVISOR DE ÁGUAS

O ano 1808 em que ocorre a transferência da


Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro, constitui marco
fundamental na história econômica do Brasil, iniciando
um período de transição, acabado entre 1830 e 1850, em
que se assentam algumas condições indispensáveis para
o futuro crescimento. Os resultados a curto prazo, neste
período, aparecem ainda muito modestos, quase nulos,
mas foi, então, que desapareceram alguns entraves
herdados da colônia e se criaram alguns rudimentos
estruturais favoráveis ao progresso. Daí, constituir-se o
período num verdadeiro “divisor de águas”.
Melhor compreensão da mudança será alcançada
se, primeiro, fizermos o balanço econômico da época
colonial.

8.1 Balanço do modelo colonialista mercantilista

Pode ser feito sob o aspecto quantitativo e


qualitativo:
a) Do ponto de vista quantitativo, a dependência
da renda interna monetária em relação à exportação e a
evolução aleatória desta, submetida a flutuações cícli-
cas, resultaram numa oscilação da própria renda interna
– oscilação esta que se amenizou à medida que crescia,
embora modestamente, a parcela relativa do setor autô -
nomo da economia, isto é, a parcela da renda interna que

69
70
não dependia da exportação. O Quadro 8.1 mostra es tas
flutuações globais a longo prazo.
Mais grave, o esgotamento econômico da colônia
manifesta-se no reduzido crescimento global da
exportação e da renda interna – portanto, da capacidade
de gerar uma renda monetária. Em termos per capita, a
situação é pior, assistindo-se a uma quadra da renda de
£ 30 em 1600 para £ 2,7 em 1800 (v. Anexo II).
Os valores absolutos ficam ainda mais reduzidos
se passamos para a renda nacional, que podia repre -
sentar uns 40% da renda interna. Talvez a queda relativa
seja um pouco menor se admitirmos que o ouro ex-
portado não sofria os desvios para os intermediários
comerciais, como no caso das demais mercadorias.
Seja como for, na véspera da independência, o Brasil
encontrava-se no mais baixo nível de renda per capita da
sua história. Quanto ao setor de subsistência, não-mo-
netário, sempre de muito menor dinamismo e importância
econômica, não podia compensar, com seu crescimento
simplesmente vegetativo, as perdas sofridas no setor
monetário.
Quadro 8.1
Exportação e Setor Autônomo
Setor Exportação Setor
Exportação
Autônomo p.c. Autônomo
(£ 1000)
(£ 1000) (£) p.c. (£)
1600 2.400 600 24,0 6,0
1650 4.000 1.000 23,5 5,9
1700 2.400 1.600 6,9 4,5
1750 4.300 2.900 3,3 2,2
1800 3.500 5.300 1,1 1,6

70
71

b) Vários aspectos qualitativos referentes à


evolução anterior a 1808, têm caráter nitidamente
negativo:

i) O colonialismo representou perda de substância


através de tributos cuja receita se aplicava na metrópole,
monopólios que reduziam o dinamismo e a capacidade
competitiva da economia brasileira, e intermediação
compulsória no comércio internacional, representando
outra perda de substância. O resultado global foi um
nível baixo de renda, a reduzida margem de poupança e
investimento, e a comprovada queda da capacidade de
gerar renda.
As proibições econômicas ligadas à aplicação do
pacto colonial (em produção, transportes, profissões)
impediram a diversificação e o aumento da produção,
bem como a criação de tradições profissionais. A mais
grave foi a proibição, por motivos políticos, de um
sistema educacional, resultando em baixa propensão
para trabalho, tecnologia e poupança, baixo horizonte de
consumo e reduzida motivação desenvolvimentista –
com efeito desastroso para o futuro econômico do país.
A insignificância da classe média pode ser
explicada, entre outras, por esta mesma causa. E,
também, um certo divórcio entre o cidadão e o Estado,
uma vez que este se identificou com a metrópole
espoliadora.

71
72
ii) Os reflexos do mercantilismo já foram
apontados em várias ocasiões, no que precedeu:
organização de uma economia monocultural com vistas
à exportação e, portanto, vulnerável às flutuações
conjunturais; perda de substância, em fatores de
produção ociosos, em decorrência da mudança cíclica;
abandono e fraqueza da economia destinada ao con sumo
interno e sua substituição, em muitos casos, por
importações; disparidades regionais de renda; criação de
uma estrutura rural rígida, impedindo o bom
aproveitamento da terra com a mão-de-obra livre
disponível, império do espírito mercantilista, imedia tista
e pouco propenso ao trabalho pioneiro.

iii) A própria expansão territorial em grandes


áreas, sem encontrar obstáculos políticos intrans -
poníveis, apresentou aspectos negativos, embora tenha
permitido alcançar grandes espaços, com variedade de
recursos naturais: criação de núcleos econômicos
isolados a grandes distâncias, resultando reduzida
divisão social do trabalho, dificuldades de intercâmbio e
atrofia do mercado; incentivo para a cultura extensiva e
desincentivo aos investimentos agrícolas; outra vez,
fraqueza da economia destinada ao mercado interno;
desapego à terra, explicado também pelas tradições
índias e negras.

iv) A presença da escravidão constituiu-se em


fator altamente negativo pelo dispêndio no exterior para
a formação de mão-de-obra em vez de ter sido feito
72
73
internamente, incentivando atividades econômicas
adequadas; (o volume da importação de escravos é
controvertido, mas pode-se admitir, para o período
colonial, uma cifra entre 3,5 e 4 milhões de escravos –
ao preço médio de venda no Brasil de £ 30, montando a
mais de £ 1000 milhões; em 1840, um escravo custava
na África 30/40 mil-réis e era vendido no Brasil a
500/700 – outra drenagem de renda para fora); pelo
desestímulo ao investimento em equipamentos e
tecnologia, uma vez que se dispunha de um fator de
produção muito barato; pela marginalização de uma
classe sem recompensa pelo seu esforço produtivo e,
portanto, sem capacidade de dar maior dimensão ao
mercado nacional; pela ineficiência na produção em
decorrência da falta de motivação; pelo desprezo que
jogou sobre o conceito de trabalho, identificado com a
escravidão.
Alguns destes condicionamentos persistiram após
o “divisor de águas”, às vezes até hoje em dia,
explicando percalços e atrasos no processo desen -
volvimentista. Não resta dúvida, entretanto, de que no
período em foco foram removidos alguns elementos
negativos, em primeiro lugar o colonialismo e,
parcialmente, a escravidão. Se o modelo monocultural
de exportação se prolongou através do café, o foi em
outras condições mais favoráveis do que antes. Nocivo,
como se vai ver, foi o seu prolongamento excessivo.

73
74
8.2 Chegada da Corte

As mudanças econômicas provocadas pela


mudança da Corte, em 1808, foram fundamentais.
Na época da chegada de D. João VI, a cidade do
Rio de Janeiro tinha cerca de 50 mil habitantes. A
entrada de 15 mil pessoas com a frota real representava
um aumento de 30%. Em termos de renda, o incremento
foi, sem dúvida, bem maior, visto que se tratava, em
grande parte, de pessoas de altos rendimentos. Há,
contudo, uma ponderação a fazer. Em verdade, a nova
população tinha hábitos de consumo mais elevados, o
que constituía uma demanda potencial. A demanda
efetiva dependia dos níveis de renda. Ora, tratava -se de
pessoas que viviam, sobretudo, a cargo do erário
público, portanto seus rendimentos dependiam da receita
pública e esta, da renda nacional. O problema residia na
capacidade de resposta da oferta, isto é, da mobilização
de fatores de produção. Terra e mão-de-obra, embora
escrava, havia, mas faltavam capital, tecnologia e
espírito empresarial. Sobre os escravos pode-se dizer
apenas que eram distribuídos de forma desequilibrada,
com concentrações em regiões, como as minas, onde as
atividades econômicas estavam, em franca decadência.
Admite-se que os recém-chegados trouxeram
valores orçados em £ 22 milhões (mais de duas vezes o
valor estimado da renda nacional do Brasil), Contudo,
não se diz em que forma entraram aqueles valores, se
imobilizados em jóias, louças ou em dinheiro, por
exemplo. Mesmo a parcela em dinheiro, podia gerar
74
75
apenas uma despesa efetiva de consumo ou,
eventualmente recursos para investimentos. Dado o tipo
social que entrou com a Corte – dignatários,
funcionários, clientela política – a propensão para
investir e o espírito empresarial faziam falta.
Apareceram apenas alguns novos empreendimentos
agrícolas, e mesmo industriais, muito modestos. A
demanda crescente resultou numa pressão inflacionária
que atingiu algo em torno de 35% entre 1807 e 1819.
Vale lembrar, desde já, que a importação sofria o
impacto do bloqueio continental, criando um ponto de
estrangulamento da oferta. O outro prendia-se à própria
incapacidade da produção local. Esta sofria da falta de
renovação tecnológica e de excesso de escravos (talvez
50% da população em 1800). A própria terra, embora
disponível, não havia sido ocupada de forma
satisfatória: em 1800 havia, para cada habitante, 9,8
hectares ocupados; em 1600 eram 25,8 hectares . (v.
Anexo I).

8.3 Política econômica

Várias medidas inovadoras – sem que este termo


seja sempre compreendido num sentido positivo –
merecem análise mais atenta.

8.3.1 Liberalismo

O liberalismo consubstanciado em algumas das


providências da Corte no Brasil foi objeto de críticas,
75
76
Sob o ângulo teórico atual, estas críticas são às vezes
justificadas. Esquece-se, entretanto, que naqueles
tempos o liberalismo era doutrina dominante, e a adesão
de um José da Silva Lisboa aos ensinamentos já
consagrados de Adam Smith é muito explicável.
Acrescente-se que a doutrina liberal estava ligada à
oposição ao colonialismo e aos entraves criados pelo
mercantilismo e pelo pacto colonial. O libelo de João
Rodrigues de Brito, já em 1807, oferece exemplo
expressivo. (1) Quanto à identidade entre a política
liberal e os interesses da Inglaterra, a dominação desta,
naquela época, é um fato histórico, sobretudo em
relação a Portugal que devia pagar um preço econômico
para sua sobrevivência política como potência
colonialista.
Dentro deste contexto podem ser apreciados dois
atos da Corte no Brasil: a abertura dos portos em 1808
e o tratado com a Inglaterra em 1810.

a) O alvará assinado na Bahia em 28 de janeiro de


1808, permitindo a livre entrada dos navios estrangeiros
no Brasil, quebrou o pacto colonial por força dos
acontecimentos que haviam alterado as posições
geográficas metrópole/colônia. Fixada a metrópole na
área colonial, era impossível manter a claustração
colonial, era um contra-senso a metrópole cercear sua
própria liberdade.
Sob ângulo prático, era impossível limitar as
relações comerciais a Portugal, conform e a interpretação
rigorosa do pacto colonial, de vez que a ocupação
76
77
francesa impedia esse comércio. O fechamento total da
economia brasileira era solução inviável. A única
solução econômica que representava, também, um preço
político pago à Inglaterra, era a abertura para o
comércio internacional, em que a Inglaterra detinha
posição preponderante.
Aliás, para um país incipiente que não tinha nada
em termos de infra-estrutura, produção diversificada,
mercado interno, tecnologia e capacidade de capita -
lização, uma solução válida para sair do círculo vicioso
do atraso e da estagnação era aproveitar a demanda
externa para criar renda, e a oferta interna de produtos
primários – o que será feito, um pouco mais tarde,
graças ao café. Outrossim, nem capitais, nem mão-de-
obra imigrante encontravam atrativos num espaço vazio
que não havia ainda saído do jugo colonial e, por cima,
praticava a escravidão. Até 1850, as tentativas de
colonização tiveram resultados modestos – fundação de
Nova Friburgo em 1818, de São Leopoldo em 1824 – ou
mesmo a experiência de Nicolau Vergueiro (1847).

b) O tratado de 1810 com a Inglaterra (renovado


em 1827) teve, sem dúvida, caráter leonino. A con-
cessão de um direito alfandegário de apenas 15% para as
mercadorias importadas da Inglaterra quando as próprias
mercadorias portuguesas pagavam 16% e as demais,
como confirmado no ato da abertura dos portos, 25%,
constituía uma posição privilegiada. Outros privilégios,
em termos de foro judicial, tributação etc. foram
outorgados. A reciprocidade de tratamento preferencial
77
78
reconhecida para alguns produtos brasileiros, como o
açúcar e o café, no mercado inglês, era ilusória: quando
a Inglaterra quis, ofereceu condições iguais ou melhores
para produtos de outras procedências. Também inócua
era a outorga dada a Portugal de colocar taxas proibi-
tivas sobre a importação de açúcar, café e outros pro -
dutos procedentes das colônias britânicas, e sem impor -
tância o direito dos negociantes portugueses de se
estabelecerem na Inglaterra.
É óbvio que uma tributação alfandegária de 15%
era insuficiente em termos de proteção à indústria
nacional, sobretudo que, a partir de 1818, a mesma taxa
foi estendida às mercadorias portuguesas, e entre 1826 e
1828, aos demais principais parceiros comerciais do
Brasil. Do ponto de vista do estímulo às atividades
manufatureiras nacionais, a posição liberal adotada,
evidentemente para o benefício, em primeiro lugar, da
Inglaterra, não se justificava. Porém, não se deve pensar
que, sem essa política, a industrialização brasileira t eria
se iniciado desde aquela época. Faltavam muitas
condições para esse processo.
O fato é que os próprios ingleses que dominavam
política e economicamente o país, se instalaram como
comerciantes, e não como investidores industriais. Não
se deve minimizar a importância da presença destes
empresários ingleses que, além de dinamizar o
comércio, provocaram um efeito-demonstração, não
apenas em termos de níveis de consumo, mas também de
atitudes empresariais. A experiência de Irineu Evan -

78
79
gelista de Souza, futuro Visconde de Mauá, na casa
Carruthers, é eloqüente.
Apesar da abertura dos portos e da política
liberal, não parece ter havido logo, como se diz às
vezes, invasão de mercadorias inglesas. A importação
cresceu em comparação com o ano 1808 quando, por
força do bloqueio continental e das guerras
napoleônicas, havia caído ao mínimo de £ 425 mil (só
de Portugal).
As estatísticas são muito incompletas, mas
encontramos, em 1812, a importação total de £ 3.125
mil, £ 4.444 mil em 1815, £ 4.123 em 1819 e £ 4.590
mil em 1822. Ora, já em 1799, o Brasil importava de
Portugal £ 4.445 mil. Quem tinha sido deslocado da sua
posição era Portugal (em 1819 participava com 50,2%).
Quanto às queixas de abarrotamento de mercadorias,
devia-se à falta de transportes e armazéns, e à
exigüidade do mercado, e não ao crescimento absoluto
das importações.
Em valor per capita a importação era de £ 2,28
em 1822 – mas, em 1799, já havia atingido £ 1,35. Nos
anos 20 seguintes, a importação vai subir para £ 13.298
mil, ou seja, £ 1,58 per capital. O movimento portuário
não leva a conclusões diferentes: em 1806, apenas 641
navios entraram no porto do Rio de Janeiro; em 1810, já
eram 1.214, mas nos anos seguintes, entre 1810 e 1820,
a diferença não é muito grande. Só que em vez de serem
10% estrangeiros, passaram para 27%.
A remessa de lucros dos comerciantes ingleses
podia pesar sobre o balanço de pagamentos, mas
79
80
proporcionalmente representava menos do que ia antes
para Portugal. A realidade é que o setor externo sofreu,
até perto de meados do século, estrangulamento, e não
expansão.

8.3.2 Problemas financeiros e monetários

Um dos efeitos mais graves da queda das


importações e da incidência aduaneira de 15% foi o
impacto sobre a receita pública, uma vez que o imposto
sobre a importação constituía a principal fonte da
receita. Em 1808, ele representava 34% da receita – em
1820, não passava de 14%. Vimos que foi um período de
relativo aumento das importações a partir do mínimo de
1808, e apesar disso a receita do imposto de importação
cresceu bem menos do que a receita total.
O erário público lutava com dificuldades, não
apenas por causa da inépcia administrativa (apesar da lei
orçamentária de 1827, renovada em 1831) e os excessos
de gastos supérfluos, mas também em decorrência das
necessidades da organização da administração local
(Secretarias de Estado, Conselho de Estado, Conselho
da Fazenda, entre outros), da implantação de
instituições ligadas ao setor público (Academia Militar,
arsenais, fábricas de pólvora, por exemplo) ou de caráter
cultural (bibliotecas, arquivos) bem como por causa das
dificuldades políticas (guerra da Independência, no
Prata, no Pará, dos Farrapos). Entre 1823 e 1850/1, a
execução orçamentária apresentou 22 déficites e 7

80
81
superávites. Em valores acumulados, o déficit – 79.024
contos de réis – representou 17% da receita.

Três tipos de soluções foram procurados:


a) solução tributária: criação do imposto sobre a
exportação (em 1801 e 1836), décima sobre ao valor
locativo, sisa sobre vendas imobiliárias e meia-sisa
sobre escravos e algodão, tributos sobre carruagens,
navios e armazéns – todos estes desde o tempo de D.
João VI;
b) solução creditícia: empréstimos estrangeiros;
c) solução monetária: além das manipulações
sobre as moedas de prata e cobre, que iam provocar a
fuga do ouro e da prata, dificultando a situação
monetária, a criação do Banco do Brasil.
Estas últimas duas soluções merecem um
tratamento especial.

8.3.3 Banco do Brasil

Fundado em 1808, representou o início das


relações, às vezes espúrias, entre o poder públ ico e os
órgãos responsáveis pela expansão monetária. O
objetivo principal, expresso no alvará de constituição –
“obter fundos para a manutenção da monarquia” – era
uma limitação, senão um desvio, nas funções de um
banco que devia atender às necessidades d e crédito de
um sistema totalmente desprovido de tais instrumentos.
A vida do Banco do Brasil vai ressentir-se desta
distorção. Constituído como banco particular com o ca -
81
82
pital de 1.200 contos de réis, e recebendo por 20 anos o
privilégio da emissão da moeda de papel com curso
legal, o capital foi subscrito com dificuldade,
completando-se apenas em 1817, demonstrando seja as
reduzidas disponibilidades de capital, seja o pouco
interesse pelos investimentos, seja, mais provavelmente,
a desconfiança em relação a um órgão controlado pelo
Governo. O capital foi aumentado depois, chegando a
subscrição a 2.235 contos até 1821. Entretanto, em
grande parte, os recursos foram fomentados graças à
ajuda do Governo (por exemplo, recursos decorrentes
dos impostos especiais criados em 1812) de forma que o
governo era principal acionista, controlando o Banco.
A atividade básica deste foi a emissão de papel-
moeda para as necessidades do Tesouro, sem nenhuma
relação com o lastro metálico ou com as necessidades
reais do sistema econômico. A distribuição de bons
dividendos baseava-se na emissão de papel-moeda,
criando uma falsa euforia. No balanço de 1821, no ativo
figuravam apenas 1.315 contos em moeda metálica e, no
passivo, as emissões somavam 8.872 contos de réis. A
volta de D. João VI para Portugal proporcionou a
retirada de suas participações criando um verdadeiro
pânico e outras retiradas pelos seguidores do rei. O
encaixe do Banco reduziu-se a 200 contos. Em termos
globais, a saída de dinheiro do país, nesta ocasião,
avaliada em £ 6 milhões, foi bem menor do que a
entrada inicial de £ 22 milhões, mas do ponto de vista
do Banco do Brasil a sangria foi grave. Entretanto,
mesmo sem este acontecimento, o Banco era fadado ao
82
83
insucesso não porque teria sido inviável em si, mas p or
causa do seu modo de funcionar, com emissões
desastradas feitas para atender ao Governo.
Em 1808, o meio circulante atingia, conforme
estimativas, a 10 mil contos de réis. As emissões feitas
até 1821 somaram 8.872 contos, isto é, uma expansão de
quase 89%, que gerou uma alta de preços avaliada em
torno de 40%. É pouco provável que a diferença de 49%
tenha sido toda absorvida pelo crescimento do produto
real, pois isto levaria a uma taxa anual de crescimento
de 2,6%, pouco admissível. Devem ser levadas em conta
as saídas de dinheiro, desconhecidas, a título de déficit
comercial, remessa de lucros e transferências públicas e
privadas para a metrópole. Ademais, uma parte das
emissões deve ter compensado a falta de liquidez antes
ressentida.
Finalmente, o Banco do Brasil foi liquidado em
1829. Naquele momento o total dos bilhetes emitidos
era de 19.174 contos de réis e a divida do Tesouro, de
18.301 contos. Portanto, 95,48% das emissões
correspondiam às atividades do Governo, de pouca
repercussão econômica.
A curta existência do Banco não deixou de ser
uma experiência, uma etapa para realizações mais
sólidas. Tanto é que outros bancos comerciais foram
criados no período: Ceará (1836 - durou apenas 3 anos),
Comercial do Rio de Janeiro (1838), Bahia (1845),
Maranhão (1846), Pará (1847), Pernambuco (1851) e
Brasil (Mauá – 1851).

83
84
Os bilhetes do Banco do Brasil foram
encampados pelo Tesouro que começou também, por
conta própria, as atividades emissoras. A confusão
monetária completava-se com moeda de cobre, papel-
moeda emitido para a retirada do cobre da circulação e
moeda de cobre falsa (xenxém). Com o aparecimento
dos bancos particulares, começaram a circular vales
emitidos por eles – papel de crédito a prazo muito curto
com juros, desempenhando função de moeda. Em 1853,
o meio circulante somava 70.300 contos de réis,
compondo-se de 46.700 contos em papel do Tesouro,
18.000 contos em moeda metálica e 5.600 em vales
bancários.
Assim, a expansão monetária entre 1808 e 1853
teria sido de 603%, enquanto a inflação é esti mada em
153%. A diferença representaria o crescimento do
produto (178%), à taxa anual de 2,3%. Outros meios de
avaliação indicam que a renda interna do Brasil teria se
elevado de £ 8,8 milhões em 1800 para £ 27 milhões em
1850, um crescimento global de 207%, ou seja, quase a
mesma taxa anual. (v. Anexo II)

8.3.4 Empréstimos externos

Outro recurso para complementar a receita pública


foi constituído pelos empréstimos externos. Se consi-
derarmos o valor absoluto destes empréstimos não pode-
mos dizer que o endividamento era exagerado. Entre 1824
e 1843, o Brasil contratou 5 empréstimos, correspondendo
a um compromisso global de £ 5.599.200, importância
84
85
pouco relevante se lembrarmos que entre estas datas a
exportação anual oscilou entre £ 4 e 5 milhões.
Os juros, 5% ao ano para todos os empréstimos,
também não eram exagerados. O que foi menos
favorável, além das vantagens retiradas pelos
negociantes, foi o tipo dos empréstimos que oscilou
entre o máximo de 85% e o mínimo, realmente
excessivo de 52%, de forma que a importância total
efetivamente embolsada pelo país foi de £ 4.335.000,
77,4% do compromisso de £ 5.599.200. Com isso os
juros reais montaram, em média, a 6,5% ao ano.
De fato, o aspecto negativo mais importante foi o
caráter fiscal dos empréstimos, destinados apenas a
cobrir os déficits orçamentários e dívidas públicas
anteriores, e não a investimentos capazes de inculcar um
certo dinamismo ao sistema econômico. Assim não
havia contrapartida positiva ao ônus que o
endividamento representava na execução orçamentária e
no balanço de pagamentos. Em ambos os campos, as
dificuldades provinham da pouca expansão do comércio
exterior, uma vez que o imposto de importação era
principal fonte de receita e a exportação era elemento
básico do ativo no balanço de pagamentos. Com déficits
permanentes na balança comercial (como se caracterizou
toda esta época) e com poucas entradas de capitais
estrangeiros que não encontravam muitos atrativos na
economia brasileira, o ônus da dívida pública era pesado
no balanço de pagamentos. Da mesma forma o era para a
execução orçamentária, enfraquecida pelas razões
expostas. Assim, o círculo vicioso continuava.
85
86

8.3.5 Política desenvolvimentista

Antes de tratar dos problemas de comércio


exterior – âmago do problema – vale mencionar as
importantes medidas tomadas por D. João VI com vistas
(em termos) ao desenvolvimento econômico.
- medida fundamental, revogação, já em 1808, do
alvará de 1785 que havia proibido as indústrias no
Brasil – aplicação do pacto colonial que não mais s e
justificava após a instalação da metrópole no território
brasileiro;
- auxílios concedidos à construção naval (1809),
resultando na expansão desta atividade no Rio de
Janeiro, Salvador, Recife, etc.;
- reorganização do Arsenal da marinha (1809);
- isenção alfandegária na importação de matérias-
primas para as manufaturas nacionais (1809);
- vantagens concedidas para a fabricação de fios e
tecidos (1810);
- isenção de penhora dos equipamentos dos
mineradores (1813), medida ligada, ainda, aos objetivos
mercantilistas;
- liberdade de exercício da profissão de ourives
(1815).
Deveria acrescentar-se o fomento oferecido à
mineração e siderurgia, prêmios para transplante de
especiarias (outra vez, o mercantilismo), a abertura de
estradas, a isenção de impostos para novas culturas às
margens das estradas abertas, o fomento à irrigação, a
86
87
experiência com núcleos coloniais. A conclusão é que o
período de D. João VI foi muito mais rico em inovações
e iniciativas econômicas do que aquele que se estende
até a maioridade de D. Pedro II. É verdade que as
condições políticas foram diferentes.
Finalmente, não se deve esquecer, para a expli -
cação do desenvolvimento subseqüente, os progressos
feitos, até meados do século XIX, em termos de abertura
de horizontes culturais e formação de elites.

8.4 Gargalo externo

Apesar de concentrar-se a atividade econômico,


por tradição e falta de oportunidades, no setor
exportador, o comércio exterior apresenta, no período
indo até perto de meados do século XIX, posição
estacionária. Entre 1800 e 1830, o valor da exportação
anual oscila entre pouco mais de £ 3 milhões e pouco
mais de £ 4 milhões. Em termos per capita, ela cai de £
1,05 em 1800 para £ 0,63 em 1830.
Entre 1808 e 1819, a balança comercial era,
ainda, predominantemente superávitária, mas isto se
deve à queda brutal das importações (guerras
napoleônicas, bloqueio continental). Depois de terem
chegado ao seu ponto mais baixo, as importações
recuperaram-se, porém em 1830 estavam, até então, nos
níveis de 1800, em torno de £ 4 milhões. Em termos per
capita caíram de £ 1,35 em 1799 para £ 0,75 em 1830.
A recuperação parcial das importações fez com
que o período de 1822 a 1845 fosse altamente
87
88
déficitário na balança comercial – apenas em 4 anos
verificou-se superávit. Em 1850, no fim do período, a
balança continuava déficitária em £ 1.094 mil (£ 9.215
mil de importação, £ 8.121 mil de exportação). Os juros
anuais dos empréstimos estrangeiros até então
contratados somavam £ 280 mil. Acrescentando as
remessas oficiais e particulares e as operações
especulativas, pode-se imaginar as dificuldades surgidas
no balanço de pagamentos. E compreende-se a
suspensão, antes de 1850, das amortizações da dívida
externa. Aquelas dificuldades manifestaram-se na queda
da taxa de câmbio que da paridade manti da desde o
ciclo da mineração até o início do século XIX, de 67 1/2
pence/mil-réis, após ligeira melhora até 1814, cai
verticalmente até a média anual de 22 13/16 pence em
1830. Nova ligeira melhora surge até 1835 – período
deflacionário no Brasil – para depois fixar-se o câmbio
entre 25 e 28 pence/mil-réis, até 1865. A paridade legal
foi de 27 pence a partir de 1846.
A exportação não encontrou, ainda, outro produto
mais dinâmico. No decênio 1821/1830, com um valor
anual médio de £ 3.838 mil, ela depende, em primeiro
lugar, do açúcar (32%) e do algodão (20%). O café
encontra-se no terceiro lugar, com 19%, seguido pelos
couros e peles com 14%. Exportação altamente
concentrada – 4 produtos são responsáveis por 84,6% do
total. De 1821/1830 para 1831/1840, o preço por
tonelada do açúcar cai da média de £ 24 para £ 17, e o
do algodão em pluma de £ 66 para £ 48. A forte crise
internacional de 1825 afeta todos os preços de
88
89
exportação, inclusive do café. O Quadro 8.2 oferece um
panorama do ponto de estrangulamento do comércio
exterior e sua solução graças ao café.
A participação dos principais produtos na pauta
evoluiu da seguinte forma:

(em % do total)
Café Algodão Açúcar Couros Fumo
1821/30 18,6 20,0 32,2 13,8 2,4
1831/40 43,8 11,0 24,0 7,9 1,9
1841/50 41,3 7,5 26,7 8,0 1,8

Apesar da fraqueza mostrada (o privilégio da


isenção de penhora é uma prova), o açúcar, produzido
sobretudo no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Pará e
São Paulo, tenta melhorar quanto à qualidade da cana e
aos equipamentos: em 1813 aparece a primeira máquina
a vapor num engenho.
O algodão (sobretudo em Maranhão, bem como
Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais) utiliza, desde
1826, o descaroçador moderno, elevando a produ -
tividade, mas o período assiste à queda de sua posição
relativa.
A pauta de exportação é completada pelo pau-
brasil (costa do Nordeste; monopólio estatal desde
1822), fumo (Alagoas, Sergipe, Bahia), couros (Rio de
Janeiro, Bahia, Maranhão, São Paulo, Rio Grande do
Sul), cacau (Bahia, Pará), azeite de baleia – apesar do
declínio da pesca (Bahia), arroz (Bahia, Maranhão, São

89
90
Paulo), carne-seca e sebo (Rio Grande do Sul),
aguardente – para o escambo africano (Bahia, Pernam-
buco, Pará), mate (Paraná). Acrescentam-se as drogas
do sertão, no Norte, entre as quais começa a firmar-se a
borracha e, a partir de 1840, a cera de carnaúba (Ceará,
Rio Grande do Norte).
A mineração está em franca decadência apesar de
certas descobertas na Bahia (Diamantes). Em 1824 é
permitida aos estrangeiros a exploração mineira, resul -
tando a entrada de empresas britânicas, fixadas nas
regiões mais produtivas. A Real Extração dos diamantes
é extinta em 1832.
O café, cuja produção havia descido do Pará e
Maranhão, firma-se no Rio de Janeiro e, depois de 1830,
melhora as suas máquinas de beneficiamento. A data
coincide com o aparecimento do ciclo do café. Na
década 1831/1840, o café com uma exportação anual
média de £ 2.153 mil, já representa cerca de 70% do
valor total. E graças ao café, a exportação total sobe de
£ 3.348 mil em 1830 para £ 5.384 mil em 1840 e £ 8.121
mil em 1850. Em termos per capita, a tendência
descendente inverte-se: de £ 0,63 em 1830 sobe para £
0,87 em 1840 e £ 1,2 em 1850.
Quando à importação, a pauta é típica de país
subdesenvolvido. Além dos escravos importados da
África, entram alimentos e bebidas – manteiga, sal,
bacalhau, vinho, azeite, farinha de trigo e vinagre (de
Portugal), cereais (Estados Unidos);tecidos, louças e
metais (Inglaterra), breu, potassa, couros e velas
(Estados Unidos), metais (Alemanha), papel (Holanda),
90
91
bebidas, móveis, medicamentos e artigos de luxo
(França) ceras, especiarias e óleos (África). Em
1839/1844, as manufaturas de algodão contribuíram com
33,8% do valor da importação; acrescentando os de lã,
linho e seda, chegamos a 48,2%. A farinha de trigo,
bebidas, carnes, manteiga, bacalhau e azeite perfaziam
outros 20%. As ferragens entravam com 3,2% e as
máquinas e acessórios não passavam de 0,2%.
A Inglaterra era o mais importante parceiro
comercial. Na exportação participava, em 1853/1858,
com 32.9%, seguida pelos Estados Unidos com 28,1%, a
França com 7,8%, a Alemanha com 6,0% e Portugal com
5,9%. Na importação, o domínio da Inglaterra era mais
nítido, com 54,8%, seguida pela França (12,7%),
Estados Unidos (7,0%), Portugal (6,3%), Alemanha
(5,9%). Havia concentração, também, em termos de
parceiros: cinco países respondiam por 80,7% das
exportações e 86,7 das importações.

8.5 Outras atividades econômicas

Poucas novidades podem ser ditas a respeito do


setor autônomo, fora da exportação, o qual se arra stava
penosamente por falta de investimentos (atraídos pela
exportação) e de renovações tecnológicas.
Na agricultura, os primeiros lugares eram detidos
pela mandioca, arroz, feijão, milho, trigo. O gado conti -
nuou dominando nas áreas tradicionais. As tentativas de
renovação com imigrantes portugueses encaminhados
para a agricultura (tal como Pombal já havia tentado no
91
92
Amazonas, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) foram
pouco sucedidas. O mesmo aconteceu com os imigrantes
estrangeiros, a experiência alemã em São Leopoldo
(1824) e a do Senador Vergueiro, com colonização em
parceria (1847) – prejudicada pelos abusos e malenten-
didos de ambas as partes. O Ato Adicional de 1834
havia autorizado as Províncias de fundar colônias.
A entrada de colonos europeus contribuiu para a
introdução de culturas temperadas e a melhora das
técnicas agrícolas, mas até 1850, o fenômeno foi muito
limitado. A existência da escravidão e o regime precário
da propriedade rural constituíam-se em desincentivos
para os imigrantes. O próprio nível baixo da economia e
a falta de infra-estrutura exerciam influência negativa
sobre os imigrantes. A lei de 1850, que proibiu
doravante a ocupação das terras devolutas, importava na
fixação do statu-quo no regime agrário.
Entre as atividades primárias deve-se acrescentar
a extração do sal e, especialmente, a primeira salina
artificial em Cabo Frio, em 1822.
Quanto ao setor secundário, havia as atividades
caseiras (fiação, tecelagem, cerâmica, móveis), mas
também artesanato tradicional, bem como aparec eram
pequenas fábricas de bens de consumo, sobretudo
tecidos (Rio de Janeiro e Minas Gerais). Mais para
registro histórico do que como resultado econômico
merecem menção as primeiras tentativas siderúrgicas,
entre 1809 e 1812. A experiência de 1835, em Iracema,
foi mais sólida.

92
93
O sistema de transportes continuou rudimentar,
embora a unidade política e administrativa e o
centralismo imperial tivessem contribuído para a
intensificação das trocas interregionais. No setor
marítimo, vale mencionar o emprego, a partir de 1819,
de barcos a motor. Outrossim, o esquema do mercado
não diferia muito do período colonial. (v. Gráfico 2)

8.6 Novos rumos

Os resultados positivos até o fim da primeira


metade do século XIX foram bastante magros. Graças ao
café, a exportação subiu para cerca de £ 8.100 mil em
1850 – crescimento de 131% sobre 1800, e a renda
interna de £ 8.800 mil para £ 27.000 mil, ou seja, 207%.
A renda interna per capita passou de £ 2,7 em 1800 para
£ 3,7 em 1850 – aumento de apenas 37%. Uma ressalva
pode ser feita no sentido de que, eliminado o laço
colonial, a diferença entre a renda interna e a nacional
deve ter sido menor. Admitindo que esta diferença caiu
de 60% para 30%, a renda nacional per capita teria
evoluído de £ 1,1 para £ 2,6, um crescimento de 136%.
É preciso acrescentar também, que, se nossas hipóteses
de trabalho são válidas no que concerne à relação
exportação/renda interna, o setor autônomo teria se
elevado de £ 5.300 mil em 1800 para £ 18.900 mil em
1850, a uma taxa global de 257%.
Outrossim, pouca coisa se realizou em termos de
infra-estrutura e renovação econômica. Apenas expe-
riências, esboços – e um ambiente cultural e político
93
94
mais propício para o progresso. Em primeiro lugar, a
libertação do ônus colonial. Mais especificamente, na
economia, a entrada de um novo produto conjuntural – o
café – graças ao qual se podia elevar a renda e a
capacidade de capitalização.

Até o fim do período, dois fatos iam juntar -se ao


panorama:

a) A abolição do tráfico, em 1850, com a lei


Eusébio de Queirós, após uma prolongada luta entre as
pressões abolicionistas da Inglaterra (convênio de 1830)
e as resistências brasileiras, fundadas nas tradições
escravagistas e nas necessidades de mão -de-obra no
momento em que a produção de café se expandia. As
perspectivas da abolição intensificaram a importação de
escravos (a média anual em 1846/1849 foi de 55.124
peças, decaindo completamente nos 6-7 anos seguintes),
mas incentivou, também, as tentativas de colonização
européia. De qualquer forma, liquidando-se uma das
fontes da escravidão, sobretudo quando a taxa de
crescimento vegetativo da população escrava era
negativa, a instituição estava fadada ao desa pa-
recimento. Assim preparavam-se as bases para nova
solução ao problema da mão-de-obra.

b) O início do protecionismo, com a caducidade,


em 1844, do tratado com a Inglaterra e a introdução da
tarifa Alves Branco, no mesmo ano. Proteção ainda
insuficiente (a média da incidência era de 40%), porém
94
95
muito melhor do que a anterior, de 15%, e constituindo
o início de uma política protecionista, embora com
flutuações subseqüentes em ambos os sentidos,
permitindo uma certa evolução industrial na segunda
metade do século XIX. Uma evolução talvez retardada
por causa da própria concentração em torno do café cujo
ciclo dominou aquele período.

Quadro 8.2
Evolução do comércio exterior
Exportação Exportação Café Importação
per per
Total Valor Café/exp. Total
capita capita
(£ 1000) (£ 1000) (%) (£ 1000)
(£) (£)
1746 3.200 1,01 --- --- 3.001 (1) 0,92 (1)
1800 3.500 1,05 --- --- --- ---
1810 3.940 1,04 --- --- --- ---
1818 4.000 0,92 --- --- 1.800 0,41 (2)
1822 4.030 0,87 789 0,20 4.590 (2) 0,99
1830 3.348 0,63 663 0,20 4.007 0,75
1840 5.384 0,87 2.300 (3) 0,43 7.458 1,20
1850 8.121 1,12 2.906 (4) 0,36 9.215 1,27

Indicações de leitura
Roberto C. Simonsen, 73; J. Pandiá Calógeras, 4; Sérgio Buarque
de Holanda, 217, tomo I-2.

NOTA

(1) Conf. Mircea Buescu, 34, pp. 230 -238.

95
96
9. CICLO DO CAFÉ

9.1 Perspectiva em meados do século XIX

As primeiras duas décadas após a Independência


foram bastante inexpressivas em termos de performance
econômica. O setor tradicional, da exportação , tardava
em reerguer-se. A agricultura de subsistência sofria os
reflexos de condicionamentos negativos seculares. Pe -
quenas indústrias e atividades terciárias começaram a
brotar, porém, sem grande capacidade de expansão num
mercado de limitadas dimensões. Afinal, vivia-se num
círculo vicioso em que os níveis baixos de renda não
permitiam poupanças e investimentos com vistas à
elevação da renda. Quando à poupança externa, não
encontrava atrativos suficientes numa economia
rudimentar, a não ser em atividades comerciais ligadas à
importação. E a renda aplicava-se na importação de bens
de consumo que o mercado interno não podia fornecer,
bem como de escravos que constituíam a base da
produção agrícola.
A saída desse círculo vicioso foi possível através
do setor exportador que se dinamizou graças à
conjuntura favorável encontrada, a partir de 1830/1840
durante muitos decênios, pelo café. A atração exercid a
pela exportação, pelas oportunidades no mercado
mundial, era a continuação do espírito mercantilista que
havia dominado a vida econômica brasileira durante
mais de três séculos. O sucesso do café ia enraizar este
espírito ainda mais, provocando certas distorções.
96
97
Entretanto, a solução era justificada – e encontra-
se, também, em outros casos de países subde-
senvolvidos. Não havendo um mercado interno capaz de
absorver excedentes, expande-se uma produção primária
que exige pouco capital, e em maior medida, fatores de
produção disponíveis – terra e mão-de-obra – portanto a
custo mais baixo, a produção de um produto de larga
aceitação no mercado internacional. Obtém-se, desta
forma, uma sólida fonte de renda que poderá irradiar -se
em outros setores da economia, embora sob alguns
aspectos negativos. Assim, acontecerá no caso do café,
mas, se essa irradiação ia se fazer com certo atraso, a
causa foi o excesso da mentalidade mercantilista que,
justificada pelo próprio processo do café, mostrará a
tendência de concentrar indefinidamente todos os
esforços produtivos no setor cafeeiro, até com o preço
de criar sérias distorções na alocação de fatores.
Como vimos no capítulo anterior, o ciclo do café
começou no decênio entre 1830 e 1840, quando este
produto assume a liderança na pauta de exportação e – o
que é mais importante – torna-se responsável pelo
reerguimento das receitas da exportação, constituindo -se
em setor dinâmico da economia em termos de
mobilização de fatores de produção e da geração de
renda. Pelo critério da liderança na exportação, o ciclo
do café não teria terminado ainda, porque até hoje em
dia, o café, individualmente, cobre a maior participação
relativa na pauta. Entretanto, pode-se argumentar que ao
longo das primeiras três ou quatro décadas do s éculo
XX, na fase que poderia ser rotulada de pré-arranco do
97
98
Brasil, a indústria começa a assumir importância
crescente. Os fatores de produção são atraídos, também,
pelo setor secundário. As políticas econômicas não são,
exclusivamente, protetoras ao setor cafeeiro. Quanto à
criação de renda, é verdade que, até recentemente, a
agricultura representou parcela maior que a indústria no
produto real, mas, considerando só o café em face da
indústria, a situação mudara bem antes.
O presente capítulo versará, portanto, sob o
período de incontestável domínio do café na economia
brasileira até o último decênio do século XIX, quando se
verificam medidas de política econômica que parecem
dar menor importância ao destino do café.

9.2 Condicionamentos externos

Como se trata da expansão da produção e


exportação de um produto destinado ao mercado
internacional, neste deve-se procurar a motivação do
ciclo, a conjuntura favorável que irá incentivar a oferta.
Introduzindo-se, aos poucos, ao logo dos séculos
XVI, XVII e sobretudo XVIII, o hábito do consumo de
café na Europa, a demanda crescente, após a norma -
lização política que seguiu as guerras napoleônicas. foi
resultado do crescimento demográfico na Europa
Ocidental e nos Estados Unidos e, mais importante, da
elevação das rendas e dos padrões de consumo naqueles
países: em torno de 1840, a Inglaterra já estava na
segunda fase de sua revolução industrial, a França, a
Bélgica, os Países Baixos e os Estados Unidos haviam
98
99
ingressado na fase de arranco, a Alemanha preparava -se
para a mesma etapa de desenvolvimento.
A demanda crescente resultou na possibilidade de
aumentar as quantidades produzidas e vendidas. Antes
do início do ciclo, por volta de 1825, a exportação
mundial girava em torno de 1,5 milhões de sacas, dos
quais 5,15% fornecidos pelo Brasil. No fim do século
XIX, com o Brasil participando com cerca de 70% a
exportação mundial chegou perto de 13 milhões de
sacas. Não se deve esquecer o progresso realizado pelos
transportes marítimos após a Revolução Industrial: no
fim do século, a exportação de café somava quase 10
milhões de sacas – 600 mil toneladas. O auge do açúcar
havia exigido transporte de 30 mil toneladas.
O crescimento da oferta não se efetivou com
redução dos preços unitários de venda. Apesar das
alegações tradicionais concernentes à deterioração
secular dos preços dos produtos primários, mais
especificamente do café (invocando-se, neste caso,
inclusive a lei de Engel), não se constata tendência
descendente dos preços do café durante o século XIX.
(1)
É verdade que condições excepcionais no início
da década de 1820 (quando a oferta antilhana se
ressentia, ainda, dos efeitos das guerras e revoluções, e
a brasileira não estava preparada para responder)
elevaram os preços até mais de £ 5 por saca de 60
quilos. Esta conjuntura favorável contribuiu muito para
o primeiro impulso da economia cafeeira brasileira que,
até então, se arrastava sem assumir maior expressão.
99
100
Se considerarmos a segunda metade do século
XIX, constata-se que a cotação média da última década,
£ 2,81 por saca (1891/1900) é 43% superior a média da
década inicial 1851-1860 (£ 1,97 por saca). O que
caracteriza a evolução dos preços do café não é a
tendência a longo prazo, e sim, as flutuações cíclicas
dos preços. A causa não deve ser procurada apenas d o
lado da demanda (retratação durante as depressões
cíclicas que se verificaram durante o período: 1857,
1867, 1873, 1882 e 1892), mas também do lado da
oferta, porque, sendo o cafeeiro planta de longa
maturação, o plantio era incentivado durante o período
de alta dos preços e o aumento da oferta, após 5 -6 anos
de maturação, chegava muitas vezes nos momentos de
depressão, contribuindo, assim, para uma queda maior
do preço.
Depois de um período de baixa no fim da década
1820/1830 e uma posição bastante estáv el até 1840, a
cotação do café cai novamente a partir de 1842,
mantendo-se estável no início da segunda metade do
século. Verificaram-se depois, três ciclos: de 1857 a
1868 com a cotação máxima de £ 3,06 em 1863 e
mínima de £ 1,68 em 1868; de 1869 a 1885, chegando a
£ 4,31 em 1873 e, após flutuações, outra vez a £ 4,29 em
1879, com a queda até £ 1,77 em 1885; de 1886 a 1906,
subindo logo a £ 4,10 em 1887 e, após ligeiro
afrouxamento, £ 4.09 em 1893, para cair até £ 1,49 em
1898 e £ 1,47 em 1903.
Estas flutuações influenciavam, sem dúvida, a
rentabilidade, mas não implicavam forçosamente em
100
101
prejuízos. Do ponto de vista da receita cambial, a queda
de preços podia ser compensada pelo aumento das
quantidades exportadas – como na realidade aconteceu
na maioria das vezes. Para o país, o prejuízo podia
resultar da deterioração da relação de trocas, mas este
fato não foi comprovado, embora seja provável que
tenha acontecido várias vezes, justamente porque os
produtos importados, industrializados, podem mais
facilmente controlar sua oferta nos períodos de
depressão. (2)
Para o produtor, que recebia seus rendimentos em
moeda nacional, a queda das cotações internacionais
podia ser compensada pela deterioração da taxa de
câmbio, de modo a receber a mesma importância em
moeda nacional. Uma alta de cotações, juntamente com
desvalorização cambial, representava uma excelente
oportunidade de receita. Sem dúvida, os benefícios
retirados via desvalorização cambial correspondiam ao
encarecimento das mercadorias de importação, port anto
a um ônus suplementar suportado pelos consumidores
daquelas mercadorias (os quais eram, em grande parte,
os mesmos produtores de café cujas rendas altas
permitiam acesso àquele consumo).

9.3 Condicionamentos internos

Como em outros casos, o aspecto mais grave em


termos de mobilização de fatores de produção prendeu -
se ao trabalho, porque o café exigia mão-de-obra nu-
merosa, sobretudo enquanto se aplicou uma tecnologia
101
102
primitiva, sem máquinas e equipamentos. Por isso
mesmo as necessidades de capital fixo eram reduzidas.
Quanto à terra, havia disponibilidades suficientes.
Os principais condicionamentos são os seguintes:

a) Recursos naturais – O café, introduzido no


Norte no início do século XVIII, começou a descer à
procura de novas terras e climas adequados. No fim do
século encontrava-se no vale do Paraíba no Rio de
Janeiro. Ainda em 1860, 78% da produção de café
procedia desta província, 12% de São Paulo e 8% de
Minas Gerais. A passagem da supremacia para o Oeste
de São Paulo efetivou-se nos últimos dois decênios do
século XIX, beneficiando-se da mão-de-obra livre,
imigrante naquela região em grande volume, e da infra -
estrutura de transporte ferroviário (Santos-Jundiaí 1868;
Jundiaí-Campinas 1872; Campinas-Itu 1873; Mojiana e
Sorocabana 1875; ligação com a estrada de ferro D.
Pedro II, 1877). Até lá, o transporte era feito a dorso de
mulas e cavalos. Os novos meios de transporte
permitiram a integração de novas áreas de boa
produtividade natural sem elevação de custos.
A disponibilidade de terras incentivava a
produção extensiva. A terra esgotada era abandonada e
novas áreas eram integradas via queima das florestas.
Havia, apenas a vantagem de empregas as cinzas como
adubo. Afinal, integrava-se em maior proporção um
fator barato, a terra, com a ajuda de outro fator
relativamente barato, o trabalho. Enquanto isso
aconteceu, constituiu desincentivo à aplicação de capital
102
103
e à melhora tecnológica. O mecanismo de preços
permitiu manter os lucros sem necessidades destes
últimos dois fatores.
Outrossim, o regime agrário foi organizado pela
lei de 1850 que proibiu a ocupação das terras devolutas.
Doravante, novas terras, antes obtidas por doação ou
ocupação, só podiam ser adquiridas por compra do
Governo. A intenção pode ter sido forçar a mão -de-obra
livre disponível no campo a se empregar no lugar dos
escravos cuja importação ia cessar após 1850. O
resultado foi, além desta transferência embora parcial
para as grandes fazendas, o fortalecimento do latifúndio
(que contribuiu integrando, de fato, novas áreas) e o
enfraquecimento da pequena propriedade, acentuando
este fator negativo do desenvolvimento brasileiro.
Em 1854 foi decidida a revalidação das sesmarias
e doações quando cultivadas ou em início de cultivo (foi
criada a Repartição Geral das Terras Públicas). Po r
outro lado, em vários casos, os colonos imigrantes
foram contemplados com lotes de terra criando um
importante setor agrário, muitas vezes de subsistência.
O café continuou, entretanto, em grandes latifúndios; o
que, com o tempo, se verificou menos apropriado para
reduzir o custo e melhorar a qualidade.

b) Mão-de-obra – A solução do problema foi


dominada pela mentalidade escravagista. Havia ainda, a
possibilidade de empregar o trabalhador local ou o
imigrante:

103
104
i) Apesar das tentativas, embora tímidas, de
fomentar a imigração estrangeira (a qual, de fato, não
encontrava grandes atrativos numa economia primitiva,
em recessão, num ambiente climático e social diferente
das pátrias européias de origem), o interesse fixou-se no
escravo tanto por tradição, como por conveniência
econômica. Havia a reserva de trabalho resultante da
expansão demográfica do século XVIII (quando a
população livre havia crescido quase oito vezes). Em
torno de 1830, a população livre situava-se perto de 3
milhões – e não havia, até aquela data, nenhuma ati-
vidade econômica capaz de absorver as disponibilidades
de mão-de-obra: açúcar, algodão, fumo, mineração eram
decadentes, e só o café, a partir daquele momento,
começou a representar uma demanda crescente de
braços. Havia, para o proletariado rural – gerado por
aquela decadência – o recurso à ocupação de terras
disponíveis (fato possível, até certo ponto, mesmo após
a lei proibitiva de 1850) para viver no setor de
subsistência, em condições de pouca rentabilidade, dado
o baixo nível cultural e tecnológico dos caboclos, pouco
interessados em melhorar sua vida. Mas as perspectivas
de trabalho, enquanto existia o escravo, não eram muito
brilhantes. Para o proprietário, o escravo era, ainda,
mais barato face à possibilidade de usar intensamen te
sua força de trabalho.
ii) De fato, não se observou um interesse especial
pelo trabalhador rural livre durante o período em que
havia possibilidade de importar escravos. A iminência
da abolição do tráfico provocou a intensificação das
104
105
importações. Entre 1846 e 1849, a média anual foi de 55
mil escravos, bem mais alta do que o máximo que se
pode supor para o auge da mineração (talvez 25 -30.000,
no máximo).
A população escrava subiu de quase 1,5 milhões
em 1823 para 2,5 milhões em 1850 – resultado das
importações maciças antes da suspensão do tráfico. Em
1872, no primeiro recenseamento, era quase a mesma,
demonstrando a impossibilidade de um crescimento
vegetativo. Na véspera da abolição da escravatura
situava-se em torno de 700 mil. É interessante observar
a localização da população escrava, correspondente ao
interesse econômico maior e à procura de novas
soluções de trabalho, como se vê no Quadro 9.1.
Observa-se que São Paulo, apesar da pujança do café,
usava parcela relativamente menor de escravos.

Quadro 9.1
População escrava por região
(em percentagem do total)
Rio de Minas São Bahia/Pernam-
Janeiro Gerais Paulo buco/Maranhão
1823 13,1 18,7 1,8 42,3
1872 22,6 24,5 10,4 22,0
1885 24,6 22,6 12,9 27,2

Funcionava, neste caso também, um círculo


vicioso: havendo escravos baratos, não se justificavam
investimentos em equipamentos mais avançados; nestas
condições, o trabalho livre não apresentava nenhuma

105
106
vantagem técnica, e não podia ser explorado plenamente
como o do escravo. A presença do escravo mantinha os
salários baixos, afastando, ainda mais, a solução do
trabalho livre.
Um escravo podia cuidar de até 3.500 pés de café,
mas é mais razoável admitir a média de 1.000 pés. Isto
dava, em condições normais, 100 arrobas de café por
ano. A £ 2 por saca em média a renda anual bruta era de
£ 50 enquanto o escravo no auge do ciclo do açúcar,
com 60 arrobas, produzia £ 120, mas não se deve
esquecer que, com uma cotação máxima de £ 4, o café
podia chegar também a £ 100. E não exigia inves-
timentos fixos tão elevados como o açúcar.
A abolição do tráfico tornou o problema mais
grave, sobretudo por elevar brutalmente o preço do
escravo: da média de 400 mil-réis, ou menos, antes de
1850, chega a quase 1.000 réis em 1855 e cresce,
depois, lentamente até 1.100/1.200 no fim da
escravatura.
Mesmo assim, o escravo apresentava vantagens
enquanto sua oferta podia ser mantida, sem substituição
pela máquina. Por exemplo, em torno de 1865, com o
escravo valendo 1.050 mil-réis, a amortização, para uma
vida média de 15 anos, era de 80 mil-réis, à qual devia
acrescentar-se a despesa de manutenção de cerca de 20
mil-réis por ano. A sua produção de 100 arrobas em
média, valia 440 mil-réis, dos quais deve-se deduzir
gastos com transportes, beneficiamento, impostos e
comissões, orçados em 160 mil-réis. A despesa de 90
mil-réis com o escravo oferecia um retorno líquido (sem
106
107
computar o custo da terra e dos equipamentos) de 280
mil-réis, ou seja, 211%.
O interesse pelo escravo resultou na transferência
de escravos do Norte e Nordeste, onde a rentabilidade
era menor, para o Sul. Houve projetos para impedir
estas transferências, mas a solução comum foi a
tributação das saídas de escravos: em Pernambuco
(1850) e na Bahia (1862) 200 mil-réis por escravo que
saía. As transferências, então, caíram após 1870.
Entretanto, em 1887 50% dos escravos existentes no
país localizavam-se na região cafeeira – São Paulo, Rio
de Janeiro, Minas Gerais. Novos golpes foram recebidos
pelo escravagismo: a Lei do Ventre Livre (1871) que, na
realidade, embora libertando os nascituros, permitia a
persistência da escravidão porque o proprietário do filho
de escravos podia, em vez de receber a indenização de
600 mil-réis, utilizar os seus serviços entre 8 e 21 anos
de idade; a lei da liberdade dos sexagenários (18 85),
finalmente, a abolição da escravatura (1888). Face a
estas alterações, nova solução foi procurada com a
imigração estrangeira.
ii) Deixando de lado as esparsas tentativas de
colonização na primeira metade do século, o interesse
pela entrada de imigrantes cresceu à medida que a
solução escravagista se comprovava inviável. No
decênio anterior à abolição do tráfico entraram, apenas,
4.992 imigrantes. Nos dos decênios seguintes, foram
108 mil em cada um. Entre 1870 e 1879, as entradas
subiram para 193.931 e na década da abolição da
escravatura elevaram-se para 448.622. Houve, na base,
107
108
uma transformação cultural, ao mesmo tempo que as
condições econômicas permitiram a substituição do
escravo pelo trabalhador livre:
- face à escassez de escravos, houve necess idade
de introduzir equipamentos de forma que o trabalho se
tornou mais produtivo, permitindo salários mais
elevados;
- com o crescimento da economia e das
facilidades de infra-estrutura, os atrativos eram maiores
para os imigrantes estrangeiros;
- foram dados incentivos à entrada de colonos,
inclusive para obtenção de terras.
As experiências de colonização começaram com o
senador Nicolau Vergueiro que, em 1847, fundou a
colônia de Ibicaba. O sistema adotado foi o de parceria,
isto é, o colono recebia um lote de terra, adiantamentos
para viagem e equipamentos, para, depois, dividir os
lucros líquidos com o proprietário da terra e pagar suas
dívidas. Dentro deste sistema, foram feitos outras
experiências em São Paulo (em 1853/4 foram
autorizados empréstimos por 6 anos para subsídios a
viagens dos imigrantes) e Santa Catarina (Blumenau,
Joinville).
O sistema de parceria, entretanto, não se
comprovou satisfatório: apesar da lei de 1837 sobre o
trabalho dos colonos (renovada em 1879) havia abusos
por parte dos proprietários, era difícil fazer contas
certas sobre os lucros líquidos, o fornecimento de
equipamentos e mantimentos era espoliatório – e, por
outro lado, os próprios colonos encontravam
108
109
dificuldades em se adaptar às novas condições. Havia,
ainda, o fato de que os colonos produziam menos que os
escravos: uma família de 4/5 pessoas ativas cuidava de
1.500/2.000 pés, enquanto vimos que um escravo cobria
facilmente 1.000 pés ou mais. Chegou-se a protestos por
parte dos países de emigração, até a proibição da id a
para o Brasil (rescrito de Heydt, na Prússia, em 1859). É
verdade que tais restrições foram feitas mais tarde,
depois de abolido o sistema de parceria, e não apenas
pela Prússia, mas também pela França e Inglaterra.
Entretanto, havia uma realidade mais forte: a
expansão demográfica na Europa meridional, central e
oriental, sem grandes oportunidades de emprego; a
necessidade de mão-de-obra no Brasil, em condições já
relativamente melhoradas. As tentativas de imigrações
chinesas em 1855/1856 não vingaram.
Em geral, a vinda dos imigrantes foi subven-
cionada pelos governos provinciais, e várias or ga-
nizações foram constituídas para sustentar o movimento
(Associação Auxiliadora de Colonização – 1871). Os
imigrantes não se fixavam mais em regime de parceria,
mas como assalariados, seja com um salário mensal,
seja com pagamentos proporcionais ao número de pés
sob seus cuidados ou ao volume de café produzido. A
região de São Paulo soube adaptar-se melhor às novas
condições, ativando a entrada de imigrantes, criand o
infra-estrutura adequada, investindo em equipamentos; o
clima temperado era, também, mais atraente. O mesmo
não aconteceu com a região do Paraíba que se viu, neste
período, superada por São Paulo.
109
110
Enquanto a escravidão permaneceu presente, os
salários deviam sofrer sua influência. Evidentemente
este fato constituiu fator negativo para uma distribuição
melhor da renda e o fortalecimento da classe operária.
No início, o salário fixava-se perto do aluguel dos
escravos de ganho – a única diferença era que o
trabalhador livre não podia ser submetido ao regime
rigoroso do trabalho escravo, em quantidade e
qualidade: o assalariado trabalhava 10 horas diárias e o
escravo, 16-17.
Mais tarde, após 1870, com a redução da oferta
de escravos, a elevação do seu preço, a introdução de
máquinas que elevavam a produtividade do trabalho, os
salários começaram a subir. Na década 1870/1880
encontramos, na zona mais bem paga (São Paulo),
salários médios entre 14 e 20 mil-réis por mês e 600 e
700 réis por dia. Após 1880, o salário médio, na zona
privilegiada, sobe para 25/30 mil-réis mensais. A diária
era de 1/1,5 mil-réis mais comida, ou 2 mil-réis a seco.
Isto correspondia a algo mais do que o aluguel de
escravo, uma vez que a manutenção deste custava cerca
de 20 mil-réis por mês; acrescentando uma amortização
de 8 mil-réis (em 15 anos ao preço de 1.300 mil-réis),
mais um pequeno lucro, chegamos ao nível dos salários.
Em casos de pagamento por tarefa os resultados
podiam ser menores. Dá-se o exemplo de uma família
que podia produzir, anualmente, 200 arrobas de café
(correspondentes a 200 pés), recebendo 1.200 réis por
arroba. O rendimento não passava de 20 mil-réis por
mês.(3)
110
111
c) Tecnologia – Até 1850, a técnica de produção
ficou extremamente rudimentar; era a queima das matas,
o trabalho com enxada e foice (a charrua começou a ser
empregada mais persistentemente após 1870), o piso -
teamento dos grãos ou o uso de pilões à tração animal
ou à água. Em torno de 1830 já haviam sido aplicadas
melhorias no equipamento: ribas, carretão, depois
carretão de roda de baixo, monjolo, engenho de pilões.
A partir de 1850 são introduzidas as máquinas
para beneficiamento, aumentando substancialmente a
produtividade: descascadores podiam operar 800 arrobas
num dia de 10 horas, e despolpadoras até 1.200 arrobas.

d) Capital – No início, as necessidades de capital


prendiam-se sobretudo, à compra da escravos. No resto,
a terra não custava praticamente nada (o seu preparo era
feito pelos escravos) e os equipamentos eram
rudimentares. O aspecto mais grave era o longo período
de maturação: o café começava a produzir 6/7 anos após
o plantio: vivia 20 a 25 anos, mas a sua produtividade
máxima durava 10 anos (de acordo com a região e os
métodos de produção podia ser de 100 arrobas por mil
pés como em São Paulo ou de 30/40 arrobas como no
vale do Paraíba). Os capitais aplicados procederam dos
restos da acumulação dos tempos da mineração,
inclusive no setor comercial, dos latifundiários, das
disponibilidades da classe média, e provavelmente dos
capitais tornados disponíveis depois da abolição do
tráfico – mas não há provas diretas. Mais tarde, os

111
112
capitais estrangeiros, fixados inicialmente no setor de
comercialização, ingressaram no de produção.
Com custos baixos para uma produtividade
relativamente elevada do trabalho escravo, e com preços
de venda em alta, embora com flutuações, os lucros
foram elevados, e o seu reinvestimento constituiu a
principal fonte de capital.
Após 1850, as exigências de capital aumentaram
para investimento em máquinas e equipamentos. Em
compensação, a imobilização em mão-de-obra escrava
diminuiu, mas havia necessidade de capital de giro para
o pagamento dos salários. Nesta segunda fase, o
reinvestimento dos lucros continuou sendo a fonte mais
importante de capital. Havia, também, capitais trazidos
pelos imigrantes. Ademais, os comissários e as
companhias de exportação, em grande parte estrangeira
(em 1880, de 131 maiores exportadores, 66 eram
estrangeiros – e superavam em muito os nacionais),
adiantavam importâncias para capital de giro, e com o
tempo o sistema bancário em formação começou a atuar
no mesmo sentido.
O papel fundamental do reinvestimento dos lucros
mostra não apenas a capacidade de capitalização, mas
também a propensão para poupança e investimento,
denotando uma verdadeira classe empresarial que lutou,
inclusive no terreno político, pela defesa de seus
interesses e soube, sobretudo na região de São Paulo,
criar condições de expansão e melhora de produtividade:
introdução de imigrantes, adoção de equipamentos,
criação de infra-estrutura. A única restrição que se pode
112
113
fazer é que a miragem dos lucros cafeeiros atraiu demais
os investimentos, superdimensionando o setor em detri -
mento de outras atividades econômicas. A luta em torno
deste problema pertence ao período seguinte.

9.4 Empresa e rentabilidade

9.4.1 Estrutura agrária e comercialização

A empresa típica de café é a fazenda, o latifúndio


organizado nos moldes tradicionais, basicamente em
forma monocultural, acrescentando-se alguns produtos
de subsistência. O caráter autárquico da fazenda de café
é menos completo do que o do engenho de açúcar. Isto
quer dizer que a especialização da empresa é maior, mas
ao mesmo tempo a economia é mais diversificada,
havendo agentes especializados em atender ao consumo
interno (inclusive através da importação, fonte
indispensável à medida que o café concentrava todos os
fatores de produção do setor agrícola).
Esta fazenda de grandes dimensões é, no início, es-
cravocrata, passando, como vimos, sob a força das cir-
cunstâncias, para o trabalho livre, mais depressa em São
Paulo do que no Rio de Janeiro. Acima dos escravos en-
contramos os assalariados, em número cada vez maior,
todos sob a direção do fazendeiro que é, como já disse-
mos, um verdadeiro empresário. Com o tempo, a elevação
das rendas trouxe a propensão para o ócio e o lazer e,

113
114
então, fazendeiros passaram para a cidade, deixando a
fazendo sob a direção de administradores ou feitores.
A estrutura agrária continha uma classe
intermediária, os colonos – parceiros, arrendatários ou
proprietários – que se dedicavam, também, ao cultivo do
café, ficando ligados ao latifundiário com vistas ao
beneficiamento e à comercialização do produto. Nesta
faixa, a agricultura de subsistência era relativamente
mais expressiva.
Distribuição agrária desigual com efeitos
negativos para a formação econômica do país, porém
com uma faixa de propriedades médias bem mais forte e
mais ampla do que na economia açucareira. Podemos ter
uma idéia, embora um pouco alterada pela diferença de
época, ao analisar a estrutura agrária do setor cafeeiro
de São Paulo, em 1927.(4) Para um número de 39.897
estabelecimentos agrícolas possuindo 1.130,1 milhões
de pés, podemos construir o perfil do quadro 9.2.

Quadro 9.2
Estrutura agrária cafeeira
% do Tamanho
% do total dos
Tipo de estabelecimento total dos médio
estabelecimentos
cafeeiros (pés)
- com menos de 5.000 pés 34,4 3,0 2.502
- de 5.0000 a 20.000 pés 39,3 15,4 11.079
- de 20.000 a 100.000 pés 20,2 33,4 46.863
- de 100.000 a 500.000 pés 5,8 39,3 192.997
- mais de 500.000 pés 0,3 8,9 842.500

Total 100,0 100,0 28.325

114
115

Observa-se que 73,7% dos estabelecimentos têm


tamanho inferior à média do setor e possuem apenas
18,4% do total dos cafeeiros, enquanto 6,1% dos
estabelecimentos são responsáveis por 48,2% dos
cafeeiros, tendo tamanhos superiores a 100 mil cafeeiros
e chegando a mais de 1 milhão (21 pés em que 20,2%
dos estabelecimentos possuem 33,4% dos cafeeiros,
tendo o tamanho médio de 46.863 pés por esta-
belecimento. O problema é saber qual era a rentabi-
lidade da empresa.
Antes, deve ser completado o quadro da
organização empresarial com as empresas de
comercialização. Normalmente não era o produtor quem
exportava. Havia firmas especializadas nestas operações
as quais atuavam através dos comissários, agentes
intermediários que adquiriam os produtos, adiantavam
capital de giro aos produtores, manipulavam no
mercado. Do ponto de vista da receita interna do café é
preciso deduzir os lucros auferidos pelos comissários,
mercadores e outros intermediários, lucros esses que,
em decorrência da sua posição privilegiada, ul -
trapassavam, às vezes, as proporções normais da
intermediação.

9.4.2 Rentabilidade

Apesar de todas as queixas dos cafeicultores,


sobretudo por causa da escassez de mão-de-obra, apesar
da decadência de certas áreas cafeeiras (por própria
115
116
inépcia empresarial), e apesar das flutuações cíclicas
dos preços, é ponto pacífico que as atividades cafeeiras
foram altamente rentáveis. Indicações temos na capaci-
dade de reinvestimento no setor, na elevação dos níveis
de consumo e na acumulação de capitais que iam germi -
nar em outros setores. É preciso, entretanto, tentar a
quantificação do problema.
A renda real do café flutuava sob a influência de
três fatores: cotação internacional, taxa de câmbio e
nível interno de preços. Tomando os preços de venda
em moeda nacional (resultantes da cotação estrangeira
multiplicada pela taxa de câmbio) em anos selecionados
de máximos e mínimos, e deflacionando-os pelo índice
de preços, encontramos a evolução do índice do preço
real que consta do Quadro 9.3.

Quadro 9.3
Café – preços nominais e reais
(índices – base: 850 = 100)
Preço nominal Deflator Preço real
1863 195,1 183,4 106,4
1868 106,9 211,7 50,5
1873 274,5 223,7 122,7
1877 149,0 229,3 65,0
1879 273,5 235,2 116,3
1885 112,7 239,3 47,1
1887 260,8 229,4 113,7

Observa-se que, com base no ano de 1850, um


ano relativamente normal, a renda real do café sofreu
116
117
altas e baixas, de acordo com a flutuação do preço
internacional, visto que, contrariamente à tese
tradicional, a desvalorização cambial não foi sempre
capaz de salvaguardar o nível de renda real.
Eventualmente, o produtor podia garantir sua renda
global, aumentando as quantidades produzidas e
vendidas, caso a sua capacidade de produzir e o
mercado comprador lho permitissem. Mas, o problema
estava em qual seria, num nível médio dos preços, a
margem de lucro do produtor.
Tomemos um exemplo típico: 1.000 pés de café
(em 1,3 hectares) produzindo 100 arrobas, na década
1861/1870. Não vamos computar o preço da terra por
ser muito aleatório, ou talvez nulo. Havia, entretanto, a
derrubada, a queima, a capoeira – talvez uns 120 a 150
mil-réis por alqueire, ou seja, uns 70 mil-réis por 1,3
hectares. Durante 6 anos, o café exigia cuidados sem
produzir nada. Eram os serviços de um escravo a 90 mil-
réis por ano (70 de amortização, 20 de manutenção), Um
total de 610 mil-réis a serem amortizados em 10 anos de
vida do cafeeiro em plena produtividade.
O preço médio de venda na década 1861/1870 foi
de 24.334 réis por saca, ou seja 6.084 réis por arroba.
Deduzindo as despesas de transportes, comissões de 3%
e impostos (um total de cerca de 25% sobre o preço da
venda), mais o beneficiamento (1%) e o trabalho do
escravo (900 réis por arroba) e ainda, o preço do capital
investido (12$ sobre 610 mil-réis, em 100 arrobas),
sobra um lucro líquido de cerca de 2.980 réis por arroba
– 49% do preço de venda.
117
118
Considerando o investimento inicial de 610 mil -
réis, o lucro, na produção anual de 100 arrobas, era de
49%. Em 10 anos de vida intensa dos novos cafeeiros,
os lucros podiam amortizar o capital inicial de 610 mil -
réis e deixar, não obstante, um lucro líquido de 2.360
mil-réis, ou seja, 287% sobre o capital investido (ou
mais, se amortizado parceladamente, o que reduzia os
juros).
Talvez haja um excesso no cálculo dos lucros,
subestimando-se o custo da terra – aspecto válido
sobretudo para os pequenos produtores que deviam
pagar arrendamentos, participações etc. Tampouco
foram computados os gastos em equipamentos. Não se
deve esquecer, igualmente, que em certas regiões a
produtividade por 1.000 pés e por escravo ou por
assalariado era menor de 100 arrobas. Havia, da mesma
forma, casos de espoliação pelos comissários e
capitalistas. Tudo isto podia aumentar os custos e
reduzir os lucros, mas não resta dúvida de que o café
oferecia uma excelente margem de rentabilidade, o que
explica a atração que exerceu durante todo o período e
os reflexos sobre o estado geral da economia nacional.

9.5 Comércio exterior

9.5.1 Resultados do café

A conjugação da pressão da demanda e da


capacidade de expansão da oferta resultou no
118
119
crescimento contínuo dos volumes exportados de café. O
passo decisivo foi dado entre 1830 e 1860. Depois, o
crescimento foi mais lento. As variações das cotações
internacionais eram compensadas pelo aumento das
quantidades embarcadas, de modo que a receita do café
cresceu, também, sendo principal responsável pelo
crescimento da receita total da exportação.
O Quadro 9.4 sintetiza a evolução. (v. também
Anexo IV)
Quadro 9.4
Exportação de café
(valores decimais acumulados)
Valor Part.
Exportação
Volume exportado Receita medio café
total
(1000 sacas) (£ 1000) (£ / (%
(£ 1000)
saca) s/total)
1821/30 3.178 7.189 2,26 36.792 12,5
1831/40* 9.744 21.539 2,21 49.214 43,8
1841/50 15.677 21.736 1,39 52.690 41,3
1851/60 26.253 49.741 1,89 102.019 48,8
1861/70 28.977 68.004 2,35 149.471 45,5
1871/80 36.341 112.754 3,10 199.391 56,5
1881/90* 53.326 135.027 2,53 219.735 61,4
* Entre 1833 e 1887, o ano fiscal não coinci diu mais com o ano
calendarístico, e foi fixado entre 1/7 e 30/6. As estatísticas
seguiram o mesmo critério. Assim, o período de 1831/1840 inclui
apenas 19 semestres e o de 1881/1890, 21 semestres.

Observa-se que os volumes embarcados


cresceram muito, no início, tanto em valores absolutos
como em relativos: de 1821/30 a 1831/40, 6.566 mil
sacas (+ 206,6%); de 1831/40 a 1841/50, 5.933 mil (+
60,9%); de 1841/50 a 1851/60, 10.576 mil (+ 67,5%). O
119
120
aumento da oferta, mais do que as crises da demanda,
pode ter contribuído para a depressão das cotações. De
qualquer forma, o aumento das quantidades mais que
compensou a queda dos preços de maneira que a receita
aumentou, entre 1821/30 a 1841/50, em 202,4%.
A partir de meados do século, as cotações elevam-
se paulatinamente, ao mesmo tempo que crescem as
quantidades exportadas, com uma diminuição do ritmo no
decênio 1861/70, da Guerra da Secessão norte-americana,
que provocou a diminuição da demanda. Não se deve
esquecer que na época, os Estados Unidos compravam
cerca de 41% do nosso café, e a Europa 56%.
Entre 1871 e 1890, os volumes aumentaram
substancialmente outra vez, e as cotações subiam;
somente no fim do período começou a manifestar-se o
enfraquecimento do mercado. De qualquer forma, entre
a década de 1861/70 e de 1881/90, o volume decenal
embarcado aumentou 84,0% e a receita 98,6%.
O café torna-se principal responsável pela expansão
das exportações. Individualmente, a partir da década de
1831/40, representa mais de 40% do valor total, chegando a
mais de 60% no fim do período. (v. Anexo III). O cres-
cimento absoluto da receita de exportação foi, princi-
palmente, devido ao aumento da receita do café a não ser
no período 1861/70 quando, em circunstâncias conjunturais
excepcionais, o algodão aumentou suas vendas no exterior.
Em relação à posição do café na renda interna monetária, só
podemos fazer suposições: se, em meados do século, a
exportação representava cerca de 35% da renda e 50% da
exportação correspondiam ao café, este era responsável por
120
121
cerca de 17% da geração da renda. No fim do século, com a
exportação a 25% da renda e o café com mais de 60% da
exportação, aqueles 17% teriam caído para 15% – tudo isto
significava, ainda, uma enorme participação, que mostra a
concentração monocultural da economia.
Ao mesmo tempo, o Brasil aumentava sua
participação no mercado mundial do café até dominá -lo,
de 18,2% na década de 18290 para 40,0% em 1840/49,
52,1% em 1850/59 e 56,6% em 1880/89. Até o fim do
século chegará a 66,7%. Com o café repetiu-se o que
apenas aconteceu com o açúcar entre o fim do século
XVI e meados do século XVII: o Brasil era fornecedor
regular e dominante do respectivo mercado. Entretanto,
torna-se difícil afirmar que o mercado do café era um
seller’s market. É verdade que já no século XIX, o
Brasil tentou orientar os preços (em 1883/84 financiou
um corner do café). Mais tarde, as políticas de
valorização serão aplicadas, às vezes, com sucesso a
curto prazo, mas contraproducentes a longo prazo por
proteger a entrada no mercado de concorrentes
marginais. O sucesso da manipulação de preços era
limitado pela elevada elasticidade da demanda na alta
dos preços e reduzida na baixa – fato ligado a pouca
essencialidade do produto.

9.5.2 Pauta de exportação: outros produtos

A exportação voltava a ser o setor dinâmico da


economia, fonte de renda, sustentáculo do balanço de
121
122
pagamentos e núcleo de capitalização. Entretanto, esta
situação devia-se, exclusivamente, ao café com a
exceção de alguns pequenos períodos.
A exportação, sem café, evoluiu como segue em
valores decenais acumulados:

(£ 1000) índice
1821/30 29.603 100,0
1831/40 27.675 93,5
1841/50 30.954 104,6
1851/60 52.278 176,6
1861/70 81.467 275,2
1871/80 86.637 292,7
1881/90 84.708 286,1

No início verifica-se uma tendência ligeiramente ne-


gativa e, em 30 anos, estacionária. Entre 1841/50, 1851/60
e sobretudo na década seguinte, a expansão deve-se,
também, ao algodão e, subsidiariamente, ao açúcar, peles e
couros, fumo e borracha. Finalmente, apenas a borracha
progride, enquanto os demais principais produtos recuam.
Não fosse o café, a exportação não teria encontrado novas
soluções, a não ser a da borracha, precária e passageira (até
1910). A exportação decenal de café aumentou, entre 1821/
30 e 1881/90, 18,8 vezes, a total 5.9 vezes e a dos demais
produtos apenas 2.9 vezes. E a exportação continuava
concentrada em alguns produtos. Entre 1840/50 e 1881/90,
a concentração acentuou-se entre 6 produtos, aumentando
sobretudo, a participação do café e da borracha:

122
123

(% do valor total da exportação)


1841/50 1881/90
Café 41,3 61,7
Algodão 7,5 4,2
Açúcar 26,7 10,0
Fumo 1,8 2,8
Peles e couros 8,6 3,2
Borracha 0,4 7,7
Total dos 6 produtos 86,3 89,6

Na zona do café, as próprias culturas de ex-


portação foram prejudicadas pela concentração d os
fatores de produção no produto prioritário. Nas outras
regiões dominaram, ainda, os produtos tradicionalmente
cultivados, marginalizados pela falta de um mercado em
expansão, pela incapacidade de competição por causa da
escassez de capitais e atraso da tecnologia.
Vale um rápido exame dos principais artigos de
exportação:

a) Açúcar. Continuou representando a principal


produção do Nordeste, embora tenha se desenvolvido,
também, no Norte e no Centro-Sul (Minas Gerais, Rio
de Janeiro e São Paulo). As quantidades produzidas e
exportadas haviam aumentado: no início da segunda
metade do século, andavam em torno de 8 milhões de
arrobas, mas o mercado ressentia-se cada vez mais da
concorrência do açúcar de beterraba que ia finalmente
cobrir cerca de dois terços do consumo mundial. Além
disso, apareceu a concorrência do açúcar africano e

123
124
indiano. Em 1878, a arroba valia, no máximo, 1.800
réis, ou seja pouco mais de £ 0,17.
A exportação cresce, ainda, até £ 21,6 milhões
durante a primeira década da segunda metade d o século.
Depois, o valor fica praticamente estacionário, com uma
queda mais sensível entre 1861 e 1870 por causa do
retraimento da demanda norte-americana.
Face às novas condições competitivas, o açúcar
brasileiro não soube renovar-se tecnologicamente. No
princípio do século XIX houve melhoria nas variedades
cultivadas de cana, mas a lavoura ficou a mesma, à base
de enxada e foice, sem pelo menos o uso do arado, e
sofrendo as conseqüências das pragas. No tratamento da
cana, o século XIX trouxe a introdução da moenda de
cilindros de ferro, o uso de centrifugadores e o emprego
da máquina a vapor. Foram concedidos, inclusive,
incentivos tributários para o uso de máquinas, porém
sem grandes resultados: em 1857, Pernambuco tinha
1.106 engenhos dos quais apenas 18 movidos a vapor. E
proliferavam os pequenos engenhos (ainda em 1878, na
mesma província, abundavam engenhos que produziam
entre 2 e 6 mil arrobas por ano). Falta de capitais, falta
de mão-de-obra (sobretudo por causa da abolição do
tráfico e a atração exercida pelo café), atraso
tecnológico. Ao preço de 1.800 réis por arroba (1878),
um escravo produzia por ano 180 mil-réis (100 arrobas),
enquanto no setor cafeeiro, produzia 800 mil -réis, sem
precisar de tantos investimentos em equipamentos. A
zona açucareira não conseguiu recuperar o atraso
sofrido a partir da queda do ciclo do açúcar. Há quem
124
125
sustente que o atraso foi provocado, especialmente, no
século XIX pela aplicação de uma taxa cambial ditada
pelo café e inadequada por tornar o açúcar brasileiro
competitivo no mercado mundial. (5)
Uma tentativa de melhora empresarial foi feita a
partir de 1875 pela constituição dos engenhos centrais
(garantia de juros de 6,5-7% a.a., e outros favores para
atrair, inclusive, capitais estrangeiros). Eles deviam
beneficiar, com maquinaria moderna, a cana fornecida
pelos cultivadores, mas foi exatamente este o ponto de
estrangulamento do sistema, decorrente do atraso do
setor agrícola. Capitais ingleses foram investidos,
atraídos pela garantia de juros de 6,5% a.a. Nova f ase
começou, em 1890, com a constituição das usinas,
grandes unidades de produção de cana e fabrico de
açúcar.

b) Algodão. O Brasil tinha perdido, já no início


do século, o mercado inglês para o concorrente norte -
americano. Novas oportunidades surgiram quando, por
causa da Guerra de Secessão, a concorrência norte-
americana foi eliminada temporariamente: o algodão
brasileiro chegou a representar 60% da importação
inglesa; no fim do século voltou para cerca de 20%. Os
preços refletiam, com efeito, a nova situação: em
meados do século, o preço da tonelada situava-se em
torno de £ 45; na década de 1861/70 chegou a mais de £
90. Já na década seguinte começava a baixa, chegando
ao mínimo de £ 33 em 1882/83, para recuperar-se a £ 56
no ano da proclamação da república.
125
126
A variação da conjuntura manifestou-se do
mesmo modo nas quantidades embarcadas e nas receitas
de exportação. Estas subiram de £ 3.952 mil na década
de 1841/50 e £ 6.325 mil em 1851/60 para £ 27.503 mil
durante os anos 1861/70. Depois a receita caiu até £
9.229 na década 1881/90. As principais províncias
produtoras e exportadoras continuavam no Norte e
Nordeste: Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Maranhão,
Bahia, Ceará – contudo produzia-se, também, em São
Paulo (abandonado parcialmente a favor do café), no
Sul, no Centro-Oeste.
A introdução do tipo de algodão herbáceo no
início do século foi inovação bem-vinda, mas, tal como
em outros setores, a renovação tecnológica (por
exemplo, o descaroçador moderno) tardou. Após 1865,
este atraso tecnológico, a mudança da agricultura, a fuga
de escravos para o Sul, a falta de capitais esvaziaram
novamente o setor, diminuindo as perspectivas de
reerguimento econômico da região mais ligada ao
produto – o Norte e o Nordeste.

c) Borracha. Sem chegar a seu apogeu neste


período, a borracha, cuja demanda estava em plena
ascensão em decorrência do processo industrial e da
descoberta da vulcanização, começou a firmar-se antes
do fim do século, aproveitando as condições naturais (a
hévea é planta nativa), as disponibilidades de mão-de-
obra (proletariado rural do Norte e Nordeste, sobretudo
depois da grande seca de 1877), a tecnologia primitiva
acessível, a pouca exigência de capitais. A produção
126
127
localizou-se na Amazônia, facilitada pela introdução da
navegação a vapor após 1853.
O verdadeiro boom (ou subciclo) da borracha
situa-se entre 1890 e 1910, mas mesmo antes observa -se
o abandono de atividades tradicionais – lavoura,
pastoreio, artesanato típico – a favor dessa atividade
mais prometedora. Em 1850, a exportação anual não
passava de 1.467 toneladas; em 1880, entretanto, atingia
16.394 toneladas. Do valor acumulado de £ 2.107 mil na
década 1841/50 chegou a £ 16.920 mil em 1881/90.
Ao lado do café e os três grandes produtos
citados, acrescentavam-se as peles e os couros (£ 4.531
mil na década 1841/50, £ 10.967 mil em 1871/80,
caindo para £ 7.032 mil em 1881/90) produzidos quase
em todas as regiões, mas sobretudo no Nordeste e no
Sul, os dois centros de criação de gado. O fumo também,
(£ 948 mil em 1841/1850, £ 6.779 mil em 1871/80)
produzido sobretudo no Nordeste, expandiu suas vendas
para os países industrializados, mais do que compen -
sando a perda do mercado africano após a abolição do
tráfico.
Em posições inferiores: cacau, no Nordeste (Ba-
hia) e Norte (Pará), merecendo destaque porque so-
bretudo na Bahia, a simples coleta transformou -se em
lavoura; o ouro, cujas jazidas aparentes se esgotavam,
de modo que a produção caiu da média anual de 2.533
quilos em 1821/1850 para pouco mais de 2.240 quilos
em 1851/1865 e 1.735 quilos em 1866/1875 (novas pers-
pectivas abriram-se com a concessão de exploração por
empresas estrangeiras); madeiras, castanhas do Pará,
127
128
cravo no Norte; pau-brasil (em vias de completo desa-
parecimento), caroá, carnaúba, diamantes (Chapada
Diamantina; Serra das Arociras, em 1842) no Nordeste;
madeiras no Sul e Centro-Sul; erva-mate no Sul (a sua
participação no valor otal da exportação oscilou em
torno de 1,10-1,50% no período 1851/1890; cristal de
rocha e ipecacuanha no Centro-Oeste.

9.5.3 Importações

Tal como a pauta de exportação caracterizava um


país subdesenvolvido, exportador de produtos primários
– matérias-primas e gêneros alimentícios – apenas
parcialmente industrializados (como no caso do açúcar),
“a pauta de importação convergia para a mesma
caracterização. Como ela era formada na sua maior
parte de bens manufaturados de consumo e muito poucas
matérias-primas e combustíveis, denota a inexistência
de uma indústria exigindo insumos que não podiam ser
produzidos internamente. Ainda mais: encontra-se na
pauta, uma boa proporção de gêneros alimentícios, em
parte preparados, o que demonstra a incapacidade da
oferta agrícola local, absorvida como era pelo café.
Os levantamentos estatísticos são escassos, porém
algumas amostragens são expressivas. Podemos clas -
sificar os principais itens de importação em dois
momentos selecionados, conforme mostra o Quadro 9.4.

128
129
Quadro 9.4
Estrutura das importações
(% do valor total)
1839/40-1843/44 1870/71-1874/75
Manufatura de algodão, lã,
seda e linho 49,5 43,0
Artigos de vestuário
(calçados, chapéus, etc.) 2,1 3,4
Gêneros alimentícios e
bebidas (farinha de trigo,
sal, carnes, manteiga,
bacalhau, azeite, etc.) 21,0 19,6
Carvão de pedra 1,0 3,5
Ferro, aço, ferragens, cobre 4,8 8,8
Bens duráveis de consumo
(louças, ouro, prata) 1,8 5,4
Couros preparados 1,6 2,7
Papel e aplicações 0,8 1,6
Produtos químicos e
farmacêuticos 1,0 1,5
Máquinas e acessórios 0,2 2,9

Entre os dois qüinqüênios selecionados, a média


das importações subiu de £ 6,3 milhões para £ 17,1 mi-
lhões, portanto os valores absolutos em cada classe cres -
ceram. O aspecto global ficou, em termos relativos, qua -
se o mesmo, mas alguns detalhes podem ser apontados,
denotando alterações estruturais na eco nomia: aumento
de certos produtos manufaturados indicando elevação
dos padrões de consumo; redução das manufaturas
têxteis correspondendo ao início da indústria nacional;
aumento das importações de máquinas, acessórios, fer -
ragens, metais, combustível mineral, em ligação ao
mesmo desabrochar da indústria. Os 5 itens ligados à

129
130
indústria (ferro, aço, cobre, carvão, ferragens, máquinas
e acessórios) aumentaram, entre os dois períodos se -
lecionados, de £ 447 mil para £ 2.269 mil, ou seja,
408%. No mesmo intervalo, as importações tot ais
cresceram cerca de 100%, apenas.
Após a estagnação do início do século encon-
tramos um crescimento paralelo às exportações: de £ 4,0
milhões em 1830 para £ 7,5 milhões em 1840, £ 9,2
milhões em 1850, £ 13,3 milhões em 1860, £ 14,9
milhões em 1870, £ 16,5 milhões em 1880 e £ 24,0
milhões em 1890 – em tudo um aumento de 6 vezes em
10 anos (7,9 vezes para as exportações). Em termos per
capita a importação cresceu, entre as duas datas -limites,
de £ 0,75 para £ 1,69 (para a exportação, de £ 0,63 para
£ 1,86).

9.5.4 Políticas comerciais

No período em foco, as políticas comerciais


concernentes à exportação não apresentaram nada de
especial. O café desenvolvia-se normalmente e não
parecia exigir uma estratégia específica, tal como devia
acontecer no fim do século e, ainda mais, no século
seguinte. Os problemas que preocupavam mais eram de
natureza financeira, monetária e cambial, como veremos
mais adiante. Outrossim, a perpétua desvalorização
cambial constituía incentivo para as exportações. E, o
poder competitivo destas era considerado bastante
grande para permitir a aplicação do importo de
exportação cuja incidência variou entre 2 e 9%; no fim
130
131
do Império era de 7%. Em 1850/51, o imposto sobre a
exportação representava 14,4% receita do Tesouro; em
1870/1871, 15,3%; em 1889, 9,3% – demonstrando a
necessidade de não onerar demasiado as exportações,
quando sua pujança começara a afrouxar. E havia,
também, impostos regionais (provinciais e municipais)
que as oneravam.
No que tange à política alfandegária sobre
importação, dominou o espírito fiscalista, a idéia de
obter uma receita para o erário público quando o
mercado interno, encolhido, não oferecia boas
perspectivas de tributação. Entretanto, esta política,
iniciada com a tarifa Alves Branco de 1844, teve
também reflexos protecionistas que irão manifestar-se
nas primeiras tentativas de implantação de uma indústria
nacional.

A evolução da política tarifária seguiu os


seguintes marcos:
- tarifa Alves Branco (1844), com uma incidência
média de 40%, mas variando entre 20 e 60%, com maior
tributação sobre têxteis e bebidas (50-60%);
- tarifa Souza Franco (1857), com taxas
específicas e ad-valorem, com reduções para alimentos,
ferramentas agrícolas, máquinas e matérias -primas para
as indústrias (estas últimas duas pagavam 15%);
- tarifa Silva Ferraz (1860), também com taxas
fixas e ad-valorem, com reduções para ferragens,
armamentos, ferramentas e máquinas;
- tarifa Rio Branco (1874), unificando a
131
132
incidência para 40%, com isenção para plantas, raízes,
máquinas agrícolas e industriais;
- tarifa Assis Figueiredo (1880), com novas
isenções para máquinas agrícolas e outras;
- tarifa Saraiva (1881), adotando uma incidência
móvel na base de listas de preços alterados conforme a
taxa de câmbio;
- tarifa Belizário de Souza (1887), aumentando a
incidência para os produtos com similar nacional e
negando a proteção às indústrias que não utilizavam
matérias-primas nacionais;
- tarifa João Alfredo (1888), com incidência
móvel para compensar as flutuações cambiais.
Observa-se que, ao lado da preocupação com a
garantia da receita do imposto de importação face às
flutuações de preços e câmbio (este imposto repre -
sentava 62,7% da receita em 1850/51, 54,2% em
1870/71 e 48,3% em 1889), medidas referiam-se ao
fortalecimento da agricultura, sobretudo a destinada à
exportação, e à sustentação dos primeiros passos da
indústria.

9.5.5 Balança comercial e distribuição geográfica do


comércio exterior

a) O início do século havia se caracterizado pela


estagnação das exportações. Entretanto, numa economia
cuja despesa se orientava tradicionalmente para o
mercado externo, a demanda de importações manteve -se
bastante ativa sobretudo depois da chegada da Corte,
132
133
cujo poder de compra era mais elevado.
A própria concentração de fatores de produção no
setor cafeeiro, principalmente a partir de 1830, se de um
lado reativou a receita de exportação, esvaziou, ainda mais,
a agricultura de subsistência. (Quase se pode falar num
multiplicador negativo das exportações em relação a esta
agricultura). As limitações da produção industrial e
artesanal impunham, também, o recurso à importação. O
resultado foi que, até a década 1851/60 inclusive, a
balança comercial foi quase permanentemente negativa – o
que criou, como vamos ver mais adiante, problemas no
balanço de pagamentos. Entre as décadas 1841/50 e
1851/60, as importações acusaram um aumento enorme, de
88,9% que reflete, provavelmente, as alterações provocadas
pelo café: elevação das rendas e esvaziamento da
agricultura de subsistência.
Nas três décadas anteriores à República, as
importações continuaram crescendo, porém em ritmo
menos acentuado – o abastecimento interno melhorava
tanto no setor agrícola como no industrial. Por outro
lado, as exportações aumentaram as taxas elevadas
graças ao café em plena expansão, ajudado pelo algodão
na década 861/70 e pela borracha no fim do período. O
resultado foi a transformação do déficit em superávit na
balança comercial, aliviando a posição do balanço de
pagamentos.
O Quadro 9.5 mostra a evolução da balança
comercial:

133
134
Quadro 9.5
Balança comercial
(£ milhões – dados decenais acumulados)
Exportação Importação Saldo
1831/1840 49,2 54,3 – 5,1
1841/1850 52,7 60,1 – 7,4
1851/1860 102,0 113,5 – 11,5
1861/1870 149,5 132,0 + 17,5
1871/1880 199,4 164,9 + 34,5
1881/1890 219,7 195,4 + 24,3

Nos 60 anos em foco, o resultado global foi um


superávit de £ 52,3 milhões que representava mais de 4
vezes a exportação média anual do período (£ 12,9
milhões).
Entretanto, o comércio exterior mostrava aspectos
negativos, senão perigosos. A exportação, responsável
por uma grande parcela da renda gerada no país e
constituindo o setor principal de capitalização, estava
concentrada em alguns produtos e principalmente no
café – o que a tornava sensível aos eventuais reveses do
mercado internacional. E a importação – que era fonte
de abastecimento de bens de consumo essenciais e, mais
tarde, devia ser fornecedora de equipamentos e
matérias-primas para a indústria – dependia, em grande
parte, da receita de exportação.

b) A distribuição geográfica do comércio exterior


mostra o mesmo excesso de concentração: se este fato
não prejudicou os fluxos normais de exportação e
importação, aumentou o grau de dependência econômica
134
135
em relação a algumas praças dominantes.
Na segunda metade do século XIX, a Inglaterra
conserva a supremacia no comércio exterior brasileiro.
Principalmente, na importação ela apresenta-se como,
de longe, o mais importante fornecedor. Na exportação
os Estados Unidos mostram-se competidores impor-
tantes, em grande parte, por serem grandes compradores
de café.
Entre 1850 e 1870, a participação da Inglaterra
nas exportações brasileiras flutuou entre 30 e 40%, a
dos Estados Unidos entre 28 e 35%. No segundo plano,
com participações entre 5 e 10% entravam a França, a
Alemanha, a Argentina e Portugal. Em 1867/68, por
exemplo, estes 6 países cobriam 80% das nossas
exportações.
Nas importações, a concentração era maior, pois a
Inglaterra participou, no período, com 50 a 55% do
valor total, seguida pela França com 12 a 14%. Numa
faixa entre 5 e 10% encontravam-se os Estados Unidos,
a Alemanha e Portugal. Os mesmos 6 países citados
eram responsáveis, em 1858/59, por 93% das
importações brasileiras.

9.6 Agricultura de subsistência

No início da segunda metade do século XIX, a


agricultura destinada ao consumo interno, já mar-
ginalizada desde o início da vida econômica do Brasil,
sem capitais, sem tecnologia, não recebeu nenhum
reforço capaz de melhorar sua situação. A citada lei de
135
136
1850 sobre as terras devolutas não era de natureza de
alterar uma estrutura agrária pouco incentivadora para
a média empresa agrícola.
Esvaziamento maior sofreu a agricultura de
consumo por causa da própria expansão do café. Foi,
sobretudo no período de 1850 a 1870, que culturas de
subsistência foram abandonadas em benefício do café. A
forte alta dos preços dos gêneros alimentícios – fonte
perene de inflação – reflete a retração da oferta. A
abolição do tráfico, elevando o preço dos escravos,
prejudicou o setor de subsistência que, pela sua baixa
rentabilidade, não podia competir com os compradores
de escravos do setor cafeeiro. Isto fez com que
começassem a ser importados gêneros alimentícios
tradicionalmente nacionais – feijão, arroz, milho – além
daqueles, já antes, pouco produzidos no país – banha,
manteiga, presunto. Pode-se dizer que a expansão do
café provocou um fenômeno de substituição por
importações, isto é, o déficit de abastecimento provo-
cado pelo desvio de fatores para o café era coberto pela
importação. Com menores efeitos sobre a economia
nacional, mas com maior violência, o mesmo fato
aconteceu na Amazônia durante o subciclo da borracha.
Continuaram as culturas tradicionais – mandioca,
milho, feijão, arroz – mais a criação do gado, a pesca
(baleia), a coleta florestal, a indústria salineira, mas
sofrendo, todas, além dos revezes mencionados, da falta
de renovação tecnológica, da falta de mão-de-obra
qualificada (ou mesmo de mão-de-obra qualquer), da
falta de capitais em decorrência da baixa rentabilidade,
136
137
da falta de uma infra-estrutura de transportes (o pouco
que se possuía, estava, em grande parte, ligado à
exportação), da falta de um mercado mais amplo (a
concorrência das importações refletia-se negativa-
mente), da falta de créditos (uma lei hipotecária de 1864
previu empréstimos a 10-30 anos e 6% a.a. de juros, mas
normalmente eram os bancos comerciais que forneciam
créditos, a prazos e juros incompatíveis com as
atividades agrícolas).
No mesmo período, entretanto, um fator novo
veio impulsionar e diversificar a agricultura: a entrada
mais densa de imigrantes europeus a partir de 1850 e
principalmente após 1880. Tratava-se de população de
certos conhecimentos agrícolas, de maior produtividade
e de padrões de consumo mais elevados. Um suplemento
de demanda proporcionava maiores dimensões ao
mercado, e uma capacidade maior de produção permitia
a elevação das rendas. O processo verificou-se nas áreas
de preferência destes imigrantes – São Paulo e todo o
Sul, e um pouco menos no Centro-Sul.
Resultou uma certa renovação dos métodos
agrícolas com elevação da produtividade do setor de
subsistência. Resultou, também, maior diversificação da
produção, com possibilidade, desta feita, de substituir
as importações: trigo, vinhas e criação de porcos pelos
alemães e italianos no Rio Grande do Sul, frutas e gado
leiteiro no Paraná e Santa Catarina. E mesmo em São
Paulo, apesar da fixação em torno do café, certos
progressos em cereais, hortigranjeiros, pecuária. Em
termos absolutos e relativos, a economia de subsistência
137
138
cresceu, sobretudo, devido à expansão demográfica: a
população aumentou 2,5 vezes entre 1850 e 1900;
descontando os escravos, o aumento foi mais de 3 vezes.
Finalmente, as dimensões do mercado cresceram
em decorrência da elevação das rendas, esta, devida, em
grande parte, ao café: o efeito multiplicador não de ixou
de se manifestar e não apenas nos reinvestimentos no
próprio setor cafeeiro, mas também em outros setores –
importação, artesanato nacional, comércio e, mais tarde,
na agricultura de subsistência. O mercado concretizou
suas dimensões graças à expansão da rede de
transportes.
É verdade que a criação dos meios de transportes
foi ligada, em grande medida, às necessidades do setor
exportador (assim, por exemplo, as citadas ferrovias de
São Paulo), mas não podia deixar de beneficiar o
mercado interno. Houve progressos na construção de
rodovias (União e Indústria – 1860 – para facilitar o
escoamento da zona cafeeira do Rio de Janeiro e Minas
Gerais; rodovias, embora rudimentares às vezes, foram
abertas em outras regiões). Progressos nas ferrovias:
iniciativa pioneira de Mauá – 1854; ferrovia D. Pedro II
– 1858; a partir de 1858 no Nordeste, São Paulo – 1867,
Rio Grande do Sul – 1874, Paraná – 1883, Santa
Catarina – 1884. A introdução do sistema de garantia de
juros para os investidores no setor foi incentivo
importante, e os capitais estrangeiros desempenharam
papel fundamental na expansão do setor. Alguns
empréstimos públicos foram contratados no estrangeiro
com o mesmo objetivo: o de 1858 (£ 1.526.500) para o
138
139
prolongamento da Estrada de ferro D. Pedro II; o d e
1860 (£ 1.373.000) para o prolongamento da estrada de
ferro Pernambuco; o de 1883 (£ 4.599.600) para, entre
outras, melhoria de estradas de ferro; o de 1888 ( £
6.297.300) para construção e prolongamento de estradas
de ferro federais; o de 1895 (£ 7.442.000) para a
estrada de ferro Este de Minas.
Ao mesmo tempo realizavam-se progressos na
navegação fluvial e marítima com a introdução da
navegação a vapor na Amazônia (1853), no rio São
Francisco (1872) e em outras regiões. Em 1851, abria -se
a primeira linha marítima regular entre Southampton e
Rio de Janeiro. Acrescentem-se, também, os avanços em
meios de comunicação (telégrafo, cabo submarino etc.),
ligados às necessidades de centralização administrativa
imperial.
Por outro lado, a expansão dos meios de
transporte oferecia novas oportunidades à indústria
incipiente, tanto em termos de demanda de produtos
industrializados como de criação de infra-estrutura para
o mercado nacional.

9.7 Início da indústria

Se, para identificar na economia brasileira o


fenômeno da industrialização (isto é, o momento em que
o setor secundário assume maior participação na
composição do produto e da população ativa, e maior
dinamismo em termos de rentabilidade, capitalização e
reflexos no resto da economia), teremos que esperar até
139
140
depois da Segunda Guerra Mundial, não quer dizer que a
indústria surgiu de uma vez naquela época ou em outro
momento único anterior. Como era normal, houve uma
evolução lenta que começou desde o século XIX.
Predominavam, inclusive na segunda metade do
século, as indústrias caseiras, o artesanato: fiação,
tecelagem, cerâmica, produtos alimentícios, pequenos
artigos de consumo. O setor foi melhorado, após 1850,
graças à entrada dos imigrantes europeus, de maiores
tradições artesanais. Quanto à indústria, a única
realmente digna deste nome, antes de 1850, era a de
construção naval. Houve, também, as tentativas
fracassadas da siderurgia, e a constituição de pequenas
fábricas de artigos de consumo, de alimentação e
vestuário.

As condições mudaram em meados do século,


tornando-se mais favoráveis para a constituição de um
núcle industrial nacional:
a) A partir da tarifa Alves Branco (1844), a
política aduaneira foi acentuadamente protecionista
(mesmo se não visava diretamente a este objetivo).
Como já mencionamos, algumas medidas específicas
foram tomadas para incentivar a entrada de equi -
pamentos e matérias-primas industriais.
b) Uma proteção suplementar resultou da
contínua deterioração do valor externo da moeda
nacional, deterioração que beneficiava os exportadores,
mas que, elevando o preço das mercadorias importadas,
protegia, também, a indústria nacional.
140
141
c) A elevação das rendas, resultante, em grande
parte, do café, implicou em intensificação da demanda
e, portanto, em expansão do mercado interno. Ao mesm o
tempo, permitiu o aumento da poupança que ia tornar -se
disponível para investimentos industriais. A longo prazo
a expansão das exportações foi compatível com a
implantação da indústria.
d) Como já foi dito, a criação da infra-estrutura
de transportes e comunicações constituiu, também para
a indústria, uma boa base. O aparecimento de
estabelecimentos bancários, apesar de suas limitações
inerentes à inexperiência e de suas práticas abusivas,
constituiu outro fator positivo.
e) A mudança das condições gerais da economia,
com a verificação de novas oportunidades de lucro,
atraiu capitais estrangeiros. Entre 1860 e 1890, 137
empresas estrangeiras foram autorizadas a funcionar,
entre as quais 22,6% no setor de seguros, 19,0% na
mineração, 13,1% nas ferrovias, 9,5% em serviços
públicos de gás, transportes e comunicações, 8,0% em
atividades bancárias, e 5,8% no setor de energia. Vale
sublinhar o interesse do capital estrangeiro pela criação
de infra-estrutura. O capital inglês foi predominante: em
1880 somava £ 23,1 milhões em títulos governamentais
e £ 15,8 milhões em investimentos privados.
f) A abolição do tráfico e a melhora das
condições gerais da economia abriram caminho para a
mão-de-obra livre, de outro nível tecnológico e outros
hábitos de consumo. Conseqüentemente, tanto a
demanda como a oferta de produtos industriais
141
142
cresciam.
g) A entrada dos capitais estrangeiros, inclusive
dos imigrantes, bem como o progresso dos meios de
comunicação permitiram um a certa renovação
tecnológica. O aumento das patentes autorizadas no
período constitui um bom indicador: entre 1851 e 1875,
222 patentes; entre 1876 e 1889, 1.249 patentes.
h) A renovação tecnológica, a racionalidade
econômica, o aumento do consumo correspondiam ao
progresso cultural processado desde a primeira metade
do século. No plano estritamente econômico este
progresso manifestou-se pela criação de uma
mentalidade empresarial cujo representante pioneiro e
mais brilhante foi Irineu Evangelista de Souza,
Visconde de Mauá.
A figura de Mauá distingue-se na sua época,
porque marca, por antecipação, uma nova fase em que o
agente dinâmico não é mais o fazendeiro, e sim o
homem da indústria, do comércio e das finanças. É
expressiva a variedade de campos em que Mauá foi
pioneiro – e com bastante êxito, até o melancólico e
desmerecido fim que foi sua falência: construção naval
(estaleiro da Ponta da Areia), navegação fluvial (Cia. de
Rebocadores a Vapor, no Rio Grande do Sul e Cia. de
Navegação a Vapor do Amazonas), ferrovias (ferrovia
Mauá-Raiz da Serra em 1854, e auxílio financeiro às
ferrovias Pernambuco-São Francisco, D. Pedro II,
Bahia-São Francisco, Santos-Jundiaí, Rio Verde em
Minas Gerais), serviços de utilidade pública (gás de
iluminação para o Rio de Janeiro – 1854), bancos
142
143
(Bando do Brasil – 1851, Banco Mauá e Cia., ligações
bancárias na Inglaterra e no Uruguai).
Mauá destaca-se pelo seu pioneirismo e pela sua
versatilidade, mas outros o acompanharam ou seguiram
seu exemplo, como, por exemplo, Teixeira Leite nas
ferrovias, Souto nas atividades bancárias, Teófilo Otoni,
Mariano Procópio nas rodovias. A presença do
empresário não foi dos fatores menos importantes para o
início da indústria.

Que este início se verificou já no período ora


analisado, não há dúvida contanto que não se dê sentido
exagerado a estes primórdios. Já vimos que a própria
evolução da pauta de importações fornece sugestões
valiosas quanto às possibilidades da produção nacional.
Vejamos outras:

a) De acordo com informações diretas, embora


precárias, o Brasil tinha, em 1850, 50 fábricas com o
capital de 7 mil contos de réis (cerca de £ 800 mil, valor
de 500 mil sacas de café). Em 1889 havia 636 fábricas,
com capital de 400 mil contos e 54 mil operários. A
produção teria sido estimada em cerca de 500 mil contos
– porém isto parece altamente exagerado. Acrescente-se
que a indústria era quase exclusivamente de bens de
consumo, sobretudo têxteis (60%).

b) Entre 1850 e 1860 foram fundadas 62


indústrias, além de 8 companhias de mineração, 20 de
navegação a vapor, 3 de transportes urbanos, 8 de
143
144
produção de gás, 23 de seguros, 4 de colonização, 8
estradas de ferro, 2 caixas econômicas e 14 bancos.

c) no censo industrial, de 1920, encontramos as


seguintes empresas, ainda existentes, e fundadas antes
de 1889:

Período de Nº de Operários/ Força motriz


fundação empresas empresa (HP)/ empresa
até 1849 35 83,7 59,3
1850-1859 24 94,6 55,3
1860-1869 54 48,9 45,8
1870-1879 125 82,0 92,5
1880-1889 398 90,7 123,2

É interessante observar, que empresas fundadas


até 1859 tem, em termos de operários e força motriz por
empresa, dimensões maiores do que outras constituídas
mais recentemente. O tamanho pode explicar sua
sobrevivência até o censo de 1920, mas o fato é que não
encontramos a mesma situação para as empresas
fundadas em 1860/1879.

d) No período 1866/1885, a indústria têxtil


cresceu a taxas bastante elevadas: a produção a 9,4%, o
número de teares a 10,0% e o número de operários a
7,6% - taxas limitadas ao setor mais avançado, mas já
satisfatórias como indicadores de crescimento industrial.
Esses primeiros passos foram fundamentais, mas
insuficientes para poder-se falar num verdadeiro surto
industrial, capaz de alterar a posição predominante de

144
145
outros setores, a saber, a agricultura e, mais
especificamente, a agricultura de exportação, o café. O
período decisivo, de transição, coincidirá com o advento
da República, mas será ligado à crise do café e à
ocorrência de vários fatores determinantes para o
fortalecimento da indústria.

9.8 Moeda e finanças

Já temos encontrado aspectos monetários e


financeiros que influenciaram a evolução econômica do
Brasil na segunda metade do século XIX. Temos que
analisar agora, com mais detalhes, estes aspectos:
finanças públicas, endividamento externo, balanço de
pagamentos e câmbio, expansão monetária e inflação .

9.8.1 Finanças públicas

Uma atuação mais decidida do setor público teria


eventualmente apressado o processo de industrialização,
embora isto tivesse sido muito improvável, uma vez que
o Governo era dominado pela concepção mercantilista e
pelos interesses do café. Pelo menos, teria eliminado
certos percalços do sistema econômico. Entretanto,
naqueles tempos não se tinha, de modo geral,
compreendido o papel do setor público, tanto mais uma
sociedade em que o nível cultural era muito baixo ainda.
As idéias dos próprios dirigentes mais esclarecidos
resumiam-se numa posição liberal com certas
concessões protecionistas, porém de caráter fiscal,
145
146
respondendo a outro preceito básico, o do equilíbrio
orçamentário. Finalmente, o apego ao modelo do
padrão-ouro, como instrumento de equilíbrio monetário
e cambial. Desde já, diga-se que nenhuma dessas
políticas foi plenamente aplicada.
Ademais, o Tesouro Nacional lutou com difi-
culdades permanentes cujo resultado foi um déficit
orçamentário crônico. O fato deve ser explicado, em
primeiro lugar, pelo despreparo administrativo, pela
falta de um organismo fazendário estruturado e treinado,
pela inépcia dos dirigentes. Do lado da receita, a
inexistência de uma base tributável mais ampla e de um
sistema adequado de impostos. Do lado da despesa,
além das causas gerais indicadas, pressões periódicas
por causa das guerras e revoluções; quanto a estas,
houve um período de relativa calma entre a revolução
praieira de Pernambuco (1847) e a revolução federalista
do Rio Grande do Sul (1893); em compensação, as
décadas de 1851 a 1870 conheceram as guerras contra
Rosas e Oribe, contra Aguirre e finalmente contra
Solano Lopes (guerra do Paraguai). Outras calamidades,
como a seca de 1878, agiram negativamente.
É importante sublinhar, desde já, a relevância do
setor externo tanto na receita como na despesa: os
impostos de importação e exportação constituíam a
principal fonte de recursos; o pagamento da dívida
externa (ela mesma resultante dos déficits orçamen-
tários) formava um item importante no dispêndio
público.
Vale analisar, em alguns detalhes, a execução
146
147
orçamentária:

a) Receita: Até 1844 ressentiu-se da estagnação


do setor externo, sua maior fonte de recursos, e da baixa
incidência do imposto de importação. A recuperação
começou a partir daquela época, mas no exercício
1849/50 a receita não passava de 28.200 contos de réis
contra 23.762 contos em 1829/30. Em ternos reais o
aumento limitou-se a 4,2%. Entre 1850 e 1880, a receita
subiu até 120.762 contos, ou seja, um aumento real de
118,9%. Isto correspondia a um crescimento anual de
2,5-2,6%. Como é totalmente impossível ter aumentado
o produto real a estas taxas, conclui-se que a carga
tributária elevou-se em termos relativos. Observe-se que
o próprio turnover com o exterior – exportação mais
importação – aumentou, no período, apenas 77,2% em
termos reais.
A principal fonte de receita era o imposto de
importação. A partir da tarifa Alves Branco sua
incidência cresceu, e como as importações se
expandiram, a sua arrecadação melhorou. Ademais, o
Governo aplicava taxas adicionais sobre as tarifas. Entre
1849/50 e 1879/80, a receita do imposto passou de
17.429 contos de réis para 64.756 contos, ou seja, um
aumento real de 89,9%. Em 1849/50, o imposto de
importação representava 61.8% da receita total; em
1879/80, 53,6%; no primeiro ano da República, eram
ainda 48,3%, apesar do crescimento da base tributável
dos outros impostos.
Outro imposto era o de exportação, cuja
147
148
incidência flutuou entre 2 e 15% sobre vários produtos.
Na primeira metade do século, seus resultados foram
modestos pelos motivos conhecidos. Em 1829/30 não
passava de 5,5% da receita, mas em 1849/50 esta
participação já era de 13,5%. Em 1889 tinha caído, outra
vez, para 9,3%.
Outra categoria de impostos foi a designada sob o
rótulo “imposto interior”, cuja arrecadação se
encontrava no primeiro lugar no período de estagnação
do comércio exterior: na receita total contribuiu com
33,5% em 1829/30, 17,4% em 1849/50 e 21,4% em
1889. Na realidade, tratava-se de vários impostos que
incidiam sobre as atividades locais: direitos de 15%
sobre a compra de embarcações estrangeiras, imposto
sobre a mineração do ouro, impostos sobre lojas, sisa
dos bens de raiz, impostos do selo, imposto sobre
escravos e outros; a partir de 1867, um imposto de 3%
sobre vencimentos públicos (já houve outro em 1843),
imposto de 1,5% sobre dividendos distribuídos pelas
sociedades anônimas, imposto de 3% sobre locações de
imóveis – inovações que denotam a mudança das
condições econômicas.
Discussões em torno da criação do imposto
territorial e do imposto de renda não levaram a nenhum
resultado. A resistência dos contribuintes – latifundiários
e homens de posse – foi maior. Por outro lado, para uma
economia ainda incipiente, a carga tributária era bastante
pesada: só a receita do Tesouro Nacional devia
representar uns 15% da renda interna monetária, mas
havia, também, os impostos regionais – provinciais e
148
149
municipais – muitas vezes invadindo, inclusive, a zona
de competência do poder central. A transferência de
recursos para o setor público era bastante forte, sem
corresponder a uma aplicação economicamente adequada.

b) Despesa. O seu crescimento, pelas razões


expostas, resultou em déficits quase permanentes. Entre
1829/30 e 1849/50, enquanto a receita estagnava, a
despesa subiu a 18.213 contos de réis para 28.950 contos,
ou seja, 36,9% em termos reais. Continuou subindo e
chegou a 150.134 contos em 1879/80 – aumento real de
165,0% sobre a despesa de 1849/50 – representando
aproximadamente 20% da renda interna monetária.
Quanto à composição da despesa, os dois princi -
pais destinos foram os Ministérios da Guerra e da Ma -
rinha de um lado, o Ministério da Fazenda (inclusive o
serviço da dívida pública), do outro. Em 1849/50, por
exemplo, os primeiros eram responsáveis por 40,6 % da
despesa, o outro por 37,1%. Em 1867/68, em pleno es -
forço de guerra com o Paraguai, a despesa militar
chegou a 52,7%, elevando o total da despesa a 165.985
contos; o Ministério da Fazenda entrava com 29,5%. Em
1879/80, os ministérios militares não exigiam mais de
16,1%, enquanto a despesa da Fazenda representava
41,2%.
Com estes dois itens abrangendo entre 60 e 80%,
acrescentando-se as despesas da pasta do Império
(depois, do Interior), quase nada sobrava para despesas
de caráter desenvolvimentista, como agricultura,
indústria, obras públicas. A mentalidade do tempo
149
150
reflete-se na organização do orçamento.

c) Déficit. O resultado conjugado do com-


portamento da receita e da despesa foi um déficit
crônico: entre 1849/50 e 1886/87, apenas três exercícios
apresentaram superávit.
As causas podiam encontrar-se do lado da receita,
quando, em decorrência da recessão mundial ou local, o
comércio exterior se retraía, provocando a diminuição
da receita dos impostos de exportação e, sobretudo,
importação. Do lado da despesa, havia o ônus da dívida
pública interna e externa, além de causas acidentais.
Entre estas, a guerra do Paraguai quando o déficit
(94.784 contos de réis em 1867/68) chegou a representar
133,1% da receita. Depois, o resultado melhorou,
embora ainda déficitário. Outro aperto foi provocado
pela seca do Ceará: o déficit de 1878/79 subiu nova-
mente até 55,8% da receita.
Face à insuficiência dos recursos normais, o
Tesouro apelou para os empréstimos internos e externos,
e para as emissões de papel-moeda.

9.8.2 Endividamento externo, balanço de pagamento


e câmbio

A dívida interna cresceu durante o período, e seu


serviço constituiu um permanente ônus para o Governo.
No fim do Império, ela montava a 506 mil contos de réis
(entre títulos de dívida, empréstimos, depósitos nas
150
151
caixas econômicas etc.). Era uma importância subs -
tancial – talvez 50% ou mais, da renda interna do país –
que representava uma pressão inflacionária em
potencial.
Mais grave era o problema da dívida externa que,
além de efeitos inflacionários, periclitava o equilíbrio
do balanço de pagamentos. O total dos 11 empréstimos
contraídos durante a segunda metade do século XIX
pelo Império somara, em valor nominal, £ 40.755.700.
Destes, £ 13.796.400 tiveram, como objetivo, cons-
truções de ferrovias e outras obras públicas. O resto de
£ 26.959.300 destinou-se à cobertura de déficits
governamentais, pagamento de dívidas anteriores e seus
juros. O endividamento passou de £ 6.182.550 em 1850
para £ 30.152.500 em 1890 – aumento de 387,7%. Em
1850, o endividamento representava 76,1% da expor-
tação anual, em 1890, 114,3%.
Os tipos de empréstimos foram, também,
melhores do que no período anterior, variando entre 74 e
100%, de maneira que as importâncias efetivamente
recebidas somaram £ 36,8 milhões, ou seja, em média,
90% sobre o valor nominal. Os juros sobre a dívida
nominal oscilaram entre 4,5 e 5% a.a., o que
correspondia a juros reais de 5-5,5%. Se considerarmos
que os empréstimos de caráter financeiro não rendiam
nada, uma vez que cobriam déficits de custeio, a parte
realmente produtiva, de £ 13,8 milhões, devia cobrir os
juros do total, ou seja, numa incidência de 13 a 15% a.a.
O serviço da dívida pública externa, praticamente
suspenso até 1850 quando as condições se nor-
151
152
malizaram, não deixou de constituir um ônus pesado
sobre o balanço de pagamentos, sobretudo quando a
balança comercial caía ou os capitais estrangeiros se
retraíam. O desequilíbrio provocava a desvalorização
cambial e, até o restabelecimento da situação, exigia
novos empréstimos. Estes desequilíbrios devem ter
acontecido durante as crises cíclicas dos países
industrializados, compradores de produtos de expor -
tação brasileiros e investidores de capitais no Brasil.
Entretanto, não se tem uma evidência empírica do
mecanismo em seus detalhes. Pode-se observar que,
entre 1850 e 1880, a importação anual aumentou pouco
mais de 2 vezes, enquanto a renda interna cresceu quase
3,5 vezes. É lícito concluir que, apesar da expansão do
café, havia um ponto de estrangulamento na capacidade
de importar.
É impossível reconstituir o balanço de paga-
mentos daquela época, porque faltam uma série de itens:
despesas a título de serviços, entrada e saída de capitais,
operações especulativas. Conhecemos a balança
comercial, a entrada de empréstimos públicos e a
despesa com a dívida pública externa. Por outro lado,
constata-se uma deterioração secular da taxa de câmbio.
A paridade oficial passou de 67 1/2 d. por mil -réis no
início do século – ou 1.600 réis a oitava do ouro – para
43 1/2 d. em 1833 e 27 d. em 1846 – mas a taxa real
flutuou muito mais.
Uma teoria tradicional sustenta que a desva-
lorização cambial era resultado da queda de preços dos
produtos primários durante as crises cíclicas (trans -
152
153
ferência do ônus da crise para os exportadores de
produtos primários) e, face a esta queda, a defesa dos
rendimentos daqueles exportadores via deterioração do
câmbio (transferência do ônus para a comunidade
através do encarecimento dos produtos importados).
Além do mais, quando do restabelecimento das condi -
ções normais, não se procedia à revalorização cambial.
Não há, entretanto, evidência empírica a respeito
desse mecanismo, pelo menos de uma forma genera-
lizada. O fato ocorreu várias vezes, mas houve, também,
queda de preços sem desvalorização e, ainda mais,
revalorização cambial coincidindo com melhora de
cotações.
Mesmo na balança comercial não se constata
coincidência entre queda de cotações e déficits.
Constata-se que esta queda era compensada por um
aumento de quantidades vendidas de forma que nem a
receita do café, nem o valor total da exportação sofriam
forçosamente pela deterioração dos preços.
Com as informações truncadas que temos, não
podemos explicar muito bem a flutuação do câmbio
através do balanço de pagamentos. Eis uma posição
global no período 1850/1880:

(valores decenais acumulados em £ 1000)


Amortiza-
Balança Emprés-
ções e Balanço
comercial timos
juros
1850/51-59/60 – 11.237 + 4.097 – 6.486 – 13.662
1860/61-69/70 + 17.160 + 8.300 – 11.015 + 14.445
1870/71-79/80 + 34.777 + 7.963 – 11.386 + 31.354

153
154

No primeiro período, o saldo é nitidamente


negativo, coincidindo com uma queda de 10,2% do valor
externo o mil-réis (de 28,74 para 25,81 mil-réis).
Entretanto, na década seguinte, apesar do saldo positivo,
a queda do câmbio foi maior – 14,5% (chegando a 22,6).
A entrada de capitais pode ter sido importante após
1850, em decorrência da abolição do tráfico. Na década
1860/70, a guerra do Paraguai exigiu despesas gover -
namentais que podem ter desequilibrado o mercado de
câmbio. Independentemente disso, a taxa de câmbio
podia ser apenas um efeito da alteração do nível interno
de preços como reflexo de outras causas autônomas.

9.8.3 Inflação

Todo o século XIX brasileiro foi inflacionário


com apenas pequenas exceções. As variações por
períodos foram as consignadas no Anexo VI.
No período de 1826 a 1887, a alta de preços foi
de 181,3% (1,7 ao ano). Inflação relativamente amena,
mas que não deixou de provocar, a longo prazo,
distorções no cálculo econômico e na distribuição da
renda. As distorções foram mais acentuadas em mo-
mentos de maior alta de preços, como nos dias que
sucederam à abolição do tráfico, ou durante a guerra do
Paraguai.

Quais foram as possíveis causas inflacionárias?


(v. Gráfico 3)
154
155
a) Conforme a teoria mencionada, a inflação
resultava de um duplo processo de transferência do ônus
das crises do mundo ocidental, mas isto carece de
confirmação empírica, pelo menos para ser aceita de
forma exclusiva e radical. A inflação realmente consiste
em transferir rendas reais de um grupo para outro: é
lícito admitir que os cafeicultores fossem, muitas vezes,
beneficiários do fenômeno, mas não constantemente
beneficiários, através do mecanismo exposto. Observe -
se que, entre 1850 e 1880, face a uma alta de preços de
95,6% a taxa de câmbio não subiu mais de 30,1%.
b) Há indicações estatísticas, mas sobretudo
qualitativas, de que o setor agrícola, fornecedor de
gêneros alimentícios, foi um foco perene de alta de
preços a qual se alastrava em todo o sistema de preços.
Sabemos as limitações do setor de subsistência e,
também, os reveses que sofreu por causa da atração
exercida pelo café. Talvez seja a explicação mais
plausível para a tendência altista a longo prazo dos
preços no Brasil.
c) A elevação do preço do escravo, após a
abolição do tráfico e antes da parcial substituição pela
mão-de-obra assalariada, explica igualmente parte da
forte inflação do período 1851/56 (42,9%, ou seja, 6,1%
ao ano).
d) É difícil não considerar, como causa autônoma,
a expansão do meio circulante. (v. Anexo IV) Entre
1849/80, o papel-moeda emitido aumentou de 46.884
contos de réis para 215.678 contos – expansão de
360,0%. Uma parte deste aumento podia justificar -se
155
156
pelas necessidades das atividades econômicas em
expansão – inclusive em decorrência da maior mone-
tização do sistema (a abolição do tráfico e a entrada de
imigrantes contribuíram neste sentido). Uma parte podia
representar a adaptação do meio circulante aos novos
níveis de preços, provocados seja pelo gargalo do setor
externo, seja pelo da agricultura. Entretanto, estes
fatores não podem explicar todo o crescimento do meio
circulante. Dois elementos contribuíram de forma
autônoma: os déficits governamentais e a demanda de
crédito.
Depois da liquidação do Banco do Brasil, a
emissão de moeda coube ao Tesouro Nacional. Criaram -
se vários bancos comerciais que não tinham direito da
emissão, mas que, de fato, colocavam em circulação
“vales” pagáveis a curto prazo e com juros, que
funcionavam como verdadeira moeda.
Face à confusão reinante no setor monetário, fez -
se necessária a criação de um órgão emissor que foi o
Banco do Brasil (1853), resultando da fusão do Banco
Comercial do Rio de Janeiro com o Banco do Brasil de
Mauá. Exercendo o monopólio de emissão, o novo
banco procedeu a uma grande expansão monetária,
enquanto persistiam os vales dos bancos particulares. O
excesso de crédito, às vezes especulativo, ao qual se
acrescentou a depressão nos países industrializados
(provocando queda de receitas de exportação e saída de
fundos) teve como efeito a crise de 1857.
Nova regulamentação tornava-se necessária, esta
veio, portanto, pela lei de 1860, que deu a autorização
156
157
de emissões ao Banco do Brasil e mais outros seis, sob a
condição de retirarem os vales da circulação e
garantirem a conversibilidade da moeda de papel.
Dominava sempre, como em todo lugar naquela época, a
idéia do padrão-ouro, inaplicável num país de poucas
reservas metálicas como o Brasil.(6) Uma nova crise em
1864, de proporções maiores que a de 1857, provocou
reações, consubstanciadas na lei de 1866, que passou o
direito da emissão ao Tesouro Nacional. O regime
perdurou nesta forma até o fim do Império.
O quadro 9.6 oferece um panorama sintético da
evolução monetária.

Quando 9.6
Indicadores monetários

Déficit do Tesouro Taxa de Índice de


Papel-moeda emitido (contos de réis)
(contos de réis) câmbio preços
(variação (variação
(variação
Tesouro Bancos Total % no % no
% no período)
período) período)
1850/51 46.884 1.313 48.197 --- --- --- ---
1856/57 43.677 51.540 95.217 + 97,6 + 4.107 + 4,3 + 41,2
1861/62 33.724 45.704 79.464 – 16,5 – 19.474 + 4,7 + 1,4
1870/71 151.078 40.728 191.806 + 141,5 – 363.110 + 19,1 + 25,8
1874/75 149.501 32.367 181.869 – 5,2 – 42.025 – 11,7 – 0,4
1881/82 188.111 24.129 212.240 + 16,7 – 223.806 + 17,7 + 9,9
1885/86 194.283 19.300 213.583 + 0,6 – 108.186 + 17,8 – 4,7

As diferentes fases aparecem bastante nítidas. Até


1856/57 não parece o Tesouro o principal responsável
pelas emissões. A taxa de câmbio ficou, também, calma.
Foi no período em que, além das causas ligadas à abolição
e ao café, a expansão de crédito, decorrente da lei de

157
158
1853, é sugerida como principal causa inflacionária. O
período seguinte até 1861/62, apesar de ligeiramente
déficitário na execução orçamentária, e do comportamento
da taxa cambial quase igual ao período anterior, acusa
uma inflação reduzida, devido a maior contenção mone-
tária. A década seguinte é dominada pela Guerra do Pa-
raguai. Os fortes déficits orçamentários exigem emissões
maciças e a inflação acentua-se. A taxa de câmbio, causa
ou efeito da conjuntura, deteriora-se de modo mais
marcante. O qüinqüênio seguinte, de déficits mais amenos,
de melhora da posição cambial e de redução do meio
circulante registra, como não podia deixar de ser, ligeira
queda dos preços.
A nova crise de 1875 alertou para a necessidade
de recompor a liquidez do sistema: o meio circulante
subiu, mas a taxa de câmbio, deteriorada, atuou no
mesmo sentido inflacionário. Os últimos anos do Impé -
rio foram de contenção monetária – o que se refletiu
tanto na taxa cambial como na evolução dos preços.
Entretanto, a liquidez do sistema deve ter sofrido: em
1886/87, o meio circulante era apenas 5,5% acima do
nível de 1870/71, enquanto os preços haviam subido
2,4%. Isto representava uma expansão real de 3,0%,
quando, no período, o produto real deve ter crescido
algo em torno de 20% ou mais. Esta situação ia provocar
reações por parte dos primeiros dirigentes da República.

9.9 Balanço do período

A performance da economia brasileira na segunda


158
159
metade do século XIX foi bem diferente das medíocres
realizações do início do século, se nos referimos ao
nível de renda, à capacidade de capitalização e às
mudanças estruturais. Este tríplice progresso foi ligado
a três fatos básicos:
- expansão da produção e exportação de café;
- início da indústria;
- eliminação paulatina da escravidão.
Em termos de renda global, de acordo com
estimativas evidentemente precárias, o aumento entre
1850 e 1900 foi de £ 27 milhões para £ 160 milhões –
um crescimento de quase 500%, ou seja, 3,6% ao ano.
Nos 50 anos anteriores, a renda crescera pouco mais de
200% ou 2,3% ao ano.
Em termos per capita, a renda chegou, no fim do
século a £ 8,9 contra £ 3,7 em meados do século. O seu
aumento foi de 140% no período ou de 1,8% ao ano.
Entre 1800 e 1850, a renda per capita cresceu apenas
37% (de £ 2,7 para £ 3,7), ou seja, a uma pobre taxa
anual de 0,6%. A renda do setor autônomo cresceu mais
que a exportação, mas de forma ainda insuficiente, tanto
é que certos autores responsabilizaram esse seto r pela
reduzida performance da época.

159
160

Ao mesmo tempo a renda tornava-se mais


desligada da exportação, dependendo mais das
atividades econômicas dirigidas ao consumo interno.
Esta parcela deve ter chegado, no limiar do século XX,
a uns 75% da renda total. (v. Anexo II e Gráfico 1)
No que tange à composição do produto, a
predominância da agricultura era ainda absoluta, mas a
presença de um pequeno setor industrial, o crescimento
das atividades bancárias, o desenvolvimento dos
transportes, a urbanização constituem indícios de uma
diversificação maior do produto, com um relativo recuo
do setor primário.
Outrossim, a distribuição da renda apresentava
grandes desigualdades tanto vertical como horizontal -
mente. O café tinha criado a classe dos grandes
latifundiários – os barões do café – bem acima dos an-
160
161
tigos latifundiários do Nordeste, mas também uma
classe rural média de certa expressão. Havia, também, o
setor comercializador: exportadores, comissários, inter -
mediários – de rendas bastante elevadas. A indústria não
tinha, ainda, criado grandes fortunas, mas havia, no
setor urbano, classes de rendas elevadas seja do
comércio e dos bancos, seja da administração pública. A
população escrava diminuiu até a sua extinção em 1888,
mas existia a grande camada de camponeses de rendas
muitíssimo baixas. Infelizmente, não possuímos infor -
mações estatísticas para quantificar o perfil de rendas.
Na mesma situação encontramo-nos no que
concerne às disparidades regionais de renda. De fato, o
centro de gravidade econômica havia descido do
Nordeste para o Centro-Sul desde o século XVIII. Se
considerarmos que o setor exportador era o setor
dinâmico que se refletia, através de um forte
multiplicador (apesar de certos aspectos negativos), nos
demais setores da economia, principalmente no caso do
café, a localização geográfica das exportações repre -
senta um indicador da distribuição regional da renda.
Em torno de 1880, a exportação de café, toda ela
localizada praticamente em São Paulo, Rio de Janeiro e
Minas Gerais, abrangia mais de 55% da exportação
total. Acrescentando mais parcelas de açúcar, algodão,
peles, couros e outros produtos, chegaremos a, pelo
menos, 65% para a região Centro-Sul e Sul. Isto devia
corresponder a 18-20% da renda total. Admitindo que os
restantes 80% se distribuíram de forma igual na
população, teríamos, para as províncias entre Minas
161
162
Gerais e Rio Grande do Sul (com população cerca de
50% da população do país) outros 40% da renda total
(50% de 80%). Acrescentando os 20% da exportação,
teríamos uma concentração de 60% da renda interna
naquela região – percentagem subestimada, visto que o
nível geral de renda daquela região era reconheci -
damente ao das demais regiões.
Numa sociedade escravocrata, o estoque de
escravos pode, também, constituir um indício da
concentração da renda embora o escravo possa ser
desperdiçado (como foi o caso depois da queda da
mineração em Minas Gerais ou mesmo no Rio de
Janeiro, quando o centro do café se deslocou para São
Paulo). Com estas limitações, podemos ainda observar
que, em 1872, 962 mil escravos, ou seja, 63,7% dos
escravos existentes concentravam-se nas províncias de
Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul, mais os escravos da
Corte.
O aumento da renda per capita verificou-se apesar
da expansão demográfica, maior do que no período
anterior. Na segunda metade do século XIX, a
população cresceu 148,6%, ou seja, 1,8 ao ano, contra
cerca de 119% (1,6% ao ano) durante a primeira metade.
Acrescente-se que no início do período havia cerca de
1,5 milhões de escravos (20% do total da população)
que não existiam mais no fim do período. Isto dava
outras dimensões ao mercado, além do fator
fundamental do aumento geral das rendas e da elevação
dos hábitos de consumo.
162
163
A área economicamente ocupada expandiu-se 3
vezes durante o século, contra um crescimento de quase
5,5 vezes da população. Assim, a densidade demográfica
na área ocupada aumentou de 10 para 18 habitantes por
km 2 . Face à falta de renovação tecnológica no setor
agrícola (salvo em algumas regiões e para certas
culturas) o fato não pode ser considerado auspicioso.
O Censo demográfico de 1872, primeiro a ser
realizado, oferece certas informações quanto à alteração
estrutural da economia. De uma população ativa de
5.758.364 (58% do total), 63,4% trabalhavam no setor
primário, 15,5% no secundário e 21,1% no terciário.
Pode-se duvidar da consistência das informações, mas o
quadro não deixa de ser sugestivo. Uma importante
restrição refere-se ao setor secundário em que foram
englobadas várias atividades artesanais.
Finalmente, a urbanização mostra progressos
substanciais, indicando elevação das rendas, mudanças
setoriais e transformações sociais em termos de grupos
de maior influência. Por exemplo, a população urbana
de São Paulo cresceu 156,6% entre 1860 e 1886.
A proclamação da República coincidiu com um
período de novas transformações, iniciado com a
abolição da escravatura e a subseqüente entrada maciça
de imigrantes, e completado com a preocupação maior
pela expansão industrial, embora se firmassem as
políticas de defesa do café. A transformação social e
política acompanhou a mudança da economia.

163
164
NOTAS

(1) v. Antônio Delfim Netto, 140.

(2) v. Hélio Schlittler Silva, 170.

(3) Para todos estes problemas, v. Emília Viotti da C osta, 113.

(4) J. F. Normano, 45.

(5) Nathaniel H. Leff, 93.

(6) v. Celso Furtado, 50, pp 176 -182.

Indicações de leitura:
Antônio Delfim Netto, 140; Sérgio Buarque de Holanda, 217,
tomo II-3; Hélio Schlitter Silva, 170; Emília Viotti da Costa, 113;
Mircea Nuescu, 176.

Nota 1 – As referências ao montante da renda interna baseiam-se


em cálculos cujos detalhes se encontram em Mircea Buescu, 35.

Nota 2 – A quantificação da inflação no século XIX é ainda muito


precária. Adotamos os resultados do nosso tr abalho anterior
(Mircea Muescu, 176). Vale a pena alertar sobre o fato de que
muitos autores citam valores em moeda nacional e tiram
conclusões quanto às variações reais sem considerarem a alt eração
do valor da própria moeda.

164
165
REVENDO A POLÍTICA
ECONÔMICA DO IMPÉRIO

No tempo em que exercia o magistério e me


dedicava ao estudo da História Econômica do Brasil,
fiquei interessado numa reavaliação da política
econômica do Império. Em face das inúmeras críticas
sofridas por essa política – sem critério histórico, a meu
ver – achei oportuno apresentar sua defesa com vistas à
sua reabilitação, pelo menos parcial. Hoje em dia,
quando se prepara uma escolha plebiscitária entre a
Monarquia e a República, gostaria de sublinhar que meu
discurso não representa uma opção política, mas apenas
um empenho científico em busca da verdade histórica.
Abordarei cinco facetas principais: o respaldo
dogmático da política econômica, a política monetária, a
política orçamentária, a política alfandegária e a política
de endividamento externo. Partirei das críticas for-
muladas por historiadores e economistas, apresen tando
em seguida os argumentos em que se poderia basear a
defesa das políticas adotadas. De modo geral, esta
defesa aponta para a falta de “historicidade” do ato de
acusação – isto é, a condenação da referida política em
nome de teorias econômicas surgidas muito mais tarde e
por cujo desconhecimento não podem ser respon -
sabilizados os dirigentes da época. A avaliação
“historicista” não pode deixar de levar em consideração
os condicionamentos do momento, os quais, salvo
165
166
algumas exceções, determinavam faltamente a menta -
lidade dos policy-markers e a estrutura das instituições.
Atente-se também para o fato de que em muitos casos
esses condicionamentos vinham de velhos tempos e
ultrapassavam as fronteiras do país.
Pode-se condenar um ministro da Fazenda do
Império por não ter tratado as crises de acordo com as
teorias de Keynes? A condenação pode ser válida sob o
ângulo puramente teórico, embora esta também seja
questionável, haja vista a precariedade das teorias, mas
ela aparece totalmente injusta em perspectiva histórica.
Não obstante, veremos que muitos comentaristas caíram
no pecado do “anti-historicismo”. E as críticas vêm, na
sua maioria, de historiadores!
Na mesma categoria inclui-se a crítica de que não
foram adotadas políticas estritamente genuínas, como se
cada país devesse arquitetar teorias próprias, sem
aproveitar a experiência estrangeira. Assim, o grande
economista francês Jean-Baptiste Say deveria ser
condenado por ter recorrido às luzes dos ingleses Adam
Smith e David Ricardo. Contudo, um historiador pátrio
censura em termos contundentes a adoção pelo Brasil
das teorias e políticas econômicas vigentes na Europa do
século XIX. Diz ele, não poupando expressões
insinuantes: “A classe de senhores de terras e de
escravos, manipulando o aparelho do Estado, adotou as
teorias econômicas vigorantes entre os seus associados
europeus” (Werneck Sodré, 1964, p. 263). Mas, que
teorias podiam adotar? Genuinamente brasileiras, depo is
de 300 anos de colonialismo? Da América Latina? Das
166
167
tradições africanas? E o mesmo autor acrescenta:
“Aplicavam aqueles princípios com uma confiança ao
mesmo tempo interessada e ingênua” (ibidem, p. 264) –
tipo de crítica ambivalente: interessada, logo consciente,
ou ingênua, logo involuntária?
Aliás, a refutação das censuras feitas às políticas
econômicas do Império esbarra às vezes na dificuldade
resultante da ambivalência das críticas: rejeitando um,
parece aceitar-se implicitamente o seu contrário. Na
realidade, a ambivalência é prova de má fé ou de
criticismo à outrance. Por exemplo, enquanto o crítico
citado acusa a adoção cega das teorias alienígenas, um
outro, da mesma escola de pensamento, afirma
enfaticamente que “o Império viveu de expedientes e ao
sabor das circunstâncias do momento” (Prado Jr., 1963,
p. 205). Esta última formulação, depois de expurgada do
seu tom pejorativo, poderia referir-se, com propriedade,
a um certo pragmatismo, que tinha sua razão de ser,
como tentarei argumentar mais adiante.

***

Quando os críticos se insurgem contra “as teorias


econômicas vigorantes entre os seus associados
europeus”, visam evidentemente, em primeiro lugar, o
liberalismo econômico que conheceu o seu período de
glória no século XIX, por cima das investidas que
começou a sofrer desde o segundo quartel do século por
parte do chamado socialismo romântico, da Escola
Histórica e, mais tarde, do socialismo “científico” de
167
168
Marx e Engels. Não se trata de abordar aqui a
controvérsia teórica em torno do liberalismo. Sob
ângulo histórico é suficiente lembrar que ele dominou o
pensamento econômico a partir de Adam Smith e
Ricardo, passado por Say e Bastiat até Stuart Mill que
declarava, com confiança, que a Economia Política,
tendo alcançado todas as verdades essenciais, não podia
esperar mais nenhum outro progresso. E não se esqueça
que o opus magnum da economia liberal, os Princípios
de Economia de Alfred Marshall, foi publicado em
1890: o paradigma do liberalismo econômico veio à luz
um ano após a queda do Império.
O que se podia esperar dos teóricos e dirigentes
econômicos do Brasil entre 1822 e 1889? Os críticos
dão a entender que teria sido imprescindível uma teoria
específica para os países subdesenvolvidos, exigência
essa que continua até nossos dias sem ser satisfeita. A
realidade histórica é que, desde o tempo de D. João VI,
a política econômica era inspirada pelas “idéias
espalhadas pelos discípulos brasileiros de Adam Smith e
Say” (Vitor Viana, apud Ferreira Lima, 1976, p. 77). O
representante mais importante do grupo foi José da
Silva Lisboa, Visconde de Cairú, considerado “pai
ideológico de Rui Barbosa e Vieira Souto” (ibidem),
isto é, com influências ainda nos tempos da República.
No caso do Brasil, o apego ao liberalismo
econômico podia explicar-se pela sua identificação com
o liberalismo político. Portanto com os ideais supremos
de liberdade, independência e repúdio ao colonialismo.
Um testemunho expressivo é representado pelo de-
168
169
poimento prestado pelo desembargador João Rodrigues
de Brito, em 1807, em resposta a um questionário
redigido pelo governador da Bahia, o Conde da Ponte.
As reivindicações formuladas por Brito no sentido da
remoção dos entraves impostos ao comércio contêm
implicitamente um libelo contra o colonialismo de
forma global.
Essa implicância política aparece desde o início,
com a abertura dos portos em 1808 – a inserção do
Brasil no comércio internacional, pela qual o Brasil -
colônia recebia status independente de facto pela sua
capacidade de comercializar fora da reserva colonial.
A despeito desse aspecto, que me parece essencial
para uma explicação correta do ponto de vista histórico,
os críticos contemporâneos fazem inúmeras restrições
ao liberalismo brasileiro da época por seus efeitos
supostamente nocivos sobre a evolução da econo mia
nacional: chegam a considerá-lo “sistema prejudicial e
perigoso” (Ferreira Lima, 1970, p. 260). Referindo -se
aos conceitos do liberalismo, escreve o mesmo autor:
“Foi com esse instrumento ideológico em moda, mas
impróprio para o nosso caso, que as elites administrativa
e política tentaram resolver os problemas que se nos
apresentavam na época.” (Ferreira Lima, 1976, p. 82).
Outro comentarista, sem rejeitar em tese o liberalismo,
acusa apenas a incompetência dos dirigentes
econômicos” que “não souberam tirar partido da
liberdade de comércio no século XIX” e, daí, “tiveram a
evolução (do Brasil) retardada” (Nogueira, 1988, p.
335).
169
170
Tais afirmações constituem uma injustiça e uma
inverdade histórica. Obviamente, todo o comportamento
da sociedade, do governo e da classe dirigente, levou a
marca do atraso – reflexo de três séculos de
colonialismo, com seus conhecidos efeitos negativos.
Mas foi precisamente graças à abertura propiciada pelo
liberalismo econômico que o Brasil conseguiu um
primeiro impulso, condição para futuros progressos.
Dispondo apenas de mão-de-obra não qualificada,
sobretudo servil, e recursos naturais, sobretudo
tropicais, sem capitais e sem tecnologia, a abertura para
o amplo mercado mundial representava uma opor-
tunidade para aproveitar os citados fatores de produção
disponíveis, via exportação de produtos primários,
principalmente café. Não vamos entrar aqui na
controvérsia a respeito da alegada deterioração secular
dos termos de troca – a tese estruturalista que nem
sempre encontrou uma confirmação empírica. Tampouco
seria lícito exagerar os prejuízos ensejados pelas
relações de dominação que amiúde existiram, porém
pari passu com efeitos benéficos.
É ponto pacífico, contudo, mesmo entre os
detratores do modelo liberal, que o ciclo do café formou
os alicerces da moderna economia do Brasil: foi ele que
permitiu o aumento da receita da exportação e portanto
da capacidade de importar, fortalecendo o balanço de
pagamentos; foi o café que proporcionou em maior
medida o crescimento da renda nacional e a expansão do
emprego (sobretudo livre, a partir de 1850); foi em
torno do café que se criou uma infra-estrutura de
170
171
comércio, transporte e crédito, bem como uma
verdadeira classe empresarial. Então, como “não
souberam tirar partido?”
Os críticos lamentam o atraso do crescimento
industrial e responsabilizam pelo fato a prioridade do
café e o modelo aberto, mas parece-me uma visão
simplista, pois a formação de um surto industrial
dependia de muitos outros fatores. Houve, sem dúvida,
um certo círculo vicioso, uma certa inércia, assim como
a presença de importantes grupos sociais com interesses
ligados ao café. Eventualmente o despertar industrialista
podia acontecer mais cedo, mas de qualquer maneira não
se podem minimizar os benefícios trazidos pelo café e
portanto os méritos do liberalismo econômico adotado
durante o Império.

***

A política monetária foi um dos alvos preferidos


dos críticos. O que se lhe censurou foi a adesão ao
sistema do padrão-ouro que constituía o principal
ingrediente do liberalismo econômico no século XIX.
Mais uma vez incorre-se no pecado de uma
interpretação histórica. Pois que outra técnica monetária
se podia adotar quando o padrão-ouro dominava no
mundo ocidental – ou seja, na expressão pejorativa
citada, “entre os associados europeus dos senhores de
terras e escravos?”
Um conceituado economista pátrio, numa
incursão na História Econômica, escreveu: “O político
171
172
brasileiro, com formação de economista, estava preso
por uma série de preconceitos doutrinários em matéria
monetária que eram as regras do padrão-ouro” (Furtado,
1961, p. 181). Uma investigação com espírito histórico
deve contudo anotar que “o século XIX assistiu à
extensão e ao apogeu do estalão-ouro” (Niveau, 1969, p.
256). E sobre o espírito reinante no fim do século
escreveu outro historiador: “O sistema monetário
universalmente adotado era o padrão-ouro” (Pommery,
1945, p. 19). Embora naquela altura não se acreditasse
mais de forma absoluta no automatismo do mecanismo
câmbio/preços/ouro, nenhum controle severo se exercia
no mercado de câmbio, apenas intervenções discretas.
Entretanto, segundo observadores mais atentos há
evidências de que o padrão-ouro do final do século XIX
não funcionava efetivamente. Houve quem sustentasse
com suficiente razão que o padrão-ouro só funcionou
realmente na Inglaterra graças à sua posição de
liderança e às suas grandes disponibilidades de ouro.
Mas o sistema do padrão-ouro manteve seu prestígio
teórico e prático até em plano século XX, sendo
proposto como solução liberal e eficiente pelo Cunliffe
Report em 1918 e, mais tarde, na véspera do colapso da
Grande Depressão, pelo MacMillan Report, em 1929.
Parece historicamente gratuito imputar aos dirigentes
econômicos do longínquo Brasil do século XIX não
terem inventado uma solução original.
Aí, também, aparecem as posições contraditórias
dos críticos, isto é, censura-se a política monetária do
Império sob um certo ângulo e ao mesmo tempo sob o
172
173
ângulo contrário. Por um lado, critica-se a submissão ao
padrão-ouro, um sistema reprovável sob vários aspectos.
Diz um historiador: “Surgiu imperiosamente, como
dotada de miraculosos poderes, a doutrina econômica
vigente no exterior, com os seus conceitos e princípios
aqui rigorosamente adotados” (Werneck Sodré, 1964, p.
263). Por outro lado, um historiador da mesma formação
ideológica refere-se a “o que há de precário e irregular
nesta política monetária orientada pelo acaso e pelo
expediente do momento” (Prado Jr., 1963, p. 205). Esses
últimos qualificativos não combinam de modo algum
com a idéia de que os princípios do padrão-ouro foram
religiosamente aplicados.
Na verdade, a segunda série de qualificativos fica
mais perto da realidade, porém não necessariamente
com aquela matiz pejorativa. Simplesmente os
dirigentes econômicos foram guiados por um certo sadio
pragmatismo que os fizera afastarem-se da doutrina pura
do padrão-ouro, evitando assim as mazelas a ela ligadas.
(Um dos expoentes mais brilhantes desse pragmatismo
foi o grande ministro da Fazenda – em 1832, 1852/53 e
1868/70 – Joaquim José Rodrigues Torres, visconde de
Itaboraí). A oposição entre metalistas e papelistas,
correspondendo à controvérsia inglesa entre currency
school e banking school, com vitórias parciais entre os
dois grupos de contendores, testemunhou o referido
pragmatismo – o que rejeita a condenação proferida à
aplicação “cega” do padrão-ouro.
Os princípios deste sistema tinham na base a
defesa da taxa de câmbio (a estabilidade cambial), a
173
174
manutenção da conversibilidade, o controle das
emissões monetárias, a conseqüente estabilidade dos
preços e o equilíbrio orçamentário. Nenhum destes
requisitos foi cumprido, embora tenha persistido um
certo fetichismo cambial, a obsessão de manter a taxa
oficial estabelecido em 1846, de 27 pence por mil -réis.
Como se pode verificar nas tabelas anexas, a taxa
de câmbio se desvalorizou num total de 66,8% entre
1840 e 1885 (Tabela I), os preços aumentaram, não
muito, mas continuamente (ibidem), a expansão
monetária foi ininterrupta (Tabela II), a execução
orçamentária foi cronicamente déficitária (Tabela III).
Este último aspecto, objeto de críticas acerbas e
duráveis, merecerá uma atenção à parte, mais adiante.
Resumindo as considerações sobre a política
monetária, vale citar a conclusão de uma análise
competente e objetivo: “Foi acertada a orien tação do
Governo brasileiro de adotar um padrão fiduciário
durante as crises internacionais, assim como um
sistema de taxa de câmbio relativamente flexíveis e
uma política monetária mais liberal, com o propósito
de limitar o efeito das contrações econômica s
originárias do exterior sobre a moeda, renda e preços
internos” (Peláez-Suzigan, 1976, p. 169). Tal
conclusão torna muito questionável a referência de
outro economista à “dificuldade que enfrentou o
homem público brasileiro da época para captar a
realidade econômica do país” (Furtado, 1961, p. 184).
Ou, nas palavras de outro, a referência à
“incompreensão de nossos problemas internos”
174
175
(Ferreira Lima, 1970, p. 259). De fato, a política eco -
nômica foi assaz realista.

***

Embora os preceitos do padrão-ouro tenham sido


criticados, uma das maiores investidas contra a orien -
tação econômica do Império refere-se justamente a uma
prática contrária aos dogmas ortodoxos: a existência
crônica de déficits orçamentários. É conhecido o slogan
“o Império é o déficit”, cunhado pelos republicanos que
não podiam imaginar que a República iria conhecer
déficits orçamentários quase tão duradouros quanto os
do Império (1823/1889 – 56 exercícios déficitários do
total de 67 = 84%/ 1890/1990 – 70 exercícios
déficitários do total de 101 = 70%).
Sem dúvida, tais desequilíbrios são altamente
indesejáveis, a não ser em hipóteses keynesianas, que
não vinham ao caso. Mas as críticas foram veementes
não apenas quanto à incapacidade dos dirigentes
fazendários, mas também insinuando que a criação do
déficit era procurada conscientemente como uma
solução fácil. De fato, aqui também verifica -se a
discrepância entre o discurso ortodoxo e a realidade da
prática. Os pronunciamentos oficiais, a começar pelas
Falas do Trono, apegavam-se aos princípios ortodoxos
do equilíbrio orçamentário. Em 1848, por exemplo, o
Imperador fala em criação de novos impostos “para
suprir o défict das despesas ordinárias e indis -
pensáveis”; em 1861, apela para “equilíbrio da receita e
175
176
da despesa” – repetindo-se o mesmo objetivo nas Falas
de 1862, 1866 e 1882. E os grandes dirigentes fazen -
dários pronunciaram-se repetidamente no mesmo sentido
– José Maria da Silva Paranhos, José Antonio Saraiva e
outros.
Então, de onde veio a discordância entre o
discurso e a realidade? A meu ver, das insuficiências
culturais e institucionais de um país recém constituído
após 300 anos de colonialismo. As limitações estruturais
existiram do lado da despesa, da receita e da
administração fazendária. Pode-se admitir que houve
uma certa culpa em desprezar essas deficiências ou em
não proceder mais ativamente à sua remoção. Mas, aí
também, é válido procurar uma explicação nos círculos
viciosos em que sempre se debate o subde-
senvolvimento.
Do lado das despesas é preciso citar primeiro os
gastos provocados pelas convulsões da Independência –
levantes em Pernambuco, Rio de Janeiro, a Cabanagem,
a Sabinada, a Balaiada, a Revolução Farroupilha – assim
como pelas guerras (contra Oribe, Rosas, Aguirre,
Solano Lopez), guerras de afirmação política ou
eventualmente de exaltação nacional; a despesa
decorrente de excesso do funcionalismo público ou da
politização (a “empregomania” de Nabuco de Araújo);
os gastos com a dívida pública interna e externa, para
cobrir a insuficiência da receita; a despesa com a
garantia de juros para investimentos em infra-estrutura,
uma despesa, afinal de contas, desenvolvimentista.
Limitações do lado da receita, pois, dado o baixo
176
177
nível da renda nacional e a exigüidade do mercado, a base
tributável devia ficar no setor externo, mais precisamente
no imposto sobre importações, estas também apertadas
devido às dificuldades do balanço de pagamentos.
Finalmente, limitações por causa das deficiências
administrativas, por conta do baixo nível cultural,
despreparo técnico, falta de quadros e tradição, bem
como a praga, não tão limitada ao Império, da
imoralidade administrativa. Vale acrescentar um recado,
derivado da citada politização e imaturidade política,
que foi a descontinuidade do comando: em 74 anos, 68
mudanças na direção da pasta da Fazenda.
Podia haver incompetência ou mesmo inépcia, mas
houve também importantes exceções, como por exemplo
na preocupação de reduzir a captação de recursos pelo
Estado sob pena de prejudicar as capacidades produtoras
da sociedade. Advertiu Itaboraí (no Conselho de Estado,
em 1867) que o aumento de impostos deve ser feito “sem
ofensa ou míngua das fontes de produção nacional”. E
Paranhos (ibidem, 1871) falou na inconveniência de
“atrair para o Tesouro os capitais nacionais disponíveis,
desviando-os dos canais da lavoura, do comércio e das
diversas indústrias".
São opiniões que seriam tranqüilamente
subscritas pelos estadistas atuais. Mas, evidentemente,
essa preocupação de não retirar demais recursos da
sociedade implicava na redução das disponibili dades do
governo. Daí, a necessidade de recorrer para fontes
externas – de que tratarei a seguir.

177
178
***

O recurso ao endividamento externo foi alvo de


críticas acerbas, talvez mais do que a adoção (teórica)
do padrão-ouro. Aparentemente justificar-se-ia censurar
o fato de que o endividamento externo tinha como
objetivo cobrir o desequilíbrio orçamentário, ou seja,
um expediente para compensar a inépcia administrativa.
Refere-se um comentarista a “apelos ao crédito externo,
não com o fito imediato de expandir as forças
econômicas do País, mas apenas para cobrir os déficits”
(Lemos, 1946, p. 4). Entretanto, o que foi argumentado
sobre as origens estruturais do desequilíbrio
orçamentário traz uma certa justificativa para esse tipo
de financiamento do déficit. Por outro lado, a
generalização está errada: considerando os empréstimos
contratados durante o Segundo Reinado, 34% do seu
montante foram destinados a investimentos em infra -
estrutura.
Os críticos foram extremamente exigentes. Al -
guns deles falam em “um caminho que seria longo e
melancólico, trazendo consideráveis prejuízos à
economia nacional” (Ferreira Lima, 1970, p. 194). O
mesmo refere-se à “bola de neve que nos precipitou no
abismo” (ibidem, p. 197).
É verdade que a política de endividamento
apresenta perigos, sobretudo quando, mantendo-se as
condições prevalecentes no seu início, se entra num
processo cumulativo: “Em virtude desse círculo vicioso
e pernicioso, o Brasil sempre viveu com sua economia e
178
179
suas finanças deprimidas diante de obrigações
irrevogáveis para com o estrangeiro” (Bouças, 1955, p.
75). O encadeamento entre causas e efeitos era,
entretanto, mais complexo e a referida “depressão” da
economia não deve ser debitada exclusivamente ao
endividamento externo. Esta transferência de culpa
ocorreu também em épocas mais recentes.
Naturalmente não faltaram insinuações referentes
ao imperialismo e às relações de dominação: “O país
viverá acorrentado aos seus credores, especialmente os
banqueiros ingleses” (Pinto, 1965, p. 93). Ou então, com
a obstinação de criticar. “Política de empréstimos no
exterior para saldar contas comerciais déficitárias”
(Werneck Sodré, 1964, p. 251), quando a partir de 1860
a balança comercial foi permanentemente superavitária,
com a exceção de um único exercício.
Talvez tenha havido erros ou mesmo culpas nos
apelos repetidos para o crédito externo ou abusos em
matéria de intermediação e comissões, mas afinal de
contas o endividamento não foi exagerado: no final do
Império a dívida externa não atingia mais de £ 30
milhões, correspondentes a pouco mais do que a receita
anual de exportação (Tabela IV). Por outro lado, os
prazos e os juros foram normais, do mercado. Quanto
aos tipos, os deságios sobre o valor nominal do
empréstimo, melhoraram paulatinamente até desapa-
recerem, testemunho da melhora da posição do País no
mercado financeiro internacional.
Em geral, os comentaristas hostis tendem a
sugerir que o recurso ao crédito externo constituía um
179
180
comodismo, uma solução fácil para acobertar a
incapacidade da administração fazendária. Pode ser, mas
basicamente é uma insinuação gratuita, pelo menos em
muitos dos casos concretos conhecidos. Por exemplo,
em 1867 Zacarias Góes de Vasconcelos declarava que
“os empréstimos externos são onerosos, os internos
difíceis” (Conselho do Estado). Neste campo prevaleceu
também uma posição pragmática, como se despreende
de uma declaração de Saraiva: “O empréstimo é um
recurso para os dias difíceis ou um meio de empreender
melhoramentos de tal influência no desenvolvimento das
indústrias, que dêem uma garantia eficaz aos
compromissos do Estado” (ibidem, 1881). E Belisário:
“Os empréstimos só se justificam por urgentes
necessidades, ou compensação de mais vantagens,
quando deles possa auferir a geração onerada com o
encargo do pagamento” (ibidem, 1887). Diria eu que os
dirigentes fazendários, corretamente, oneraram as
futuras gerações com o preço a pagar pela infância e
adolescência de um novo país.

***

Como já disse, o problema do equilíbrio


orçamentário estava ligado à principal fonte de receita,
qual seja, pelas razões expostas, o imposto sobre
importações. Assim, parece válida a afirmação de um
analista de que “a principal característica da tarifa
brasileira no século XIX foi o seu caráter fiscal”
(Normano, 1975, p. 184). Entretanto, neste campo
180
181
também, as críticas vão mais longe, alegando que a
política do liberalismo econômico, desprovido de qualquer
idéia protecionista, prejudicou o eventual processo de
industrialização. Diz um dos críticos mais ponderados:
“Durante a maior parte da existência do Império, a política
comercial baseava-se no livre-cambismo, o que tornava
extremamente difícil o estabelecimento de indústrias no
país, face à concorrência externa” (Baer, 1966, p. 14).
É verdade que uma dose maior de protecionismo
podia ajudar, porém, antes de mais nada, é preciso
atentar para duas circunstâncias históricas: uma, a de que
a adesão ao liberalismo correspondia à defesa do modelo
aberto, a oportunidade de expansão aproveitando o
mercado internacional; outra, a de que as condições
globais da economia, dadas as condições históricas e
culturais, não podiam proporcionar um rápido cresci-
mento industrial. O que se podia proteger quando não
havia indústrias, nem suficientes fatores de produção
industrial – mão-de-obra qualificada, tecnologia, capitais,
mercado, infra-estrutura? Dá-se o exemplo da política
protecionista de Alexander Hamilton nos Estados Unidos
(1816/1832), mas naquele momento os Estados Unidos,
independentes já fazia meio-século, se encontravam num
estágio muito mais avançado, tanto é que se admite
(W.W. Rostow o período 1840/1860w) como fase do seu
arranco.
Mas os críticos radicais vão mais longe. “A tarifa
de 1844 (a tarifa Alves Branco, que deu início à
regulamentação alfandegária) era puramente fiscal”
(Werneck Sodré, 1964, p. 255). O objetivo imediato era,
181
182
sem dúvida, fiscal, tratava-se de resolver o impasse
orçamentário, mas não era “puramente” fiscal, pois na
própria exposição de motivos a tarifa assumia o alvo de
“proteger os capitais nacionais já empregados dentro do
país em alguma indústria fabril e animar outros a
procurarem igual destino”. Objetivo nitidamente prote -
cionista, mesmo se nem sempre vingou devido a
preeminência teórica ou interessada do liberalismo. No
fim do período, a tarifa João Alfredo (1889) decreto u o
aumento da incidência “a fim de que não sofram com a
concorrência iguais produtos de fábricas nacionais”. O
protecionismo foi tímido e flutuante, mas firmou -se
paulatinamente ao longo da legislação alfandegária do
Império.
Não entrarei em maiores detalhes, de vez que,
num trabalho anterior aqui apresentado, tentei uma
análise mais detalhada em termos quantitativos da
política protecionista. Um apanhado sumário (Tabela V)
demonstra não apenas o aumento da incidência do
imposto de importação, mas também – e isso caracteriza
a intenção protecionista – a discriminação das alíquotas,
taxando mais os bens de consumo importados,
eventualmente concorrentes dos produtos nacionais, e
incidindo menos sobre as matérias-primas, bens inter-
mediários e sobretudo bens de capital, favorecendo
deste modo os investimentos industriais.
Tal análise objetiva demonstra a injustiça da
rejeição de plano da política econômica do Império e do
seu respaldo liberal. Este realmente dominou, porém
amenizado através de um pragmatismo que considero
182
183
salutar por evitar eventuais excessos nocivos do laissez-
faire.

Tabela I – Preços e taxa de câmbio


Preços Câmbio
Índice Var. % mês / £ Índice Var. %
1840 100,0 ... 7,74 100,0 ...
1845 103,3 3,3 9,44 122,0 22,0
1850 103,8 0,5 8,35 107,8 – 11,6
1855 139,4 34,3 8,71 112,5 4,4
1860 150,6 8,0 9,30 120,2 6,8
1865 165,3 9,8 9,60 124,0 3,1
1870 191,0 15,5 10,88 140,6 13,4
1875 190,2 – 0,4 8,82 114,0 – 19,9
1880 202,0 6,8 10,86 140,3 23,1
1885 203,8 0,4 12,91 166,8 18,9
Fonte: Ónody

Tabela II – Expansão monetária


Papel-moeda emitido Meios de pagamento
Índice Variação % Índice Variação %
1840 100,0 ... 100,0 ...
1845 127,2 27,2 127,8 27,8
1850 119,7 – 5,9 121,5 – 4,9
1855 172,8 44,4 180,0 48,1
1860 210,7 76,0 226,8 26,0
1865 275,8 30,9 320,3 41,2
1870 484,3 75,6 548,8 71,3
1875 452,1 – 6,5 518,0 – 5,6
1880 534,9 18,3 651,0 25,7
1885 528,2 – 1,3 657,0 0,8
Fonte: Peláez-Suzigan

183
184
Tabela III – Execução orçamentária

(contos de réis)
Receita Despesa Saldo
1840 15.948 24.969 – 9.021
1845 24.805 25.635 – 830
1850 28.200 28.950 – 750
1855 36.985 38.740 – 1.755
1860 43.807 52.606 – 8.799
1865 56.996 83.346 – 26.350
1870 94.847 141.594 – 46.747
1875 106.490 125.855 – 19.365
1880 120.762 150.134 – 29.372
1885 124.156 158.496 – 34.340
Fonte: Ónody

Tabela IV – Dívida externa e exportação

(£ 1000)
Dívida externa /
Dívida externa Exportação
Exportação
1840 5.580 5.384 1,04
1850 6.183 8.121 0,76
1860 7.655 13.241 0,58
1870 12.721 15.439 0,82
1880 16.554 21.249 0,78
1890 30.153 26.382 1,14
Fonte: Normano

184
185
Tabela V – Imposto de importação
(incidência média %)
Tarifa Total Classe I Classe II Classe III
1844 26,4 26,4 25,0 35,5
1857 24,5 18,2 10,0 30,8
1860 25,8 17,6 8,3 34,2
1869 33,4 16,8 6,7 34,9
1874 34,5 16,7 11,7 27,9
1879 47,5 15,0 10,0 28,4
1881 37,8 14,4 8,0 28,7
1887 41,8 21,4 12,6 45,4
Nota
- Classe I – matéria-prima e bens intermediários
- Classe II – bens de capital
- Classe III – bens de consumo
(Pesquisa do autor)

BIBLIOGRAFIA

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Econômico do Brasil. Rio de Janeiro, FGV, 1966.

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Externa. Rio de Janeiro, Ministério da Fazenda, 1955.

FERREIRA LIMA, HEITOR. História Político-Econômica e


Industrial do Brasil. São Paulo, CEN, 1970.

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nômico do Brasil. São Paulo, CEN, 1976.

185
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FURTADO, CELSO. Formação Econômica do Brasil. Rio de
Janeiro, Fundo de Cultura, 1961.

LEMOS, CLAUDIONOR DE SOUZA. Dívida Externa. Rio


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NIVEAU, M. História dos Fatos Econômicos Contem-


porâneos. São Paulo, DIFEL, 1968.

NOGUEIRA, DENIO. Raízes de uma Nação. Rio de Janeiro,


Forense Univ. 1988.

NORMANO, J. F. Evolução Econômica do Brasil. São


Paulo, CEN, 1975.

ONODY, Oliver. A Inflação Brasileira 1820-1958. Rio de


Janeiro, 1960.

PELÁEZ, CARLOS MANUEL-SUZIGAN, WILSON. Histó-


ria Monetária do Brasil. Rio de Janeiro, IPEA, 1976.

PINTO, FERREIRA. Capitais Estrangeiros e Dívida Externa


do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1965.

POMMERY, LOUIS. Aperçu d’Histoire Économique Con-


temporaine 1890-1939. Paris, Médicis, 1945.

PRADO JR., CAIO. História Econômica do Brasil. São


Paulo, Brasiliense, 1963.

186
187
WERNECK SODRÉ, NELSON. Formação Histórica do Bra-
sil. São Paulo, Brasiliense, 1964.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 37 (441): 3-13,


Dezembro 1991).

187
188
NOTAS SOBRE A ECONOMIA
DO SEGUNDO REINADO

Numa palestra feita aqui cinco anos atrás (vide


Carta Mensal – Dezembro 1991) apresentei algumas jus-
tificativas históricas contra as críticas à política
econômica do Império. É interessante constatar,
contudo, que a despeito dessas críticas os pesquisadores
da economia brasileira da segunda metade do século
XIX afirmam, na sua grande maioria, que aquele
período registrou notáveis progressos, em contraste com
a primeira metade, cujo desempenho foi modesto, senão
negativo. E esta conclusão foi subscrita inclusive pelos
detratores da política econômica dos governos
imperiais, o que implicaria na pior das hipóteses que a
pujança econômica do país foi tão forte que compensou
os erros políticos.

Senão, vejamos alguns testemunhos confiáveis:


- Caio Prado Jr.: “(após 1850) o país entra
bruscamente num período de franca prosperidade e larga
ativação da vida econômica”.
- Celso Furtado: “Considerada em conjunto, a
economia brasileira parece haver alcançado uma taxa
relativamente alta de crescimento na segunda metade do
século XIX”.
- Heitor Ferreira Lima: “O progresso realizado na
economia brasileira na segunda metade do século
188
189
XIX...”.
- Carlos Manuel Peláez: “O período 1861/1900
mostra alta taxa de crescimento do produto real”.

Tudo isso poderia bastar para conferir ao Brasil


do Segundo Reinado uma certidão de bom
comportamento econômico, a despeito das conclusões
contrárias sugeridas pela eventual inépcia dos policy
makers brasileiros da época.
Entretanto, ouve-se ainda opiniões esparsas me-
nos favoráveis. Uma voz discordante é a de Nathaniel
Leff que se referiu ao “fraco desempenho econômico do
País no século XIX”. Esta afirmação poderia ter alcance
limitado, mas Leff acrescenta: “O Brasil experimentou
uma relativa estagnação em seu nível de renda per
capita para a totalidade do país durante a maior parte do
século XIX”. Tal declaração, desta vez não mais
qualitativa, mas referindo-se a um conceito macro-
econômico quantitativo, justificaria uma revisão do
problema.
Por outro lado, vários historiadores sustentaram,
embora sem confirmação empírica, que o Brasil do
século XIX não registrou alterações estruturais em sua
economia. Heitor Ferreira Lima parece categórico: “A
estrutura econômica não mudou”. E Virgílio Nova
Pinto: “Nenhuma alteração de estruturas é vislumbrada
... ao contrário, uma cultura cafeeira afirmando -se,
persiste a dependência agrícola” – asserção essa que
para o bem da verdade precisaria ser mais cir -
cunstanciada. Um comentarista mais recente (Lorenzo -
189
190
Fernandez) fala, com razão, em circunstâncias adversas,
“estrutura física desfavorável” e condições externas que
não estavam maduras”, para concluir que o país saiu
“por caminhos tangenciais” quando “não deu voltas e
retrocedeu”.
O objetivo do presente trabalho é limitado:
questionar à luz das informações objetivas, se possível
quantitativas, as conclusões negativas que os
historiadores ainda reservaram à economia imperial, em
contradição com as afirmações genéricas inicialmente
mencionadas a respeito dos progressos realizados na
época.

***

Comecemos com o problema do crescimento do


produto global e per capita. Antes de mais nada, é
preciso advertir sobre a precariedade de tal indagação a
respeito de um período em que ainda não havia Contas
Nacionais, de modo que o cálculo deve aproveitar
indicações indiretas – quase simples hipóteses de
trabalho.
Numa tentativa experimentada uns 30 anos atrás
(Buescu-Tapajós, 1967) parti dos valores constantes, em
libras esterlinas, da exportação, aplicando um coefi -
ciente de exportação interpolado entre o máximo de 0,80
diretamente calculado para o ano de 1600 e o de 0,12
constante das Contas Nacionais de 1950, na evidente
constatação da progressiva redução da participação das
exportações na formação do Produto. O coeficiente
190
191
assim interpolado teria sido de 0,40 em 1850 e 0,30 em
1900, resultando que o aumento do Produto Global no
período teria sido de 443%, ou seja, 3,4% ao ano (1,7%
per capita). Conclusão um tanto exagerada devido aos
valores altos demais do coeficiente de exportação, bem
como da receita de exportação anormalmente elevada
em 1900.
O cálculo foi alterado ulteriormente (Buescu,
1979) adotando-se coeficientes de exportação mais
realistas: 0,29 em 1850 e, terminando o período
imperial, 0,22 em 1890. Os valores da exportação
expressos em mil-réis foram devidamente deflacionados
– sem dúvida, outra aproximação face à inseguranç a dos
índices inflacionários. Assim procedendo resultou que o
Produto Real teria crescido entre 1850 e 1890 129%, ou
seja à razão de 2,1% ao ano; em termos per capita 0,4%
ao ano.
Esta conclusão coincide bastante com o cálculo
de Raymond Goldsmith que utilizou as informações
referentes ao volume dos meios de pagamento, aos
valores do comércio exterior, dos salários e dos gastos
governamentais, todos deflacionados (Goldsmith, 1986).
A conclusão foi que, em preços constantes, o Produto
Real teria crescido à razão de 2,0% ao ano – 0,3 per
capita. Eu também usei os valores dos meios de
pagamento deflacionado para calcular a renda entre
1920 e 1940, mas tive medo de me aventurar para
épocas mais longínquas, devido ao caráter aleatório de
dois parâmetros: o multiplicador dos meios de paga-
mento e a taxa inflacionária.
191
192
Alguns pesquisadores chegaram a conclusões algo
diferentes, mas em geral para taxas mais elevadas de
crescimento do produto per capita: Furtado, 1,5%;
Peláez 2,6%. Outros apresentaram conclusões menos
favoráveis: Leff, 0,1-0,8%; Haddad, 0,4%. De qualquer
forma, computada a elevada taxa de expansão
populacional (1,7% ao ano), a taxa de crescimento do
Produto Global teria se fixado entre 1,8% e 4,3% ao
ano, numa média de 2,8%, apenas um pouco acima dos
resultados de Goldsmith e dos meus.
Seriam esses números tão baixos para justificar a
condenação da economia do Segundo Império? As
conclusões pessimistas são muitas vezes tiradas da
comparação com as taxas de crescimento obviamente
altas dos atuais países desenvolvidos. Mas a informação
histórica correta leva a uma visão diferente. A
Inglaterra, entre 1822 e 1846, portanto já depois de seu
precoce take off cresceu 1,8% anuais per capita e,
segundo outros levantamentos, 1,7% entre 1806 e 1836
(e não se esqueça que o Brasil teve o seu take off mais
de um século depois). Praticamente na mesma época a
França cresceu a razão de 1,2% per capita. Entretanto os
países do Terceiro Mundo acusaram nas últimas décadas
do século XIX um crescimento per capita não mais do
que 0,2% ao ano.
Não computando a taxa de expansão demográfica,
o crescimento do Produto Global dos países hoje
desenvolvidos não foi no século XIX muito superior ao
do Brasil: Inglaterra 2,9% (1806/1836); Estados Unidos
2,6% (1799/1849); França 1,9% (1803/1854).
192
193

***

No concernente a inalteração estrutural da


economia durante o Segundo Reinado conhecemos o
fato mais flagrante que desmente tal asserção. É
impossível aceitá-la quando na época se concretizou,
como todo o mundo sabe, a mais importante mudan ça
estrutural no caminho da modernização: a abolição da
escravatura. Uma mudança lenta, às vezes penosa,
devido às resistências da tradição, da inércia e dos
interesses de certas classes – mas todavia uma mudança
cristalizada finalmente na Lei Aurea de 1888.
Como se poderia negar a transformação estrutural
quando em 1850 os escravos representavam cerca de
35% da população total e em 1887 essa participação
tinha baixado para 5,4%? O fenômeno deveu-se à
conhecida circunstância de que o crescimento vegetativo
da população escrava foi sempre negativo, ao que se
acrescentaram os efeitos da Lei do Ventre Livre de 1871
e da Lei Saraiva-Cotegipe da Liberdade dos Sexa-
genários de 1885. Em 1888 a parcela dos escravos
estava reduzida a zero.
Paralelamente, cresceu o número de imigrantes.
No início da segunda metade do século XIX, a entrada
de imigrantes se processou a um ritmo em torno de cem
mil pessoas por década. No decênio anterior à Abolição,
de 1880 a 1889, entraram 448 mil emigrantes. O
crescimento da população livre entre estas últimas datas,
cerca de 15%, se devia a imigração. A alteração
193
194
estrututal da população total e conseqüentemente da
população economicamente ativa aparece de maneira
nítida, desmentindo por números as alegações gratuitas.

***

Passando do campo demográfico para o


propriamente econômico, o problema básico é
identificar a conformação estrutural do Produto Real,
definindo a posição relativa do setor industrial.
Obviamente faltam dados estatísticos sistemáticos, a não
ser indiretamente, o que se pode deduzir dos censos
demográficos de 1872 e 1900.
Roberto Simonsen (1939) levantou informações
esparsas e não obstante não desprovidas de interesse
para o nosso objetivo: em 1850 o Brasil teria contado
com pouco mais de 50 estabelecimentos industriais,
entre salineiros, fábricas de tecidos (apenas duas),
indústrias de alimentação, pequenas metalurgias e
outros. Já em 1881 o número de fábricas de tecidos
chegaria a 44, crescendo o número total de industrias no
período de 1880/1890 que Simonsen rotulou como o
primeiro surto industrial: entre 1880 e 1884 foram
fundadas 150 indústrias e entre 1865 e 1889 mais 248.
No fim do Império já existiam 636 estabelecimentos
industriais, empregando 54,169 operários e energia de
65.000 HP.
Tudo isso sugere indubitavelmente uma alteração
estrutural, com uma participação crescente do setor
industrial. Uma indicação semelhante resulta também do
194
195
censo industrial de 1907. Nele aparece que dos 326
estabelecimentos industriais existentes no Estado de São
Paulo apenas 15 (com 6,3% do capital social total)
tinham sido criados antes de 1880, o que confirma um
crescimento no fim da segunda metade do século XIX.
Num exercício estatístico (Buescu, 1985) tentei
quantificar a estrutura do Produto Real do Brasil em
1900, incluindo, devido a limitação da informação
estatística, o período do Encilhamento que obviamente
não podia ser o único responsável pelo progresso
registrado. O exercício partiu da distribuição setorial do
Produto em 1949: setor primário, 24,5%; secundário,
26,5% e terciário, 49,0% (conforme as Contas Nacional
oficialmente calculadas). Aplicando regressivamente as
taxas setoriais de crescimento entre 1900 e 1947
segundo as estimativas de Cláudio Haddad (1974),
chega-se para o ano de 1900 a uma distribuição setorial
de 45,1% - 13,3% - 41,6%, uma estrutura ainda
subdesenvolvida, sem dúvida, porém já registrando a
existência de um não desprezível setor industrial ( essas
percentagens setoriais não estão muito longe das
calculadas por Goldsmith: 49,2% - 14,9% - 35,9%).
Confrontando apenas os setores primário e
secundário a proporção seria de aproximadamente 77%:
23% - resultado bastante coerente com o de Vilella –
Suzigan (1973) referente ao ano de 1907: 79%: 21%. O
perfil encontrado parece também coerente com a
situação mais recente de países subdesenvolvidos no
período do pós-guerra, conforme Simon Kuznets, em:
Aspectos Quantitativos do Desenvolvimento Econômico
195
196
(1970).
De qualquer modo, a existência de um pequeno
setor industrial confirma a mudança estrutural
processada a despeito do domínio avassalador da
exportação sustentada pelo café. Tal situação poderia
explicar-se por simples evolução orgânica, mas
corresponde a uma modificação de mentalidade e
comportamento dos empresários e dos policy makers.
Como se sabe, a mudança foi reflexo dialético do
próprio sucesso do surto cafeeiro que resultou não
apenas em aumento de emprego e da renda, como
também na modernização estrutural da economia:
sistema ferroviário, rede bancária e comercial, espírito
empresarial.

***

Seria válido lembrar também certas modificações


do perfil setorial do produto. Uma refere-se à estrutura
dos transportes. Inevitavelmente aparece a presença das
ferrovias em decorrência da inovação tecnológica
surgida no início do século XIX. O Brasil entrou
atrasado nesta corrida: em 1854 não havia mais de 50
km de vias férreas. Mas em 1894 já eram 11.260 km,
ainda bem atrás dos países ocidentais, sobretudo se
levar em conta o imenso território do País, porém não
deixou de representar um passo inicial digno de regi stro.
Acrescenta-se também, como mudança quase
inevitável, a modificação do sistema de crédito com a
criação, embora ainda modesta, de uma rede bancária
196
197
nacional. No início do Segundo Reinado não existiam
mais que 3 bancos comerciais, com depósitos num
montante de 10 mil contos de réis. A sua dimensão
chegou no final do século a 35 estabelecimentos
bancários com depósitos da ordem de 200 mil contos de
réis.

***

Sob um aspecto importante, entretanto, justifica-


se a asserção da não alteração estrutural: n o que tange
às relações econômicas internacionais, o Brasil perma -
neceu durante a segunda metade do século XIX país
exportador de produtos primários, concentrados no café.
A exportação continuou sendo o setor dinâmico: entre
1850 e 1890 a sua receita aumentou 225%, de 8.821 mil
libras esterlinas anuais para 26.382 mil; em termos per
capita subiu de 1,12 para 1,84 libras esterlinas. A
exportação continuou concentrada praticamente em 6
produtos primários (café, algodão, couros, fumo,
borracha e açúcar), os quais eram responsáveis por
86,3% da receita total em 1841/50 subindo para 89,5%
em 1881/90. A parcela do café elevou-se de 41,3% na
primeira década, para 61,7% na última.
Não obstante, verifica-se também neste campo
uma modificação estrutural: a exportação, e daí todo o
comércio exterior passou a representar uma parcela
decrescente na formação do Produto. Em exercícios
anteriores, começados uns 30 anos atrás, procedi a uma
avaliação rudimentar desta parcela que, como já disse,
197
198
sofreu uma redução secular, chegando a 29% em 1850 e
22% no fim do Império. Tudo isso, muito aproximado.
Numa pesquisa mais recente, Raymond Goldsmith
calculou coeficientes ainda menores para o comércio
exterior total: 0,31 em 1850 e 0,27 em 1889 – o que
daria para exportação 0,151 em 1850 e 0,146 em 1889,
coeficientes que parecem um tanto subestimados.
Mesmo assim, verifica-se uma pequena alteração
estrutural com a diminuição da parcela da exportação no
PIB.
Houve também outra alteração não desprovida de
significado: a da composição da pauta de importação.
Sem dúvida a conformação global permaneceu a mesma,
a de um país anterior à industrialização: grande
participação dos produtos manufaturados, reduzidas
importações de matérias-primas industriais e quase
inexistentes de máquinas e instalações.
A despeito disso, as estatísticas mostram ligeiras
modificações que sugerem uma certa transformação da
economia. Constata-se um pequeno aumento da
participação relativa de produtos ligados à expansão
industrial. As compras de ferragens, carvão de p edra,
ferro e aço, máquinas e acessórios subiu entre 1839/40 e
1870/75 de 5,4% para 14,0% do valor total da pauta. Em
compensação as compras de manufaturados têxteis,
algodão, lã, linho diminuíram de 44,5% para 40,8%; em
1902/1904 elas já tinham caído para 16,0% do total.

***

198
199
Os progressos realizados durante o Segundo
Reinado, embora relativamente modestos, não deixam
de assinalar uma ascensão para patamares superiores de
desenvolvimento. Desprezá-la seria negar a realidade da
evolução histórica, admitir um hiato dentro do processo
normal de crescimento e transformação.
É verdade que sob certos aspectos as mudanças
estruturais foram quase nulas, assim, por exemplo,
quanto ao perfil agrário, onde os latifúndios ociosos e os
minifúndios ineficientes permaneceram, senão aumen-
taram; ou quanto aos desequilíbrios regionais de renda,
de que já falamos aqui; ou quanto às grandes
disparidades entre um grupo limitado de pessoas de
renda elevada e a grande massa vivendo em estado de
pobreza. A persistência de tais mazelas poderia ser
imputada, entretanto, à própria República, durante
longos anos e às vezes até o atual momento. De modo
que parece excessivo o julgamento reservado ao
Segundo Reinado que, afinal de contas, se estendeu num
intervalo iniciado apenas 48 anos após a liberação dos
vínculos coloniais, que marcaram durante 322 anos a
história do Brasil.

BIBLIOGRAFIA

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Renda no Passado – Notas sobre a industrialização
brasileira. Anais SBPH, 1985.

199
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Política do Governo e Crescimento Econômico do Brasil
1889/1945. 1973.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 43(502): 13-20,


Janeiro 1997).

201
202

SÉCULO XX

202
203
APRESENTAÇÃO

Antonio Paim

Na História do desenvolvimento do Brasil (1ª


ed., 1967), Mircea Buescu afirma que “a divisão em
ciclos não representa apenas instrumento metodológico.
Corresponde a uma realidade profunda do processo
econômico nas condições de economia incipiente,
colonial e mercantilista.” Detém-se no conceito de ciclo
e enfatiza a circunstância de que determinado produto
atrai “os fatores de produção – capitais e mão-de-obra –
e se refletem em todos os outros principais setores da
comunidade.” Decorre de que “colonialismo e
mercantilismo impunham organização econômica
dirigida para a exportação e, especificamente, para a
exportação mais rentável.” E, ainda: “a importância do
setor externo persistiu mesmo após a independência e o
abandono da política mercantilista.” (obra citada; 2ª ed.,
págs. 21-23)
No tocante à indústria, logo adiante, afirma:
“Fala-se, também, num sub-ciclo da indústria, mas a
terminologia não se justifica, uma vez que o período da
industrialização, cujas datas marcantes se situam na
Primeira Guerra Mundial, na grande crise de 1929 e na
Segunda Guerra Mundial, representa justamente o
fortalecimento de economia autônoma, reduzindo a
203
204
dependência em relação ao setor externo (essa de-
pendência persiste sobretudo na medida das neces-
sidades de importações para industrialização, em ma -
térias-primas, combustíveis, equipamentos e técnicas).”
Deixa claro que introduz nova dinâmica no processo.
Como o coroamento de nossa Revolução Indus-
trial iria verificar-se nos anos subseqüentes, seus
aspectos mais destacados seriam objeto de estudos
autônomos, o que se reflete na seleção subseqüente.

204
205
TEXTOS DE MIRCEA BUESCU

BRASIL: PROBLEMAS ECONÔMICOS


E EXPERIÊNCIA HISTÓRICA

Capítulo VIII – Processo da Industrialização

A experiência histórica do Brasil em matéria de


industrialização contém importantes lições a respeito da
complexidade dos fatores positivos ou negativos que
podem condicioná-la. É verdade que o processo teve, na
base, uma situação sui generis, duplamente desvan-
tajosa: primeiro – e o mais importante – o status colo-
nial; segundo, o fato de que a própria Metrópole não
tinha potencial econômico de grande calibre para poder
transmitir tecnologia e mão-de-bra especializada, a não
ser nos setores ligados ao modelo exportador mer -
cantilista-colonialista. Entretanto, mesmo com uma Me-
trópole diferentemente estruturada, o pacto colonial
teria impedido o aproveitamento das eventuais capa -
cidades metropolitanas pela Colônia.

Primórdios do setor secundário

Apesar da utilização, por certos autores, do termo


“indústria” para várias atividades econômicas até
anteriores ao Descobrimento(1), constitui terminologia
mais adequada a que reserva a qualificação de
205
206
“indústria” à atividade secundária que produz bens,
inexistentes na natureza, através da utilização da
máquina (engenho que integra no processo de produção
fontes energéticas mais poderosas). Neste sentido não se
pode falar em indústria antes do fim do século XVIII, na
Inglaterra, quando justamente é identificado o início da
Revolução Industrial.(2) Como sempre, as separações
conceituais não são rigorosas, mas é lícito reservar o
termo “indústria” quando se trata de uso mais intensivo
da máquina.
Com algumas exceções, não desprovidas de
importância, o setor secundário limitou-se, em geral, ao
artesanato, no Brasil colonial. Há havia as tradições
índicas, embora rudimentares, em matéria de têxteis,
cerâmica, armas, canoas e utensílios comuns. Estas
ocupações continuaram entre os colonos, dentro das
limitações do pacto colonial e da tendência das classes
de nível social mais elevado de abastecerem -se na
Metrópole ou, de forma geral, na Europa. Isso aplicava -
se não apenas aos artigos de luxo – vestido, jóias,
tapetes – mas até aos utensílios, instrumentos de
produção, móveis e alimentos manufaturados (azeite,
vinho).
O artesanato local situado na zona urbana ou
perto das grandes propriedades agrícolas fornecia
alimentos, tecidos, artigos de couro e de madeira, além
das obras de construção civil. Sobretudo a partir do
ciclo do ouro, deve-se acrescentar a ourivesaria, ela,
também, cerceada, em certo momento, pelo pacto
colonial. Mais grave foi o cerceamento do artesanato
206
207
têxtil pelo Alvará de 1785 que proibiu o fabrico local de
tecidos, exceto os panos grossos para escravos. De
qualquer forma, não há elementos para avaliar, em
termos quantitativos, a importância do artesanato da
época.(3)
Como já disse, houve casos em que o setor
secundário assumiu feições de uma indústria. Um deles
foi a própria produção de açúcar, que exigia grandes
instalações, embora usando, ainda, fontes primitivas de
energia – escravos, bois e, quando muito, força
hidráulica. Outro caso igualmente ligado ao modelo de
exportação colonialista foi o da construção naval, com
vistas às necessidades dos transportes transoceânicos,
não apenas para a ligação Portugal-Brasil, mas para todo
o tráfico marítimo da Metrópole.(4) Quanto às tentativas
de organizar fundições, foram esparsas e temporárias,
não conseguindo ser relevantes no cenário da época.(5)
De fato, em decorrência do modelo mercantilista-
colonialista, faltavam os elementos necessários para a
constituição de um setor secundário poderoso.(6)
Contribuíram para isso, dentro de um verdadeiro círculo
vicioso: as proibições do pacto colonial, a redução
progressiva da renda nacional, a limitação do mercado
(em termos de demanda e meios de transportes), a falta
de capitais, o atraso tecnológico, a ausência de mão -de-
obra qualificada, a omissão do Governo.
No momento da Independência, o Brasil não tinha
um setor secundário razoavelmente evoluído para cons-
tituir-se em alicerce da futura indústria. Tudo isso

207
208
representou um elemento atrasador que devia ser
penosamente removido.
A lição de ordem geral é que, sendo o desen-
volvimento econômico um processo cumulativo de longa
duração, qualquer fator perturbador de um certo porte
marcará sua presença na evolução futura.

Início da indústria

Os fatos negativos acima enumerados prevale-


ceram, também, durante os primeiros anos da Inde-
pendência, só que naquela altura as predisposições e
possibilidades eram diferentes, apesar do enorme peso
representado pela herança colonial.
Foram notáveis as iniciativas de D. João VI, a
começar pela revogação, já em 1808, do malfadado
alvará de 1785: vantagens e auxílios à construção naval,
à fabricação de fios e tecidos, à importação de matérias-
primas para as manufaturas nacionais, às invenções
tecnológicas, etc., até a tentativa de criar uma side-
rurgia,(7) que fracassou porque continuavam, em peso,
os fatores negativos acima enumerados.(8)
O mesmo deve ser levado em consideração
quando se analisa o tratado comercial de 1810, com a
Inglaterra – que será herdado pelo Brasil independente.
Foi, sem dúvida, um tratado leonino que caracterizou o
poder de dominação da Inglaterra, não apenas sobre o
Brasil, mas, progressivamente, sobre todo o sistema
comercial mundial.

208
209
É verdade, também, que a taxa alfandegária de
15% sobre as importações de mercadorias inglesas
(estendida, de 1822 a 1828, a todos os parceiros comer -
ciais do Brasil) não podia representar verdadeira
proteção à indústria nacional existente ou por criar, mas
seria irrealista culpar o regime alfandegário – e somente
ele – pelo atraso da industrialização brasileira.
O regime alfandegário de 1810 teve efeito
altamente negativo sobre as finanças públicas, cuj a
principal fonte de receita era o imposto sobre
importação. Com uma base tributável reduzida, pois o
valor da importação só começou a crescer após 1840, e
com uma incidência limitada a 15%, a receita era muito
modesta. Isso explica, em grande parte, as di ficuldades
enfrentadas pelo Tesouro Nacional. Dos 27 exercícios
financeiros entre a Independência e meados do século
apenas 7 foram superávitários.
De qualquer forma, não se deve esquecer que o
pensamento liberal – a teoria do livre-cambismo – devia
ser questionado apenas a partir do segundo quartel do
século XIX. Por outro lado, a vocação exportadora do
Brasil, materializada, com sucesso crescente, no café,
devia refletir-se em maior simpatia por um mercado
internacional livre de barreiras, que não obstruí sse as
exportações. Não e de admirar, nessas condições, que
Governo e empresários convergissem num sentido pouco
favorável à indústria nacional e ao protecionismo.
Não obstante, houve, no período, já na primeira
metade do século XIX, uma lenta – muito lenta –
expansão das indústrias de bens de consumo básico:
209
210
alimentação e têxteis, mas também serralharias, es -
tamparias, fundições, etc. De fato, uma faixa inter-
mediária entre artesanato e pequena indústria.(9) Isso
nos leva, desde já, a admitir que o Brasil não conheceu
uma verdadeira “revolução industrial”, isto é, uma
passagem brusca e intensiva para a indústria, mas, sim,
uma evolução lenta, como aliás, se admite, também,
para outros países, como, por exemplo, a França.(10)
A atividade pioneira do futuro Visconde de Mauá,
em torno dos anos 1850-1870, era, talvez, prematura
dentro de um ambiente ainda despreparado para um
verdadeiro surto industrial – daí possivelmente o seu
fracasso final.(11) Mas o período não deixou de ser um
marco na evolução, com marchas e contra-marchas, da
indústria nacional.
É importante atentar para o trabalho preparatório
desenvolvido pelo café. O processo de causação circular
por ele proporcionado tinha caráter introvertido, isto é,
beneficiava o próprio setor, mas, com o tempo, es ses
benefícios começaram a preparar o terreno propício para
mudanças: elevação da renda nacional, aparecimento de
um espírito empresarial, ampliação do mercado, criação
de infra-estrutura comercial, de transportes(12) e de
crédito e – talvez mais do que tudo – a introdução de
imigrantes como mão-de-obra assalariada e futuros
empresários (v. capítulos IV e VI, supra). Na medida
em que o ciclo do café começou a perder sua força, os
capitalistas passaram a procurar na indústria novas
oportunidades de investimento, em condições mais
adequadas, já existentes.(13)
210
211
Paralelamente, processou-se uma mudança de
mentalidades, em primeiro lugar no sentido prote-
cionista. Apesar de interpretações errôneas, já em 1844
a tarifa Alves Branco foi razoavelmente (e, também,
explicitamente) protecionista e, a despeito de ondas de
liberalismo, o protecionismo acentuou-se ao longo da
evolução da política alfandegária do século XIX,(14) ao
lado de outros incentivos industriais.(15) No fim do
século, o pensamento industrialista firmou-se, muitas
vezes acompanhado do espírito nacionalista.(16) Como
manifestações do empresariado industrial, cite-se a
criação da Associação Industrial em 1881 e do Centro
Industrial do Brasil, em 1902.
Não ficaria completo este panorama complexo
dos condicionamentos do crescimento da indústria se
não acrescentássemos o papel dos capitais estrangeiros e
do Governo (em grande parte, ainda na base de
empréstimos externos) nos investimentos de infra-
estrutura, sobretudo de transportes ferroviários. Con-
tudo, era impossível esperar uma atuação mais eficiente
do setor público quando ele se debatia no meio de
enormes dificuldades financeiras (v. capítulos V. supra,
e IX, infra).
O crescimento da indústria foi, ainda, modesto,
conforme nos ensinam os poucos dados estatísticos
disponíveis,(17) mas os progressos foram inegáveis em
termos de mudança da orientação da economia.

Os surtos industriais

211
212
É bastante enraizada a idéia de que o primeiro
surto industrial se verificou na primeira década da
República – no período de inflação acelerada rotulado
como “Encilhamento”.(18) Implicitamente, seria um
argumento de que a inflação ajuda o desenvolvimento
econômico.(19)
Não há dúvida de que a lei de 1888
(implementada em 1890) que estabeleceu normas mais
liberais no direito de emissão de moeda pelos bancos
veio não apenas oferecer maiores recursos aos
cultivadores gravemente atingidos pela abolição da
escravidão, mas também conferir maior liquidez ao
sistema, ressentido pela política contencionista dos
últimos decênios do Império. Isso podia ajudar a
expansão das atividades econômicas, inclusive in -
dustriais, dentro das novas mentalidades, exaltadas pelo
novo status político do País.
Sabe-se, entretanto, que a euforia e a liberdade
descontrolada resultaram principalmente num surto
especulativo: as operações na Bolsa de Valores
cresceram mais do que as indústrias. Se houve um certo
crescimento industrial, não se dispõe de nenhuma
evidência empírica de que foi devido à inflação, quando
ele pode ser melhor explicado pelos condici onamentos
já mencionados.
Ademais, de acordo com as limitadas informações
referentes aos investimentos industriais (capacidade
energética instalada, consumo aparente de aço e
cimento, importações de bens de capital), o período
seguinte à política saneadora de Joaquim Murtinho, de
212
213
1903 até a véspera da Primeira Guerra Mundial (o
chamado Reerguimento Econômico), um período de
estabilidade monetária e financeira, com uma inflação
mínima, sobretudo na sua parte inicial, apresentou
resultados muito mais favoráveis.(20)
Como se explicaria o sucesso? Não apenas pelo
ambiente político, social e psicológico – paz,
estabilidade, prestígio político, confiança nacional,
euforia – nem apenas pelo ambiente ideológico –
industrialismo, nacionalismo – mas também pela
conjugação dos esforços do Governo e dos empresários
(incluindo os capitalistas estrangeiros). O saneamento
da moeda e das finanças fortaleceu a posição
internacional do País atraindo investimentos e
empréstimos, estes, parcialmente para o Governo que,
não precisando mais cobrir déficits orçamentários, os
utilizou em investimentos de infra-estrutura.(21) As
imigrações forneceram mão-de-obra mais especializada,
alguns capitais, tecnologia, espírito empresarial. O bom
comportamento do setor externo (com a ajuda da
borracha e do café, sustentado pela primeira operação de
valorização) manteve um alto grau de capacidade de
importar.
Esse relacionamento do progresso econômico (ou,
particularmente, industrial) com o setor externo leva à
discussão da teoria tradicional dos “choques externos”,
segundo a qual os surtos industriais do Brasil foram
provocados de fora, por choques (a Primeira Guerra
Mundial, a Grande Depressão, a Segunda Guerra
Mundial) que afastaram a concorrência estrangeira, por
213
214
um lado, e privaram o País dos fornecimentos
estrangeiros, do outro (ou, num outro enfoque, tornaram
os preços de importação relativamente mais caros). Isso
teria induzido os empresários a eliminar o
estrangulamento através da expansão da indústria
nacional.(22)
Por trás dessa demonstração sente-se implici-
tamente a idéia de que as classes ligadas ao setor
exportador não teriam permitido a industrialização, a
não ser sob o impacto do “choque externo”. Diga-se de
passagem que é uma injustiça, uma vez que o
pensamento industrialista, protecionista e nacionalista
apareceu e cresceu antes da época dos choques externos.
A tese tradicional dos choques externos foi, aliás,
fortemente questionada pelas teorias “revisionistas”.(23)
Se entendermos por progresso industrial o
aumento da capacidade de produção, através do
investimento, é difícil admitir que isso ocorreu num
período de colapso do comércio internacional quando o
País não tinha condições de importar fatores indis -
pensáveis – equipamentos e tecnologia – que, por de-
finição, ele não era capaz de produzir. Podia haver,
apenas, oportunidades melhores de venda, pelas
indústrias já existentes, inclusive para mercados
externos (América Latina, África do Sul), na medida em
que o “choque” eliminava a concorrência dos países
industrializados, mas não os fechava, por razões
geográficas, à indústria brasileira – o que aconteceu
durante a Primeira Guerra Mundial e, ainda mais, a
Segunda.
214
215
Na medida em que a indústria nacional teve novas
oportunidades de venda nos mercados da América
Latina e da África do Sul, e atendeu a essa demanda
através da utilização intensiva da capacidade instalada,
ela efetivou um verdadeiro “desinvestimento”, isto é,
uma depreciação mais acelerada dos equipamentos.(24)
Os lucros assim conseguidos podiam (mas não
obrigatoriamente) servir para novos investimentos, mas
só depois do choque, uma vez normalizada a situação do
mercado internacional – o que ocorreu sobretudo após a
última guerra. O choque pôde constituir uma adver -
tência, provocou uma mudança de mentalidade cujos
efeitos se materializariam após a normalização do
mercado internacional. Portanto, os choques podem ter
contribuído para despertar a consciência desenvol -
vimentista, para convencer da necessidade de um
esforço maior no sentido de tornar o País menos
dependente do exterior – o que caracterizou, em todo o
Mundo, o período “autarcista” entre a Grande Depressão
e a última guerra. Mas a realização se efetivou nos
períodos de relativa normalidade.
As estatísticas são de claridade meridiana (v.
quadro no fim do capítulo). Os indicadores de inves-
timentos industriais apresentam níveis mais elevados
durante os períodos entre os choques, e não durante os
choques. A própria produção industrial registra taxas de
crescimento mais altas nas épocas de normalidade
(durante a Depressão a taxa chegou a ser negativa) e as
taxas de crescimento do produto real apresentam as
mesmas flutuações (v. quadro no fim do capítulo II,
215
216
supra). Vale observar, entretanto, que, de modo
sistemático, o produto industrial acusou taxas de
expansão maiores do que o produto total – o que
caracteriza o dinamismo do setor e, conseqüentemente, a
transformação estrutural da economia. O crescimento
concentrou-se, nas indústrias de bens de consumo não
duráveis, com poucas exceções (cimento, siderurgia),
substituindo-se as importações que, antes, atendiam à
demanda interna. Após a Segunda Guerra Mundial, o
processo estendeu-se aos bens de consumo duráveis.
A sucessão de surtos industriais seria, então, a
seguinte:
a) 1903-1913 – de que já falamos;
b) 1920-1929 – bom comportamento do setor ex-
terno, garantindo uma razoável capacidade de importar;
entrada de capitais estrangeiros (investimentos incen -
tivados no setor do cimento e da siderurgia); reduzida
atividade investidora do Governo que, não obstante a
política monetária e cambial um tanto confusa, não
chegou a prejudicar o crescimento da indústria e da
economia em geral;
c) 1933-1939 – a retração do comércio inter-
nacional não impediu as importações de equipamentos
industriais, graças a medidas seletivas; o Gover no não
gastou muito em investimentos,(25) mas praticou uma
política mais agressiva de fomento à indústria, através
da expansão do crédito especializado(26) e da insti -
tucionalização dos instrumentos de amparo.(27) Não se
deve minimizar a importância das mentalidades reinan-
tes, não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro: nacio -
216
217
nalismo e autarcismo – o que devia constituir-se num
suporte psicológico dos esforços pela indus-
trialização.(28)
d) 1946-1961 – processo de industrialização in-
tensiva através da substituição de importações (processo
algo fácil por dirigir-se a um mercado já definido);
ampliação do planejamento econômico,(29) con cre-
tizado progressivamente no pós-guerra: Plano SALTE
(1948), Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico
(1951), trabalhos da Comissão Mista Brasil-Estados
Unidos (1951/1953), Banco Nacional de Desen -
volvimento Econômico (1953), Plano de Metas (1957);
várias medidas de política comercial e cambial a favor
da indústria (taxa múltipla de câmbio; proteção
aduaneira; lei do similar nacional – aliás, existente
desde 1911; incentivos diretos, por exemplo, GEIA –
Grupo Executivo da Indústria Automobilística);
crescente interferência direta do Governo através de
empresas estatais ou de economia mista (ação iniciada
desde o tempo da guerra: Cia. Siderúrgica Nacional,
Cia. Vale do Rio Doce, Cia. Nacional de Álcalis,
Petrobrás, etc.; sobre a estatização, v. capítulo IX,
infra); apelo para os capitais estrangeiros (introdução do
câmbio livre pela Lei 1.807/1953; Instrução 113/1955,
da SUMOC, permitindo a entrada de conjuntos
industriais sem cobertura cambial).(30)
O processo de industrialização realizado neste
último período não foi isento de defeitos (ênfase para a
produção de bens de consumo duráveis, concentração
regional, tecnologia capital-intensiva pouco geradora de
217
218
emprego), mas é incontestável que permitiu grandes
progressos, manifestados em mudanças estruturais: em
1960, 25,8% do PIB provinham do setor secundário,
12,7% da população ativa concentrava-se no setor,
30,9% da produção industrial eram gerados pelas
indústrias modernas de ponta.
Mais questionáveis são, contudo, os
desequilíbrios criados fora do setor industrial: o pouco
interesse dispensado à agricultura, o descuido com o
comportamento das exportações, o esquecimento do
desenvolvimento social (educação, habitação) e, por
cima de tudo, os germes de uma inflação acelerada.

NOTAS

(1) É o caso do livro, aliás, de incontestável valor documentário,


de Heitor Ferreira Lima, 98, que abrange o período colonial.

(2) Um tear, mesmo mais sofisticado, não é máquina, no sentido


rigoroso da palavra, enquanto foi movimentado pela força do
homem. Senão, a própria roda do oleiro seria máquina e sua
utilização uma indústria e não um artesanato, como tradi -
cionalmente é qualificada.

(3) Para a descrição das atividades artesanais, v. Lima, op. cit.,


passim e 99, p. 75-126.

(4) Ibidem, p. 115-138; para a contribuição na carreira da Índia, v.


Lapa, 88 e 89, p. 231-278.

(5) Lima, 98, p. 115-138.

(6) O caso das Colônias inglesas da América d o Norte foi


diferente. Sem exagerar a importância do fator geográfico, pode -
se admitir que ele foi relevante para a modalidade do colonialismo

218
219
ali aplicado: em se tratando de colônias de zona temperada, não
havia condições de organizar a sua economia com v istas à
exportação para a Metrópole. A alternativa foi permitir atividades
para consumo local ou para exportação em zonas de estruturas
econômicas diferentes (por exemplo, Caribe) e tributar essas
atividades. O pacto colonial funcionava mais do lado das
importações das Colônias, e ainda parcialmente. Isso permitiu,
desde os primórdios, a constituição de uma economia algo autô -
noma e introvertida – o que correspondia, também, às intenções
dos colonos, diferentes da mentalidade mercantilista dos colo -
nizadores do Brasil.

(7) Simonsen, 153, p. 442-449; Lorenzo-Fernandes, 102, p. 85-87.

(8) Simonsen, 152, p. 11: “Na primeira metade do século XIX, a


inexistência de fatores positivos à industrialização do Brasil, a
política livre-cambista que adotamos e a concor rência das
manufaturas inglesas impediram a nossa industrialização.” Parece -
me que o primeiro argumento tem peso maior do que os demais.

(9) Lima, 99, p. 206.

(10) É a tese de Jean Marczewski, 107. A rigor, houve uma única


e verdadeira “revolução” industrial: a que ocorreu na Inglaterra,
na segunda metade do século XVIII.

(11) Nisso tiveram mérito os contatos com o estrangeiro,


possibilitados pela abertura dos portos, o tratado de 1810 e a
entrada de comerciantes, sobretudo ingleses. É bom lembrar que
Irineu Evangelista de Souza fez sua aprendizagem no Rio de
Janeiro, numa casa comercial inglesa – Carruthers – e, depois, na
própria Inglaterra. É um exemplo da importância da abertura dos
horizontes culturais e do intercâmbio tecnológico internacional.

(12) As ferrovias acompanharam a trajetória do café: Santos -


Jundiaí (1868), prolongada até Campinas (1872); Itu (1873);
Mogiana e Sorocabana (1875); extensão da ferrovia D. Pedro II
até Queluz (1877) e Ribeirão Preto (1883).

219
220
(13) Os primeiros capitais da ind ústria paulista procederam dos
cafeicultores, aos quais se acrescentaram os dos importadores e
dos imigrantes (v. Dean, 51).

(14) A reação liberal venceu sobretudo nas tarifas Souza Franco


(1857) e Silva Ferraz (1860), mas o protecionismo firmou -se; a
tarifa Belisario (1887) é um exemplo.

(15) É preciso lembrar, como instrumento permanente para


atração dos investimentos estrangeiros – na indústria ou na infra-
estrutura – a garantia de juros (de 5 a 7% ao ano) oferecida pelo
Tesouro Nacional, desde 1852. A tentativa de renovação da
indústria açucareira foi feita pela lei de 1875 que garantiu juros
de 7% para a criação de engenhos centrais. O fracasso desta
fórmula teve várias causas que não cabe analisar aqui.

(16) Os trabalhos fundamentais são de Dean, op. cit., e Luz, 103.


Os nomes de Américo Werneck, Amaro Cavalcante, Alcindo
Guanabara, Serzedelo Corrêa, Jorge Street, e outros, devem ser
citados como paladinos desse pensamento, já passando para o
século XX.

(17) Sobre a indústria têxtil, v. o livro clás sico de Stanley Stein,


162. Na década de 1870/1880, as importações de máquinas e
acessórios representavam apenas cerca de 3% do valor total das
importações.

(18) Com maior rigor de terminologia, o Encilhamento foi o


período de 1890 a 1893 quando a inflaçã o resultou do excesso de
especulação bursátil e crédito bancário. A inflação continuou até
1898, porém tirando sua origem, como tradicionalmente, do
déficit orçamentário do Tesouro Nacional ( v. capítulo X, infra).

(19) Sobre este ponto teórico pode -se consultar: Magalhães, 104,
e Simonsen, 150.

(20) Buescu, 29. Houve uma certa alteração estrutural do produto


real: entre 1900 e 1913, o setor primário caiu de 40,4% para
33,3% do produto total e o secundário aumentou de 13,5% para
15,8%, em 1920 representariam 33,5% e 18,0% respectivamente
220
221
(Haddad, 74). Sobre o período 1903/1913, v. Apêndice 8, infra.
Quanto à política saneadora de Murtinho, acho que foi
injustamente criticada, como em Lima, 88 bis, ps 136-149 – mas o
assunto ultrapassa os limites deste livro .

(21) Sobre os investimentos estrangeiros em 1860/1913, v. Castro,


45.

(22) Para a teoria dos choques externos (iniciada com Simonsen,


152), v. Furtado, 66.

(23) Para as teorias revisionistas: sobre a Primeira Guerra


Mundial – Dean, op. cit.; para a Grande Depressão – Peláez, 130/
para a Segunda Guerra Mundial, Buescu, 24. Posições inter -
mediárias: Malan et alii, 105 e Versiani, 165 bis.
A chamada “escola estruturalista” é defensora da teoria
tradicional dos choques externos. Por exemplo, Tavares, 165: “O
recente processo de desenvolvimento econômico do Brasil teve
lugar fundamentalmente sob o impacto das restrições do comércio
exterior.” Os revisionistas colocam-se no pólo oposto: “Longe de
resultar das dificuldades das importações durante as duas guer ras
mundiais e a Depressão... o desenvolvimento inseriu -se num
conjunto de condições favoráveis ao comércio exerior” (Nathaniel
H. Leff, Long Term Brazilian Economic Development ). Sobre a
Primeira Guerra Mundial, Simonsen ( op. cit.) havia escrito: “A
guerra européia deu novo e decisivo imuslo à evolução industrial
de São Paulo” – enquanto Dean (op. cit.) rebateu: “Poder-se-á até
perguntar se a industrialização de São Paulo não se teria
processado mais depressa se não tivesse havido guerra.”

(24) Buescu, 24. Como exemplo, as importações maciças de fusos


e teares após o término da Segunda Guerra Mundial – sinal de que
a indústria têxtil havia esgotado seus equipamentos, sem
possibilidade de reposição durante a guerra.

(25) Segundo Furtado (op cit.), o surto industrial após a Grande


Depressão resultou do mecanismo de defesa do café que permitiu
a manutenção do nível de renda do setor – renda essa que teria
sido transferida para a indústria. Mas, então, o surto industrial

221
222
seria devido à defesa do comércio exter ior e não ao seu abandono,
como dizem os estruturalistas.

(26) Criação da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial, do


Banco do Brasil (1937).

(27) v. Wirth, 172.

(28) Um marco decisivo, nesse sentido, idealizado já antes da


guerra, mas realizado graças às motivações trazidas pela guerra,
foi a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, com a sua usina
de Volta Redonda (1942-1946).

(29) Lafer, 86.

(30) Malan et alii, op. cit.; Lorenzo-Fernandez, op. cit.

Capítulo IX – Papel do Governo

.....................................................................................

Rumo à economia mista

Apesar da persistência prioritária do pensamento


liberal, o cenário da política econômica mudou, em todo
o Mundo, a partir do fim do século XIX. As deficiência s
da economia de mercado levaram à intervenção cres -
cente do Governo no processo econômico – tendência
essa que se acentuou sob o impacto das dificuldades
trazidas pelas duas Guerras Mundiais e pela Grande
Depressão de 1929. O resultado, em escala mundial, foi
que, cada vez mais, se abandonava a economia de
mercado, no sentido puro do liberalismo clássico, a
222
223
favor de um sistema de economia mista em que
sobrevivem a propriedade individual, a empresa e a
iniciativa privadas e o próprio mercado, porém com a
imissão crescente do Governo, como orientador auto-
ritário da economia e como empresário e investidor.(1)
Na atividade não propriamente econômica do
Governo foram registrados progressos – fruto do
amadurecimento da comunidade, da experiência
adquirida e do aprimoramento dos quadros humanos. A
segurança externa foi preservada, sendo favorecida,
durante as duas grandes conflagrações mundiais, pela
posição excêntrica do País – o que permitiu um
envolvimento limitado, fora das fronteiras. A projeção
internacional do Brasil (como marcos: a conferência de
Petrópolis, a participação na Conferência de Haia no
período Rodrigues Alves-Afonso Penna. A Operação
Pan-Americana no Governo Kubitschek) criou um clima
de confiança e um sentimento de grandeza que devem
ter influenciado favoravelmente a atuação dos agentes
econômicos.
Progressos foram alcançados, também, em termos
de segurança interna, embora prejudicados, ainda, pelas
distâncias e pela persistência das estruturas locais,
passíveis de praticar abusos. É questionável a eficiência
da descentralização administrativa instaurada pela
República. De qualquer modo, a concentração do poder
econômico nas mãos do Governo central tornou a
descentralização, do ponto de vista econômico, bastante
ilusória. Essa concentração resultou não apenas do
processo político e das ambições de poder do centro,
223
224
mas também da necessidade de um planejamento
econômico centralizado, como veremos mais adiante.
A atividade normativa do poder público diver-
sificou-se e ampliou-se, tal como aconteceu em todo o
Mundo. A política monetária continuou seguindo os
moldes tradicionais, com períodos de maior ortodoxia
(durante as presidências Campos Salles, Rodrigues
Alves, Arthur Bernardes e Washington Luiz) e de maior
liberdade monetária (no Encilhamento e no Governo
Kubitsckek). Firmou-se e implementou-se a idéia de
utilizar o sistema bancário como instrumento de-
senvolvimentista. A Lei de 1890, da multiplicidade dos
institutos emissores do papel-moeda, já objetivava a
recomposição da liquidez do sistema para não prejudicar
as atividades econômicas. Inovações institucionais
foram feitas com a criação da Carteira de Redescontos,
do Banco do Brasil (de curta duração: 1921-1923 e
reintroduzida em 1935) e sobretudo da Carteira de
Crédito Agrícola e Industrial, do mesmo Banco (1937),
a fim de oferecer facilidades de crédito com vistas ao
desenvolvimento econômico.
Embora durante a quase totalidade do período o
poder emissor e várias atribuições de autoridade
monetária foram conferidos ao Banco do Brasil,
instituição privada, porém sob o controle do Governo, a
ação normativa do setor público no setor monetário
verificou-se, cristalizada em várias instituições, tais
como a Caixa de Conversão (1906-1914) e a Caixa de
Estabilização (1926-1929) e, mais tarde, a Superin-
tendência da Moeda e do Crédito – SUMOC (1945-
224
225
1965), com prerrogativas de banco central.
Estas instituições – principalmente as duas
primeiras – lidavam com o problema cambial, reputado
sempre da maior importância.(2) Em geral, dominou, até
a Segunda Guerra Mundial, a ortodoxia monetária e
cambial, sobretudo após a reforma monetária de 1926
até o estouro provocado pela Grande Depressão, às
vezes com efeitos deprimentes para a economia. Depois
da guerra, a política cambial tornou-se mais complexa –
com taxas múltiplas através de ágios e bonificações em
cima da taxa cambial oficial – tudo isso com o objetivo
de defender o balanço de pagamentos e, mais importante
e mais inovador, de estimular e proteger ini ciativas
desenvolvimentistas.(3)
Atendendo aos crescentes anseios de industria-
lização, reforçadas pela ideologia nacionalista, a
política alfandegária acentuou o seu caráter prote -
cionista (a introdução da tarifa – ouro em 1890 e 1898
teve cunho predominantemente fiscal, porém com efeito
protecionista). Entretanto, em épocas mais recentes as
tarifas alfandegárias desempenharam papel de menor
importância: as alíquotas específicas da tarifa de 1934
tornaram-se, cada vez mais, inexpressiva em face da
elevação continuada dos preços, até 1957, quando foi
adotada uma tarifa ad valorem (Lei 3.244/1957). A
proteção da indústria nacional foi efetivada através da
política cambial e dos controles diretos (licença de
importação). Vale mencionar a concessão do “custo de
câmbio” (taxa de câmbio oficial, muito abaixo da taxa
do mercado) para pagamento das importações consi -
225
226
deradas prioritárias para o desenvolvimento (a mesma
Lei 3.244/1957).
A intervenção normativa do Governo manifestou -
se em outros dois campos, algo inovadores no País.
Primeiro, em políticas redistributivas de renda, seja de
renda pessoal (através do imposto de renda, introduzido
em 1924), seja da renda regional (através de organismos
especializados, tais como DNOCS – Departamento
Nacional de Obras Contra a Seca, a SPVEA –
Superintendência do Plano de Valorização Econômica
da Amazônia e, no fim do período, a SUDENE –
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste.
Segundo, em políticas anticíclicas – de fato,
resumidas na defesa do café contra as depressões do
mercado mundial, começando com a Convenção de
Taubaté (1906), continuando com os planos de valo-
rização após a Grande Depressão.(4)
Ademais, a intervenção governamental se
aprofundou através de controles setoriais, ou através de
instituições especializadas, tais como os Institutos do
Café, do Açúcar e do Álcool, do Pinho, do Sal, do Mate,
assim como o Conselho Nacional do Petróleo, e outros.
A novidade mais recente – ocorrida, também, em
outros países – foi a sistematização da intervenção do
setor público através do planejamento. Os primeiros
planos econômicos aparecem na véspera da Segunda
Guerra Mundial(5) e após seu início, e tinham objetivos
limitados de mobilização econômica: Plano Especial de
Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa Nacional
(1939), Plano de Obras e Aparelhamento (1944).
226
227
Apesar da resistência dos liberais puros,(6) as
experiências de planejamento continuaram e se am -
pliaram no pós-guerra, embora sem se chegar ainda a
verdadeiros “planos” de caráter macroeconômico(7). O
Plano SALTE, de 1950, era apenas um previsão de veras
para alguns setores prioritários, daí a sigla: Saúde,
Alimentação, Transportes, Energia. O Relatório da
Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (1952) continha
um diagnóstico macroeconômico do Brasil, mas, como
solução, preparou apenas planos setoriais. O mesmo
caráter setorial teve o Plano de Metas (1957), sem
nenhuma avaliação macroeconômica e sem programação
financeira (o Programa de Estabilização Financeira, de
1959, foi rejeitado). O planejamento econômico, no
sentido completo da palavra, desenvolveu-se a partir da
década de 1960.
O aumento da participação do setor público da
economia não se manifestou apenas sob o ângulo
normativo. Já durante o “Reerguimento Econômico”
(1903-1913) o Tesouro Nacional reservou uma boa
parcela de sua despesa para investimentos de infra -
estrutura; portos, ferrovias, saneamento, iluminação;
essa parcela chegou a 24% em 1912. Os recursos foram
obtidos principalmente através de empréstimos externos.
No período que medeia entre a Primeira e a
Segunda Guerra Mundial, a parcela da despesa públi ca
destinada à formação de capital foi modesta, mas, em
compensação, o Governo começou a agir através de
empresas estatais ou de economia mista, absorvendo
vários setores básicos, além da infra-estrutura. Entre
227
228
estas empresas deve ser citada, em primeiro l ugar, como
pioneira de grande porte, a Companhia Siderúrgica
Nacional (1942), seguindo a Companhia Vale do Rio
Doce, Companhia Nacional de Álcalis, Fábrica Nacional
de Motores e, mais tarde, como outro marco importante
a Petrobrás (1953) – além de outras empresas, sejam
criadas pelo Governo (Furnas, CEMIG), sejam entradas
sob seu controle (Cosipa, Usiminas). No fim do período
em foco, o Governo tinha domínio majoritário ou
mesmo total em setores estratégicos como eletricidade ,
petróleo, ferrovias, siderurgia, mineração, navegação,
comunicações.
Sem dúvida, é impossível negar o papel positivo
do setor público no processo de investimentos
desenvolvimentistas, sobretudo nos setores em que a
iniciativa privada não tinha condições de atuar por falta
de recursos suficientes e de interesse em termos de
lucros imediatos. O exemplo do Brasil não serviria de
argumento a favor de uma tese radicalmente liberal. Não
obstante, é verdade que muitas vezes se verificaram as
insuficiências das empresas públicas: falta de efici ência,
desperdício, empreguismo, politização. A lição histórica
leva, como amiúde acontece, a uma posição mediana de
colaboração empresa privada/Governo.

Participação do setor público na economia


(em % do PIB)
1950 1960
Governo
- Despesa Total 19,0 24,2
- Consumo 12,7 14,2

228
229
- Poupança 2,2 4,0
- Formação bruta de capital 4,7 5,7
- Impostos diretos e indiretos 15,8 22,2

NOTAS

(1) Sobre o confronto empresa/Estado, v. Simonsen, 150, p. 181-


206; sobre a evolução mais recente no Brasil, v. Villela-Baer, 168.

(2) Tanto a Caixa de Conversão como a de Estabilização tinham


como objetivo a manutenção do equilíbrio da taxa de câmbio; para
detalhes, v. Villela-Suzigan, 169; Peláez-Suzigan, 131; Neuhays,
124.

(3) Detalhes em: Baer, 5; Malan et alii, 105.

(4) As interpretações e avaliações da política de valorização


depois de 1930 são muito controvertidas: v. Furtado, 66; Peláez,
130.

(5) A política de controle global, embora sem elaboração de


planos, foi praticamente iniciada com o Conselho Federal de
Comércio Exterior (1934-1941), e continuada com o Conselho
Nacional de Política Industrial e Comercial (1944 -1946) e a
Comissão de Planejamento Econômico (1944 -1945).

(6) Sobre a controvérsia acadêmica em torno do planejamento, v.


Simonsen-Gudin, 154.

(7) v. Lafer, 20.

(Transcrito de Brasil: Problemas econômicos e experiência


histórica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1985, p. 83 -95 e
106-111)

229
230

LIÇÕES DA HISTÓRIA

O título da palestra sugere logo a pergunta se a


história é capaz de fornecer lições válidas para o
presente e o futuro. Posto em termos mais gerais seria
perguntar se a experiência dos fatos passados constitui
um bom apoio para tomada de decisões ou pelo menos
para compreensão da realidade. Nestes termos a resposta
afirmativa parece indubitável, pois todas nossas ações, a
não ser os atos puramente reflexos, têm algum respaldo
numa experiência anterior: sem esta capacidade a vida
se tornaria um pandemônio de busca interminável e às
vezes inglória de soluções para cada alternativa
aparecida perante nosso juízo. Entretanto, na realidade o
aproveitamento da experiência passada depende de
inúmeros fatores, não apenas da maior ou menor
evidência da qualidade da experiência passada, mas
também e sobretudo da nossa própria capacidade
racional de avaliar e assimilar. Um filósofo chinês teria
dito que o homem não aprende por experiência, mas sim
por fadiga – mas afinal a fadiga é ela mesma ainda uma
experiência repetitiva.
Não vou falar desse aspecto psicológico e
pedagógico que pertence a domínios em que, como
leigo, não tenho direitos de entrar. Quero referir -me à
utilidade do conhecimento histórico, especificamente
para o agente econômico e, mais ainda para o policy-
maker, na tomada de decisões dentro do processo
econômico sempre em evolução. A pergunta singela é se

230
231
o estudo da história tem alguma utilidade para o
presente e, mais audaciosamente, para o futuro.
Muitos poderiam questionar a utilidade do co-
nhecimento de épocas remotas, ultrapassadas, enquanto
estamos enfrentando angustiantes problemas atuais. Por
outro lado, muitos historiadores estão preocupados
principalmente com os aspectos pragmáticos de suas
indignações e obstinados em tirar alguma lição do
passado. Essa preocupação não é desprezível e ninguém
se atreveria em exigir sua expulsão dentre os objetivos
do historiador. Mas acho que o caso é mais complexo e
precisa de alguns reparos.
Antes de mais nada, o estudo do passado, tal
como outros objetivos das disciplinas sociais, pode ser
desprovido de qualquer conotação pragmática. Ele p ode
justificar-se simplesmente pelo desejo de conhecer o
passado, pela curiosidade científica que se encontra nos
alicerces de toda ciência e constitui um dos grandes
mistérios e méritos da mente humana. Poder-se-ia alegar
que eventualmente o motor inicial de toda indagação
teria sido uma necessidade prática – a exigência de
resolver problemas ligados à própria sobrevivência.
Entretanto, em seguida, através de um mecanismo
mental peculiar, a procura utilitária teria se sublimado,
passando a justificar-se per se, como uma vitória do
intelecto, sem nenhuma preocupação pragmática. O
espírito chegou a encontrar satisfação no simples
desvendar dos segredos da Natureza, da Vida e da
História, uma vitória sobre o mundo em que ele se
encontra, visto numa perspectiva seja espacial, seja
231
232
temporal.
Não obstante, por mais desinteressado que seja o
conhecimento do passado, ele pode trazer valiosos
ensinamentos. Em primeiro lugar, o estudo mostrará a
complexidade do fenômeno social, o que servirá como
advertência contra eventuais tendências de simplificação
e contra uma visão às vezes elegante, porém irrealista
dos fatos históricos, uma visão centrada em torno de um
modelo pré-concebido de acordo com as preferências ou
limitações do historiador.
Em segundo lugar, o conhecimento desinteres-
sado não deixa de revelar a inter-dependência dos atos
históricos – sociais, econômicos, políticos, culturais –
reciprocamente condicionados. Em outras palavras,
descobre-se a unidade dos valores que constituem a
cultura de uma sociedade numa certa época. Acho que
essa lição não é desprezível: ela fornece uma orientação
valiosa para compreender outros momentos passados ou
atuais. Assim, o conhecimento neutro não deixará de
revelar um significado pragmático. Entretanto, se os
aspectos globais do conhecimento – complexidade e
interdependência – se aplicam de forma generalizada
aos fatos históricos, a pergunta que tanto o scholar
quanto o leigo enfrentam é se o conteúdo dos fatos
passados, fora do seu momento histórico, pode ainda ser
útil, ou seja, se o passado serve para compreender o
presente e enfrentar o futuro.
Se a resposta a esta indagação é positiva, isto
explicaria o apelo que, a certa altura, os economistas se
vêem dispostos a fazer a favor do conhecimento da
232
233
história. Como observou W. Arthur Lewis, “todo
economista atravessa uma fase em que não o satisfaz a
base dedutiva da Teoria Econômica e acredita que
possuirá visão muito melhor do processo econômico
pelo estudo dos fatos históricos”. (A Teoria do Desen-
volvimento Econômico).
Referindo-se quase explicitamente às mencio-
nadas características de complexidade e interde-
pendência, Joseph Schumpeter se manifestou de modo
mais incisivo: “Ninguém poderá entender o complexo
econômico de qualquer época se não possuir uma visão
adequada dos fatos históricos, e senso histórico bastante
ou algo que seja classificado como experiência his -
tórica... A maioria dos erros fundamentais corren-
temente cometidos em análise econômica é devida à
deficiência da experiência histórica”. (A História da
Análise Econômica).
Qual é, entretanto, o alcance dessa experiência?
A sabedoria popular afirma com a mesma segurança que
“toda história se repete” e que “a história nunca se
repete”. É a alternativa entre o nil novi sub sole do
Eclesiastes – nada é novo neste mundo – e o planta rhe
de Heráclito – tudo flui, nenhum momento do passado
voltará. Numa visão criteriosa, os historiadores aceitam
o valor da experiência passada para a compreensão do
presente, admitindo implicitamente que há uma certa
lógica evolucionista que liga o momento atual ao curso
anterior da história. Escreveu Frédéric Mauro: “Para
compreender nossa economia do presente torna-se
preciso compreender a do passado”. (Nova História e
233
234
Novo Mundo). Isso leva, de certa forma, à asserção
dramática de que “quem não aprende as lições da
história está condenado a repeti-la.” Mas, até que ponto
a experiência histórica pode ser aproveitada? Em que
medida a lição do passado pode ser aplicada às
condições do presente: Será que o mundo não evolui
continuamente de modo que o momento atual difi-
cilmente ou mesmo impossivelmente se assemelhará ao
momento passado? A opção exigirá racionalidade e
comedimento.
Ortega y Gasset apontou uma solução mediana,
destacando a tênue margem de aproveitamento da
experiência passada. Escreveu ele: “O saber histórico...
não dá soluções positivas ao novo aspecto dos conflitos
vitais: a vida é sempre diferente do que foi; mas ele
evita cometer os erros ingênuos de outros tempos”. ( A
Rebelião das Massas). Assim Ortega y Gasset achava
mais importante a história dos erros do que dos acertos,
mas isso parece confirmar indiretamente o valor da
experiência histórica e a possibilidade de seu apro -
veitamento. Qual o caminho a seguir?
Uma base racional pode ser encontrada numa
formulação lapidar de John Hicks: “Cada fato histórico
tem algum aspecto sob o qual é único; mas em outros
aspectos ele é sempre parte de um grupo, às vezes de u
grupo bem numeroso”. (Uma Teoria de História
Econômica). De fato, Hicks refere-se à possibilidade de
repetição num universo estático, mas o binômio
unidade/repetição é também uma realidade numa
perspectiva dinâmica. Vale um certo desenvolvimento
234
235
em torno da observação de Hicks.
A essência do espírito humano, o comportamento
típico do homem, constituiria um argumento a favor de
uma certa repetição. Contudo, em que pese o
comportamento ligado à própria psicologia, como, na
econimia, o de um abstrato homo oeconomicus, há
sempre variedade individuais e coletivas ligadas aos
diversos fatores culturais, que não permitem iden tificar
uma verdadeira repetição ne varietur dos atos humanos
ao longo da história. Pois os sistemas econômicos, as
instituições, as atitudes e reações variam no tempo e no
espaço em função daqueles fatores – é um universo em
perpétuo movimento em que apenas através de uma
cuidadosa operação de redução e identificação se pode
encontrar semelhanças e repetições.
Assim, o passado é, até certo ponto, um fato
único, em cujo seio entretanto é possível encontrar
algumas permanências, uma certa continuidade que
justificam tomá-lo como padrão, tirando conclusões para
o presente. É uma questão de discernimento e come -
dimento, usar com cautela o cotejo temporal, a fim de
ver o que realmente é lícito extrair da experiência
passada. Frédéric Mauro formulou uma vez essa lição de
sabedoria: “A confrontação do passado e do presente
deve conduzir-nos à descoberta dos paralelismos, das
analogias, mas também das diferenças igualmente
instrutivas”. (ibidem)
O passado, mesmo quando diferente do presente,
oferece uma lição valiosa: o que é permanente é o ser
humano, com seus condicionamentos mutantes – ins-
235
236
titucionais ou conjunturais. Qualquer experiência
anterior contém uma lição seja no seu aspecto constante,
seja per a contrário. É importante apenas distinguir o
que é permanente ou pelo menos repetível, e o que é
passageiro, contingente, portanto sem aplicação válida
no presente ou no futuro. Aí aparece o perigo de uma
aplicação cega da idéias de que o passado se repete ou
de uma interpretação literal do tradicional aforisma nil
novi sub sole.
Quais, então as condições da experiência his -
tórica para efeito de aproveitá-la no presente? Uma
exigência básica seria o conhecimento exaustivo, na
medida do possível, da realidade histórica, a fim de
separar os fatos de caráter permanente (por exemplo os
ligados à própria natureza humana) e os fatos de caráter
passageiro, ligados às realidades institucionais e con -
junturas específicas, não repetitivas. A compreensão da
lição dependerá da capacidade racional e do preparo
intelectual do observador: perante o mesmo exemplo
histórico, o sábio tirará uma certa conclusão e o inepto,
uma totalmente contrária. E, sem dúvida, as conclusões
são tiradas em função da escala de valores do
observador.
Todas estas ponderações parecem bastante banais,
beirando o óbvio, mas a presença de muitas confusões
nas conversas diárias, nos meios de comunicação e até
em certos trabalhos acadêmicos parece justificar a
inquirição a que acabamos de nos dedicar.

***
236
237

Depois destas considerações de ordem geral,


achei oportuno apresentar alguns casos concretos como
ilustração das possibilidades e dos limites da lição
histórica. Os casos escolhidos foram tirados da História
Econômica do Brasil, mais especificamente da história
da inflação, visto que o fenômeno inflacionári o se
mantém, infelizmente, da maior atualidade. Escolhi
épocas mais remotas a fim de dispormos de suficiente
perspectiva temporal e necessária imparcialidade,
longe das conotações emocionais do presente. O
período que vai da proclamação da República até o
início da Primeira Guerra Mundial fornece um material
sugestivo, com uma inflação aguda no começo do
período, seguida por um certo arrefecimento e, em
continuação, um curto intervalo deflacionário, após o
qual a inflação retomou seu curso habitual.
De fato, se quiséssemos fazer um cotejo quan -
titativamente mais próximo da realidade recente,
deveríamos voltar muito mais para trás até a época do
ciclo do ouro quando, sobretudo na sua fase inicial –
digamos entre 1693 e 1710 – certos preços subiram, na
região das Minas, numa proporção de até 300 vezes (30
mil por cento). A experiência não é desprovida de
interesse, de uma forma geral, uma vez que verificou
grosso modo a teoria quantitativa da moeda – sendo a
alta dos preços provocada pela abundância do metal
precioso em circulação. Poderíamos encontrar também
alguns condicionamentos cuja validade ultrapassa a
conjuntura do ciclo do ouro, como por exemplo a
237
238
persistência secular da corrida atrás do ouro, a velha
auri sacra fames. Mas tudo se passou num ambiente
muito diferente, dentro de uma economia colonial,
carente de estrutura mais sólida, com uma população de
ricos exploradores, de imigrantes aventureiros e de
escravos marginalizados. mesmo assim, a experiência
poderia oferecer certas lições, mas achei que, co m ela,
mergulharíamos num universo demasiadamente dife -
rente do nosso. A escolha exempli gatia do quarto de
século de 1889 a 1913 me pareceu mais convincente
por se tratar de uma economia mais moderna,
capitalista ou quase, cujos ensinamentos seriam mais
válidos, tanto no sentido positivo como no negativo.
O período focalizado começa com o
Encilhamento, a inflação de 1890/1893, uma inflação
mais forte do que tinha ocorrido desde a Independência
até aquela data. Forte, contudo, em comparação com o
passado, mas irrisória em termos atuais, visto que a
alta dos preços foi provavelmente de 30-40% anuais
(alguns autores referem-se a percentagens mais altas,
porém sem nenhuma comprovação empírica confiável).
Não quer dizer que tal inflação não tenha provocado
reações na sociedade, inclusive quanto ao ambiente
especulativo que precedeu a alta dos preços. Uma des -
crição do fenômeno encontra-se na conhecida crônica
do Visconde de Taunay, publicada justamente sob o
título de O Encilhamento.
Taunay refere-se principalmente à especulação
bursátil que se iniciou no último ano do Império e se
intensificou em 1890/1892. Essa febre na Bolsa de
238
239
Valores poderia ser considerada como mais uma ca -
racterística social de apego ao jogo, que Afonso Arinos
chamou de tendência para “salvação pelo acaso”,
considerada por ele como de origem ibérica. ( Conceito
de Civilização Brasileira). Esse aspecto nos ensinaria
não desprezar, na avaliação do processo econômico e
na formulação das políticas, os condicionamentos cul -
turais que podem vir de longe, em espaço e tempo.
Entretanto, para o período em pauta a febre bursátil
pode-se explicar primeiro por condições específicas: a
euforia da renovação política e social anunciada pela
abolição da escravidão e a adoção do regime repu -
blicano, considerada como um ingresso entre países
modernos, mais evoluídos.
Infelizmente, a expansão bursátil, até certo
ponto salutar, desembocou em especulação desenfreada
que Taunay desmascarou e condenou. Mas deve -se
atentar para a circunstância essencial de que a esc alada
especulativa não teria sido viável sem ser sustentada
pelo maciço aumento da liquidez do sistema, resultado
de um relaxamento da política monetária. Isso faz
aparecer no palco a responsabilidade do governo – uma
lição que ao longo do século seguinte se tornou mais
evidente e mais grave.
Uma nova situação se criou através da reforma
bancária de 1890 (decreto de 17/01/1890 que retomou
os termos da lei do Império, de 1888, que não chegara
a ser aplicada). A intenção foi boa, pois havia
necessidade de criar maior liquidez no sistema face às
novas demandas monetárias decorrentes não apenas do
239
240
crescimento natural da economia, mas também so -
bretudo das exigências de capital de giro devido à
abolição da escravidão. O fato é que os últimos anos do
Império tinham assistido a uma política monetária
muito contencionista: entre 1870 e 1879 os meios de
pagamento cresceram apenas 20,3% e em 1889 se
situavam apenas 2,4% acima do nível de 1879! A
reforma bancária de Rui Barbosa judiciosamente quis
emendar e eliminar este entrave da economia.
Aí, a lição é positiva. A redução dos meios de
pagamento, agravada pela situação criada pela
Abolição, tinha efeitos nocivos sobre a atividade
econômica, embora não haja meios de avaliar quan -
titativamente o fenômeno. Corretamente, as autoridades
monetárias deviam velar para um suficiente grau de
liquidez. mas a lição histórica é limitada às condições
peculiares da economia brasileira do fim do século
XIX, com suas instituições específicas, com os hábitos
dos usuários, as capacidades do corpo administrativo,
etc.
Por outro lado surgiu um problema que traz um
bom ensinamento, de ordem mais geral: é que assume
importância capital a implementação de uma medida –
a implementação é até mais importante do que o
diploma legal; afinal o que funciona na realidade é a
medida implementada e não o dispositivo abstrato. O
que aconteceu foi que o decreto de 17/01/1890,
justificado em tese, foi aplicado sem critério, de forma
abusiva pelos dirigentes da Fazenda, principalmente
Tristão de Alencar e Henrique Pereira de Lucena.
240
241
O resultado foi que os meios de pagamento
cresceram 99% em 1890, puxados pelos depósitos à
vista cujo aumento atingiu 166%, enquanto o
crescimento do papel-moeda emitido se limitou a 53%,
ainda muito elevado. Em 1891 a expansão mon etária
foi menor, mas ainda se situou em torno de 50%. Vê -se
que o foco expansionista reflete o relaxamento do
regime bancário. Vale acrescentar que, na época, não
se verificou nenhuma pressão significativa oriunda da
despesa pública: a execução orçamentária foi apenas
ligeiramente déficitária entre 1890 e 1893, até com um
exercício superávitário em 1891. É uma lição de co-
medimento do setor público, mas o ensinamento maior
consiste em que não é suficiente atacar a inflação
somente de um lado.
A permissividade oficial com respeito ao direito
bancário de emissão pode-se explicar por fatores
históricos cuja lição pode ser válida para outras
épocas: interesses escusos, favoritismo político,
demagogia. Mais uma vez, é lícito concluir que as boas
intenções podem ser prejudiciais pelas realidades
políticas, sociais e culturais, além das falhas insti -
tucionais de um país com escassa tradição cívica e
insuficientes quadros técnicos.
Será que a experiência inflacionária do
Encilhamento traz algum argumento convincente a
favor da tese às vezes sustentada do papel desen -
volvimentista da inflação? Não há condições de pro -
ceder aqui a uma análise mais detalhada do pretenso
surto industrial propiciado pelo Encilhamento, mas o
241
242
fato é que não se verificou uma grande expansão
econômica durante o Encilhamento e muito menos que
ela deve ter sido fruto do processo inflacionário
redistributivo: é ponto pacífico que a grande maioria da
pletora de empresas criadas durante o Encilhamento
foram de caráter especulativo e tiveram curta
existência.
Um testemunho coeso e insuspeito da conjuntura
é esclarecedor, no Relatório do Ministro da Fazenda
Bernardino de Campos (1898). Ele fala em “in -
conveniências da incipiente organização econômica...
as freqüentes agitações... a permanência e agrav ação de
uma circulação irregular e viciosa... grandes embaraços
e deficiências onerando e atrofiando o comércio, a
agricultura e a indústria nascente... as especulações, o
espírito de agiotagem... a paralisação dos negócios...” –
uma lição ainda válida.
Se houve ao longo dos anos, antes e depois da
proclamação da República, uma tendência progressista,
ela pode ser melhor explicada por outros fatores que
não o Encilhamento: a abolição da escravidão, a
entrada maciça de imigrantes, as políticas prote -
cionistas, etc. A advertência que resulta da
interpretação do episódio é de evitar o sofisma de
composição – post hoc, ergo propter hoc – ou seja,
que os pregressos verificados mais tarde, na virada do
século, teriam sido o reflexo do surto inflacionário do
Encilhamento. Não se deve confundir uma febre
especulativa com um movimento de real progresso –
isto já tivemos oportunidade de verificar em tempos
242
243
recentes.
Na realidade, entre o Encilhamento e o período
de expansão chamado Reerguimento Econômico, de
1903 a 1913, houve outra experiência, da qual é
possível tirar certos ensinamentos. Como no caso do
Encilhamento, não vou ater-me aos aspectos teóricos
da experiência – eles não são desprovidos de interesse,
mas, tendo em vista as mudanças dos conceitos teóricos
e das circunstâncias históricas, muitas das lições não
podem ser extrapoladas para os tempos atuais. Mas
existem aspectos permanentes, os em que “a história se
repete” e sua lição merece nossa atenção.
O período que estamos abordando agora é o da
experiência deflacionária de Joaquim Murtinho, na
presidência de Campos Sales. De acordo com
Murtinho, a economia brasileira se encontrava no fim
do século XIX sob o signo de uma dupla crise: a
elevação dos preços (27,8% em 1886, 18,7% em 1887)
e a queda das cotações do café (a saca de café tinha
caído de um valor de £ 4,09 em 1883 para £ 1,49 em
1898). Em ambos os casos, Murtinho deu uma
explicação em acordo com os conceitos clássicos:
tratava-se de um excesso de oferta – de moeda e de
café. Não interessa discutir aqui a questionável fórmula
quantitativa de Murtinho a respeito do valor da moeda
– o que interessa é que ele deu uma resposta certa,
acusando o excesso de papel-moeda. Indiretamente, a
redução do estoque monetário, provocando a va -
lorização cambial, devia reduzir a remuneração do café
em moeda nacional e conseqüentemente eliminar os
243
244
produtos marginais e, assim, sanear o mercado
cafeeiro.
Tais conclusões, válidas para o estágio da
economia e da sociedade brasileiras em 1900, são
altamente questionáveis, na sua essência técnica para,
por exemplo as condições do Brasil em fins do século
XX. Nesse caso, como em muitos outros, a lição da
História fica muito genérica face às diferenças
culturais e institucionais entre as épocas cotejadas.
Com perfeita cobertura do presidente Campos
Sales (uma importante lição quanto à necessidade da
coesão governamental), Murtinho aplicou com o maior
rigor, talvez excessivo, seu plano, retirando papel -
moeda da circulação e impedindo a expansão bancária:
entre 1898 e 1902 o papel-moeda emitido se reduziu
12,6%, os depósitos à vista 52,1% e os meios de
pagamento 24,9%; os preços caíram numa média
acumulada entre 25 e 35%; e a taxa de câmbio se
valorizou mais de 60%.
O caso Murtinho é um exemplo da relatividade
da lição histórica quando se trata de teorias econômicas
que são, por sua natureza, questionáveis. Assim, os
liberais puristas acharam que a política de Murtinho
constitui exemplo valioso a ser seguido, enquanto os
modernos críticos, imbuídos dos preceitos de Keynes,
acham que o exemplo de Murtinho tem valor per a
contrário, isto é, como uma advertência do que não
deve ser feito. Sob este ângulo, então, a história não se
deve repetir mas não deixa de ensinar.
As drásticas providências de Murtinho não
244
245
passaram sem sofrimentos: houve uma onde recessiva
que se manifestou principalmente na crise dos bancos,
de 1900, com falências, fechamento de bancos, etc.,
mas os indicadores estatísticos não detectam uma
profunda recessão: no quadriênio o produto real
cresceu à razão de 4,4% ao ano, um crescimento
razoável para uma economia subdesenvolvida. Mas,
sob o impacto das paixões políticas, o governo foi alvo
de críticas exacerbadas que beiraram a revolta aberta.
Com isenção, a História ensina – e este é um
ensinamento de dramática atualidade – que uma
operação de saneamento exige sacrifícios, Assim
sendo, os governantes e a sociedade devem ter uma
visão telescópica, numa perspectiva de prazo mais
longo. Murtinho teve essa visão cujos frutos surgiram
no período subseqüente – o Reerguimento Econômico
de 1903/1913 – quando se realizaram as promessas que,
nas críticas ferinas de Vieira Souto, Murtinho não teria
cumprido: renascimento do crédito público, desen-
volvimento do crédito privado, maior atividade
econômica, aumento da riqueza nacional.
Campos Sales e Murtinho tiveram que enfrentar
os maiores vexames e adversidades e uma imensa onda
de impopularidade – sabe-se que Campos Sales saiu da
presidência sob as vaias populares. Entretanto – mais
uma lição histórica – eles deram prova não apenas de
coerência em relação aos seus planos, mas também de
grande coragem cívica, sem a qual a política econômica

245
246
fica submissa à demagogia.

Palestra proferida em 19 de maio de 1994.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 40(471): 41-48,


Junho 1994).

246
247

A EXPERIÊNCIA DEFLACIONÁRIA
DE JOAQUIM MURTINHO

As experiências do passado não podem ser


plenamente aproveitadas para a orientação das ações
presentes e futuras das sociedades, mas contêm sempre
ensinamentos valiosos devido à permanência dos
mecanismos do comportamento humano e de algumas de
suas motivações básicas. Assim, ao evocar a política
deflacionária de Joaquim Murtinho, respaldada na
autoridade do Presidente Campos Salles (1898/1902),
depois do tumulto monetário e financeiro da primeira
década republicana, não se pode pretender tirar, a não
ser com muita cautela, conclusões sobre a inflação e a
política antiinfracionária atuais ou normas a serem
aplicadas no presente: as condições econômicas, sociais
e políticas do Brasil – e do Mundo – mudaram muito ao
longo do século. Alguns preceitos, contudo, continuam
válidos. Vale, portanto, dedicar alguma atenção à lição
histórica oferecida pelo programa de estabilização
monetária e financeira de Murtinho, sobretudo no que
diz respeito a críticas e resistências da sociedade.

***

A situação política e econômica do Brasil na


véspera da gestão de Joaquim Murtinho explica e
eventualmente justifica a política por ele implementada

247
248
que, aliás, se enquadrava no pensamento econômico
oficial, predominante no fim do século: liberalismo,
padrão-ouro, teoria do comércio internacional.
Já no fim do Império houvera um sério abalo
provocado pela abolição do regime servil. O início da
República teve, entretanto, graves problemas de outra
natureza, ligados em grande parte à inflação e à
especulação bursátil conhecidas sob o rótulo de
“Encilhamento”.
Assistiu-se a uma excessiva expansão do crédito,
incentivada pela especulação bursátil, a uma forte
expansão monetária e a uma acentuada (para aqueles
tempos) elevação dos preços. Depois da relativa
calmaria do Império, os novos desequilíbrios de uma
intensidade inédita podiam preocupar a sociedade e os
dirigentes econômicos – mas a reação só veio dez anos
depois.
Entre 1889 e 1894 o papel-moeda emitido cresceu
261% e os meios de pagamento 190%. O impacto sobre
os preços foi menor, porém sensível numa economia que
não tinha conhecido inflação galopante (exceto o surto
passageiro e regionalmente limitado, no início do ciclo
do ouro): os preços subiram cerca de 114%.
Depois de uma breve trégua em 1894/95, os
preços retornaram à sua escalada, oriunda desta vez de
outro desequilíbrio, o das finanças públicas, em
decorrência de causas estruturais e conjunturais
(distúrbios políticos, administração deficiente, q ueda da
receita do imposto de importação, etc.). Acompanhando
parcialmente a desaceleração monetária, os preços
248
249
teriam acusado entre 1894 e 1898 uma alta em torno de
29%.
A grande preocupação veio de outra deterioração
do quadro econômico a qual afetava os pilares de um
sistema fortemente baseado no setor externo, sobretudo
na exportação de café. Ao longo da primeira década
republicana a taxa de câmbio despencou verticalmente,
uma desvalorização de 73% em 9 anos – o que era uma
afronta para a ortodoxia da política cambial e monetária
da época. Entretanto, a desvalorização cambial, maior
do que a elevação dos preços internos, devia favorecer a
exportação e, conseqüentemente, a balança comercial.
De fato, a exportação cresceu ligeiramente de 1889 até
1894, mas se reduziu no fim do período. A balança
comercial permaneceu superavitária, mas o saldo
positivo se reduziu.
Para os que acompanhavam mais de perto a
marcha dos negócios e da economia a grande
preocupação referia-se ao espetáculo assustador do setor
cafeeiro. A cotação do café em Nova York caiu
brutalmente devido ao desequilíbrio do mercado, com
uma superprodução cujo resultado era o aumento
acentuado dos estoques mundiais. Atraída pela demanda
elevada do período anterior, a produção brasileira de
café quase dobrou entre 1889 e 1898. Já antes falou-se
em “prenúncio de grave crise cafeeira” (Taunay) e
apareceram as primeiras sugestões de uma política de
defesa do café, que devia vingar apenas em 1906, com a
convenção de Taubaté.

249
250
De qualquer forma, já antes da gestão de
Murtinho, várias vozes autorizadas se levantaram
apontando para o estado precário da economia brasileira
e clamando por reformas drásticas para o saneamento da
situação financeira, monetária e cambial do País. Por
exemplo, no Relatório da Fazenda de 1898: “A notável
decadência a que chegou o câmbio no Brasil, excedendo
já em muito os limites naturais do câmbio real, só pode
ser atribuída em sua máxima parte ou quase totalidade à
depreciação do papel-moeda”... “as emissões bancárias
determinaram a desvalorização do meio circulante na
proporção expressa pelas taxas cambiais expostas, prova
de sua superabundância e medida de sua depreciação”.
E, já pensando em reformas: “É evidente que será
legítimo qualquer expediente que liberte o país desta
opressão (do câmbio baixo)”.
Um contemporâneo descreveu em termos
incisivos a péssima situação da economia em 1898 que
justificaria políticas saneadoras: “criação e agravação
contínua de impostos... abuso de crédito... aumento da
dívida... uma situação insustentável” (Guanabara).
Algumas motivações políticas não faltavam, a
meu ver. O novo regime instaurado em 15 de novembro
de 1889 apresentava sinais de fragilidade e de ins -
tabilidade, sobretudo sob a ameaça de uma restauração
monárquica, bem como por instigar outras áreas de
conflito e descontentamento. A primeira década da Re -
pública foi interrompida por crises sucessivas que
tumultuaram o ambiente e sem dúvida não repre -

250
251
sentaram um bom ingrediente para a arrumação da
economia.
A desarrumação podia constituir, sem dúvida, um
argumento contra o regime republicano. Era, pois,
normal que os defensores do regime pensassem no
saneamento da economia a fim de não mais oferecer aos
adversários um campo propício às críticas. Tratava -se de
fortalecer o regime sob todos os aspectos, inclusive o
econômico, e esse intuito parece implícito, senão mesmo
explícito, nas medidas que eram preconizadas por
líderes como Prudente de Moraes, Bernardino de
Campos ou Campos Salles. O próprio Joaquim
Murtinho, no seu relatório como Ministro da Indústria,
Viação e Obras Públicas, em 1897, observava que
“consolidar a República não é simplesmente defendê -la
contra os atos de agressão violenta de seus inimigos”,
mas sim fazer uma política econômica sadia, baseada
nas idéias do liberalismo.

***

Como Ministro da Fazenda (1898), Joaquim


Murtinho partiu de um diagnóstico simples mas
rigoroso, posto que em termos hoje desatualizados. Para
ele, o Brasil padecia de duas crises: uma, econômica
“resultante da redução do valor da unidade do mais
importante (dos produtos): o café”, efeito por sua vez da
“produção exagerada em relação ao consumo”; outra,
financeira, resultante da “redução do valor da unidade
da massa (das rendas do Estado)”, por seu turno
251
252
conseqüência “da produção exagerada do meio
circulante em relação ao valor real da circulação”
(Relatório da Fazenda, 1899).
Vale observar que ao apontar os efeitos do
excesso da circulação monetária, Murtinho não se refere
de modo mais específico ao nível dos preços: ele
preferiu relacionar o valor da moeda à taxa de câmbio.
Mais expressivo é, entretanto, o fato de que ele coloca a
crise brasileira numa dupla equação de teoria clássica,
isto é, uma dupla discrepância entre a oferta e a
demanda. Mais tarde, no Relatório da Fazenda de 1900,
ele detalhou mais os desequilíbrios: “discordância entre
a produção do café e seu consumo, determinando a
redução do preço... discordância entre a nossa riqueza
anual em ouro, representada pelo valor da exportação e
a massa de papel-moeda inconversível em circulação,
produzindo redução do preço do papel, baixa de
câmbio... discordância entre a receita e a despesa
federal, produzindo déficits orçamentários, novas emis -
sões, novos empréstimos...”
A formulação do diagnóstico já indica as bases da
política saneadora: o restabelecimento do equilíbrio
entre a demanda e a oferta, o que implica na redução da
produção do café, na diminuição das emissões de papel -
moeda, no equilíbrio orçamentário. Alguns dos
conceitos emitidos por Murtinho são questionáveis, mas
sob um ângulo puramente pragmático levaram a
resultados profícuos em termos de combate à inflação e
de arrumação da economia.

252
253
A ênfase era dada ao saneamento monetário e
financeiro, o que não se pode estranhar num ambiente
dominado pela ortodoxia monetária e pelo sistema do
padrão-ouro.
Tal ortodoxia pode ser criticada pelos
economistas menos conformistas, embora ela mantenha
sua validade até para nossas experiências recentes. Para
seu tempo, Murtinho invoca, em apoio à sua política
econômica opiniões de alguns dos seus antecessores
ilustres, Souza Franco, Torres Homem, Dias de
Carvalho, Itaboraí, Zacarias de Vasconcelos, Ouro
Preto, Martinho Campos – testemunhas históricas
valiosas.
Autoridades estrangeiras – obviamente do mesmo
grupo da ortodoxia – convergiram no mesmo sentido,
mesmo depois da gestão de Murtinho. Paul Leroy-
Beaulieu, grande autoridade na época, citado por
Alcindo Guanabara, declarava: “O Brasil não tem senão
perseverar na trilha pela qual enveredou... a elevação do
câmbio se deve não tanto à melhora orçament ária, alta
do preço do café, aumento do stock do ouro, quanto à
retirada do papel-moeda”. E, em outra ocasião: “A
experiência do Brasil, de 1899 a 1905 é o testemunho
mais decisivo a favor das doutrinas econômicas sadias
sobre o câmbio nos países com padrão monetário
avariado... O exemplo do Brasil é especialmente típico e
honra grandemente o presidente Campos Salles, que
teve a iniciativa dessa política financeira saneadora”.
(apud Andrada).

253
254
A chave consistia em elevar o poder de compra da
moeda nacional através do enxugamento de sua
quantidade. E a valorização da moeda devia se
manifestar pela elevação da taxa de câmbio.
É curioso que muitas vezes Murtinho é censurado
por não ter dado bastante atenção ao problema do
balanço dos pagamentos (ele deduziu a taxa de câmbio
de uma relação mais simples, sem atentar para a
complexidade dos fatores incluídos no balanço de
pagamentos). Mas a importância reservada ao câmbio
implicava em ressaltar indiretamente o papel do setor
externo na economia.
O enfoque cambial podia ter também outra
justificativa, tal como foi formulado pelo próprio
Campos Salles na sua mensagem de 1899: “Sob o
domínio funesto do curso forçado e portanto na falta de
indicador direto que não existe senão quando o papel é
conversível, o critério para conhecer a deficiência ou
excesso do meio circulante é o estado do câmbio”.
Ademais, as duas crises diagnosticadas por
Murtinho estavam interdependentes, e o elo entre eles
era formado pela taxa de câmbio. O saneamento da
moeda, provocando a alta do câmbio, ofereceria menor
retribuição à exportação – principalmente de café – e
dest’arte eliminaria os produtores marginais do setor.
Inversamente, a valorização do câmbio reduziria a
proteção da indústria nacional frente à concorrência dos
produtos importados tornados mais baratos, e
consequentemente poderia provocar um deslocamento de

254
255
fatores de produção de uma indústria algo ineficiente
para o setor agrícola.
Sem dúvida, na formulação do diagnóstico e na
indicação das metas da política econômica revela-se o
apego de Murtinho ao liberalismo ainda dominante, à
sistemática do padrão-ouro e ao modelo tradicional de
uma economia exportadora de produtos primários,
integrada no grande comércio mundial baseado na
divisão internacional do trabalho.

***

Ao traçar-se o perfil ideológico de Joaquim


Murtinho é importante sublinhar que do ponto de vista
moral Murtinho foi irrepreensível pela sua coerência e
pela sua coragem; essa é sua principal mensagem e lição
histórica válida até hoje. Sob o ângulo teórico, ele é
questionável. O seu arcabouço teórico apresenta às
vezes lados altamente discutíveis. Mas, que teoria
econômica merece uma adesão incondicional?
Principalmente ao definir suas posições não se deve
esquecer o momento histórico em que se situaram e
seria anti-histórico julgá-as à luz das teorias que
surgiram muito depois e que Murtinho só poderia ter
previsto se ele tivesse sido realmente um gênio dessa
disciplina, o que, com todo o respeito, ele não foi. Ele
adotou para fins práticos extremamente plausíveis as
doutrinas do seu tempo. Se seu respaldo teórico parece
agora algo antiquado, os seus preceitos de política
econômica continuam válidos.
255
256
As posições de Murtinho podem ser identificadas
da forma seguinte:

a) Antes de mais nada, o liberalismo. Alguém o


tachou de “liberalismo econômico bastante radical” para
emendar depois “menos radical do que se pensa”
(Villela Luz). De fato, é preciso aceitar Murtinho como
um verdadeiro liberal ou rejeitá-lo na medida em que
não se concorda com o pensamento liberal.
Esse liberalismo não era apenas econômico, mas
principalmente político, visto que obviamente um está
intimamente ligado ao outro. Murtinho o diz claramente
já no seu Relatório de 1891 como Ministro da Indústria,
Viação e Obras Públicas: “A liberdade política não pode
ser completa sem a liberdade econômica” – tal como
pensam os atuais grandes liberais – Von Mises, Hayek,
etc.
Com um matiz pejorativo, o liberalismo de
Murtinho foi tachado de “darwinismo” ou
“spencerianismo”, isto é, um tipo de capitalismo
selvagem em que os mais aptos superam e liquidam os
mais fracos. De fato, o liberalismo, sob o signo da
concorrência, admite uma certa luta em que os agentes
econômicos tentam maximizar suas atividades: reduzir
os seus custos e elevar os preços de venda dos meios d e
produção e dos produtos. E como a igualdade é uma
ilusão, evidentemente uma dose de sacrifícios
inevitáveis. É o preço a pagar pelo sistema, na medida
em que outra alternativa seria mais desvantajosa sob o
ângulo econômico, social e político. Ao criticar um
256
257
sistema, amiúde costuma-se opor à sua implementação
real, portanto eivada de imperfeições como qualquer
empreendimento humano, a imagem de um sistema
teórico, ideal, logo desprovido de qualquer defeito. A
discussão é delicada, mas parece claro que os d etratores
do “darwinismo” ou “spencerianismo” econômico são
antes de mais nada adversários do liberalismo. Pode -se
encontrar um libelo, aliás talentoso, contra o liberalismo
por exemplo em Galbraith (A Era da Incerteza). Mas
uma vez mais, não se deve esquecer que Spencer
dominou o pensamento sociológico na segunda metade
do século XIX.
Para Murtinho, o conceito de liberalismo estava
ligado a valores econômicos que assumiriam até um
sentido moral: “Implantar em nosso espírito o ideal
individualista, ideal de energia, ideal de trabalho, ideal
de independência...” (Rel. da Faz., 1898). A terapêutica
podia ser dura, porém para um liberal convicto, isso
apresentaria o anverso inevitável de um sistema
altamente profícuo para toda a sociedade.

b) Entretanto, o liberalismo de Murtinho tem seus


limites. É verdade que o princípio básico é o não -
intervencionsimo do Estado: “Nenhum governo por mais
sábio, por mais poderoso e mais patriótico que seja,
pode substituir-se à ação de milhares de homens de
negócios” (ibidem). A idéia fundamental de caráter
econômico, é que a livre concorrência, afinal de contas,
contribuiria para a redução generalizada dos custos,
portanto para a maximização do objetivo de bem -estar
257
258
material: “a capacidade de produzir o máximo resultado
possível em relação ao capital empregado com o mais
baixo preço em um regime de livre concorrência” (Rel.
1899).
Não falta, contudo, uma dose de pragmatismo que
sempre esteve presente na política econômica daqueles
tempos, permitindo por exemplo desvios benéfico s do
regime do padrão-ouro. No caso em pauta, uma posição
de frio “darwinismo” é atenuada pelos acenos a uma
certa intervenção estatal: “Quando se manifesta uma
crise no trabalho é dever do Estado afastar todas as
causas com que ele tinha contribuído para aquele mal;
mas seria contra os princípios de justiça proteger os
ineptos, os imprudentes, os viciosos, com o sacrifício
daqueles que lutam, que se esforçam e que vencem com
os elementos próprios da energia individual”. (Rel.
1897). Murtinho admite o intervencionismo na medida
em que ele restabelece a liberdade e as condições
normais do mercado.
Na realidade, a presença normativa do Estado é
inevitável: afinal, todas as medidas preconizadas para
“normalizar” o mercado do café via valorização cambial
ou para enxugar o meio circulante não passam de
intervencionismo estatal, porém com o objetivo de
liberalizar subseqüentemente a economia, senão, diz
Murtinho, cai-se no “despotismo econômico”, “o
aprisionamento da economia em normas cartorialmente
impostas pelo poder público” através de “um grande
número de leis” (Rel. 1897) – posição que, conve-
nhamos, é válida até nossos dias.
258
259
No caso do café, a atitude intervencionista é
nítida: “Restringir a cultura de café aos pontos mais
produtivos... limitar o desenvolvimento da produção do
café de modo a acompanhar o desenvolvimento do seu
consumo”. (ibidem, p. 152). É interessante notar como
exemplo da ambivalência das críticas, que Murtinho é
frontalmente acusado de ter defendido a agricultura em
detrimento da indústria, e ao mesmo tempo de ter
“deixado o café no abandono”.

c) Por cima das considerações pragmáticas,


Murtinho permaneceu fiel aos dogmas do liberalismo
político e econômico e de seus subprodutos, a divisão
internacional do trabalho e o padrão-ouro. Aquela, ainda
válida em princípio, com as ressalvas impostas pelo
protecionismo e pelo desenvolvimento mundial; este,
muito mais contestado ulteriormente e afastado a favor
de uma concepção monetária mais moderna.
Neste ponto também, críticas mais recentes
pecaram pela omissão das condições históricas de quase
um século atrás: “Exemplo típico (do apoio à ortodoxia
monetária) foi o de Joaquim Murtinho, metalista ardente
e sob vários aspectos mercantilista confuso... con -
duzindo-nos à violenta deflação conhecida” (Ferreira
Lima), A verdadeira confusão é misturar na mesma cesta
as posições liberais de Murtinho com um pretenso
mercantilismo que ele, na realidade, combateu (como
por exemplo no caso da política de valorização do café).

259
260
d) O respaldo teórico da ortodoxia monetária de
Murtinho – ou mais precisamente da medicação adotada
para equilibrar a economia brasileira – foi a teoria
quantitativa da moeda. Mas uma teoria apresentada
numa forma sui generis que foi inspirada pelo seu
conselheiro J. P. Wileman. É curioso que se admite que
Wileman influenciou profundamente Murtinho, sendo
elogiado pela sua “análise objetiva” e pelo fato de ter
percebido “o papel do preço do café como fator
determinante da taxa cambial” (Furtado), porém, por
outro lado, Murtinho é criticado por não ter “entendido
bem a função determinante do balanço de pagamentos
sobre a taxa cambial” (Villela Luz), o que é algo
contraditório.
A utilização da fórmula quantitativa da moeda
por Joaquim Murtinho foi asperamente criticada desde
Vieira Souto. Uma crítica mais recente referiu-se à
“convicção de Murtinho na teoria quantitativa da
moeda, erigida em panacéia geral para cura de todos os
males econômico-financeiros de todas as nações”
(Ferreira Lima). Pode-se admitir que Murtinho não foi
um grande teórico e mesmo que talvez ele tenha ficado
algo desatualizado, mas se se quiser identificar os
alicerces de suas argumentações, encontrar-se-ão os
princípios da teoria econômica clássica, a começar pela
lei da demanda e da oferta, com que ele explicou a dupla
crise da economia brasileira.
Não se deve esquecer que o grande livro de Irving
Fisher, paradigma da teoria quantitativa, foi publicado
em 1892. Sem dúvida, na época de Murtinho a teoria
260
261
quantitativa não havia assumido as sofisticações
subseqüentes que Murtinho não podia imaginar. O que é
peculiar nas demonstrações feitas Por Murtinho é que
ele encara o valor da moeda sob o ângulo cambial, o que
se pode explicar pelo apego dos adeptos do padrão -ouro
à ligação das moedas com o ouro via taxa cambial, ou
pela importância atribuída a esta taxa numa economia
profundamente arraigada ao setor externo.
Foi sumamente criticada e rejeitada a aplicação
por Murtinho da teoria quantitativa no caso brasileiro,
interligando o volume das exportações (tão importante
para uma economia dependente do setor externo), o
volume do meio circulante e a taxa de câmbio. A
equação de Murtinho mostra que o valor da moeda, isto
é, a taxa de câmbio, é o quociente entre o volume do
meio circulante (Murtinho omite o fator velocidade de
circulação da moeda) e o volume das transações, isto é,
o valor das divisas produzidas pela exportação. Sem
dúvida, a simplificação é facilmente criticável visto que
a taxa de câmbio depende do conjunto de fatores que
entram no balanço de pagamentos. A equação en tretanto
era “operacional” constituindo-se num programa para o
saneamento da moeda.
Mesmo do ponto de vista teórico, ela podia
salvar-se quando, dado um certo volume de exportações,
ligava a taxa de câmbio ao volume da circulação
monetária, pois, se, dentro da teoria quantitativa, a
circulação determinava o nível de preços, chegava -se de
forma indireta a uma ligação taxa de câmbio/preços – o
que aproxima a posição de Murtinho, ainda que de
261
262
forma algo confusa, da teoria das paridades de poder de
compra.
Na realidade as oscilações do câmbio nem sempre
correspondem à expansão ou à contração monetária:
justiça seja feita, Vieira Souto percebeu muito bem o
fato, ainda que o seu radicalismo o tenha levado também
a exageros. Entretanto, independentemente da taxa de
câmbio, o valor da moeda, ou seja o seu poder de
compra era constantemente ligado ao volume da
circulação monetária: a maioria dos teóricos no fim do
século XIX pensaram dessa forma.
O purismo de Murtinho chegou a um exagerado
desnecessário quando ele sustentou o imperativo de
voltar para a taxa legal de 1846, de 27 d/mil -réis. Era a
aplicação rigorosa do padrão-ouro pelo reconhecimento
da taxa “real” de 27 d. – um verdadeiro feitichismo,
visto que o equilíbrio monetária e cambial podia
realizar-se em outros níveis.
De qualquer modo, o importante era que a
fórmula de Murtinho implicava um programa interno de
saneamento monetário e financeiro.

e) Criou-se a imagem de um Murtinho


nitidamente antiindustrialista, portanto, um retrógrado
que desejaria manter a economia brasileira num estado
primário, retardatário, imune a qualquer modernização e
progresso. Uma análise mais objetiva demonstrará a
injustiça de tal qualificação: a posição de Murtinho foi
muito mais criteriosa.

262
263
Sem dúvida, não se pode dizer que foi um
industrialista enragé. O seu apego ao liberalismo
clássico e ao seu sub-produto – a divisão internacional
do trabalho – levou-o a insistir na vocação do Brasil
como exportador de produtos primários, vocação essa
que, afinal de contas, tinha sido responsável pelo
progresso registrado ao longo do século XIX. O
comércio exterior constituía uma forte alavanca da
economia, mas seria errado pensar que Murtinho tinha
uma visão limitada. Já no seu Relatório de 1899 ele
escreveu: “Uma balança comercial desfavorável nem
sempre é sinal de decadência econômica em país em que
ela se manifesta”. Na realidade ele tinha uma visão
assaz correta da complexa realidade econômica e desde
o primeiro momento em que imaginou um programa
econômico para o Brasil, no Relatório do Ministério da
Indústria em 1897, ele colocou como objetivo “facilitar
comércio, indústria e agricultura”.
Não obstante, a condenação mais contundente foi
reservada ao antiindustrialismo de Murtinho, “seu
repúdio exacerbado e ostensivo à industrialização”
(Ferreira Lima). Mesmo críticos mais ponderados
chegam a afirmações deste tipo: “O liberalismo de
Murtinho e seus princípios darwinianos levaram -no a
combater a incipiente industrialização que se processava
no Brasil na época”. (Villela Luz). Em apoio a essa
crítica, foi censurada a posição racista de Murtinho ao
argumentar de modo muito infeliz que havia obstáculos
raciais contra a implantação de indústrias no Brasil
quando na realidade o progresso era estorvado por
263
264
fatores históricos. De fato, as teses racistas já tinham
começado a brotar na segunda metade do século XIX
(Gobineau, H.S. Chamberlain).
Embora politicamente avançado, Murtinho não
foi precisamente um pioneiro. No campo da economia
estava ligado aos princípios clássicos do liberalismo
econômico e da divisão internacional do trabalho que
reservava ao Brasil um ligar privilegiado entre os países
exportadores de produtos primários.
É interessante observar, mais uma vez, as
oscilações dos comentários entre a tradicional acusação
de antiindustrialista e uma interpretação mais objetiva
dos fatos. Um autor retifica: “Murtinho não era
propriamente desfavorável ao desenvolvimento indus -
trial do Brasil... O que na realidade Murtinho mais
condenava no processo industrial brasileiro era o alto
custo de produção”. (Villela Luz).
Tratava-se portanto de uma posição “econômica”:
a utilização racional dos fatores de produção disponíveis
em atividades de custo mais baixo. Este imperativo
incide em todas as atividades econômicas e não constitui
um pretexto para paralisar o surto industrial: “Temos
necessidade de aumentar a produção do País,
desenvolver suas indústrias e todas as outras fontes de
riqueza, promovendo assim o seu progresso”. (Relatório
1901). Era preciso, pois, maximizar o uso dos fatores de
produção disponíveis, sobretudo o do capital cuja
escassez era patente.
A exigência do custo baixo – preceito econômico
básico – aplicava-se logo a todas as atividades e não
264
265
representava especial e exclusivamente uma restrição à
produção industrial. Murtinho não foi muito feliz
quando forjou a expressão “indústria artificial”,
aconselhando a sua eliminação. Na realidade era melhor
dizer “indústria ineficiente”. O fato é que a expressão
“indústria artificial” se impôs como um sinal da aversão
de Murtinho à expansão das atividades industriais. A
tradução da expressão odiada foi dada pelo próprio
Murtinho já em 1897: as industrias naturais são as “que
têm condições de vida própria”. E em outro lugar
Murtinho esclarece: “O que caracteriza uma indústria
natural não é o fato de ter sua matéria-prima importada
ou não, mas o ter capacidade de produzir o máximo
resultado possível em relação ao capital empregado com
o mais baixo preço em um regime de livre concorrência”
(Relatório 1899).
Pode-se revelar, atrás dessa posição, uma
submissão talvez exagerada ao princípio da divisão
internacional do trabalho que, em nome da eficiência,
relegava o Brasil, inexoravelmente, no grupo dos países
produtores e exportadores de produtos agrícolas. Em
nome desse princípio, Murtinho insurge-se contra a
proteção industrial através da desvalorização cambial e
das tarifas alfandegárias.
De fato, dentro do conceito básico de eficiência
admitia uma dose de pragmatismo - racional e
equilibrado. "Não é possível, nem conveniente,
sobretudo numa época de grandes abalos, provocar uma
transformação brusca no nosso vicioso sistema
industrial, suspendendo instantaneamente proteções
265
266
oficiais, à sombra das quais se organizaram e vivem
muitas industrias artificiais entre nós". (Relatório 1899).
Murtinho não estava propenso a pensar muito
numa verdadeira política de protecionismo industrial,
mas é míster observar que o traço característico não era
propriamente o antiindustrialismo e, sim, o dogma da
eficiência econômica que ele quis impor, com o mesmo
rigor, à agricultura, ao café, dentro de um modelo de
liberdade, sem "despotismo econômico". (Relatório
1897).

***

A política de Murtinho lastreada na fórmula


quantitativa visando à valorização da moeda nacional e
fundamentada legalmente no Acordo de funding
celebrado em 1898 com os credores externos, previa em
primeiro lugar a retirada da circulação de um montante
de 115 mil contos de réis. O programa foi implementado
com bastante rigor. Não obstante, não se chegou a este
nível de contração monetária primária. Houve n a
realidade uma retirada entre 98 e 104 mil contos, ou
seja, uma redução do meio circulante de 12-13%. Uma
perda sensível de liquidez, visto que os meios de
pagamento acompanharam a evolução, diminuindo cerca
de 25%. O sistema adaptou-se através da queda dos
preços.
Talvez o corte monetário tenha sido violento
demais, e Murtinho é apresentado como um cirurgião
cruel que operou sem nenhuma sensibilidade para com o
266
267
paciente. Mas não lhe era essa a intenção: falando da
contração monetária, ele disse que "é uma operação em
cuja realização a paciência, o total, o critério e a
prudência devem andar ao lado da coragem, da
tenacidade e da perseverança". (Rel. 1899). Talvez estas
últimas características tenham prevalecido demais - uma
questão de dosagem. Mas Murtinho não o considerava
assim, pois, no início da sua experiência escrevia: "Um
resgate brusco, trazendo como conseqüência uma
valorização rápida do meio circulante, traria grandes
prejuízos a certas classes sociais e especialmente aos
produtores nacionais" (ibidem) - sem dúvida pensando
primeiramente nos cafeicultores.
Outrossim, Murtinho achava que "a emissão de
papel-moeda criando valores potenciais provoca a
formação de negócios, alarga de fato a circulação
aumentando-lhe o valor primitivo durante o tempo de
existência daqueles valores potenciais" (ibidem), quase
justificando uma política expansionista; só que a
expansão devia ser em moeda conversível e, a seu ver, a
conversibilidade devia ser alcançada no nível do valor
legal de 1846.
A imposição da conversibilidade podia, contudo,
justificar-se naquele tempo quando o sistema bancário
não era disciplinado como freio e garantia de equilíbrio.
Acho que é um aspecto que mereceria destaque: a
moralização do sistema bancário através do padrão -
ouro. Uma lição interessante.
O próprio Vieira Souto, o grande crítico de
Murtinho, considerou correta a retirada de dinheiro da
267
268
circulação quando esta é superabundante - porém
avaliou como equilibrada a situação que se apresentava
no início da gestão de Murtinho e achou até q ue o
equilíbrio se restabelecera desde 1894. Talvez Murtinho
tenha exagerado os perigos da inflação, mas o fato é que
depois de um período de calmaria em 1894/95, os preços
tinham voltado a subir.
Quanto à idéia esdrúxula de que ao invés de
queimar o papel-moeda, o governo podia proceder a
investimentos produtivos, seria uma estratégia
"tipográfica" de desenvolvimento. Murtinho a repeliu
decididamente.
A contenção monetária devia encontrar um
sustentáculo no equilíbrio das finanças públicas para
eliminar o foco expansionista representado pelo déficit
orçamentário, porém este não exerceu sempre papel
nocivo durante o primeiro decênio da República, embora
a execução orçamentária não tenha apresentado
resultados brilhantes. No quadriênio 1898/1902 apenas
dois exercícios registraram magros superávits, 1899 e
1902. No total, um déficit líquido de 88,4 mil contos de
réis. Relacionado à receita, isto representava apenas
uma proporção de quase 6% - mas era ainda déficit.
Do lado da despesa, a melhora parece mais níti da
em 1901/1902 mas o período foi de deflação de modo
que em termos reais não se observa nenhum progresso.
Do ponto de vista da formação de capital do País, podia
se lamentar a pouca importância da parcela da despesa
do governo destinada a esse fim, mas es sa situação
caracterizou toda a década e se prolongou até 1903.
268
269
Do lado da receita, reforçada pelo aumento do
imposto de consumo sobre vários produtos e pelo
aumento da incidência do imposto do selo, bem como do
importo de importação com a cota em ouro (a partir de
1900) – porém prejudicado pela ligeira retração das
importações – o progresso mais acentuado (em termos
reais) apareceu apenas em 1902. Obviamente, esses
aumentos proporcionaram a Murtinho opositores entre
consumidores, importadores, etc. Entretanto, a crítica de
que o aumento da carga tributária contribuiu para a alta
do custo de vida não tem nenhum cabimento. Ela é
rejeitada pelo observador da evolução dos preços, como
se verá a seguir. O próprio Murtinho repeliu as queixas
pela “carestia de vida insuportável” (Rel. 1901),
exibindo uma lista de 333 produtos que, entre 1899 e
1901 tiveram na quase unanimidade baixa de preços. É
bastante estranho que alguns críticos, inclusive recentes,
em sua ânsia de denegrir à tout prix a reforma de
Murtinho, se queixam da alta de preços e do
crescimento do custo de vida, ao mesmo tempo que
condenam a política deflacionária de Murtinho. A lição,
ainda válida, é que muitas vezes o desejo de criticar
supera a objetividade.

e) As informações sobre a evolução dos preços no


período são escassas e precárias. Um trabalho com
levantamentos em anos selecionados (Ónody) fornece
índices apenas para 1896 e 1900, registrando uma queda
de 7,4%, mas o período inclui 2 anos anteriores a
Murtinho e não alcança os últimos 2 anos de sua gestão.
269
270
Ademais, abrange somente a variação dos preços dos
produtos importados.
Outro levantamento (Buescu) limitado aos anos
terminais do período para 20 produtos fornece a
informação de uma queda global de 33,0% entre 1898 e
1902, obviamente índice não ponderado.
Outras informações algo mais detalhadas, ano a
ano, chegam a conclusões parcialmente discrepantes,
mas que convergem no sentido global já indicado, de
uma baixa continuada dos preços. Corroborando as
várias fontes, o resultado final indicaria uma queda de
26 a 27% - uma deflação nítida.
Ao avaliar-se a contração monetária acontecida
no período deve-se levar em conta essa valorização da
moeda. Com efeito se, em termos nominais, os meios de
pagamentos se reduziram 25% entre 1898 e 1902, em
termos reais, com uma deflação de 27%, a variação real
é positiva de 3%. Isto quer dizer que a liquidez do
sistema se recompôs em outro patamar. Mas, tampouco
isto quer dizer que a adaptação ao novo nível se tenha
feito sem sacrifícios.

***

Contestada ou não a medicação proposta por


Murtinho, o fato é que ao longo do período presidencial
de Campos Salles, assistiu-se a uma substancial
valorização cambial: a libra esterlina viu cair a sua
cotação de 33,380 mil-réis em 1898 para 20,237 mil-réis
em 1902. Essa queda de 39% de sua cotação pode ser
270
271
cotejada com a queda de 27% dos preços internos.
Murtinho calculou a taxa de câmbio “teórica” a partir de
sua equação quantitativa e acertou em grande parte,
porém se vê que a valorização cambial foi mais forte do
que a do poder de compra interno da moeda. De
qualquer forma, Murtinho deve ter se decepcionado por
ter a taxa de câmbio real ficado ainda longe da meta de
27 d/mil-réis (ou 8,889 mil-réis por libra esterlina).
Evidentemente, além do problema da paridade
dos preços intervinham os vários fatores que afetavam o
balanço de pagamentos – nisso os críticos de Murtinho
tinham razão. Murtinho é acusado de não ter prestado
atenção aos problemas do balanço de pagamentos, ao
passo que Wileman, seu consultor, o fazia. Na realidade,
Murtinho cuidou, sem indicação explícita, de vários
elementos atuantes sobre o balanço de pagamentos, a
começar pela suspensão por 13 anos do serviço da
dívida externa conforme o mencionado Acordo de 1898.
O saneamento da economia nacional devia atrair
capitais estrangeiros sob forma de empréstimos e
investimentos, como de fato aconteceu mais tarde. A
reconquista da confiança externa foi um elemento
muitas vezes ignorado ou desprezado pelos críticos. Por
outro lado, a balança comercial devia melhorar graças
ao freio posto às importações via elevação do imposto
de importação bem como – na visão de Murtinho –
graças à expansão da receita de exportação via
fortalecimento do mercado cafeeiro.
É curioso constatar que alguns críticos acusam
Murtinho por não ter prestado atenção ao preço do café
271
272
(Villela Luz). Mas então que queria dizer o empenho de
Murtinho em restringir a produção do café a fim de
fortalecer-lhe o mercado? O que Murtinho subestimou
foram as forças do mercado, não apenas do lado da
demanda, mas também do lado da oferta. A valorização
cambial não mudou a tendência decadente das cotações
mundiais e o esperado equilíbrio do mercado não se
restabeleceu.
As vozes favoráveis a uma intervenção no
mercado se intensificaram, mas parece injustifica da a
interpretação de que foi a política de Murtinho
responsável pela subseqüente adoção da intervenção
(política de valorização que será iniciada pela
convenção de Taubaté, em 1906). Sem Murtinho, o
mercado de café ter-se-ia recuperado por si próprio? A
queda das cotações tinha começado em 1890 e a
alternativa teria sido continuar a forte desvalorização
cambial da moeda nacional. Mas valia a pena onerar a
comunidade inteira, provocando uma redistribuição da
renda, via câmbio, a favor do setor cafeeiro? É e stranho
que tais posições foram adotadas por comentaristas que
se pretendiam partidários da modernização da economia
brasileira. Embora um tanto “darwinista”, a posição de
Murtinho foi mais “econômica”, visto que acentuou a
importância da eficiência e da diminuição dos custos:
“A redução (da produção) tem-se de dar infelizmente
pela seleção que elimina os mais fracos, deixando
subsistir os mais fortes”. (Rel. 1901) Como não podia
deixar de ser, tal posição garantiu a Murtinho o ódio de
mais uma classe, a dos cafeicultores.
272
273
O fato é que, apesar da permanência da cotação
do café em níveis baixos, a sua receita cresceu
paulatinamente. Isso foi possível graças a um grande
esforço quantitativo, mas evidentemente resultou uma
forte perda sob o ângulo das relações de troca. Murtinho
quis evitar isso – sem sucesso.

***

A política econômica de Joaquim Murtinho foi


fortemente criticada devido a seus efeitos negativos a curto
prazo: a crise dos bancos de 1900 e, de modo mais geral, a
pressuposta depressão, em dimensões catastróficas, da
economia nacional. Isso exige alguns reparos.

i) A crise bancária foi uma realidade. O que está


em discussão é a sua extensão, bem como a sua causa
mais profunda. Quanto ao primeiro aspecto, houve como
em todo “episódio Murtinho” exageros. Foi dito que “o
pânico bancário em 1900... quase destruiu o sistema
monetário brasileiro” (Peláez-Suzigan), embora este,
passada a crise, voltasse a funcionar normalmente, um
ano depois. Outro comentário excessivo diz que “os
bancos nacionais faliram quase todos”. (Ferreira Lima).
Outro9s, mais comedidos, dizem que “uma grande crise
bancária em setembro de 1900 levou à falência quase
metade do sistema bancário” (Villela-Suzigan). Roberto
Simonsen cita a falência de 17 bancos, sem definir o
tamanho do abalo – apenas observa que o feito colocou
“em penosa situação as classes produtoras”. Na
273
274
avaliação ponderada de Calógeras, se chega a apenas 9
estabelecimentos bancários.
Sem dúvida, o abalo não era desprezível,
atingindo algumas instituições de base do sistema
financeiro. A crise era inevitável face à perda aparente
de liquidez. Entretanto, pode-se fazer um exercício
cujos resultados são um tanto surpreendentes: partindo
da base de 1889, o montante dos meios de pagamento,
em termos reais, teria chegado em 1900 para um nível
superior ao de 1889. Até 1902 subiu ainda mais. Em
outras palavras, apesar do impacto contracionista, a
política de Murtinho não teria chegado a anulas os
excessos expansionistas ocorridos entre 1889 e 1898.
Murtinho procedeu criteriosamente ao enxuga-
mento do sistema, ciente do preço a pagar e dos riscos a
assumir, assinalando “os perigos que (o resgate do
papel-moeda) pode trazer, se não for executado com
grande prudência e extraordinário critério. O perigo está
em que a redução do papel-moeda traz como con-
seqüência uma redução na amplitude da circulação, na
extensão do aparelho circulatório, que se manifesta por
grande diminuição de negócios”. (Rel. 1899).
Talvez o empenho saneador tenha ultrapassado às
vezes os limites da prudência, mas a alternativa podia
parecer a Murtinho – e a outros – ainda pior. Murtinho,
entretanto, insistiu em que a origem do mal residia nos
abusos feitos durante o período de liberdade exacerbada
após 1889. A crítica, avalizada pela autoridade de
Calógeras, refere-se em primeiro lugar ao Banco da
República do Brasil que “conservou os germes da
274
275
destruição criados pela gestão desastrosa, dilapidadora
destas duas instituições (os bancos que fusionaram no
Banco da República)” (Calógeras), aduzindo, ainda, à
“fraqueza profissional da administração” do Bando da
República. (ibidem). Tendo sido vedadas novas
emissões de acordo com a lei de 1899, os bancos não
tiveram mais meios de refazer sua liquidez a fim de
atender a seus compromissos.
De fato, as autoridades monetárias não ficaram
insensíveis, mas na opinião de Calógeras, a procura de
uma solução foi torpedeada “por uma campanha de
sábias indiscrições”. Finalmente, às pressas, foi
arquitetado um plano de emergência de restauração
financeira (setembro de 1900) para acudir aos bancos
em apuros. Enfim, a crise foi superada, mas sem dúvida
não seria lícito minimizar o trauma sofrido pelo sistema.
Até que ponto o saneamento se justificava em tal
intensidade? Murtinho, obviamente, defenda as pro -
vidências tomadas: “A crise aguda que se manifestou
ultimamente no nosso mercado monetário veio, pois,
mais uma vez trazer a demonstração do acerto da
política e dos resultados fecundos que ela trouxe ao país
e, se é verdade que ela acarretou alguns sofrimentos,
não é menos verdade que esses sofrimentos, como
muitos outros, têm vantagens incontestáveis”. (Rel.
1901) E Murtinho aproveita para insistir em que, se a
crise foi devida à notável diminuição do crédito e à
ruína de muitos estabelecimentos bancários, a raiz dos
males residia “nas grandes emissões anteriores de papel-
moeda” (ibidem).
275
276
Pouco tempo depois, uma autoridade como
Calógeras veio fornecer um irrestrito atestado a favor
dos acontecimentos: “A derrocada dos bancos de 1900
produziu evidentemente benéficos: o saneamento
econômico e financeiro da praça do Rio, e dos principais
mercados em relação com ele, exigia esse preço”.

ii) Parece fora de dúvida que a forte contenção


monetária, financeira e creditícia não limitou seus
efeitos à crise dos bancos, mas toda a economia nac ional
pode ter sido afetada. Há, entretanto, a que parece,
exageros de avaliação e não se deve esquecer que o
governo Campos Salles foi submetido por várias razões
– sobretudo políticas – a críticas duras que, em
perspectiva do tempo, não dão impressão de isenção e
objetividade. Um juízo mais ponderado diz com
prudência: “É provável que jamais se consiga avaliar
adequadamente os efeitos dessa política de contenção,
mas é fora de dúvida que esse período foi um dos mais
críticos na história econômica do Brasil”. (Villela-
Suzigan) Seria irrealista uma defesa de Murtinho
negando-se os inevitáveis efeitos amargos da política de
saneamento. De fato, essa ressalva se pode fazer a
respeito de outras experiências mais recentes no Brasil.
As próprias fontes coevas – salvo as dos inimigos
declarados do governo – embora reconhecendo os
aspectos depressivos do momento, não chegam a clamar
contra uma catástrofe de dimensões insuportáveis.
Vejamos o Retrospecto Comercial do Jornal do
Commercio de 1900 – uma publicação ligada aos
276
277
interesses das classes comerciantes, portanto pouco
propensas a indulgências para com Murtinho: “O ano
passado (1900) foi ainda menos satisfatório do que o
anterior e as atribulações do comércio, tanto de
importação como de exportação foram persisten tes e
agudas”. Não deixa de apontar a “atmosfera da
desconfiança” – que abre uma janela sobre a
impopularidade da política de Murtinho. Outro trecho é
mais contundente, referindo-se à crise, “a mais pesada
de que tenho lembrança durante mais do que um quar to
de século”. Isso se escrevia no auge da crise, que foi no
ano de 1900.
No ano seguinte o tom já é mais ameno: “Acre -
ditamos ter havido melhora no movimento comercial
durante o ano findo, não obstante as reclamações mais
ou menos persistentes”. Referindo-se aos negócios de
importação o Retrospecto esclarece que as queixas são
devidas mais a “esperanças exageradas” e menos à
“verdadeira diminuição dos negócios”. O leitor impar -
cial dificilmente encontrará nestes textos a imagem de
uma débâcle da economia. As tormentas se acalmaram e
sente-se a normalização, embora com a persistência do
trauma provocado pela crise: “A estabilidade do câmbio
durante o ano findo removeu notavelmente as queixas
do nosso comércio importador: mas tão enraizado se
mostrou o costume de referirmo-nos à crise tremenda
pela qual o país passa que em quase todos os
documentos publicados, dos mais variados objetivos,
consta tal frase sombria.” A frase foi retomada, retocada
e magnificada pelos comentaristas ulteriores.
277
278
Embora seja válida a observação citada de que
“jamais se consiga avaliar adequadamente os efeitos de
política de contenção”, vale juntar alguns indícios. Um
indicador global (embora precário) que seria a taxa de
crescimento do PIB no período, não acusa nenhuma
derrocada fatal, durável. De acordo com vários
pesquisadores, o PIB em valores constantes teria
crescido muito pouco em 1899; teria caído, também
pouco, em 1900, registrando depois excelentes taxas de
crescimento: 11% em 1901, 7% em 1902. (Goldsmith)
Estas últimas taxas parecem exageradamente altas, mas
seria ainda mais gratuito sustentar que as taxas teriam
sido negativas. Em 4 anos (1899/1902) o crescimento
foi de 18,7% ou seja à razão de 4,4% ao ano. Na década
anterior (1889/1898) a taxa média anual não havia
passado de 1,5%. Onde fica a recessão?
Numa economia predominantemente agrícola e
ainda com setores não monetizados, a crise monetária
podia ser amortecida. O importante era o compor-
tamento da agricultura de exportação, visto que o
coeficiente de exportação era muito elevado -
provavelmente 20 a 25% do PIB. Mas, com todos os
percalços encontrados, a exportação teve um com -
portamento razoável: depois de um biênio de estagnação
– mas não de queda – em 1898/99, a receita de
exportação subiu 30% em 1900 e 22% em 1901 e caiu
apenas 10% em 1902, situando-se ainda em nível
bastante elevado. Não se deve esquecer que o Brasil se
encontrava em pleno subciclo da borracha, com volumes
exportados crescentes e cotações em alta.
278
279
Do lado das importações, a retração é mais
visível, embora se pudesse esperar uma ativação graças
à valorização da taxa de câmbio. O valor da importação
caiu paulatinamente, porém não em grandes proporções,
entre 1899 e 1901; em 1902 voltou praticamente para o
nível de 1898.
Sinais recessivos, embora amenos, aparecem no
movimento do porto do Rio de Janeiro, em 1900/1901,
tanto no longo curso como na cabotagem, porém em
1902 já se tinha voltado para o nível de 1898 em quase
todos os casos mencionados (Lobo).
O movimento da Bolsa de Valores do Rio de
Janeiro, também, está longe de oferecer um cenário de
débâcle: entre 1898 e 1900 o volume de cambiais
negociadas aumentou: o do títulos da dívida púbica caiu
de 1899/1900, mas acusou forte aumento em1901/1902;
houve igualmente queda nas transações com ações e
debêntures em 1900/1901 e recuperação em 1902
(ibidem).
Pode-se interpretar também como sinal recessivo
a diminuição das importações de equipamentos in -
dustriais; entretanto, apenas o ano de 1901 apresentou
resultado evidentemente negativo. Por outro lado, pod e-
se registrar como fator de animação da economia, o fato
de que se intensificara a entrada de investimentos
estrangeiros. (Castro).
Quanto à “onda de desemprego e de greves” de
que se falou, parece ter havido algum exagero. De fato,
a avaliação deveria referir-se ao setor industrial urbano
e a indústria representava uma parcela mínima do PIB
279
280
(12% em 1902) e conseqüentemente do emprego. Em
1907 o número de operários industriais era de 151 mil –
o que não representava mais de 0,7% da população total.
Um levantamento mais cuidadoso dos movimentos
grevistas poderia eventualmente detectar maiores
tensões durante a presidência Campos Salles, mas num
panorama superficial dos primeiros 10 anos da Repú -
blica, tal agravamento não aparece (Carone).

iii) Para finalizar, foi uma política de um


antiindustrialista ferrenho? Da mesma forma poder -se-ia
alegar que Murtinho foi um adversário ferrenho da
economia cafeeira na medida em que ela seguia padrões
antieconômicos. Outrossim, Murtinho seguiu a
tendência histórica de aumentos da proteção
alfandegária – mesmo se era por razões tributárias e não
protecionistas. Com a reforma de 1900, com a elevação
das alíquotas e a aplicação da cota-ouro de 20% e depois
25%, a indústria passou a ter uma forte proteção,
superior à dos regimes anteriores. Sem dúvida, não se
tratava de uma política industrialista explícita, mas esta
tardou a aparecer no Brasil e a sua ausência não deve
ser debitada a Murtinho. Mas por outro lado, se
Murtinho quis acabar com o regime preferencial para o
café, não lutou ele por uma nova alocação de fatores de
produção que beneficiaria indiretamente o setor
industrial? Se não se pode creditar a Murtinho uma
verdadeira política industrialista, as suas reformas
beneficiaram a economia brasileira como um todo,
inclusive o ainda frágil setor industrial. Numa
280
281
perspectiva mais ampla, ultrapassando os limites do
período presidencial Campos Salles, os benefícios iriam
aparecer claramente.

***

Houve, sem dúvida, insatisfações, protestos,


vítimas. Não se deve esquecer o clima de liberdade que
acompanhou as reformas de Murtinho. Na sua última
mensagem, Campos Salles lembrou algo melanco li-
camente: “Nunca atravessamos uma fase em que
tivessem sido mais livres, mais ilimitadas, mais
veementes e talvez mais sediciosas as ex pressões da
imprensa e da tribuna”. E é bom lembrar também que o
Retrospecto Comercial de 1901 quando fala das
agitações de rua, esclarece que estavam ligadas à
sucessão presidencial.
Um cronista competente descreveu da forma
seguinte os acontecimentos: “A hostilidade contra o
governo havia atingido seu máximo (1901) e tudo era
levado como pretexto para fazer-lhe oposição. Agitações
sem grande valor, contudo, exigiram a intervenção
enérgica da política do Rio. Essas notícias exageradas e
comentadas no Brasil e no estrangeiro, aumentavam as
facilidades de ação dos agitadores, auxiliados pela
violência das discussões parlamentares”. (Calógeras).
E qual era a explicação no plano das reformas
econômicas de Murtinho? “Todas essas inovações
fiscais e sobretudo o espírito draconiano dos regu-
lamentos que determinaram o modo de percepção e de
281
282
supervisão, provocaram sobre as praças comerciais do
Brasil um tollé geral, que foi até a insurreição”.
(ibidem) Em outras palavras, válidas para os nossos
dias: a tradicional resistência do corpo social a reformas
de gosto amargo a curto prazo, esquecendo as vantagens
de longo prazo.
De tal miopia parecem ter sofrido alguns co-
mentaristas mais recentes. Não se fale mais das críticas
exacerbadas – e gratuitas como as que afirmam que “as
medidas postas em prática por Murtinho se trans -
formaram para nós em fatores de retrocesso por
encerrarem caráter antinacional”. (Ferreira Lima, 1976).
Parece linguagem de comício eleitoral, usando co -
nhecidos chavões.
Outros críticos, muito mais competentes, pecaram
entretanto por um certo radicalismo no sentido de
censurarem em Murtinho uma política contrária a suas
posições teóricas – elas mesmas de valor relativo, como
sempre se verificou na história do pensamento
econômico.
Os críticos enfatizaram seja o seu fraco emba-
samento teórico, seja a inocuidade das providências
adotadas, seja, sobretudo, os seus efeitos nocivos a
curto prazo. O fato é que Murtinho atingiu grande parte
de suas metas: contenção monetária e creditícia,
equilíbrio das finanças públicas, valorização cambial.
Isso com seus ingredientes negativos talvez inevitáveis:
crise bancária, recessão, rigor do programa de
saneamento.
Entretanto, o melhor teste de política de Murtinho
282
283
deveria ser feito através dos seus efeitos numa visão de
prazo mais longo. Calógeras, com isenção, lembrou os
percalços de curto prazo, sem deixar de assinalar os
ganhos subseqüentes: “Com o risco de parecer insen -
sível e duro, tenho que confessar lealmente minha
profunda convicção de que, devidamente pesado s os
males e as vantagens, a derrocada dos bancos de 1900
produziu resultados evidentemente benéficos...”
A política de Murtinho desagradou a gregos e
troianos, pois todos os grupos tenham uma ótica
limitada aos próprios interesses imediatos: os
consumidores rejeitaram o aumento dos impostos, os
empresários a redução do crédito, os cafeicultores a
valorização cambial – e assim por diante. Entretanto o
estadista deve possuir a visão “telescópica – a
capacidade de enxergar os efeitos finais a longa
distância. E a coragem moral para enfrentar as críticas.
Vieira Souto ironizou as promessas não cumpridas
de Murtinho: renascimento do crédito público,
desenvolvimento do crédito público privado, maior
atividade da circulação econômica, aumento da riqueza.
Isso foi escrito em 1902 e Vieira Souto podia ganhar
esperando apenas alguns anos para verificar a realização
das promessas de Murtinho. Pois, justamente a partir de
1903 e durante uma década, até a eclosão da Primeira
Guerra Mundial, o Brasil passou por uma fase de expansão
e equilíbrio econômicos que foi, com propriedade,
rotulada como “Reerguimento Econômico” – fase que
deve ser creditada ao trabalho preparatório de Murtinho.
Cite-se apenas rapidamente os sucessos regis-
283
284
trados: equilíbrio monetário e financeiro, fortalecimento
da posição cambial, confiança do mercado financeiro
internacional, fortalecimento do crédito externo, entrada
de investimentos estrangeiros, expansão das exportações
e importações, manutenção de saldos comerciais
elevados e boas taxas de crescimento do PIB e, mais
especialmente, do produto industrial (Buescu). Pode -se
dizer que o único fracasso foi a continuada expansão do
setor cafeeiro que teve como conseqüência a adoção das
políticas de valorização à qual Murtinho se tinha oposto,
de modo que seria uma distorção injusta – como alguns
o fizeram – responsabilizar a política de Murtinho de
um liberalismo puro demais, pelos desvios mercan -
tilistas da defesa do café que devia prolongar-se até
muito tempo depois da morte de Murtinho.

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288
289

ARRANCO OU TRANSIÇÃO
(1930/1960)

Passou discretamente, no ano passado, uma


comemoração de grande significado para a história
econômica do Brasil.
O semicentenário da constituição da Companhia
Siderúrgica Nacional (Volta Redonda), criada pelo
Decreto-lei 3.002, de 30 de janeiro de 1941 (1). A
importância estratégica da empresa, que devia entrar em
funcionamento apenas em 1946, não escapou aos
contemporâneos. Ainda em 1941, o presidente Vargas
considerou-a um “passo decisivo para a industrialização
e a independência econômica”. Na mesma época (1942),
Roberto Simonsen a entendia como “o início de uma
nova era industrial”.
Realmente, a criação da CSN não representa
apenas uma etapa significativa na evolução industrial do
país, um símbolo da decolagem econômica, mas também
um paradigma do desenvolvimento na época, sob a égide
de nacionalismo do intervencionismo estatal, do
autarcismo e do industrialismo. Mas adiante, reservarei
maior atenção a esses aspectos típicos daquele momento
histórico. Por enquanto, quero referir-me a Volta
Redonda como marco do que teria sido o arranco
brasileiro.

289
290
Uns 20 anos atrás, quando me dedicava com
entusiasmo aos métodos quantitativos em história
econômico, empreendi um exercício quantitativo para a
identificação cronológica do arranco brasileiro (2). O
exercício, com todas as limitações do método e dos
escassos dados estatísticos, devendo, portanto apelar
para extrapolações e estimativas, sustentava-se, não
obstante, na coerência das conclusões, em cotejo com
informações qualitativas.
A demonstração partia do esquema do arranco, tal
como apresentado no livro clássico do W. W. Rostow
(3). Como se sabe, ele afirmou que o arranco se
caracteriza por três condições inter-relacionadas (uma
simplificação): taxa de investimento produtivo superior
a 10% da renda nacional; crescimento elevado de um ou
mais setores manufatureiros básicos; existência ou
rápida eclosão de um arcabouço político, social e
institucional favorável ao desenvolvimento. Tal
esquema constitui um bom roteiro para análise, de modo
que voltará a aparecer mais adiante na exposição,
embora ele deva ser aceito de maneira circunstanciada:
antes de mais nada pode-se dizer que os condi-
cionamentos são reciprocamente condicionados – por
exemplo, a elevada taxa de formação de capital
condiciona o crescimento do PIB, mas ela por sua vez
pode ser elevada graças ao alto nível do PIB.
Na falta de informações diretas sobre a evolução
secular da taxa de formação de capital, o exercício
quantitativo consistiu em observar a partir de que data
aquela taxa podia ser superior a 10% do PIB, descontada
290
291
a taxa de depreciação, que não podia ser muito elevada
numa economia predominantemente agrícola. Estim ei
primeiro as taxas de crescimento do PIB, de forma
indireta, de vez que as contas nacionais oficiais come -
çaram praticamente apenas na década de 50 (4). As
estimativas assim calculadas foram razoavelmente
confirmadas pelos levantamentos oficiais ulterior es (5).
A fim de passar das taxas de crescimento do
produto para as da formação de capital foi necessário
extrapolar o valor da relação capital/produto. Ora, nas
contas nacionais, após 1947, essa relação apareceu como
aproximadamente de valor 2. E, por razões estruturais,
era quase impossível ter sido maior nos anos
antecedentes. Portanto, com a relação capital/produto de
no máximo, 2 e com taxas de crescimento do produto
inferiores a 5% até a década 1940/50 (6), foi só nesta
década que a taxa liquida de formação de capital podia
ter ultrapassado o limiar rostowiano de 10% (7).
Isso me permitiu considerar, algo super ficial-
mente, que o arranco brasileiro ocorrera no decênio
1940/50 (8) ou, rejeitando o período desfavorável da
guerra, em 1945/50. Dessa forma – para voltarmos à
data comemorativa – podia considerar a criação da
Volta Redonda como uma indicação ou pelo menos um
símbolo do arranco.

***

Entretanto, o arranco, como qualquer processo


histórico, mesmo quando se trata de uma assim chamada
291
292
revolução, apresenta-se como um processo de evolução
lenta, contínua, mesmo se mais acelerado durante um
certo período. Segundo o critério adotado, o momento
crítico da mudança teria se cristalizado em 1945/50,
porém a preparação desse momento vinha de longe: já
assinalei que, para haver uma certa capacidade de
formação de capital, a economia nacional devia en -
contrar-se num patamar razoavelmente elevado em
termos de taxa de crescimento e estruturas sócio -po-
líticas e econômicas (mais especificamente em termos
de grau de industrialização).
Como qualquer processo histórico o arranco não
surgiu ex nihilo, nem se podia completar instan-
taneamente ou num rápido lapso de tempo. Ao observar
a série secular das taxas de crescimento do Brasil, no
século XX, constatava-se que durante quase o primeiro
meio século flutuaram em torno de 4% ao ano (salvo nos
períodos de crise: a Primeira Guerra Mundial e a Grande
Depressão). Ademais, o processo de industrialização foi
também de longo prazo: excluindo os dois períodos de
crise mencionados, o setor industrial acusou taxas de
crescimento superiores ao conjunto da economia – quer
dizer, ele aumentou paulatinamente sua participação no
produto global.
Deixando os aspectos quantitativos do arranco e
considerando os que se referem aos condicionamentos
qualitativos do arranco (o setor político dinâmico, a
motivação nacionalista e autárquica, o intervencionismo
como instrumento desenvolvimentista), podemos admitir
que esta fase primitiva do arranco começou nos anos 30,
292
293
mais especificamente após a passagem dos efeitos
negativos da Grande Depressão. Alguns historiadores
sugerem que a revolução de 1930 representa o marco de
surgimento do Brasil moderno. Do ponto de vista
econômico, a modernidade consistiu no abandono do
modelo, já esgotado, de exportação de produtos
primários e na adoção mais ou menos explícita do
modelo industrialista: uma passagem lenta e às vezes
hesitante, a aplicação de decisões ambivalentes, favo -
recendo às vezes o modelo antiquado, porém cada vez
mais o modelo da modernização.
Parece, portanto, aceitável a adoção de uma
periodização – arbitrária como qualquer outra – que
fixaria o arranco ou melhor, a transição no período de
30 anos de 1930 a 1960, um lapso de tempo
praticamente da mesma ordem que os detectados por
Rostow para os países ocidentais. Adotando por hábito
tradicional subperíodos decenais, a periodização
compreenderia:
- os anos de 1930 a 1940; o surgimento das
condições mais nítidas da transição;
- os anos de 1940-1950: a marcha mais resoluta
para o novo modelo;
- os anos 1950-1960: a consolidação do novo
modelo.
Contudo, por mais que se queira compartimentar
a evolução, é difícil isolar o período selecionado dos
seus antecedentes. Se antes de 1930 a taxa de formação
de capital era inferior a 10% da renda nacional, esta de
qualquer forma aumentava, nos anos de normalidade, a
293
294
taxas ligeiramente superiores à taxa de expansão
demográfica; logo resultava num pequeno crescimento
da renda per capita. No produto real, como foi
assinalado, aumentava a parcela relativa da indústria: na
véspera da Primeira Guerra Mundial havia uma razoável
produção industrial nos setores alimentício e têxtil e,
nos anos 20 surgiram avanços na produção siderúrgica e
do cimento. Tinha-se constituído uma pequena rede
ferroviária e depois da guerra desenvolveu-se a rodo-
viária. A expansão do setor cafeeiro propiciou em
grande parte este progresso, incluindo a formação de
uma infra-estrutura bancária e comercial e o surgimento
de uma classe empresarial razoavelmente forte.
Por outro lado, as mentalidades haviam evoluído
num sentido mais adequado ao desenvolvimento
econômico. O protecionismo, já atuante no século XIX,
se tornou mais insistente e menos fiscalista, mesmo no
período de forte liberalismo entre a Primeira Guerra
Mundial e a Grande Depressão. O nacionalismo,
eventualmente econômico, se manifestou já no início do
século, por exemplo com Alberto Torres; as idéias
foram adotadas pelo tenentismo que assumiu também
posições de intervencionismo estatal, embora sem
formulações muito nítidas. A Grande Depressão, no
limiar da época em pauta, acentuou por motivos
estratégicos, como em todo o mundo, a ênfase no papel
do Estado na direção da economia e a tendência para o
autarquismo, O crescimento econômico ficava ligado à
expansão da indústria. O industrialismo, já detectado no
pensamento de Rui Barbosa, firmou-se, como por
294
295
exemplo, nas idéias de Amaro Cavalcante e de
Serzedelo Corrêa ou no comportamento do empresário
Jorge Street e, mais tarde, de Roberto Simonsen. Vale
ainda assinalar, na véspera desse período de transição, a
criação sintomática do Centro das Indústrias de São
Paulo. Foi neste ponto que, sob o impacto da Grande
Depressão e das políticas daí decorrentes, bem como o
da mudança do regime político, é lícito considerar
iniciado o período de 30 anos rotulado como arranco ou
transição.

***

Seguindo a periodização adotada, tratarei agora


do primeiro subperíodo: abandonando a rígida divisão
decimal, seria válido considerar o intervalo de 1932, fim
da Grande Depressão no Brasil, a 1939, início da
Segunda Guerra Mundial. Como já foi apontado, este
intervalo ainda não se enquadra no arranco propriamente
dito quanto ao critério da taxa de formação de capital,
mas pelas características a serem apontadas mais
adiante, inclui-se no conceito de transição: mudança da
estrutura sócio-política, ênfase de novos enfoques na
condução da política econômica, sinais de substituição
do antigo modelo exportador pelo modelo industrialista.
É importante assinalar a sensação de renovação
que se sentiu quando da instalação do novo regime po-
lítico em 1930 – talvez um impacto de esperança ou
simples desejo de transformação para melhor, tal como
se manifestara 40 anos antes, por ocasião da procla -
295
296
mação da república. Essa transformação se fez ao longo
da década, sob a égide dos princípios que dominaram o
pensamento econômico ocidental depois da Grande
Depressão. Tal como a Primeira Guerra Mundial abalou
a confiança na ordem política do mundo liberal, a
Grande Depressão solapou as esperanças de uma ordem
econômica baseada no liberalismo. Na confusão criada
pela Depressão, os países buscaram soluções próprias de
defesa, o que agravou a compartimentação da economia
mundial. O colapso do comércio internacional levou à
procura de soluções autárquicas, justificadas cada vez
mais pela deterioração do cenário político precursor da
guerra. O quadro ideológico dominado, portanto, pelo
autarquismo, peno nacionalismo econômico, pelo inter -
vencionismo estatal.
Foi sob o império destes princípios, que se deu a
renovação. Apesar das restrições que podem ser feitas a
esses princípios, deve-se admitir que, nas circunstâncias
do momento, tiveram efeitos bastante benéficos para o
desenvolvimento econômico do País. Isso não quer dizer
que devem ser elevados ao nível de paradigmas da
política econômica, porém é preciso não esquecer que se
tratava de um período de crise tanto política como
econômica. Não obstante, talvez seja enfática demais a
alegação de um autor de que “o ano de 30” marca o
início da “Revolução Nacional Brasileira” (8 bis),
sobretudo quando se recorda o retrocesso político de
1937, embora este também tenha sido em sintonia com
as idéias generalizadas na época.
Talvez seja ocioso lembrar, para definir o cenário
296
297
mundial, não apenas a marcha aparentemente bem
sucedida da planificação centralizada na União Sovié-
tica, bem como a extensão e o agravamento do interven -
cionismo estatal, a começar pelo país-líder do libe-
ralismo, os Estados Unidos. Não se pode aplicar apenas
ao Brasil a observação de que na época “o racionalismo
econômico serviu para identificar as prioridades e
investir o Estado de autoridade para entrar em ação”
(Wirth). Evidentemente, tal posição provo caria arrepios
a qualquer liberal enragé da atualidade.
Como no esquema de Rostow, a transição se
tornou possível graças ao “arcabouço social e político”
favorável ao desenvolvimento. Aí domina a figura de
Getúlio Vargas, responsável pela direção política e
econômica durante 15 anos, aos quais se deve
acrescentar, após um interregno de 5 anos, novo período
presidencial de 4 anos. Merece destaque a observação de
um estudioso de que “Vargas irradiava confiança no
futuro econômico do Brasil” (Wirth), traço psicológico
que encontraremos novamente na fase final da transição
durante a presidência Kubitschek.
O perfil ideológico de Vargas encontra-se, por
exemplo, num discurso, já em 1931, quando, referindo -
se ao problema da criação de uma siderurgia nacional,
ele indica os parâmetros da política econômica: nacio -
nalismo, autarquismo, intervencionismo estatal, indus-
trialismo. Disse Vargas: “O problema máximo, básico
de nossa economia é o siderúrgico... a grandeza futura
do Brasil depende principalmente da exploração de suas
jazidas de ferro... nacionalizar a indústria”. Somente
297
298
dentro dessa ideologia é permitido afirmar que o Bras il
teve um governo “identificado com os ideais de
renovação da política e da economia brasileiras” (Bres-
ser Pereira) ou que se tinha chegado ao “surgimento de
uma ideologia desenvolvimentista” (Wirth).
Pode-se identificar o espírito renovador, no
sentido de abandonar o modelo exportador a favor do
industrialista, na correspondente alteração do perfil
social, com a redução do poder da classe agrária e a
diversificação da sociedade, com o crescimento da
burguesia industrial e do proletariado urbano – isso,
pode ser considerado falacioso, pois essas mudanças
foram conseqüências e não causas da industrialização.
Mais relevante parece a presença de líderes empresariais
que batalharam pela industrialização: Roberto Si -
monsen, Euvaldo Lodi, Henrique Lage, etc. E n o setor
público, Macedo Soares, Horta Barbosa, etc.
A ênfase reservada à indústria e ao mercado
interno refletia a decepção com o modelo exportador,
duramente atingido pelo colapso do mercado
internacional a partir de 1929. Não obstante, não se
deve subestimar a força de sobrevivência do antigo
modelo. A década focalizada se iniciou com a grande
operação de defesa do café, cujo alcance anticíclico é
objeto de controvérsias (9), mas de qualquer forma deve
ter contribuído, ao lado do programa do Reajustamento
Econômico, para minimizar o impacto da Grande
Depressão, tanto em intensidade como em duração (10).
O interesse persistente pela exportação aparece na
criação do Conselho Federal do Comércio Exterior
298
299
(1934) e dos vários Institutos destinados a sustentar
certos setores exportadores (açúcar, mate, cacau, pinho).
Mesmo Roberto Simonsen, grande industrialista,
propunha aumentar a participação do Brasil no mercado
mundial de produtos tropicais e a criação de um
Instituto Nacional de Exportação.
Entretanto, reservava-se atenção crescente ao
setor industrial, através de uma política seletiva de
importações, a fim de sustentar os investimentos
industriais, favorecendo sobretudo a indústria têxtil que
chegou a ser superdimensionada, o que lhe permitirá
expandir suas exportações durante a guerra. Sem entrar
em outros detalhes, é suficiente citar a criação do
Conselho Nacional do Petróleo e da Carteira de Crédito
Agrícola e Industrial do Brasil, a redação do Código de
Minas e Águas, bem como os planos visando a
industrialização e a modernização da economia, como
por exemplo o Plano Especial de Obras Públicas e
Aparelhamento da Defesa Econômica (1939).
Na falta de estatística macroeconômica, pode-se
encontrar um indício da intensificação dos inves -
timentos industriais no aumento do consumo de cimento
e aço, e da importação de bens de capital (11). A
mudança do centro de gravidade da economia é ilustrada
pela redução da proporção entre a receita do imposto de
importação e a do imposto de consumo (12). Por outro
lado, observa-se uma diminuição da participação das
indústrias tradicionalistas (alimentar e têxteis) no
produto industrial total, em benefício das indústrias
mais modernas (13).
299
300
O subperíodo seguinte, dos anos 40, se iniciou,
tal como o anterior, depois de um grande abalo: a
Segunda Guerra Mundial. A década incluiu duas fases,
de acordo com a conjuntura internacional – uma com as
dificuldades criadas pela guerra; a outra, com a euforia
e as relativas facilidades do pós-guerra. Assim a marcha
da transição continuou. Havia entretanto, mais do que
nos anos 30, os requisitos do arranco: estrutura
industrial incipiente e o arcabouço sócio-político
surgido com a revolução de 1930 e cujo impulso
assumiu eventualmente mais força devido aos desafios
criados pela guerra.
Voltando para àquele critério, um tanto
mecanicista, da taxa de formação de capital, já vimos
que foi nesta década que se atingiu o limiar rostowiano
de 10% da renda. Mais precisamente, no segundo
qüinqüênio, pois segundo cálculos diretos das Contas
Nacionais, aquela taxa foi, em média, de 14,1% em
1947/50, o que não parece ter sido alcançado no
qüinqüênio anterior (14).
O governo, ainda sob a pressão das circuns-
tâncias externas adversas, continuou mostrando inte -
resse pela aceleração do crescimento econômico através
da industrialização (15). E no mesmo sentido se com -
portaram os líderes dos setores público e privado. As
alavancas ideológicas que atuaram nos anos 30 fun -
cionaram com maior nitidez durante a guerra e depois:
nacionalismo, autarquismo, intervencionismo estatal.
Quanto à conjuntura externa, a tese tradicional, a
teoria dos choques externos, deve ser entendida com
300
301
muitas ponderações. Não se pode dizer que o choque da
Segunda Guerra Mundial, ao fechar o mercado externo
favoreceu o crescimento, ao provocar uma verdadeira
proteção compulsória da indústria nacional. A realidade
foi que o fechamento, se foi efetivo em relação à
Europa, não ocorreu na zona ocidental, a não ser em
decorrência das restrições bélicas. Pelo contrário, o
Brasil exportador teve à sua disposição, além do
mercado norte-americano, a América Latina e a África
do Sul – o que proporcionou à indústria brasileira a
oportunidade de exportar para estas duas áreas, livre da
concorrência dos países industrializados envolvidos na
guerra. Como, entretanto, as importações sofreram
grandes restrições, o Brasil acumulou substanciais
saldos comerciais que foram parcialmente desperdiçados
no pós-guerra. Outrossim, o choque externo prejudicou
o processo desenvolvimentista devido ao estran -
gulamento das importações e à retração dos inves-
timentos externos. Mas isso também não é verdade
completa, sendo a contraprova a própria Volta Redonda,
cujos equipamentos norte-americanos começaram a
entrar já antes do fim da guerra. Por outro lado, pode
ficar como saldo positivo o fato de a indústria ter
acumulado lucros com a exportação. E, ainda mais valeu
a lição da exigência de fortalecer a economia nacional, a
fim de fazer face aos imprevisíveis abalos externos.
Vê-se, portanto, que a guerra teve efeito
ambivalente quanto à passagem do modelo exportador
para o modelo renovador, industrialista: por um lado,
intensificou a ação no sentido da industrialização,
301
302
embora seja ela prejudicada pelo retraimento das
importações, por outro lado, favoreceu as exportações,
enriquecidas, pelo menos nos últimos anos da guerra,
pelos produtos industrializados (16). Fazendo o balanço,
entretanto os fatores negativos superaram os positivos.
A transição prosseguiu na segunda metade da
década, num ambiente externo e interno de relativ o
equilíbrio e euforia. Evidentemente, o fim da guerra e as
esperanças de reconstituição do sistema econômico
internacional constituíram as bases do otimismo: falou -
se cada vez mais clara e insistentemente no desen -
volvimento econômico como condição geral da paz; é
expressivo que o grande organismo de reerguimento
econômico no âmbito mundial, criado já antes do
término da guerra, se referiu à reconstrução e
“desenvolvimento” (BIRD). Ademais, no caso do Brasil,
uma revolução pacífica ensejou a volta para um regime
democrático – motivo de euforia e esperança.
As idéias progressistas eram adotadas tanto do
lado do setor público como crescentemente do setor
privado, dentro de um ideário de economia de mercado e
livre empresa, embora com a manutenção de uma boa
dose de intervencionismo estatal. Mais tarde foi notada
“a emergência (depois da guerra) de um grupo, em
constante expansão, de homens de empresa” (Relatório
COMBEU, 1954). E ainda no mesmo Relatório: “é
particularmente notável como muitos dos empresários
que iniciaram suas atividades na década dos anos 30,
conseguiram agressiva e vigorosamente dilatar as
fronteiras dos seus negócios e ramificar suas atividades
302
303
durante e após a última guerra”. Foram estes
empresários, congregados nas Confederações Nacionais
das Indústrias e do Comércio, que constituíram parte
daquela elite necessária para o arranco de acordo com o
esquema de Rostow (17).
Havia, por outro lado, o papel do governo, pois
obviamente não podia ser eliminado o intervencionismo
estatal na economia. Na época, o líder da ação em prol
de Volta Redonda declarava: “não é possível esperar
pelas iniciativas particulares... incumbências que não
interessam ou são superiores às possibilidades (da
iniciativa privada)”. (Macedo Soares, 1944). Não
obstante, faziam-se restrições, como nas palavras de um
técnico liberal: “A necessidade da intervenção do
Estado, para corrigir ou suprir as fraquezas dos
empreendedores particulares, não permite concluir que a
iniciativa particular seja decadente e deva dar lugar à
iniciativa estatal” (Bulhões, 1950).
A intervenção do governo, justificada também
pela conjuntura bélica até 1945, se manifestou nos
vários planos econômicos que visavam a indus -
trialização, em primeiro lugar por razões estratégicas –
como dizia o já citado Plano Especial de 1939, “a
criação de indústrias de base como a dotação da defesa
do País”. Dentro dessa atividade normativa e orga -
nizacional, cite-se o Plano de Obras e Aparelhamento
(1944), a constituição da Comissão do Planejamento
Econômico (1944), a criação da Superintendência da
Moeda e do Crédito – SUMOC (1945), culminando com
um plano mais abrangente, o chamado plano SALTE
303
304
(1948).
Os resultados, em termos de crescimento
econômico, foram positivos sem chegarem a ser
brilhantes. No segundo qüinqüênio da década, o produto
real cresceu à razão de 6,5% ao ano (COMBEU), sendo
a renda real beneficiada pela melhora das relações de
troca (18), bem como pelo aumento das importações
graças à normalização do mercado internacional (19). A
indústria progrediu, elevando suas taxas de crescimento,
ao mesmo tempo que se processava um deslocamento
qualitativo, das indústrias tradicionais, para setores mais
modernos (20).
Na terceira fase da transição, nos anos 50, o
processo chegou o seu apogeu. Os fatores positivos que
já tinham atuado nas décadas anteriores manifestaram -se
com maior dinamismo, num ambiente político interno
mais favorável (excetuando a tragédia de 1954), com a
volta para a normalidade constitucional. Cientistas
políticos quiseram detectar uma causalidad e recíproca
entre a estabilidade política e o crescimento econômico
(21).
Devem ser acrescentados os condicionamentos
externos, que Rostow pareceu menosprezar no seu
esquema teórico do arranco. Com efeito, verificou -se no
pós-guerra “uma taxa de crescimento totalmente sem
precedentes na produção industrial mundial” (Paul
Bairoch). Paralelamente, o comércio internacional
aumentou substancialmente (22). Os países em desen -
volvimento participaram também destes progressos,
embora em menor proporção.
304
305
Pode-se identificar, na época, a presença de uma
elite desenvolvimentista, isto é, dedicada de modo
racional e sistemático à promoção do desenvolvimento
econômico, elite essa que atuou no setor privado como
no público, principalmente durante a presidência
Kubitschek, dentro de um modelo de economia mista
assim definido com relativa propriedade: “O núcleo da
política econômica de Kubitschek consistiu na
congregação da iniciativa privada... com a intervenção
contínua do Estado como orientador dos investimentos,
através do planejamento... O Governo se transforma em
instrumento deliberado e efetivo do desenvolvimento
econômico”. (Benevides).
Para definir as elites mencionadas, nada mais
expressivo que o testemunho de um de seus líderes que
mais tarde declarou “ter-se apaixonado pela luta do
desenvolvimento econômico”, sublinhando a presença
de um condicionamento psicológico fundamental: o fato
de que se vivia num “clima de esperança” (23). De -
veriam ser citados todos os empresários de iniciativa e
coragem, bem como, no setor público, os técnicos que
foram mobilizados do Banco do Brasil, da SUMOC, da
Fundação Getúlio Vargas, etc., e que, em muitos casos,
agiram em ambos os setores.
O papel do governo foi fundamental, incluindo -se
na categoria “governo” tanto as decisões de p olítica
econômica como o comportamento das pessoas que
formavam o setor público – decisões e atitudes mo-
tivadas pelo espírito desenvolvimentista. As decisões
buscaram progressivamente um maior grau de racio -
305
306
nalidade e coerência, cristalizando-se na obra de
planejamento econômico. Aí deve-se citar, desde a
presidência Dutra, o mencionado Plano SALTE,
basicamente frustrado apesar de suas boas intenções.
Houve ainda outros planos setoriais: o Plano Nacional
do Petróleo, o Plano do Carvão Nacional, o Plano da
Eletrificação. Com maior abrangência, o Plano Nacional
de Reaparelhamento Econômico, o chamado Plano Lafer
(1951), a que deve ser ligado o ato de suma importância
que foi a criação do Banco Nacional de Desen-
volvimento Econômico – BNDES (1952), órgão desti-
nado a receber e distribuir recursos externos e
assumindo, com o tempo, o papel central no finan -
ciamento do crescimento econômico. Já antes, as idéias -
mestras da ação desenvolvimentista haviam se
cristalizadas nos trabalhos da Comissão Mista Brasil -
Estados Unidos (1951), cujos projetos específicos foram
integrados no Plano de Metas de Kubitschek – a
primeira em escala nacional. O interesse pelo
crescimento autônomo manifestou-se, às vezes com
excessos de nacionalismo irracional e xenófobo, na
campanha “o petróleo é nosso” que culminou com a
criação da Petrobrás.
Seria fastidioso citar aqui todas as medidas
governamentais visando o desenvolvimento, mas acho
que vale mencionar, para marcar a mudança do centro
de interesse, as medidas de política comercial e cambial
(Instrução nº 70 da SUMOC, a lei nº 3.244/1957) que
criaram mecanismos cambiais incentivando e subsi dian-
do os investimentos para desenvolvimento. A ex -
306
307
portação ficou marginalizada – sinal da transição do
modelo exportador para o industrialista.
É preciso acrescentar que os anseios desen-
volvimentistas encontraram condições políticas e ins -
titucionais para transformar-se em providências efetivas,
através dos dispositivos legais em vigor ou graças a
medidas pragmáticas, como foi a chamada “admi -
nistração paralela” dos Grupos de Trabalho e dos
Grupos Executivos, durante a presidência Kubitschek.
Tudo isso proporcionou um excelente crescimento
econômico, de 1948 a 1961, a taxas anuais entre 5,6% e
10,3% (com duas exceções) e uma média anual de 7,1%,
correspondendo a 4,2% per capita.
Causa ou efeito, a taxa de formação bruta de
capital subiu para 17,4% do PIB em 1951/55 e 15,7%
em 1956/60. É importante sublinhar que o volume de
investimentos foi primordialmente sustentado pela
poupança interna, apesar da insuficiência institucional
do mercado de capitais, mas também pela poupança
externa que foi captada graças a uma série de
dispositivos legais favoráveis, tais como a lei nº
1.807/1953 que introduziu o mercado livre de câmbio; a
Instrução nº 113/1955 da SUMOC para importações sem
cobertura cambial, etc. No que tange à industrialização a
transição consistiu também na mudança estrutural do
produto industrial com o desenvolvimento maior dos
setores modernos, mais dinâmicos, em detrimento dos
setores tradicionais – valendo mencionar a implantação
da indústria de bens de capital e de construção naval.
Assim se completou o período de 30 anos que
307
308
constituiria o arranco ou a transição, sem que tal
periodização implicasse num estancamento no fluxo
contínuo da história. Passada a transição, considera-se
que a economia brasileira tinha conquistado posições
estruturais, garantindo um crescimento sustentado. Isso,
entretanto, não excluía estagnações ou recuos como
infelizmente iriam se verificar logo depois, no início
dos anos 60, repetindo-se nas décadas seguintes em
alternação com fases de maior expansão. A lição
histórica a reter refere-se à conjuntura de fatores
positivos, principalmente políticos e culturais que
permitiram a passagem para uma fase mais madura da
economia nacional. De fato, ampliando a perspectiva
limitada do arranco ou transição, pode-se concluir que
aqueles fatores condicionam também a manutenção de
um ritmo satisfatório de crescimento econômico.

NOTAS

(1) A história do empreendimento pode ser en contrada em dois


livros de autoria daquele que pode ser considerado como o grande
artífice de Volta Redonda, Edmundo de Macedo Soares e Silva:
Volta Redonda e o Desenvolvimento Industrial do Brasil . Rio de
Janeiro, 1944 e Volta Redonda, Rio de Janeiro. 1945. Um bom
relato histórico encontra-se também em: Wirth, John. A Política
do Desenvolvimento na Era Vargas. Rio de Janeiro, 1973.

(2) BUESCU, Mircea. Identificação cronológica do arranco


brasileiro, in: Estudos Historicos, Marília, 1970.

(3) ROSTOW, W. W. Etapas do Desenvolvimento Econômico. Rio


de Janeiro, 1964.

308
309
(4) O cálculo foi feito paralelamente a partir das séries conhecidas
dos valores da exportação e dos meios de pagamento, aplicando -se
respectivamente o coeficiente de exportação e o quociente da
velocidade-renda da moeda, ambos extrapolados; sobre este
cálculo, v. BUESCU, Mircea. História Econômica do Brasil –
Pesquisas e Análises. Rio de Janeiro, 1970.

(5) Conf. HADDAD, Cláudio. Growth of Brazilian Real Output


1900/1947. Chicago, 1974. A partir de 1947 foram redigidas as
Contas Nacionais pelo Instituto Brasileiro de Economia.

(6) Segundo minhas estimativas o crescimento anual médio evo -


luiu assim:
1903/13 4,05 1933/39 4,8%
1914/18 2,4% 1940/45 2,4%
1919/29 4,2% 1946/62 7,1%
1930/32 0,4%
(v. também: GOLDSMITH, Raymond W. Brasil 1850-1984. São
Paulo, 1986).

(7) De acordo com várias estimativas (Bernstein, Spiegel, Dias


Carneiro) a taxa bruta de investimentos foi de 8,7 -9,6% em
1941/43 e ultrapassou ligeiramente os 10% apenas em 1944/45; v.
BUESCU, Mircea. Guerra e Desenvolvimento. Rio de Janeiro,
1976.

(8) Opinião endossada pelo historiador francês Frédéric Mauro.


in: Histoire de L’Économie Mondiale 1790 -1970. Paris, 1971.

(8bis) Bresser Pereira, L. C. Desenvolvimento e Crise no Brasil.


Rio de Janeiro, 1968.

(9) A interpretação “Keynesiana” foi sustentada por Celso Furtado


em: Formação Econômico do Braisl. Rio de Janeiro, 1964. A
contestação veio de Carlos Manuel Peláez. História da
Industrialização do Brasil. Rio de Janeiro, 1972.

(10) Pode-se admitir, com base em estatísticas precárias, que no


Brasil a Depressão durou de 1930 a 1932, quando a queda global
da economia foi de 0,4%.
309
310

(11) A evolução foi a seguinte (médias anuais):


1921/29 1930/32 1933/39
consumo de cimento (1000 t) 361 354 554
consumo de aço (1000 t) 230 150 297
Import. de bens de capital (índice) 100 39 75
(conf. VILLELA, Annibal Villanova – SUZIGAN, Wilson. Política e
Crescimento da Economia 1889-1945. Rio de Janeiro, 1973.

(conf. VILLELA, Annibal Villanova – SUZIGAN, Wilson. Política do


Governo e Crescimento da Economia 1889-1945. Rio de Janeiro, 1973.

(12) A proporção foi de 1,98 em 1920 e caiu progressivamente


para 1,78 em 1930 e 0,93 em 1940.

(13) Em 1920 as duas indústrias tradicionais eram responsáveis


por 67,7% do total; em 1939 essa participação não passava de
53,8%.

(14) Conf. HADDAD, op. cit.

(15) A atividade empresarial do governo compreendeu a criação


da Fábrica Nacional de Motores, da Cia. Nacional de Álcalis, da
Cia. Vale do Rio Doce.

(16) A classe de produtos manufaturados não contribuía em 1939


com mais de 0,8% no valor total das exportações; em 1942/45 essa
participação subiu para a media de 16,9%; em 1947 tinha descido
para 7,4%.

(17) v. SIMONSEN, Roberto C. Evolução Industrial do Brasil.


São Paulo, 1973; v. também: SIMONSEN, Roberto C. -GUDIN,
Eugenio. Controvérsia do Planejamento na Economia Brasileira.
Rio de Janeiro, 1977.

(18) O índice das relações de troca elevou-se 35,9% entre 1940 e


1945, e 95,8% entre 1945 e 1950.

(19) O índice do quantum das importações, que não havia crescido


mais de 7,6% em 1940/45, subiu 79,1% de 1945 a 1950.
310
311

(20) O índice da produção real na indústria metalúrgica cresceu


232,2%; na indústria têxtil e alimentar limitou -se a 20,3% e
60,9% respectivamente.

(21) v. BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. O Governo


Kubitschek – Desenvolvimento Econômico e Estabilidade Política .
Rio de Janeiro, 1976.

(22) Em 1953/63 o crescimento do produto mundial acusou taxas


de 4,1% a 5,3% por ano. O volume do comércio cresceu 37,9%
entre 1948 e 1953 e 89,4% entre 1953 e 1963 (conf. KENNEDY,
Paul). Ascensão e Queda das Grandes Potências. Rio de Janeiro,
1991.

(23) Em 1950 os bens de capital correspondiam a 30,3% da


produção industrial; essa participação passou para 40,7% em
1960. Os setores modernos (metalurgia, mecânica, material
elétrico, material de transporte e química) aumentaram entre 1950
e 1960 sua participação no produto industrial total de 20,6% para
35,5%. Entre as mesmas datas o produto da indústria tradicional
(alimentar e têxtil) caiu de 50,2% para 36,3% do total.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 38(455): 21-30,


Fevereiro 1993).

311
312

ACERCA DA TEORIA DOS


CHOQUES EXTERNOS

Completaram-se dois decênios desde o choque do


petróleo de 1973, que se repetiu em 1979, seguindo-se
novo choque em 1982, quando do colapso do sistema
financeiro internacional.
Desde logo depois do primeiro choque, o II Plano
Nacional de Desenvolvimento, promulgado em
dezembro de 1974, detectou – como não podia deixar de
fazer – a mudança do cenário internacional, porém sem
muito alarmismo. Ele falou em “novas realidades da
economia mundial e evidentemente na “situação de
escassez do petróleo”. Não obstante, apesar de apontar
“as dificuldades para manter o crescimento acelerado”, a
fim de “não se abalar a confiança” para “manter o
crescimento dos últimos anos”.
Tal posição respondia ao profundo anseio da
sociedade brasileira de elevar seu nível de vida e
eliminar a pobreza e a miséria. Ademais, justificava -se
tecnicamente, pois o crescimento econômico devia ser
mantido graças ao recurso ao mercado internacional de
capitais, em que, com os petrodólares, havia grandes
disponibilidades a juros baixos, às vezes negativos em
termos reais.
O III Plano Nacional de Desenvolvimento, de
maio de 1980, já depois do segundo choque do petróleo,
312
313
manteve uma postura otimista, e eventualmente
justificada pelo sucesso da política aplicada entre 1974
e 1979. Aí, talvez pela razão política de insuflar
confiança ou por convicção teórica, o III PND
ressuscitou a velha teoria dos choques externos – a
alegação de que as dificuldades no setor externo
propiciaram resultados positivos dentro da economia do
País. O III PND manifestava a confiança “na capacidade
de realização, historicamente demonstrada pela nação
brasileira... inclusive durante períodos de crise
mundial”. O principal artífice do II PND se pronunciou
depois, no mesmo sentido: “Pela experiência histórica,
foi exatamente em duas épocas de aguda crise de
balanço de pagamento, e conjuntura mundial contur -
bada, que o País realizou dois significativos surtos de
industrialização: a época da Depressão dos 30 e o
imediato pós-guerra”. (Velloso)
O III PD tinha explicitado tal alegação da forma
seguinte: “O setor externo sempre teve um papel im -
portante na evolução da economia brasileira. Alterações
nas relações econômicas internacionais traduziam -se
inicialmente em desequilíbrio na organização interna.
No momento seguinte, contudo, a reorientação adequada
da política econômica interna tem conseguido trans -
formar o desafio internacional em fator de dinamização
do crescimento brasileiro”. Lendo com maior cuidado
essas citações, parece que se trataria de um binômio
toynbeeniano de desafio/resposta cujo efeito positivo se
configuraria somente depois do abalo externo, mas
persiste a impressão, explícita ou implícita, de que o
313
314
choque tinha sido necessário ou pelo menos desem-
penhou um papel fundamental para a manutenção do
crescimento econômico e da industrialização.
É sobre esse conceito que vai versar o presente
comentário. (*)

***

A idéia básica da teoria dos choques externos


consiste em que o processo da industrialização e
portanto do crescimento econômico não se deu de forma
linear ou continuada, mas sim em surtos temporários,
provocados pela retração ou quase colapso do mer cado
internacional. Em outras palavras, os abalos sofridos por
este mercado – a Primeira Guerra Mundial, a Grande
Depressão de 1929 e a Segunda Guerra Mundial –
agiram como verdadeira proteção compulsória, vinda de
fora e independente da vontade da sociedade brasileira.
Numa forma mais sofisticada, que implicaria uma certa
relação autônoma do empresariado nacional, a
perturbação do mercado externo teria provocado uma
distorção do sistema de preços, tornando mais altos os
dos produtos importados e portanto justificando a
produção nacional, com maior margem de lucro. Parece
que a idéia dos choques benéficos foi formulada pela
primeira vez em 1922, num livro de Hannibal Porto, O
Brasil Econômico de 1920 (apud Normano): “Foi
devido às dificuldades encontradas durante a guerra para
importação de artigos manufaturados que os brasileiros
decidiram explorar um grande número de indústrias”. A
314
315
tese foi endossada por Roberto Simonsen (num trabalho
publicado em 1939: A Evolução Industrial do Brasil) e
assim gozou da autoridade do grande líder empresarial.
Reconhecendo que a expansão da indústria tinha raízes
desde o fim do século XIX, Simonsen declarou que “a
guerra mundial daria por fim, a esse surto industrial
novos impulsos e novas direções”.
Entretanto, vale observar desde já que o
pensamento de Simonsen era mais circunstanciado: a
guerra “teve, de fato, uma pronunciada influência no seu
desenvolvimento posterior (meu grifo), por ter
provocado uma notável diversificação na fabricação de
novos produtos”. Oportunamente veremos qual foi o
significado daquela “diversificação”. Por enquanto, é
preciso reter a idéia de que os efeitos eventualmente
benéficos não teria surgido durante a guerra, mas sim,
posteriormente – o que dá outro sentido ao choque
externo.
De qualquer forma, a teoria dos choques externos
foi adotada por muitos historiadores, tornando -se
durante muito tempo paradigma para a explicação dos
surtos industriais. Foi dito, por exemplo, enfaticamente:
“O recente processo de desenvolvimento econômico do
Brasil teve lugar fundamentalmente sob o impacto das
restrições do comércio exterior” (Maria da Conceição
Tavares). Ou então: “A depressão da década de 1930
constituiu um incentivo à industrialização através de um
mecanismo automático de proteção, que é ainda mais
interessante do que as duas guerras mundiais” (Werner
Baer-Issac Kertenetzky – apud Peláez).
315
316
Como se explica o sucesso acadêmico e político
da tese dos choques externos? Pode-se detectar a idéia
de que as elites e seus interesses estavam tão arraigados
ao antigo modelo exportador de produtos primários que
não teriam admitido de bom grado a industrialização a
não ser sob a força do abalo externo. A escola
estruturalista adotou posições neste sentido: o seu líder
escreveu que “duas guerras mundiais... e a grand e crise
econômica... mostraram aos países latino-americanos
que chegou o momento de enveredarem pelo rumo das
atividades industriais” (Raul Prebisch – apud Peláez).
Entretanto, pelo menos no que tange ao Brasil, tal
alegação é irrealista: sabe-se que o movimento
industrialista começou desde o século XIX (Mauá,
Serzedo Corrêa, etc.) e vários grandes produtores e
exportadores de café se tornaram industriais. Pode -se
admitir apenas que na medida em que vários fatores,
inclusive os choques externos, solaparam o setor
cafeeiro, propiciaram a busca de novas oportunidades
empresariais, em primeiro lugar no setor industrial.
Quanto à tese estruturalista, ela revela a desconfiança e
o repúdio ao sistema econômico internacional ao rezar
que o progresso industrial – e econômico, em geral – se
realiza melhor dentro de uma política isolacionista –
ideais autárcicos que brilharam ente as duas guerras
mundiais, com os desastrosos efeitos econômicos e
políticos já conhecidos.
O repúdio do papel criativo do comércio
internacional continha uma contradição básica: o
processo da industrialização, no sentido correto de
316
317
aumento da capacidade industrial, exigia capitais,
equipamentos e tecnologia que, por definição, o país
subdesenvolvido não possui. Pode-se imaginar um certo
crescimento auto-sustentado, autônomo dispensando os
recursos externos procedentes dos países desenvolvidos
via intercâmbio internacional, mas seria um crescimento
penoso, demorado, e não poderia justificar a
qualificação de “surto industrial”. A penúria provoca da
pelo choque externo podia oferecer oportunidades de
vendas e lucros para as indústrias existentes – e isso
aconteceu de fato – porém isso não caracteriza um
verdadeiro progresso. Por outro lado, não deve ser
minimizado o papel da exportação como setor gerador
de renda e de mercado para a indústria, sobretudo numa
economia voltada para o exterior como a brasileira, cujo
fator dinâmico secular se encontrava justamente nas
vendas para o exterior. Por cima das contestações
teóricas, o fato é que a teoria dos choques externos não
encontrou uma confirmação empírica – como se verá
mais adiante.
Baseados em constatações concretas, vários eco -
nomistas, chamados “revisionistas” contestaram as po -
sições estruturalistas. Um estudioso da industrialização
de São Paulo concluiu suas análises com as seguintes
palavras: “Poder-se-á perguntas se a industrialização de
São Paulo não se teria processado mais depressa se não
tivesse havido guerra” (Dean). Outras contestações
vieram a respeito do papel do choque externo durante a
Grande Depressão (Peláez) ou Segunda Guerra Mundial
(Buescu). Sintetizando as conclusões teóricas e as
317
318
verificações empíricas, escreveu um historiador-
economista: “Longe de resultar das dificuldades das
importações durante as duas guerras mundiais e a
Depressão... o desenvolvimento inseriu-se num conjunto
de condições favoráveis ao comércio exterior’.
(Nathaniel H. Leff).
Foi feita uma tentativa conciliatória (Versiani),
distinguindo entre os suros de produção (durante os
choques, quando a conjuntura de escassez oferecia
oportunidades de venda e lucro) e surtos de in -
vestimento (durante os períodos de normalidade, quando
havia condições de investir); essa distinção foge,
entretanto, ao âmago do problema: o verdadeiro surto
industrial consiste no aumento da capacidade de
produção e não da possibilidade de vender com lucro.
Aliás, essas vendas eventualmente expandidas pres -
supõem a existência de uma indústria com capacidade
ociosa, capacidade essa adquirida no período de nor -
malidade de importações de equipamentos e tecnologia.
Os defensores da teoria dos choques externos não
puderam sair desse impasse: se houve processo
verdadeiro, ele ocorreu depois do choque, o que altera a
posição básica da teoria. Por exemplo, foi observado
que Fishlow, defendendo a importância da Primeira
Guerra Mundial como oportunidade de lucros, “enfatiza
a importância desse período de grande lucratividade
para os produtores internos, no que se refere aos grandes
investimentos do pós-guerra” (Versiani) (meu grifo). A
lucratividade podia ser fonte de progresso sob a
condição de os lucros serem reinvestidos na indústria. E,
318
319
de qualquer modo, os investimentos só podiam ocorrer
após a volta à normalidade, como de fato aconteceu.
Vê-se portanto que o papel dos choques externos deve
ser reconsiderado – o que tentarei fazer. Antes, porém, é
mister ver sinteticamente como evoluiu a economia e a
indústria em particular ao longo dos 50 anos
aproximadamente, que cobrem os três choques em pauta.

***

O indicador mais abrangente é, sem dúvida, a


taxa de crescimento do produto interno bruto ou produto
real. Embora os cálculos sejam precários anteriormente
à implantação das contas nacionais, a série estatística
mostra de modo convincente que, contrariamente à
versão primitiva dos choques externos, estes registraram
uma nítida desaceleração do crescimento econômico,
senão um verdadeiro retrocesso como em 1930/1932. Os
períodos de crescimento maior foram justamente inter -
choques. O mesmo fenômeno aparece nitidamente na
evolução da produção industrial, como se pode observar
na tabela seguinte:
(variação anual média %)
PIB Prod. industrial
1903/1913 4,0 6,4
1914/1918 2,4 4,7
1919/1929 4,2 6,2
1930/1932 -0,4 -1,4
1933/1939 4,8 10,0
1940/1945 2,4 5,8
1946/1962 7,1 8,8
Fonte (até 1947): Haddad.

319
320
A inevitável precariedade dos cálculos esta-
tísticos pode ser compensada pela informação
qualitativa: durante os choques, numerosos são os
testemunhos da penúria e das restrições de consumo,
falta de produtos, principalmente combustíveis, cujo
abastecimento se baseava, em grande parte, na
importação. Melancolicamente, alguns dentre nós podem
lembrar-se de tais circunstâncias que não contribuem de
maneira alguma para conferir um papel positivo aos
choques externos.
No que concerne à capacidade de expansão da
economia graças ao volume dos investimentos, as
informações disponíveis não testemunham a favor dos
choques externos. Na falta de cálculos diretos (que
foram feitos nas Contas Nacionais apenas a partir de
1947) é válido observar (Villela-Suzigan) a evolução de
alguns indicadores indiretos da formação de capital fixo.
São eles: o crescimento da potência instalada, o
quantum de importação de bens de capital e o consumo
aparente de aço e cimento. A variação dos índices
anuais evoluiu da forma seguinte durante os choques em
relação ao período imediatamente anterior:

variação %
pot. imp. bens cons. cons.
inst. capitais aço cimento
1914-1918/1903-1913 -41,9 -74,1 -54,2 -58,8
1930-1932/1927-1929 -73,2 -63,3 -55,5 -36,4
1940-1945/1934-1939 -53,8 - 7,5 - 1,3 42,4

320
321
Os períodos expansionistas se situaram entre os
choques e seria uma inferência gratuita dizer que os
avanços representaram apenas uma reação provocada
pelos choques – isso podia ser parcialmente verdade ou
apenas coincidência. As informações desfavoráveis a
respeito da situação econômica durante os choques
devem ser confrontadas com a documentação inso -
fismável dos progressos conseguidos inter-choques:
durante o chamado Reerguimento Econômico (1903/
1913), período de equilíbrio interno e abertura exte rna;
durante os anos 20, grande expansão do comércio
exterior, mas também implantação das indústrias
siderúrgica e do cimento; entre a Grande Depressão e o
início da Segunda Guerra Mundial, quando novos
progressos foram feitos principalmente na indústria,
graças a um elenco de fatores favoráveis de com -
portamento e de política econômica e finalmente no
ambiente de equilíbrio político interno e externo que
caracterizou nos anos 50, o início do período
desenvolvimentista do Brasil.
Evidentemente este apanhado sintético é muito
simplificado: os fatos se apresentaram de maneira mais
complexa e circunstanciada. É preciso portanto tentar
definir melhor o impacto dos choques externos em função
de alguns parâmetros que seriam, a meu ver, os seguintes:

1º - o grau de dependência da economia nacional


em relação ao setor externo; o peso da exportação e da
importação, bem como dos capitais estrangeiros no
processo de crescimento da economia;
321
322
2º - o grau de intensidade do abalo externo – o
grau de perturbação sofrida pelo sistema econômico
internacional durante os choques;

3º - o grau de fechamento da economia nacional


em decorrência da perturbação externa: estrangulamento
da balança comercial e do balanço de pagamentos,
implicando portanto em retração do movimento de
mercadorias e capitais;

4º - o potencial econômico interno – o grau de


capacidade de defesa em função da dimensão do produto
interno bruto, da sua composição setorial, princi -
palmente quanto ao setor industrial, e da capacidade
interna de capitalização;

5º - a capacidade de reação da sociedade e da


economia, a sua disposição de mobilização contra a
adversidade externa – em outras palavras, a
possibilidade de um processo de desafio/resposta do tipo
toynbeeniano, a ser dada pelo governo e pelos
empresários; uma resposta que poderá ocorrer sobretudo
posteriormente ao choque, visto que, como já disse, o
estrangulamento externo afasta do País muitos dos
meios necessários para uma forte reação positiva.

Os cinco parâmetros enumerados oferecem uma


pista para avaliar a gravidade do choque, mas também
uma indicação sobre a maior ou menor possibilidade de
enfrentar o seu desafio. Vejamos como se apresentaram
322
323
esses critérios ao longo do período desde o início da
Primeira Guerra Mundial até o fim da Segunda,
prolongando eventualmente seus efeitos nos anos
seguintes.

***

(1) No concernente à importância do setor


externo, a economia brasileira evoluiu desde o fim do
período colonial num sentido de maior autonomia.
Cálculos aproximados (Buescu) estimam um coeficiente
de exportação de cerca 0,40 (40% do PIB) na época da
Independência, diminuindo gradualmente ao longo dos
anos: em 1910/1920 ter-se-ia fixado entre 0,13 e 0,17
até a véspera do primeiro choque externo; em 1939,
antes do terceiro choque externo; em 1939, antes do
terceiro choque teria chegado a 0,14, caindo até 0,12 no
fim da Segunda Guerra Mundial (Malan).
Tais coeficientes de exportação, aos quais
correspondem semelhantes coeficientes de importação,
não eram, afinal de contas, muito elevados, mas esse
aspecto quantitativo é menos relevante que o qua -
litativo, sobretudo na importação: deixando de lado o
problema do abastecimento em trigo, bem como em
outros artigos de consumo, persistiu e se acentuou a
dependência em relação aos insumos necessários ao
desenvolvimento industrial. Em matéria de combus-
tíveis, em 1914 a parcela do carvão no total da
importação era de 7,4%, enquanto os combustíveis
líquidos representavam apenas 2,8%. Mas essas
323
324
porcentagens evoluíram de forma assimétrica chegando
em 1939 a 4,0% e 6,4% respectivamente. O valor
percentual parece ainda modesto, mas já tinha
significado estratégico não desprezível. Muito mais
importante era o papel das matérias-primas, que em
1910/1913 eram responsáveis por 46,3% da importação.
Em 1920/1929 essa participação chegou a 53,7% e em
1939 era ainda de 47,0%. Aumentava ao mesmo tempo a
dependência em bens de capital importados: em
1911/1920 eles absorviam 10,1% da despesa total,
subindo para 14,0% em 1920/1929 e 22,3% antes do
último choque.

(2) Por definição, os choques esternos tiveram um


impacto negativo sobre as relações internacionais – isto
é incontestável. O que quero observar agora é que o
impacto negativo não foi homogêneo em todos os três
choques.
O fato teve efeitos diferentes e permitiram res -
postas ligeiramente diversas. No que tange à Primeira
Guerra Mundial, é preciso sublinhar a sua extensão e
intensidade sintetizadas na expressão de “guerra total”
(apesar de certas áreas de tranqüilidade), com imensa
mobilização de homens e materiais, incluindo gu erra
submarina e aérea, com bloqueio recíproco, com imenso
desperdício e volumosas despesas, com retração do
intercâmbio internacional de mercadorias e capitais,
resultando na redução da capacidade econômica civil
entre os beligerantes. Os países líderes que desem-
penhavam papel preponderante no cenário internacional
324
325
(Inglaterra, Alemanha, França) sofreram profundamente.
Apenas os Estados Unidos ficaram algo excêntricos
tanto que continuaram crescendo, expandindo seu co -
mércio exterior (por exemplo, entre 1914 e 1918 suas
exportações subiram de 2,1 para 6,0 bilhões de dólares)
e aumentando sensivelmente seus empréstimos para o
resto do Mundo até um montante de 6 bilhões de dólares
– soma enorme nos padrões da época. As limitações
assinaladas tiveram sua importância para o desenrolar
da crise no Brasil.
No caso do segundo choque, o alastramento da
Grande Depressão incluiu todas as potências, sendo
mais grave nos grandes países industrializados. A queda
dos preços nestes países foi de 30-35%, chegando a 60-
70% nas commodities – fato agravante para os países
exportadores destes produtos. A produção industrial
mundial caiu 36% e o comércio internacional 25% (em
volume), desencadeando uma bola de neve.
Paralelamente a crise abalou o mercado internacional de
crédito, assistindo-se a uma retração generalizada, ou
até ao desaparecimento do movimento financeiro. Desta
vez não foi poupada aquela válvula de escapamento que
foram os Estados Unidos no choque anterior.
O panorama da Primeira Grande Guerra Mundial
praticamente se repetiu durante a Segunda, porém em
extensão e intensidade maiores. A intensificação da
guerra submarina prejudicou mais o comércio
internacional, inclusive em áreas mais longínquas, antes
poupadas. Não obstante, mais uma vez como fator
amenizador de que o Brasil pôde beneficiar-se, os
325
326
Estados Unidos cujo território não foi atingido,
expandiram suas atividades e aumentaram sua
capacidade comercial e financeira (como exemplo,
enquanto as exportações da Inglaterra se reduziram pela
metade entre 1938 e 1944, as norte-americanas mais que
quadruplicaram). Por outro lado, os Estados Unidos se
tornaram, mais do que em 1914/1918, o grande fi -
nanciador do Mundo. No caso do Brasil, as cir -
cunstâncias assinaladas facilitaram a resposta da eco -
nomia nacional ao choque.

(3) Em que grau os choques externos afetaram a


economia brasileira? Como resultados globais já mostrei
a inegável queda da taxa de crescimento econômico e de
investimento em todas as três crises – mais acentua-
damente na segunda.
Por definição, os choques atingiram as relações
do País com o exterior, afetando a geração da renda (via
exportação) e daí a capacidade de consumo e inves -
timento (via importação de mercadorias e capitais).
Comparando as médias anuais de 1914/1918 com as de
1909/1913 – isto é, do período do choque com o ime-
diatamente anterior – observa-se uma queda de 15,7%
na exportação e de 24,3% na importação. Da mesa forma
verifica-se queda entre 1927/1929 e 1930/1933 – aliás
bem maior, confirmando o que foi dito a respeito da
maior gravidade desta crise: -49,9% na receita de
importação, -61,4% na despesa de importação. O choque
da Segunda Guerra Mundial foi diferente: a importação
caiu ainda 2,5% em relação a 1935/1939, mas em com -
326
327
pensação a exportação cresceu 34,1%, devido à
manutenção das relações em certas áreas excêntricas
(América do Sul e África do Sul) e com os Aliados, via
Estados Unidos.
O maior impacto na importação explica-se ao
apenas pelas restrições impostas aos fornecimentos
pelos Aliados, mas também pela participação
relativamente maior da Alemanha nas importações do
Brasil antes da guerra: ela entrava com 16,1% em 1914
e 25,0% em 1938 (neste ano superando inclusive os
Estados Unidos que detinham 24,2%).
Um efeito sui-generis foi a oportunidade que a
indústria brasileira teve de expandir suas exportações
durante o primeiro e o terceiro choques para as áreas
ainda disponíveis – Estados Unidos (carnes e produtos
de açúcar, no primeiro), América do Sul e África do Sul
(têxteis, no terceiro). Durante este último choque os
produtos industrializados chegaram a ser responsáveis
por 19,7% da receita de exportação (em 1943) contra
menos de 1% antes da guerra. Deve-se sublinhar
entretanto que tal sucesso foi possível graças à abertura
parcial do nosso comércio exterior e não ao seu
fechamento.
No caso da importação a escassez provocada
pelos choques externos foi patente e ressentida tanto
pelos consumidores como pelos empresários que se
viram desprovidos das fontes tradicionais de
abastecimento. Já verificamos a queda do índice de
importação de bens de capital, claro indicador das
dificuldades de investimentos. A escassez de
327
328
combustíveis aparece nitidamente nas características,
confirmadas pelas experiências pessoais consignadas
nos testemunhos da época. Por exemplo, a importação
de gasolina caiu 22,0% entre a média de 1912/1913 e de
1914/1918; 22,4% entre 1928/1929 e 1930/1932; 13,7%
entre 1938/1939 e 1940/1944.

(4) Obviamente, entre o início do primeiro


choque (1914) e o do terceiro (1939) a economia
brasileira progrediu, mas, como já foi visto no quadro
estatístico apresentado, o crescimento global e industrial
se deu nos períodos entre-choques e não durante os
choques. Os progressos alcançados permitiram, com o
tempo, uma resistência relativamente maior e mais
eficiente, o que se constata sobretudo durante a Segunda
Guerra Mundial, não apenas graças à referida abertura
parcial da economia apesar do choque, mas também
devido a maior capacidade econômico do País.
As características são muito precárias, porém não
deixam de ter um certo valor indicativo. Em datas
selecionadas o PIB per capita teria subido de 94 dólares
em 1910 para 141 dólares em 1930 e 168 dólares em
1940. Isso daria valores globais de 2.088, 4.733 e 7.175
milhões de dólares, respectivamente – um crescimento
razoável. Ao mesmo tempo melhorava o perfil do
produto real, com um crescimento relativamente maior
do setor industrial. Considerando um universo composto
apenas dos setores primário e secundário, a distribuição
teria sido de 79-21% em 1919, 57-43% e 49-51% em
1949.
328
329
A capacidade industrial se verifica também no
volume de potência instalada que subiu de 244 MW em
1913 para 1.176 MW em 1939 – uma expansão de quase
5 vezes em 26 anos. Por outro lado o perfil industrial
amadureceu: por exemplo, as indústrias mais modernas
(metalúrgica, mecânica, material elétrico e transportes)
que representavam em 1919 6,6% do valor agregado
total tinham dobrado sua participação em 1939.
Isso não constituiu um benefício proporcionado
exclusivamente pelo choque externo, mas simplesmente
um aumento da possibilidade de reagir ao choque –
reação essa que se processou nos períodos de
normalização econômica e política entre os choques.

(5) O quinto elemento de avaliação do impacto


dos choques externos sobre a economia nacional prende -
se à capacidade e à disposição de reagir da sociedade,
dentro dos demais parâmetros mencionados. Trata-se
agora propriamente do binômio desafio/resposta. Sem
dúvida, em condições de normalidade política e social,
qualquer sociedade, levada pelo espírito de sobre -
vivência, deverá agir para diminuir ou mesmo limitar as
duras limitações impostas de fora. Entretanto, as reações
surgidas durante o período de crise surtirão pouco efeito
positivo, justamente por causa do estrangulamento da
economia em decorrência do estreitamento ou mesmo
colapso do sistema internacional. Se o abalo sofrido
teve como resultado o despertar das consciências e dos
esforços desenvolvimentistas, o que nem sempre pode
acontecer – os efeitos benéficos surgirão apenas após a
329
330
reabertura do setor externo, respaldo sine qua non do
crescimento equilibrado.
Como exemplo de reação simultânea, mas de
efeito limitado, cite-se, quanto à Primeira Guerra
Mundial, a utilização intensiva da capacidade industrial
criada antes do conflito, sobretudo nos setores dos
tecidos, carnes preparadas e produtos de açúcar (por
sinal, mercadorias necessárias para exportação, apro -
veitada ainda a abertura parcial da economia). Cite -se
também a criação de oficinas mecânicas destinadas a
consertar os equipamentos que não podiam ser
substituídos via importação, Tais ações de utilização
intensiva não representavam um progresso, um aumento
real da capacidade produtiva. Pelo contrário, e isso será
válido nos três choques externos, a utilização intensiva
dos equipamentos em 2 ou 3 turnos de trabalho cons-
tituía um desinvestimento, visto que acelerava o
processo de depreciação.
Dispõe-se de informações semelhantes com
referência à Segunda Guerra Mundial. Falando da
situação em toda a América Latina, uma publicação da
antiga Liga das Nações anotava: “As condições criadas
pela guerra impediram de realizar um aumento do
equipamento material... conseqüentemente o
desenvolvimento da atividade industrial exigiu uma
utilização mais intensiva das instalações existentes”.
(Revue de la Situation Economique Mondiale
1942/1943 – Société des Nations, Genève, 1945).
Existem numerosos testemunhos brasileiros da época a
respeito da utilização intensiva dos equipamentos e a
330
331
respeito dos paliativos empregados para enfrentar a falta
de substitutivos. Um reflexo deste processo aparece, por
exemplo, nas maciças importações realizadas após o fim
da guerra em fusos, teares e outros equipamentos para a
indústria têxtil que, devido às circunstâncias expostas,
havia trabalhado intensivamente a fim de aproveitar os
novos mercados a ela abertos na América do Sul e na
África do Sul.
Os exemplos mencionados referem-se às
atividades empresariais, mas evidentemente houve
também uma ação governamental, sobretudo na época
mais recente, à medida que se desenvolvia uma filosofia
de intervencionismo econômico. Mesmo durante a
Primeira Guerra Mundial o governo federal manteve na
sua despesa uma parcela razoável destinada à formação
de capital fixo – um pouco acima de 21% em 1914/1916,
aumentando no ano seguinte. O mesmo não aconteceu
durante os anos difíceis da Grande Depressão, quando
aquela parcela ficou entre 2 e 5% da despesa federal –
percentual que caracterizou todo o período de 1923 a
1938. O intervencionismo econômico cresceu, entre -
tanto, nos anos 30, manifestando-se de forma mais es-
petacular nos planos de defesa do café. A interpretação
dos efeitos destes planos é controvertida (v. contro -
vérsia Furtado-Peláez) e não poderia entrar aqui. Pode-
se admitir contudo que a defesa do café, complementada
com o Reaparelhamento Econômico, de sustentação dos
agricultores, teve certos reflexos positivos sobre a
economia, mas de qualquer forma essas ações e seus
reflexos se manifestaram depois da crise, sendo com-
331
332
plementados por medidas de planejamento e racio -
nalização econômica (por exemplo, a política seletiva de
importações).
A ação governamental foi mais evidente durante a
Segunda Guerra Mundial, como, por exemplo, com os
Acordos de Washington (1942) de sustentação de certas
exportações e, de modo mais efetivo, com a criação da
Companhia Siderúrgica Nacional, coroação de um
projeto idealizado desde antes da guerra e acelerado por
razões estratégicas. Isso explica em parte o aumento de
17 a 22% da parcela da despesa federal destinada à
formação de capital fixo. Mas, neste caso também, o
progresso alcançado foi possível graças à abertura
parcial da economia, permitindo a importação dos
equipamentos para Volta Redonda.
Como conclusão, temos que nos referir outra vez
à estatística da evolução do PIB, indicando maior
crescimento durante os períodos de maior crescimento,
nas fases de normalidade e de abertura para o exterior.
Foram essas fases, reflexos tardios do choque?
Constituíam elas realmente respostas aos desafios dos
choques, ou seja, em outras palavras, os progressos não
teriam se verificado sem aqueles desafios? Parece que
uma resposta afirmativa a estas questões seria gratuita,
pois, independentemente dos choques, havia suficientes
condicionamentos sócio-políticos para proporcionar à
economia brasileira os progressos por que ansiava a
sociedade.
Eventualmente, os choques apenas aguçaram a
vontade de renovar.
332
333

(*) O texto já estava redigido quando tomei conhecimento dos


trabalhos de dois colegas deste Conselho (os Conselheiros Dênio
Nogueira e Ernane Galvêas) que abordaram, com compe tência, o
tema dos choques externos. A minha contribuição poderia
justificar-se como uma complementação visando sobretudo uma
formulação mais genérica dos parâmetros dos choques externos.

BIBLIOGRAFIA

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Experiência Histórica. Rio de Janeiro, Forense
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333
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R. O. A industrialização brasileira antes de 1930. in:
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Versiani-J. R. M. de Barros. São Paulo, Saraiva,
1977.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 39(466): 50-59,


Janeiro 1994).

334
335

OS OBJETIVOS NACIONAIS
NOS PLANOS ECONÔMICOS
(1964/1985)

Numa palestra anterior, apresentei a evolução da


idéia de planejamento e de sua aplicação no Brasil num
período que se estendia desde a véspera da II Guerra
Mundial até hoje. Tratava-se, por assim dizer, de um
aspecto quantitativo: como evoluíram as experiências da
ação planejadora do Estado em termos de extensão e
profundidade.
Desta vez, quero abordar – cobrindo um período
menor, desde o governo Castello Branco até o governo
Figueiredo – o lado qualitativo dos planos, o seu
conteúdo quanto aos objetivos e às diretrizes. Esses
aspectos definem, até certo ponto, a evolução das
preocupações e motivações econômicas da sociedade
brasileira no período escolhido, tal como interpretadas
pelos dirigentes políticos e econômicos.
Neste relato histórico, em que, por limitações
óbvias, assinalo apenas os objetivos básicos sem muitos
detalhes setoriais, serão analisados os seguintes
documentos:
- Programa de Ação Econômica do Governo
(PAEG), de 1964;
- Programa Estratégico de Desenvolvimento
(PED), de 1967;
335
336
- Metas e Bases para a Ação de Governos
(METAS), de 1970;
- I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND),
de 1971;
- II Plano Nacional de Desenvolvimento ( II
PND), de 1974; e,
- III Plano Nacional de Desenvolvimento
Econômico (III PND), de 1980.

***

É interessante, antes de mais nada, para definir a


posição dos planejadores, observar a qualificação que
eles deram à sua ação planejadora, a égide sob a qua l
colocaram a respectiva obra. Nisso, o PAEG propõe -se
modestamente perseguir três objetivos: “Estabilização,
desenvolvimento e reforma democrática” – uma reação à
confusão política, econômica e social dos anos 1961 -
1964. Já o PED, passada a fase insegura dos primeiros
anos do regime instaurado em 1964, mostra-se mais
exigente, abandonando a idéia fria de desenvolvimento
puramente econômico e referindo-se ao progresso
social, mais especificamente à “valorização do homem
brasileiro”.
Os sucessos conseguidos pela economia brasileira
após 1967 – o conhecido “milagre brasileiro” – refle-
tem-se no otimismo e nas aspirações crescentes já nas
METAS, que falam enfaticamente no “ingresso do
Brasil no mundo desenvolvido”. O otimismo transparece
também no I PND que se refere ao “Brasil nação de-
336
337
senvolvida”, com uma “economia moderna, competitiva
e dinâmica”, para explodir plenamente no II PND
(apesar dos sinais negativos do primeiro choque do
petróleo) falando no “Brasil como poder emergente” e
“desenvolvimento e grandeza”.
Mais tarde, a deterioração do cenário interna-
cional com o segundo choque do petróleo reflete-se no
comedimento do III PND que mantém, não obstante, a
confiança no futuro em que se prevê “a construção de
uma sociedade desenvolvida, livre, equilibrada e estável
em benefício de todos os brasileiros, no menor prazo
possível’ – expressão em que se identifica não apenas a
preocupação crescente com uma melhor distribuição do
desenvolvimento, mas também os sinais da abertura
política então incipiente.

***

Ao abordar os objetivos dos planos, é oportuno


observar que muitos se apresentaram de forma
permanente. Assim, são o crescimento econômico e o
emprego, a distribuição setorial e regional da renda e o
equilíbrio do balanço de pagamentos. Entretanto,
variaram em enfoque e intensidade de acordo com as
circunstâncias conjunturais, as opções estratégicas e as
abordagens teóricas.
Da mesma forma, verifica-se o destaque cres-
cente, após 1973, do problema energético em de-
corrência da crise do petróleo. Veremos ta mbém que o
próprio problema inflacionário, tão crônico, teve flu -
337
338
tuações em seu tratamento, de acordo com o agra -
vamento ou afrouxamento da escalada dos preços.

***

Como não podia deixar de ser, o desenvolvimento


econômico constituiu, em todos os planos desde o PAEG
de 1964, o objetivo primordial da economia nacional.
Esse interesse, correspondendo, em termos mais
comuns, ao anseio pelo progresso econômico, portanto à
própria essência da atividade econômica, tornou -se
crescente em escala universal após a Segunda Guerra
Mundial, quando surgiu o que Gunnar Myrdal chamou
de “o Grande Despertar”, a consciência da necessidade
do desenvolvimento, tanto é que, de forma sintomática a
ONU denominou o seu grande Banco, de Reconstrução e
Desenvolvimento. Detectou-se, na época, o “gradual
surgimento de uma consciência da responsabilidade
internacional no tocante à promoção do desen-
volvimento econômico” (Roberto Campos) e no caso do
Brasil, falou-se na “geração desenvolvimentista”,
justamente aquela que criou os primeiros planos
econômicos.
Com o tempo, verificou-se um certo refino do
conceito básico. Já vimos que o PED falou em
valorização do homem e mais tarde o I PND acentuou
que o desenvolvimento implica em modernização e
competitividade da economia. O II PND, logo após a
primeira crise do petróleo, cuida de reafirmar a
capacidade de crescer da economia brasileira e insiste
338
339
na meta de um crescimento acelerado. Mesmo o III
PND, embora a crise já mostrasse seus efeitos nocivos,
rezava pela manutenção do crescimento apesar das
dificuldades surgidas, confessando “a certeza de que a
sociedade brasileira está plenamente capacitada e
motivada para enfrentar e vencer os desafios adicionais
da economia mundial”. E mais: “o Brasil não pode
renunciar ao crescimento, seja por legítimas aspirações
do seu povo por maior prosperidade, seja pelo alto custo
social da estagnação ou do retrocesso”. Essa opção
absoluta pelo crescimento que tinha se fortalecido com
as boas performances econômicas, depois de 1967, tinha
seus riscos, porém se justificava a longo prazo. (1) O
preço pago pela manutenção do crescimento após 1980
foi o forte endividamento externo.
O crescimento econômico vinha emparelhado com
a criação de empregos, objetivo básico num país da
dimensão do Brasil, com expansão demográfica elevada.
Essa preocupação aparece desde o PAEG que se refere
ao esforço de investimentos para “assegurar opor -
tunidades de emprego produtivo”. Quando, entre as
medidas adicionais, fala nas políticas agrária e ha bi-
tacional, o objetivo da criação de empregos aparece
implicitamente. É interessante notar que, apesar de
referir-se “à mão-de-obra que continuamente, aflui ao
mercado de trabalho”, não há nenhuma alusão a uma
política demográfica. Os Planos subseqüentes
continuarão a mencionar a importância dos inves-
timentos para a criação de empregos, pelo que
afirmaram, sobretudo o III PND, a necessidade de
339
340
fortalecer a agricultura, tampouco mencionando qual -
quer programa demográfico. Entretanto as METAS e o
II PND já tinham esclarecido que “o problema de
controle da natalidade deve permanecer na alçada da
unidade familiar”. (2) De fato, aceitando-a a explosão
demográfica com um “datum”, irreversível, o problema
da criação de empregos tornava-se mais premente. Por
outro lado, firma-se o enfoque social do desenvol-
vimento econômico que aparece desde o PAEG, que fala
na “melhoria das condições de vida”, seguido pelo PED
que prega o crescimento econômico “aliado ao
progresso social”. Este enfoque acentuou-se ulte-
riormente – tendência generalizada em todo mundo den-
tro de uma visão mais globalizante do crescimento
econômico. No fim do período focalizado, o III PND, ao
falar dos fundamentos do Plano, menciona que “o objeto
do esforço nacional é a valorização do homem bra-
sileiro”, uma concepção mais humanística do de-
senvolvimento. (3)

***

Paralelamente ao problema do crescimento, é


oportuno indagar qual foi o modelo, entendido sob
vários ângulos, que os planejadores adotaram como
solução para o Brasil. Uma pergunta básica quanto a
esse modelo tem resposta inegável: os planejadores
afirmaram sua opção pelo modelo liberal, o modelo do
mercado e da livre empresa. Desde o início, o PAEG
proclama o papel regulador do sistema de preços, mas,
340
341
justificando sua própria atuação, sustenta a necessidade
da intervenção estatal através do planejamento eco-
nômico para corrigir as insuficiências do mercado,
principalmente no que tange ao volume desejável de
poupança, à formação das economias externas, à distri -
buição satisfatória da renda nacional e as distorções do
mercado.
Outrossim, os planos repetem a necessidade do
fortalecimento da empresa privada e afirmam ex -
pressamente “a opção pela economia de mercado” (III
PND). De fato, apesar da crítica socialista e da miragem
da planificação centralizada na URSS – entusiasmo que
ia arrefecer em anos mais recentes – o Brasil per-
maneceu basicamente fiel à tradição liberal, natu -
ralmente dentro da evolução geral rumo a uma economia
mista. Esse aspecto é ressaltado de modo mais explícito
no I PND que sustentara um modelo de mercad o
“fundado na aliança entre o Governo e o setor privado”.
Essas relações entre o setor público e privado
apresentaram certas nuanças ao logo da ação
planejadora. Inicialmente, pode-se estranhar que o
PAEG, criado dentro de um clima de reação contra as
tendências estatizantes anteriores, não tenha reservado
maior atenção aos problemas da empresa privada e às
suas relações com o setor público. A idéia era contudo
de aplicar “uma política positiva que permita aos
empresários nacionais competirem, em igualdade de
condições, com os empresários estrangeiros, que operam
no país” (Velloso). Parece-me que isso representava
uma resposta antecipada às eventuais críticas contra a
341
342
política de abertura aos capitais estrangeiros.
O “fortalecimento da empresa nacional” foi a
tônica nos Planos subseqüentes, e ao lado dela, a
preocupação com a definição e eventualmente limitação
da competência do Estado.
O desdobramento dessas idéias básicas já surge
no PED que, ele também, proclama como primeiro
princípio da filosofia do governo “o fortalecimento da
empresa privada nacional” – uma adjetivação para
rejeitar eventuais críticas nacionalistas. Ademais, o PED
explicita que “o Governo não deverá executar
diretamente aquilo que puder eficientemente contratar”
e que “deverá ser extremamente cauteloso ao transferir
recursos do setor privado ara o setor público”. Por outro
lado, o PED expressa sua preocupação com dois fatos:
“o debilitamento do setor privado” e “a pressão
excessiva exercida pelo setor público”, e refere-se até à
“reversão da tendência estatizante”, sem contudo aludir
a uma verdadeira privatização da economia – o que se
verifica igualmente nos Planos ulteriores.
As METAS e o I PND bateram na mesma tecla:
fortalecimento da empresa privada, incutindo-lhe um
grau maior de modernização e competitividade. Não
obstante, às vezes tem-se a impressão de que se desejava
apenas manter o status quo: as METAS falam no
equilíbrio Governo/setor privado e o I PND na
integração Governo/setor privado, embora o processo de
estatização continuasse. Já o II PND dedica menor
atenção à empresa privada: fala apenas “na articulação
natural e fecunda entre o Governo e a iniciativa
342
343
privada”. Na mesma época, o autor desse Plano, um
tanto resignadamente, aconselhava “evitar o avanço da
estatização” (Velloso).
Nos anos seguintes, com a preparação da abertura
política, parece fortalecer-se a reação contra o
intervencionismo estatal. Entre os fundamentos do III
PND inclui-se a opção brasileira pela economia de
mercado, limitando-se explicitamente o papel do Estado
“aos campos de atividades exigidos pelo interesse e
segurança nacionais” ou em caráter supletivo. De fato,
manteve-se a porta aberta à estatização ou pelo menos à
manutenção do status quo.

***

O objetivo prioritário do desenvolvimento


econômico ficou ligado principalmente nos primeiros
Planos, ao combate antiinflacionário. Os dirigentes
econômicos da época criticaram duramente as distorções
inflacionárias (Campos, Simonsen, Galvêas). A
motivação imediata foi a escalada dos preços que
demonstrava tendências nítidas de aceleração. Por outro
lado, havia a resistência teórica dos grupos
estruturalistas e semelhantes, que consideravam a
inflação um instrumento de desenvolvimento através da
poupança forçada por ela produzida, ou então, como o
subproduto inevitável do próprio desenvolvimento.
Assim sendo a base teórica e factual, era normal que o
PAEG invocasse “o combate urgente ao violento
processo inflacionário” e colocasse a luta contra a
343
344
inflação como verdadeiro objetivo prioritário. A
preocupação com a inflação, além de merecer um
capítulo especial no PAEG, aparece como um leit-motiv
em várias oportunidades, construindo-se uma completa
estratégia antiinflacionária de caráter ortodoxo.
Essa preocupação arrefeceu já no Plano seguinte,
visto que entre 1964 e 1967 a taxa inflacionária
decrescera. O PED indica a meta de “uma relativa
estabilidade de preços” e dedica apenas dois parágrafos
ao problema. As METAS, nem tanto: entre os objetivos
básicos reserva-se duas linhas à inflação, com a
finalidade de “taxa decrescente até a relativa
estabilidade dos preços antes de 1974”. No I PND, o
problema da inflação já aparece totalmente ofuscado por
outras preocupações.
A ulterior deterioração do cenário externo, fez
com que o problema da inflação reaparecesse no I I
PND, porém ainda de forma discreta: “reafirmar a
política de contenção da inflação pelo método
gradualista” – referência essa refletindo os debates
teóricos dos anos anteriores a respeito da melhor
estratégia, gradualismo ou tratamento de choque.
O recrudescimento da inflação sobretudo depois
do segundo choque do petróleo explica a volta para a
ênfase maior reservada à inflação do III PND que
alertou sobre “substancial pressão inflacionária de
origem interna e externa” e estabeleceu, infelizmente
sem conseqüências prática, que “o controle da inflação é
condição essencial para assegurar a eficiência, a
estabilidade e o crescimento continuado da economia
344
345
brasileira e a melhoria dos níveis de bem-estar de nossa
população” – linguagem que tinha sido abandonada nos
Planos anteriores (5).

***

Voltemos ao tema central do desenvolvimento


econômico a fim de identificar alguns aspectos
peculiares dos modelos adotados. Obviamente, os seus
redatores não podiam preterir os fatores básicos do
crescimento – trabalho e poupança. No concernente ao
primeiro, já falei sob o aspecto da criação de empregos
como já vimos a respeito do PAEG. O objetivo é
repetido no PED e sob uma forma ou outra até o III
PND, o qual proclama, como primeiro objetivo nacional,
“o acelerado crescimento da renda e do emprego”.
Acho que é oportuno sublinhar que a criação de
empregos é encarada não tanto sob o ângulo de
mobilização de um fator de produção, senão como
medida social de distribuição da renda. Por exemplo, o
III PND, refere-se ao “nível suficiente para ocupar de
forma produtiva os novos contingentes de mão-de-
obra... e para absorver progressivamente os contingentes
de desempregados e subempregados atualmente
existentes”. (6)
Outrossim, os Plano iniciais enfatizaram princi -
palmente o papel da poupança, talvez como reação ao
atraso, até 1965, do mercado de capitais do País. O
PAEG adota explicitamente o modelo de crescimento de
Harrod-Domar que se articula em torno do volume da
345
346
poupança disponível e da relação capital/produto. O
próprio planejamento é justificado em primeiro lugar, no
PAEG, para corrigir a insuficiente formação de pou -
pança pelo mercado. E várias políticas nele idealizadas
– financeira, tributária, bancária – tem, como escopo
manifesto, a formação de poupança.
Depois, o problema da poupança passou para um
lugar mais apagado, mas permaneceu, às vezes para
justificar o apelo aos capitais estrangeiros, assunto
politicamente delicado.
Aos poucos surgiu em lugar de destaque a questão
do fator humano, a importância do comportamento da
sociedade e portanto da educação. O capítulo
“Educação” aparece já no PAEG, dentro do título mais
amplo de “Desenvolvimento Social”, portanto não
referindo-se diretamente ao processo de crescimento.
Com o tempo, o pensamento econômico foi progredindo
no sentido de dar maior ênfase aos recursos humanos
como alavanca do desenvolvimento.
Os Planos ressaltaram progressivamente esse
aspecto e já o PED declarava a educação como
“programa prioritário... essencial ao desenvolvimento”.
Cada vez mais os Planos referiram-se aos recursos
humanos (METAS) ou à política de utilização dos
recursos humanos (I PND) e dedicaram capítulos
especiais, de destaque, à Educação.
Paralelamente cresceu a importância reservada ao
progresso tecnológico. A expressão praticamente não
existe no PAEG, mas o PED já aconselha a “amparar e
fortalecer a tecnologia nacional” e “estimular a pesquisa
346
347
científica e tecnológica”; e o I PND fala num verdadeiro
“Plano Tecnológico Nacional”. A idéia evidentemente
permaneceu, mas recebeu depois menor d estaque, talvez
por ser considerada implícita: aliás, o III PND esclarece
que “é indispensável destacar a relevância da pesquisa
científica e tecnológica e sua aplicação para o
desenvolvimento nacional”.

***

Outra indagação possível prende-se ao tipo de


crescimento adotado do ponto de vista setorial. Nesse
sentido houve um certo afastamento do modelo indus -
trialista puro, isto é, um modelo de crescimento de -
sequilibrado em favor da indústria. É verdade que o
autor do PAEG escrevera ainda em 1953: “No caso
brasileiro... parece claro que o desenvolvimento
econômico deve ser associado a uma industrialização
intensiva” (Roberto Campos) e o próprio PAEG previu
“a recuperação das altas taxas de crescimento da
indústria”, enquanto para a agricultura se desejava
modestamente “a eliminação do seu relativo atraso”.
O PED considerou a indústria “fonte de con-
siderável dinamismo” e em geral os Planos, seguindo a
posição do PAEG, estabeleceram para o setor metas
quantitativas mais elevadas do que para o resto da
economia. Não obstante, já as METAS fizeram uma
ressalva, propondo “a objetivação de um desen -
volvimento mais integrado, ou seja, menos dependente
de um setor – a indústria”.
347
348
Em decorrência dessa visão mais equilibrada do
desenvolvimento econômico, os Planos reservaram, com
maior ou menor ênfase, um papel especial à agricultura,
para a transformação da agricultura tradicional (ME -
TAS); aumento da produtividade (PED); modernização e
progresso tecnológico do setor – porém às vezes com
vistas apenas à criação de empregos e redistribuição da
renda. O papel estratégico da agricultura foi ressaltado,
entretanto, pelo III PND em termos de fonte de
crescimento, criação de emprego, solução energética,
distribuição funcional e regional da renda nacional e
sustentáculo da balança comercial. Comedidamente foi
atacado, vez por outra, nesses termos, o problema da
reforma agrária com uma conotação bastante
conservadora (7).

Para completar este panorama setorial falta


acrescentar pelo menos dois itens:
1 – O aparecimento do problema do petróleo
depois dos choques de 1973 e 1979. Evidentemente,
reservou-se um certo espaço às questões energéticas em
todos os Planos, mas já o II PND vez várias referências
à crise do petróleo e colocou entre as “tarefas árduas” a
de que “o Brasil deverá ajustar a sua estrutura
econômica à situação de escassez de petróleo”. O III
PND seguiu no mesmo sentido.
2 – O maior interesse pela preservação dos
recursos naturais, poluição industrial (II PND),
ambiente (III PND), refletindo o interesse universal
crescente.
348
349

***

O equilíbrio do Balanço de pagamentos constituiu


uma preocupação constante dos Planos. Desde o início,
o PAEG colocou como quinto objetivo básico “corrigir a
tendência a déficits descontrolados do balanço de
pagamentos, a fim de evitar percalços decorrentes do
estrangulamento da capacidade de importar”. De fato,
tratava-se da adoção de um modelo definido de
economia aberta para o exterior, em contraposição do
modelo fechado iniciado, de uma certa forma, pelo
processo de substituição de importações e o qual, sob as
pressões do nacionalismo exacerbado, tendia para uma
posição autárquica.
A opção pelo modelo aberto foi amplamente
justificada pelos dirigentes econômicos da época. Um
deles explicou mais tarde o conceito: “uma economia
aberta, que enfatize as exportações como fator de
crescimento e admita a importação de capitais como
elemento de transferência de poupança e tecnologia”
(Roberto Campos), Parece-me que o móvel essencial da
opção se ligava à importância conferida pelo PAEG à
poupança, como já assinalei. Tratava-se de aumentar a
capacidade de expansão da economia através do
aproveitamento da poupança externa. Esta absorção
exigia a obtenção de meios para pagar o serviço dos
capitais, portanto a necessidade de ampliar as expor -
tações. Na época, tais posições enfrentavam a oposição
da corrente estruturalista que apontava efeitos nocivos
349
350
do comércio exterior, bem como a dos nacionalistas que
viam, na abertura, um fenômeno de dominação, uma
dependência em relação aos países industrializados . Os
partidários da abertura responderam, por exemplo: “(o
comércio exterior) é instrumento altamente eficaz para
abreviar o processo do desenvolvimento econômico e
antecipar a formação de uma sociedade industrial”
(Delfim Netto). E quanto à dominação estrangeira e a
dependência ressaltaram que “(a interdependência) nos
assegura o acesso ao desenvolvimento tecnológico e
coloca à nossa disposição o enorme mercado dos
grandes países industriais (Galvêas).
O PAEG definiu as facetas do modelo aberto – e
os Planos subseqüentes se fixaram na mesma linha –
apenas o PED, embora reconhecendo o esforço de
poupança obtido do exterior, pareceu insistir mais no
mercado interno; porém não havia de fato nenhuma
incompatibilidade real com o modelo aberto. Na linha
mencionada, as METAS e depois o I PND aconselharam
o equilíbrio do balanço de pagamentos para garantir o
nível da importação. Já o II PND adota uma visão mais
ampla referindo-se à “integração na economia mundial”.
É interessante que essa confiança na cooperação
econômica internacional se reforçou num momento de
crise da economia mundial: o II PD aconselha um
ajustamento à escassez de petróleo e o III PND, já
depois do segundo choque do petróleo, exalta o papel
dinâmico da exportação como fonte de renda, criação de
empregos, redistribuição da renda funcional e regional.
Por outro lado, o mesmo III PND assinalou “crescentes
350
351
pressões sobre o nível e custo da dívida externa”,
resultantes do endividamento externo conscientemente
assumido para manter o crescimento econômico após o
primeiro choque do petróleo, e imprevisivelmente
agravado pela escalada dos juros internacionais. O
debate sobre a dívida externa, iniciado após a redação
do III PND, tornou-se acirrado nos anos subseqüentes –
e ainda não terminou (8).

***

Finalmente, é preciso referirmo-nos a um tema


que figurou de maneira constante no elenco dos
objetivos planejados, mas cuja ênfase cresceu ao longo
do período. Trata-se da correção das disparidades de
renda sob os aspectos pessoal, funcional e regional. A
preocupação com as desigualdades regionais vinha de
longe, até antes da criação da SPVEA e da SUDENE.
Desde o início, o PAEG aponta a necessidade de “ate -
nuar os desequilíbrios setoriais e regionais”. E a visão
se alarga no PED que já fala em integração naci onal,
expressão essa que vai se repetir nos PLANOS
subseqüentes, por exemplo no I PND (Programa de
Integração Nacional). No III PND o problema da
correção dos desequilíbrios regionais chega a ser
focalizado sob uma ótica ainda mais ampla: migrações,
desenvolvimento industrial e agrícola, política ener-
gética, etc.
Quanto aos outros aspectos das disparidades de
renda vimos que o PAEG se referiu ao desequilíbrio
351
352
setorial, dando destaque à distribuição da renda nacional
entre o setor do trabalho e do capital, mas encarou
também o problema das desigualdades pessoais para
cuja solução se referiu às políticas agrária, habitacional
e educacional. A inadequada e desequilibrada dis -
tribuição das rendas pessoais foi, cada vez mais,
abordada sob a pressão das correntes de pensamento
humanista e da opinião pública em geral. Talvez tenha
sido também uma razão de contestação política: Delfim
Netto observou que face aos sucessos da política
econômica após 1967, “o problema da distribuição da
renda se transformou em um dos mais controversos
temas da atualidade.”
A meta distributivista mantém-se com destaque
no PED (“participação de todos os brasileiros nos
resultados do desenvolvimento”), nas METAS
(Programa de Integração Social), no I PND (integração
nacional e social, PIS, PASEP), II PND (“melhoria da
distribuição da renda e oportunidades”), III PND
(“distribuição mais justa dos frutos do desenvolvimento
econômico”).
Continuou, entretanto, a controvérsia sobre a
opção prioritária entre crescimento e redistribuição, e
em geral os Planos, fiéis ao seu objetivo básico,
pareceram inclinados em favor do desenvolvimento,
dentro de um certo equilíbrio. As METAS advertiram:
“sem excesso distributivista” e o II PND falando na
redistribuição da renda adverte: “simultaneamente com
a determinação de manter o crescimento acelerado”.
Mais tarde, um dos artefatos dos Planos resumiu a
352
353
posição que havia vingado: “crescimento e redistri -
buição da renda devem vir juntos”. (Velloso) (9)

***

Não se trata nesse trabalho limitado proceder a um


balanço das realizações propostas pelos Planos: isso
exigiria a exposição de toda a evolução da economia
brasileira no último quarto de século. Falando apenas nos
objetivos adotados, pode-se afirmar não apenas que
representaram em geral boas intenções a respeito do
progresso do país, mas também corresponderam a um
esforço de racionalidade econômica e coerência. São
discutíveis, sem dúvida, as opções quanto ao modus
faciendi, mas isto é apanágio das incertezas humanas:
crescimento equilibrado ou desequilíbrio? Maior ou menor
ênfase na agricultura ou na indústria? Economia aberta ou
fechada? Maior ou menor intromissão do Estado na
economia? Redistribuir antes ou depois de crescer?
De qualquer modo não se pode contestar, mesmo
numa avaliação perfunctória, que efetivamente a
aplicação dos Planos registrou sucessos em vários
campos, sucessos que foram devidos a um complexo de
condicionamentos e não forçosamente ao planejamento
em si. Assim foi no caso do próprio crescimento
econômico, na expansão do comércio exterior, no
combate à inflação, no aumento da capacidade de
poupar. Progressos demasiadamente modestos ou quase
nulos verificaram-se no campo da agricultura, da
educação e da redistribuição da renda.
353
354
O balanço poderia apontar, também, as causas do
fracasso ou da limitação das metas: fatores externos,
deficiências administrativas, inércia da sociedade, e
outras de caráter econômico, político e social. Mas a
discussão desses aspectos, como se diz, “é uma outra
estória”.

Palestra proferida em 22 de novembro de 1990.

NOTAS

(1) No que tange ao desenvolvimento econômico, o balanço dos


20 anos aqui focalizados foi positivo. Depois de alguns anos de
crescimento modesto devido as perturbações políticas, econômicas
e sociais da época, o PIB começou a crescer a taxas r azoáveis e, a
partir de 1968 até 1976, cresceu a taxas elevadas entre 9% e 14%
ao ano (exceto em 1975), totalizando em 9 anos uma expansão de
115,4%, ou seja, na média anual de 10%. O segundo choque do
petróleo e, principalmente, o colapso do sistema fina nceiro inter-
nacional em 1981/1982 interromperam o progresso, contra riando a
opção desenvolvimentista dos Planos. Em 1977/1983 o cres -
cimento do PIB limitou-se à média de 2,8% por ano (sendo
negativas as taxas de 1981 e 1983). Houve ligeira recuperação
depois, No total do período de 1964 a 1985, o PIB subiu 176,2%,
a uma taxa anual média assaz satisfatória de 6,2%.

(2) A população economicamente ativa cresceu de 27,8 milhões de


pessoas em 1960 para 43,2 milhões em 1980, mas, em termos
relativos, houve um pequeno encolhimento: em relação à po -
pulação global ela caiu de uma proporção de 39,5% para 36,3%.
Estes números são entretanto algo irrelevantes sem certa qua -
lificação, principalmente porque havia um grande contingente de
ativos na chamada “economia informal”, incluindo semi-emprego
ou desemprego disfarçados.

354
355

(3) No tocante ao desenvolvimento social, os resultados foram


decepcionantes, malgrado alguns progressos realizados. Em 1983,
havia ainda 30,5 milhões de analfabetos (23,4 milhões em 1960),
19 milhões de famílias abaixo da linha de pobreza (de renda até 1
salário mínimo), 24 milhões de pessoas sem água encanada (32
milhões em 1960), 5 milhões de domicílios sem instalações
sanitárias (7 milhões em 1960), 30 milhões de pessoas sem luz
elétrica (44 milhões em 1960). O problema da “dívida social”
ficou no primeiro plano especialmente nos anos 80.

(4) Apesar das declarações a favor da empresa privada e contra os


excessos da estatização, a participação do setor público na
economia cresceu, quase por inérc ia, amparado pelos interesses
individuais ou grupais ligados ao setor. Alguns dados são
relevantes, por exemplo: as despesas governamentais subiram de
21,6% do PIB em 1959 para 27,7% em 1973; a ação do Estado
como empresário representava em 1969 cerca de 1 6% do PIB; o
Estado era responsável por 60% dos investimentos em capital
fixo; entre as empresas mais significativas do País em 1970, as
estatais participaram com 47,5% do patrimônio líquido, proporção
que subiu para 52,2% em 1976.

(5) Entre 1960 e 1964 a taxa anual da inflação subiu de 29,1%


para 90,7% (índice geral de preços-disponibilidade interna). As
políticas aplicadas a partir daquela última data pressionaram a
inflação para baixo, de modo que ela caiu paulatinamente de
57,1% em 1965 para 14,9% em 1 973. Os choques do petróleo, a
inflação mundial e os descuidos internos permitiram novamente a
escalada dos preços: o ICP-DI elevou-se para 42,7% em 1977,
100,2% em 1980 e 225,5% em 1985. Não se trata de fazer aqui a
história desta inflação, nem a análise crítica das políticas
implantadas: existe farta literatura a respeito (Campos, Simonsen,
Delfim Netto, Galvêas).

(6) A taxa de formação fruta de capital oscilou em torno de 17%


do PIB nos anos 60. Nos 20 anos seguintes até 1982 situou -se em
torno de 20% do PIB, com um nível máximo de 24,4% em 1975.
As altas taxas de crescimento econômico na época explicam -se
por uma baixa relação capital/produto. Após 1985 a formação de
355
356
capital iria cair até 16-17% do PIB ou menos.

(7) Os progressos da agropecuária contin uaram modestos. As


taxas de crescimento do setor flutuaram entre a média de 2,9%
(1980/1983) e 5,0% (em 1974/1979, enquanto a indústria chegou à
média anual de 7,5% em 1974/1979 e até 12,7% em 1968/1973),
mas se mostrou mais vulnerável em períodos críticos : taxa de
1,3% em 1964/1967 e 1,0% negativo em 1980/1983. De qualquer
modo, a alteração estrutural do PIB prosseguiu: a parcela da
agropecuária caiu de 15,0% em 1964 para 10,1% em 1985 e a da
indústria subiu de 30,0% para 35,5%.

(8) A expansão das exportações foi vertical (ajudada em termos


nominais após 1973 pela inflação externa e pela desvalorização do
dólar): em milhões de dólares, 1.406 (1963), 6.199 (1973), 20.132
(1980); 25.639 (1985). As importações subiram ainda mais (vide o
preço do petróleo), ma s foram contidas no final do período: 1.487
(1963), 6.999 (1973), 24.961 (1980), 14.332 (1985). A
deterioração afetou o déficit em conta corrente do balanço de
pagamentos que evoluiu assim (em milhões de dólares): 114
(1963), 1.688 (1973), 12.807 (1980), 268 (1985). Os déficits em
conta corrente, a escalada dos juros internacionais e o
endividamento em bola de neve provocaram a seguinte evolução
da dívida externa bruta (em milhões de dólares): 3.968 (1963),
12.572 (1973), 53.848 (1980), 95.857 (1985).

(9) As estatísticas abrangem o período “crítico” de 1960 a 1970


que propiciou as críticas internas e externa ao modelo brasileiro
sob o ângulo distributivista. Um exemplo sintético mostra que a
faixa de 10% da população mais pobre aumentou sua renda, no
período, em 28%, enquanto os 10% mais ricos a aumentaram em
67%. Os 40% de renda mais baixa reduziram sua participação na
renda total de 11,20% para 9,05%, e os 10% mais ricos a
aumentaram de 38,87% para 48,35%. O coeficiente de Gini subiu
de 0,48 para 0,56. Quanto à renda regional, observa-se que a
região mais rica (Sul, Centro-Leste) aumentou sua parcela na
renda global de 74,7% para 76,7 do total, enquanto o resto do país
desceu de 25,3% para 23,3%.

356
357
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358
359

PROGRESSO E DECLÍNIO
DO PLANEJAMENTO ECONÔMICO
NO BRASIL

O planejamento econômico representa a etapa


mais avançada no processo de intervenção do Estado nas
economias de mercado, uma intervenção que se pretende
mais racional e mais articulada do que nas formas
anteriores do dirigismo estatal. De fato, a presença do
Estado na economia foi, em formas mais ou menos
acentuadas, uma constante histórica, pois não se pode
imaginar uma atividade econômica sem a existência de
uma infra-estrutura política, jurídica e administrativa.
Ademais, o Estado sempre assumiu ações propriamente
econômicas. Não falemos da fase dominada pela
doutrina mercantilista que foi uma doutrina de objetivo
político (o poder) procurado através de instrumentos
econômicos (principalmente o mecanismo da balança
comercial).
O triunfo do liberalismo econômico não implicou
na expulsão do Estado da economia; ele atuou pelo
menos através da ação tributária.
Pelo contrário, na medida em que a economia
liberal mostrava inevitavelmente suas imperfeições e
deficiências, ela sofreu abalos sob o impacto dos
ataques humanistas ou das críticas teóricas da Esc ola
histórica, do socialismo romântico e do socialismo
359
360
chamado “científico”. Juntando-se às investidas do mo-
vimento sindical. O Estado procedeu a uma intervenção
crescente em vários setores da economia, caminhando
para uma economia mista em que ainda prevalece o
mercado e a livre iniciativa, porém com uma boa dose
estatizante.
Talvez tenham contribuído, como um substrato
ideológico, velhas aspirações utópicas de uma felicidade
idílica, garantida pelo braço providencial do Estado –
tal como nos sonhos de Platão, Campanella ou Thomas
Morus.
Por cima das utopias, certas realidades atuaram
no mesmo sentido estatizante. Os desequilíbrios por que
passou a economia mundial nas primeiras décadas do
século XX propiciaram uma penetração maior do Estado
na economia liberal, abalada por crises periódicas. A
Primeira Guerra Mundial contribuiu nesse sentido, mas
o impacto fundamental foi a Grande Depressão de 1929
que deu oportunidade a políticas econômicas fortemente
intervencionistas, não apenas em Estados totalitários,
mas também nos países democráticos, a começar pelos
Estados Unidos de Franklin Roosevelt. Tratou-se de um
intervencionismo mais amplo e mais articulado –
precursor do planejamento.
Incentivo no mesmo sentido foi recebido da
experiência soviética de planificação centralizada, cujo
sucesso foi exaltado pela propaganda ideológica. Por
outro lado, a idéia de uma intervenção macroeconômica
estatal recebeu forte respaldo das teorias de Keynes.
Foi nos anos 30 que o intervencionismo sob a
360
361
forma mais racionalizada do planejamento quis assumir
posições abrangentes, num sentido macroeconômico e
não somente com o emprego de planos parciais. Aos
poucos, tornou-se uma verdadeira panacéia.
A intervenção estatal estendeu-se, ainda,
eventualmente com maior intensidade, nos períodos de
crise após a Segunda Guerra Mundial quando
proliferaram planos econômicos em vários países
liberais. Isso correspondia em primeiro lugar à
convicção de que o liberalismo puro era inoperante e
que o modelo certo devia ser o de uma economia mist a.
Desse intervencionismo crescente brotou e se fortaleceu
a idéia de planejamento como fórmula racional de
orientação de uma economia mista.

***

Evolução semelhante em direção ao planejamento


ocorreu no Brasil. Entretanto, antes de abordar este
relato histórico é mister proceder a algumas precisões de
terminologia, inclusive para esclarecer o sentido do
título desta palestra.
Evidentemente, quando falo de declínio do
planejamento no Brasil não posso referir-me à palavra
lato sensu, ou seja, ato de fazer planos, elaborar um
plano ou roteiro, projetar ações desejadas. Nesse
sentido, o plano faz parte de qualquer atividade humana,
não apenas econômica, que pretenda um mínimo de
racionalidade.
Muitas definições do planejamento econômico
361
362
não passam, pelo menos implicitamente, de uma simples
afirmação da racionalidade necessária para o sucesso de
qualquer política econômica, tanto no nível macro como
no microeconômico. Diz um analista abalizado:
“(Planejar é) agir com racionalidade e senso de
previsão” (Velloso, citando James Tobin). Ou: “o
planejamento é... apenas um método racional de
expressar a volição coletiva” (Roberto Campos).
O planejamento, neste conceito de conjunto de
medidas bem ponderadas e logicamente sistematizadas,
é intrínseco a qualquer atividade econômica racional.
Mas não é disso que se trata nesta perfunctória
investigação. Ela se refere a um sentido mais restrito,
mais técnico de noção de planejamento. Para melhor
apertar a terminologia. Poder-se-ia partir de uma
definição ainda genérica, porém mais técnica de que as
declarações de racionalidade antes citadas, como a de
que “(planejamento consiste em) elaboração por etapas,
com bases técnicas... de planos e programas com
objetivos definidos”. (Aurélio)
O planejamento strictu sensu pressupõe uma ação
consciente do poder público com vistas a atingir certos
objetivos em nível macroeconômico. Aí vale aduzir à
diferença entre o planejamento aplicado nas economias
de mercado em que as medidas propostas são
obrigatórias para o setor público, mas apenas indicativas
para o setor privado; e de outro lado o planejamento
aplicado nos sistemas de economia sem mercado livre,
socialistas ou comunistas (a que prefiro chamar pla -
nificação) em que o plano substitui o mercado e todas as
362
363
atividades econômicas são decididas compulsoriamente
pelo órgão central de planificação.
De qualquer modo, na economia de mercado, as
medidas apresentadas dentro do plano exigem certas
condições de formulação técnica que confiram coerência
e lógica ao planejamento.
Numa formulação esquemática, um verdadeiro
instrumento de planejamento deverá conter: o
diagnóstico da economia – os objetivos perseguidos – as
metas quantitativas a serem alcançadas durante a
vigência do plano – as políticas governamentais a serem
aplicadas – e os recursos a serem mobilizados. Em
alguns casos, os chamados planos, não passam de
declarações de política econômica indicando estratégias
e metas, ou de programas de desenvolvimento, incluindo
também prioridades e incentivos. A experiência
brasileira nos últimos 50 anos revela uma orientação
crescente para o planejamento completo, seguida, em
anos recentes, de um certo abandono desse objetivo
ambicioso.
É o que tentarei mostrar a seguir.

***

A experiência planejadora começou no Brasil


dentro do ambiente até aqui sumariamente descrito. Tal
como em outros países, a aproximação da Segunda
Guerra Mundial e, depois, sua explosão necessitavam
uma direção mais firme e articulada da economia
nacional. Ao lado do DASP (Departamento Adminis -
363
364
trativo do Serviço Público), já existente, apareceu o
CFCE – Conselho Federal de Comércio Exterior (1934),
que apesar de seu título limitativo, assumiu funções
mais abrangentes, chegando a pensar na formulação de
um verdadeiro planejamento econômico nacional.
Inicialmente foram arquitetados planos setoriais
de emergência exigidos pelas realidades bélicas: em
1939, o Plano Especial de Obras Públicas e
Aparelhamento da Defesa Nacional, cuja missão era “a
criação de indústrias de base, com a dotação da defesa
do país”. Em continuação, criou-se para outro
qüinqüênio e com praticamente os mesmos objetivos, o
Plano de Obras e Aparelhamento (1944).
Várias iniciativas do CFCE e do DASP resul-
taram na criação de órgãos visando ações planejadoras,
como a Comissão de Defesa Nacional, a Coordenaç ão da
Mobilização Econômica, o Conselho Nacional de
Política Industrial e Comercial o qual chegou a fazer
uma proposta de planificação nacional – e culminando
com a constituição da Comissão de Planejamento
Econômico (1944). Sugestões no mesmo intuito plane -
jador partiram das comissões norte-americanas que
estudaram modalidades de cooperação e
desenvolvimento no Brasil: Taub (1942), Cooke (1943)
e Abbinck (1948).
Foi nesta época que ocorreu o célebre debate em
torno da necessidade do planejamento econômico, entre
Roberto Simonsen e Eugênio Gudin. Simonsen, parti -
dário do planejamento, considerava “aconselhável a
planificação de uma nova estruturação econômica, de
364
365
forma a serem criadas dentro de determinado período a
produtividade e as riquezas necessárias para alcan-
çarmos uma suficiente renda nacional”. Gudin, liberal
ferrenho, referia-se ironicamente a “mística do Plano” e
ao “equívoco de pensar que se pode conciliar o domínio
do Estado sobre a economia com a democracia política”.
O pós-guerra assistiu, pelas razões já expostas, à
expansão das políticas econômicas planejadoras em
regime de economia mista. O primeiro fato a assinalar
nesta fase foi durante o governo Dutra, o plano SALTE
(1948) que contudo não passava de uma exposição de
despesas governamentais prioritárias (Saúde, Alimenta-
ção, Transporte, Energia), sem uma definição rigorosa
dos recursos a serem mobilizados e sem uma indicação
dos instrumentos de ação. De fato, o plano SALTE teve
uma vida curta e bastante inexpressiva.
Um novo passo foi dado pela COMBEU
(Comissão Mista Brasil-EUA) cujo relatório final
(1953) constituiu quase um esboço de planejamento,
com um diagnóstico global da economia brasileira, a
identificação de objetivos prioritários e a elaboração de
projetos setoriais. Paralelamente, foi decretado o Plano
Nacional de Reaparelhamento Econômico (1951) o qual
entretanto não constituía um verdadeiro plano no
sentido amplo da palavra, mas sim, um programa de
mobilização financeira com vistas ao financiamento dos
projetos administrados pelo BNDE (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico), criado na época.
Ainda neste período preparatório, uma contri -
buição importante foi dada pelo Programa de Metas
365
366
(1955) do presidente Kubitschek. Sem constituir um
plano global, o Programa de Metas representou contudo
um aprofundamento da tendência planejadora, não
apenas pela sua elaboração mais completa, mas também
pela sua confiança na técnica do planejamento – a visão
progressista e otimista do desenvolvimento a ser
realizado através do plano. A institucionalização dessa
técnica verificava-se na criação de um órgão
especializado de supervisão e controle – o Conselho de
Desenvolvimento – e de órgãos de execução e acom-
panhamento – os Grupos de Trabalho e os Grupos
Executivos.
Não se tratava de um plano global, mas apenas de
“um somatório empírico de objetivos de origem muito
variada e não totalmente compatíveis entre si” (Lorenzo
Fernandes). Pode-se definir também como um conjunto
de programas setoriais, sem cobrir por inteiro a
economia nacional. Implicava entretanto numa opção de
prioridades que podem ser identificadas nas suas
categorias de projetos elaborados, que previam as metas
físicas e quantificavam os investimentos.
Uma iniciativa de chegar a um verdadeiro plano
incluindo medidas de compatibilização financeira foi
feita através do Programa de Estabilização Monetária
(1958), o qual, por motivos políticos, não chegou a ser
implementado.
Apesar das limitações indicadas, o Programa de
Metas representou um passo efetivo na direção do
planejamento global. Este começou com o Plano Trienal
de Desenvolvimento Econômico e Social (1963-65) do
366
367
Governo Goulart. Foi deste momento até 1979 que a
atividade planejadora chegou ao seu auge, coma
elaboração de planos macroeconômicos globais e não
apenas pluri-setoriais, planos assumindo as caracte-
rísticas antes mencionadas. Vale observar que a adoção
da técnica plena de planejamento começou com um
governo estatizante, senão de objetivos coletivizantes: o
Plano Trienal declarava no seu prêmio o propósito de
“assegurar ao Governo uma crescente unidade de
comando dentro de sua própria esfera de ação”, e, ainda
mais, “criar condições para que dentro de poucos anos
possam ser introduzidas técnicas mais eficazes de
coordenação das decisões”.
Os dirigentes subseqüentes do planejamento do
período citado foram de convicções basicamente li -
berais, porém houve, a partir de 1964, a afirmação
explícita de que era necessário incutir um grão maior de
racionalidade no sistema econômico e para tal fim o
planejamento constituía o instrumento indispensável.
Essa posição teórica refletiu-se também numa
institucionalização do planejamento, primeiro, de
maneira mais limitada com a criação da Comissão e
Planejamento Nacional – COPLAN – de 1961 e, depois,
do Ministério Extraordinário de Planejamento e
Coordenação (1962), transformado mais tarde em
Secretaria junto à Presidência da República (1975).
A consolidação do planejamento em termos de
implementação e controle dos planos foi complementada
pela criação do Sistema de Planejamento Federal (1 972)
– marcando o ápice da evolução.
367
368
Os partidários do planejamento não desconheciam
as suas limitações: a deficiência das informações
estatísticas apesar dos progressos feitos; a precariedade
das projeções e dos modelos econométricos; as
incertezas decorrentes da presença de um grande setor
privado; as eventuais surpresas oriundas do setor
externo; a descontinuidade administrativa. Aliás, para
garantir a coerência do planejamento, os últimos planos
dessa fase foram estabelecidos por períodos que
ultrapassavam a duração do mandato presidencial.
Entrementes, firmava-se a convicção da impres-
cindibilidade do planejamento. Essa confiança não esta -
va desprovida de perigos, pois tendia a uma concepção
de auto-suficiência: a técnica de planejamento parecia
constituir por si mesma uma garantia de sucesso, uma
espécie de irrealismo tecnocrático. Tanto é que um
observador percuciente, embora comprometido com o
planejamento, escreveu: “a expressão planejamento
assumiu em realidade qualidades de mística” (Roberto
Campos).
Os planos produzidos entre 1963 e 1980
refletiram essa confiança no planejamento e se
empenharam em organizar a economia de acordo com o
modelo planejado. Assim, o Plano Trienal de 1963
começa pela definição dos objetivos da ação econômica,
bem como as metas setoriais, procede a projeções
globais da economia, identifica certos condicionamentos
da política econômica, projeta os investimentos setoriais
necessários, e constrói o programa de desenvolvimento
até 1965 e às vezes, até 1970. O fracasso do Plan o
368
369
Trienal, sua vida curtíssima se deveram, além das
inevitáveis mazelas do planejamento, às condições
sócio-políticas da época.
O Plano de Ação Econômica do Governo – PAEG
– para 1964/66 progrediu no sentido do aperfeiçoamento
da técnica de planejamento criando um plano no sentido
mais rigoroso da palavra, embora tenha declarado
modestamente que “não tem a pretensão de apresentar -
se como um novo plano de desenvolvimento, mas apenas
um programa de ação do governo no campo econômico”.
Não obstante, constitui um verdadeiro plano pelo
qual “a ação governamental complementa, mas não
necessariamente substitui os mecanismos de mercado” –
expressão que reflete o conflito implícito do
planejamento numa economia de mercado. O PAEG,
entretanto, esclarece que “o planejamento econômico
vai importar numa definição sistemática e coerente por
parte do Governo, das medidas tendentes à criação da
ordem dentro da qual operarão as forças do mercado”.
Com este propósito, o PAEG define inicialmente
os objetivos e instrumentos de ação, estabelece metas
quantitativas de crescimento, passa a explicitar as
políticas a serem aplicadas setorialmente e apresenta o
orçamento de investimentos do governo e os programas
setoriais, com projeções até 1970 ou mesmo 1980. O
empenho planejador aparece ainda na afirmação de que
o PAEG prepara “as bases para um planejamento mais
orgânico e de longo prazo”.
Essa ambição se concretizou ainda durante o
governo Castello Branco no preparo de um Plano
369
370
Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social
(1967).
O roteiro dos trabalhos para a formulação deste
plano e sua implementação revela a decisão de proceder
a um amplo planejamento incluindo os elementos
indispensáveis de um verdadeiro plano, como já
mencionado, acrescentando um programa de
investimentos governamentais e privados e um
orçamento-programa para o período 1967/1971. A
despeito desses preparativos, a mudança presidencial
determinou o abandono do Plano Decenal mesmo antes
de ser inteiramente formulado.
Nos períodos presidenciais seguintes (Costa e
Silva/Médici) a atividade planejadora continuou
intensamente através de dois documentos que, apesar de
não ter o título explícito, constituíam verdadeiros planos
do teor dos antecedentes, em intenção e formulação:
Diretrizes de Governo – Programa Estratégico de
Desenvolvimento (1967) e Metas e Bases para a Ação
do Governo (1970). Em que pese o abandono do
ambicioso projeto do Plano Decenal, o interesse oficial
pelo planejamento não arrefeceu. Os dois diplomas
citados, com duração de 3 anos cada um, assumiram
feições de um verdadeiro plano, com maior ênfase no
último, embora este tenha declarado modestamente que
“não constitui novo plano global” mas “trata -se de
documento de sentido eminentemente prático e mais
voltado para a execução”.
O Plano Estratégico contém a definição dos
objetivos básicos; as diretrizes da política econômica; o
370
371
programa estratégico e as diretrizes setoriais; A inten -
ção globalizante manifesta-se em que entre os setores
abrangidos, figuram não apenas os existentes no PAEG,
mas também outros como a Justiça e as Forças Armadas.
Não obstante, o Programa Estratégico limita-se à de-
claração pormenorizada das políticas governamentais a
serem implantadas, sem metas físicas quantificadas (o
que representava um recuo em relação ao PAEG).
Tampouco continha previsões de recursos para inves-
timentos, mas pretendia orientar a elaboração de um
Plano Trienal do Governo de 1968 a 1970.
As Metas e Bases, apesar da ressalva citada,
acentuavam a tendência planejadora em caráter macro -
econômico nacional. As suas pretensões mais abran-
gentes aparecem já na definição dos objetivos, incluindo
enfaticamente “a grande tarefa nacional”, ou “as
conquistas essenciais”.
A mesma tendência globalizante aparece na
formulação da ação setorial que abrange vários setores
inclusive alguns sem caráter econômico. Ademais,
estabelecem-se metas físicas quantificadas bem como
projetos, com investimentos também quantificados. Por
outro lado, o plano devia ser completado por um novo
orçamento plurianual de investimentos, e subseqüen-
temente pelo I Plano Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (I PND) com vigência em 1972/74.
Com este I PND que será seguido pelo II PND
(1975/1979) chegou-se ao auge da ação planejadora. O
entusiasmo por essa ação pode ter sido também reflexo
dos sucessos alcançados pela economia nacional da
371
372
época – a do “milagre brasileiro” que lhe foi par-
cialmente creditado, pelo menos no tocante à
racionalidade da direção econômica.
As maiores pretensões de planejamento mani-
festaram-se tanto na amplitude e sofisticação dos
objetivos nacionais propostos, como no detalhamento
das políticas, dos instrumentos de ação e menor
interesse pela construção imponente de planos
detalhados em objetivos, instrumentos e metas
quantitativas? Talvez simplesmente fosse a decepç ão
dos resultados alcançados após 1975, demonstrando que,
devido a outros fatores reais, a existência dos planos
não representa uma garantia de sucesso. Isso pode ter
correspondido também ao ressurgimento mais vigoroso
do pensamento liberal, ao que se acrescentou em tempos
mais recentes a divulgação das enormes dificuldades
enfrentadas pela economia soviética, desfazendo o velho
mito da panacéia da planificação centralizada.
A discrepância entre os objetivos planejados e as
realizações efetivas decorreu, em muitos casos, das
insuficiências administrativas – um perigo sempre exis-
tente e mais acentuado em épocas de confusão política,
social e moral como ocorreu no último qüinqüênio. A
inflação crescente constituiu igualmente um fator de
insegurança nas previsões e programações financeiras.
Mas aquela discrepância entre as realidades e as
pretensões da ação planejadora podia decorrer de um
fenômeno social assaz corriqueiro que é a tendência das
instituições de cresceram de maneira autônoma, sim -
plesmente por sua própria inércia, fora da realidade.
372
373
Mas, houve outro elemento perturbador muito
mais grave que foi a deterioração do cenário
internacional com os choques do petróleo de 1973 e
1979 e o colapso do sistema financeiro internacional em
1982, o que tornou extremamente precárias as previsões
– daí a flexibilidade recomendada pelo III PND. Em
tempos mais recentes, após a nova Constituição de
1988, a situação se complicou ainda mais devido à
maior força de decisão do Congresso Nacional em
matéria econômica e à maior autonomia dos Estados e
Municípios, limitando o poder planejador do Governo
Central.
É impossível prever a evolução futura do
planejamento econômico no País, mas continuando a
tendência recente, ela parece fixar-se na formulação,
pelas autoridades públicas, de um conjunto racional e
coerente de diretrizes setoriais, tanto para o setor
privado como para o público, dentro dos objetivos
maiores da comunidade, ficando os resultados,
quantitativos ou não, a serem conferidos a posteriori,
como um resíduo. Tal comportamento pragmático
justifica-se especialmente no caso de uma conjuntura
econômica ou política cheia de imprevistos.

BIBLIOGRAFIA

CAMPOS, Roberto de Oliveira. Economia, Planejamento e


Nacionalismo. Rio de Janeiro, APEC, 1963.

373
374
LAFER, Betty Mindlin. Planejamento no Brasil. São Paulo,
Perspectiva, 1973.

LEWIS, W. Arthur. Os Princípios do Planejamento


Econômico. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1960.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 36(428): 53-62,


Novembro 1990).

374
375

OS ANOS 80:
A DÉCADA PERDIDA

Tornou-se lugar comum na opinião pública


qualificar os anos 80 como uma “década perdida” ao se
referir à performance econômica do Brasil. Os fatos
parecem justificar a denominação, porém é sempre
aconselhável desconfiar das caracterizações glob ais.
Uma observação atenta poderia descobrir se alguns
momentos do período focalizado, ou certos setores da
economia nacional, se salvaram da qualificação pe -
jorativa. Mais importante, a análise seria eventualmente
capaz de identificar os condicionamentos negativos de
evolução – o que constituiria um não desprezível
ensinamento da História.

***

Para se ter uma idéia mais clara dos acon-


tecimentos, é preciso começar por descrever o cenário
internacional da década, de vez que ele foi determinante
sob vários aspectos, principalmente na primeira parte do
período.
A década se iniciou ainda sob o impacto do
segundo choque do petróleo de 1979 que surgiu ines -
peradamente, mesmo na opinião dos especialistas do
assunto e numa proporção muito maior do que no
375
376
primeiro choque de 1973: em pouco mais de um ano, a
cotação internacional de petróleo quase triplicou (1).
Essa mudança abrupta dos preços relativos abalou
toda a economia mundial, não poupando os países
industrializados. Entre 1980 e 1982 o comércio exterior
destes países se retraiu ou ficou estagnado, as suas
balanças comerciais tornaram-se deficitárias, conse-
qüentemente cresceu seu déficit em conta corrente do
balanço de pagamentos e diminuíram suas reservas
internacionais (2). É importante sublinhar que, pa ra se
defenderem, os países industrializados adotaram práticas
protecionistas que afetaram os subdesenvolvidos, por
definição mais sensíveis às contrações do comércio
exterior. Ademais, o desenrolar econômico dos países
desenvolvidos foi atingido, refletindo-se na redução das
taxas de crescimento e no aumento do desemprego, o
que também provocou políticas autônomas de defesa
com prejuízo dos países em desenvolvimento (3).
Por outro lado, o choque do petróleo se ma-
nifestou também nas pressões inflacionárias: sob este
aspecto, o impacto foi mais rápido, já deste 1979,
prolongando-se até 1981 e afrouxamento em 1982(4).
Essa escalada de preços, exorbitante pelos moldes das
economias ocidentais, justificou políticas antiinflacio -
nárias que, no caso mais relevante dos Estados Unidos,
se deram no sentido da contenção monetária e creditícia
– o que resultou na alta vertical dos juros internacio -
nais(5), com efeitos desastrosos para os países em
desenvolvimento: primeiro, como eles haviam aumen-
tado seu endividamento externo no período entre os dois
376
377
choques do petróleo a fim de sustentaram seu
desenvolvimento na base de juros baixos, o ônus da
dívida externa se tornou insuportável(6); segundo, a alta
dos juros desincentivou a formação de estoques, o que
se refletiu na queda das cotações dos produtos primários
exportados pelos países em desenvolvimento. Essa
queda contribuiu para aliviar a situação dos países
industrializados que já tinham melhores condições para
reagir contra os efeitos negativos da crise (7). Quanto à
posição dos países endividados, embora aliviada pela
baixa das taxas de juros internacionais após 1982,
agravou-se devido à crise financeira inaugurada com a
insolvência da Polônia e a moratória do México (1982),
e ainda mais pelo fracasso da Conferência de Toronto,
em setembro do mesmo ano, que marcou um verdadeiro
colapso do sistema financeiro internacional.
A partir de 1983 a situação se normalizou, prin -
cipalmente nos países industrializados que comandavam
a economia mundial. Mais tarde foi possível afirmar-se
que “no conjunto, os anos 80 foram marcados pela
retomada da economia mundial” (8), embora os países
em desenvolvimento, como sempre, tenham se apro -
veitado menos da conjuntura favorável, e a Europa
Oriental tenha começado a sentir as perturbaçõ es da
liberalização.
A recuperação foi naturalmente creditada ao
progresso tecnológico, mas este fato se tornou também
prejudicial aos países menos desenvolvidos por reduzir
a dependência da produção em relação aos produtos
primários, cujas cotações caíram sistematicamente.
377
378
Entretanto, o crescimento do Centro foi beneficiado pela
liberalização da economia e a limitação das políticas
monetaristas contencionistas (Reagan e Thatcher). Um
certo abalo pareceu surgir com o crash na Bolsa de
Nova Yorque em 1987, mas suas repercussões negativas
sobre a economia real foram superficiais e passageiras,
perdendo-se entre os fatores positivos da recuperação.
Esta refletiu-se também no intercâmbio co-
mercial, favorecendo como habitualmente, os produtos
industrializados (9). Não obstante, persistiram aspectos
de guerra comercial, de caráter protecionista, embora às
vezes apresentados sob forma de defesa liberalizante
(por exemplo no contencioso comercial entre o Brasil e
os Estados Unidos).
Ademais, o problema da dívida externa dos países
em desenvolvimento continuou onerando pesadamente
as suas economias, cirando dificuldades de negociação e
estrangulamento nos balanços de pagamentos. Houve, aí
também, um certo desanuviamento demonstrado pelo
empenho em solucionar o impasse dentro de uma
cooperação internacional maior(10).

***

Pode-se agora tentar alinhavar alguns aspectos


característicos da década no Brasil, tanto os que
justificariam considerá-la “perdida” como os que, não
obstante, se apresentaram como elementos posit ivos.

1. O aspecto que provavelmente mais justificou


378
379
aquela qualificação negativa foi a desaceleração do
crescimento econômico. O III PND em 1979 tinha
declarado enfaticamente que “o Brasil não pode
renunciar ao crescimento”, mas entre essa decisão e a
realidade surgiram os imprevistos já mencionados: alta
do preço do petróleo, perda nas relações de troca, crise
do sistema financeiro internacional. Depois, os maus
resultados ficaram por conta de fatores internos, como
veremos mais adiante.
Nas condições adversas surgidas desde 1979, o
primeiro triênio acusou uma taxa negativa de cres -
cimento do PIB – uma ilustração da interdependência
econômica em escala mundial. Apesar disso, o cres -
cimento do PIB brasileiro se recuperou em 1984/87 –
prova de que a estagnação não é inelutável: afinal, o
Brasil já tinha estruturas relativamente sólidas, de -
correntes de uma lenta evolução secular e mais dinâmica
nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial. Pode -se
especular que a frustração da última década resultou
também do confronto com as excelentes conquistas
conseguidas durante o chamado “milagre brasileiro”. A
decepção tornou-se maior quando, depois do despertar
de 1984/87, a economia brasileira voltou a registrar
taxas baixíssimas ou mesmo negativas de crescimento
no último triênio da década (11).
No total a taxa anual média seria de 1,5% (para o
período 1981/90) ou de 2,8% (considerando o período
1980/89). Taxas modestas, sem dúvida. Não obstante,
não se comparam tão desfavoravelmente com as dos
outros países, mesmo dentre os industrializados.
379
380
Conclui-se, como consolo, que o hiato entre o Brasil e
os países mais avançados não cresceu, pelo menos na
maioria dos casos (12).

2. É oportuno incluir aqui um aspecto um tanto


positivo: a redução da taxa de expansão demográfica.
De acordo com o levantamento recentemente divulgado
pelo IBGE, a população do Brasil cresceu entre 1980 e
1990 à razão de 1,9% ao ano, de 119 para 143 milhões
de habitantes, demonstrando uma nítida desaceleração a
partir dos anos 50, quando o crescimento demográfico
se dera à razão de 3,1% anuais. Quanto às causas da
mudança, não há indicações concludentes: urbanização?
elevação das rendas? trabalho da mulher? alteração dos
padrões sociais ou morais? De qualquer modo, do ponto
de vista econômico, se a taxa de 3,1% se tivesse
mantido, a população no último ano da década teria sido
de 152 milhões e não de 143 efetivamente computados
em 1990: uma diferença de 9 milhões a menos de novos
brasileiros exigindo habitação, alimentação, infra -
estrutura e educação. De forma global com um
crescimento anual bruto do PIB de 2,8% e expansão
demográfica de 1,9%, há aumento líquido de 0,9% ao
ano em termos per capita; a taxa se tornaria negativa
com uma expansão demográfica de 3,1%.

3. A desaceleração do desenvolvimento econô-


mico é colocada, entre outros condicionamentos, em
função da diminuição da taxa de formação de capital.
O momento crítico foi em 1986: a taxa de formação
380
381
bruta de capital começou a cair desde o início da década
até 1986 voltando a se recuperar em 1987/90.
Obviamente os reflexos sobre o crescimento foram
defasados por alguns anos, porém é extremamente
difícil avaliar essa defasagem.
Verificou-se, progressivamente, um retraimento
dos investimentos privados, tanto internos como ex -
ternos, como resposta a um estado de instabilidade
econômica, à incredibilidade do governo, à inflação
crescente e à falta de uma política econômica trans -
parente e coerente. Por outro lado, diminuiu o fluxo dos
investimentos públicos, esteio importante do processo,
devido à crise financeira do setor público. A des-
confiança, alimentada pelas negociações infrutíferas em
torno da dívida externa, também foi provavelmente uma
das principais causas da retração dos investimentos
estrangeiros, cujo ingresso anual caiu de cerca de US$
1,5 bilhão no início da década para a média de US$ 560
milhões em 1983/90.

4. A menção referente ao retraimento dos in-


vestimentos públicos nos leva à sua causa mais
imediata, responsável aliás por outras mazelas do pe -
ríodo: o permanente e elevado déficit público. Essa
situação decorreu de um conjunto de condicionamentos:
a queda da renda tributária (ineficiência, sonegação), o
aumento das despesas correntes (excesso de
funcionalismo, irracionalidade, outra vez ineficiência),
o peso crescente da dívida pública interna – um círculo
vicioso.
381
382
O resultado global é percebido na centralização
do aumento crescente do déficit do setor governo nas
contas nacionais (13). Isto refletiu-se negativamente no
crescimento, pois o setor público se tornou um peso
morto ao invés de injetar recursos na economia. Na
medida em que isso se tornou conhecido, constituiu um
fator de desencantamento da sociedade com o Estado e
com os governantes – um fator de desagregação.
Ademais como já disse, o déficit público eliminou uma
fonte importante (não apenas em termos quantitativos,
mas também e, sobretudo estratégicos) na formação
bruta de capital. Por outro lado, o déficit público e seu
financiamento tornaram-se, na opinião quase unânime
dos técnicas, uma fonte perene de inflação.

5. Sem dúvida, o estado inflacionário crônico e


com repetidas tendências de crescer constituiu uma das
principais razões e de efeitos sociais mais patentes para
a qualificação da “década perdida”. A história é bastante
conhecida. A taxa inflacionária subiu em 1980/82 para
um patamar em torno de 100% anuais: foi o efeito da
alta de preços causada pelo segundo choque do petróleo
e pelas dificuldades do balanço de pagamentos. Mas a
inflação persistiu proprio motu: começaram a agir as
estruturas inflacionárias de que já tive oportunidade de
falar aqui (agosto de 1990). No triênio 1983/85 a taxa
anual da inflação flutuou um pouco acima de 200%
anuais, alimentada pelo déficit público e eventualmente
por alguns deslizes da política financeira, monetária e
cambial. A experiência heterodoxa do Plano Cruzado em
382
383
1986 propiciou, malgrado seu diagnóstico errado, um
alívio temporário – “a fugaz trajetória do cruzado” (14),
prejudicado por interesses políticos eleitoreiros.
Na falta de uma política antiinflacionária
adequada, a marcha continuou depois, apesar das
tentativas dos Planos Cruzados II, Bresser Pereira e
Verão. A taxa inflacionária que estaria num patamar
ainda razoável em 1986 subiu continuamente até certo
de 200% ao ano em 1989. No primeiro trimestre de 1990
ela flutuou em torno de 70-80% mensais, justificando o
temor de uma hiperinflação, se esta, na realidade já não
existia (15).
Esse ambiente inflacionário destorceu as relações
econômicas, desincentivou os investimentos, estimulou
a especulação financeira, contribuiu para o agravamento
do déficit público e, de forma global, criou a chamada
“cultura inflacionária”, com raízes fundas, resistentes,
no início da década seguinte. Numa palestra anterior
(junho de 1991) tentei identificar responsabilidades não
apenas do lado do setor público, mas também do corpo
social como um todo.

6. Coloca-se no passivo da década perdida o


considerável aumento da dívida externa do País. Ela
cresceu de US$ 53,8 bilhões em 1980 para US$ 97,7
bilhões em 1990. Este montante correspondia a mais de
três vezes a receita anual de exportação. E os juros
pagos naquele ano de 1990 foram de $ 8,7 bilhões
contribuindo basicamente para o déficit em conta
corrente do Balanço de Pagamentos. O aumento da
383
384
dúvida implicou num escoamento de recursos,
desequilíbrio cambial e ameaça para as reservas
internacionais.
De fato, essa situação fora parcialmente herdada
desde o período entre os dois choques do petróleo
(1973/79), quando foi decidido manter o ritmo do
crescimento econômico através do endividamento ex -
terno, aproveitando a liquidez financeira internacional e
o baixo nível das taxas de juros, às vezes negativas em
termos reais. A bomba entretanto estourou no fim dos
anos 70 e sobretudo no início dos anos 80 quando as
taxas de juros internacionais subiram verticalmente,
onerando os países endividados. A situação agravou -se
com a citada deterioração do mercado financeiro
internacional em 1982. A crise da dívida externa
representou um grande estorvo para a economia
nacional, embora se deva rejeitar a idéia de que todos os
males procediam desse lado. Mas o Brasil teve que se
submeter a penosas negociações, mais a moratória
unilateral temporariamente declarada em 1987 –
percalços que afetaram o conceito do País no cenário
mundial.

7. Nesta altura, é oportuno, para clarear um tanto


o panorama, acrescentar um resultado positivo: o bom
comportamento da balança comercial, especificamen-
te – a expansão das exportações. No início da década o
comércio exterior sofrera ainda o impacto do segundo
choque do petróleo: o preço deste produto estava alto, o
valor da importação era superior a $ 22 bilhões e com
384
385
uma exportação razoável, a balança comercial apre -
sentava ainda um pequeno saldo negativo.
Aos poucos, este cenário melhorou. Apesar da
queda das cotações dos produtos primários e de alguns
tropeços na política cambial, especialmente a manu -
tenção de uma taxa cambial supervalorizada para não se
constituir em foco inflacionário, o valor da exportação
subiu paulatinamente e num salto notável chegou a $ 33
bilhões em 1988/90 graças a uma política cambial mais
realista. Ademais, o sistema de incentivos fiscais e
creditícios, embora criticado, desempenhou um papel da
sustentação.
Entretanto, como fator adverso, continuava a
desfavorável posição das cotações internacionais dos
produtos primários. A resistência da receita de expor -
tação deveu-se a um grande esforço quantitativo,
principalmente nas vendas de produtos industrializados:
estes já eram responsáveis por mais de 50% do valor da
pauta em 1980, mas esta proporção chegou a 70%, ou
pouco mais, no último triênio da década.
Paralelamente a despesa com importações se
reduziu, em primeiro lugar graças à queda do preço do
petróleo importado e ao esforço de substituição pelo
petróleo nacional e pelo álcool. A euforia traiçoeira do
Plano Cruzado ensejou um certo aumento da importação
que atendeu a uma febre consumista. Porém, o cres -
cimento das importações veio no fim do período graças
a uma certa liberalização do setor.
Devido ao esforço exportador e ao alívio do lado
das importações de petróleo, a balança comercial se
385
386
tornou superavitária, por um montante anual médio em
torno de $ 11 bilhões, ultrapassado substancialmente em
1988 e 1989(16).
Os sucessos alcançados na balança comercial
permitiram reduzir o desequilíbrio em conta cor rente do
balanço de pagamentos, desequilíbrio esse a ser
debitado na conta de serviços, mais especificamente às
despesas com juros. Ao longo da década, o déficit em
conta corrente foi mantido na média anual de $ 2,7
bilhões. Isso representou um relativo alívio para o
equacionamento do grande problema do endividamento
externo.

8. Para enriquecer a conta positiva da década,


vale detalhar um pouco mais o caso do petróleo. Ainda
que se possa fazer restrições em termos de ritmo de
crescimento, eficiência e modernização tecnológica, é
preciso reconhecer que a década registrou nítidos
progressos na produção nacional de petróleo bruto (17),
embora se possa observar uma desaceleração quando se
afrouxou a pressão do preço do petróleo importado.
O chamado balanço do petróleo melhorou
sensivelmente, no sentido de que a parcela do petróleo
nacional aumentou em termos absolutos e relativos no
consumo total(18). Conseqüentemente a despesa de
importação que somava mais de $ 10 bilhões em 1981,
caiu para cerca de $ 4 bilhões em 1990, evidentemente
também por conta da queda dos preços.
O alívio veio também da substituição energética,
especialmente pelo álcool. Nesta área, apesar das
386
387
restrições ultimamente feitas ao Programa Proálcool, os
progressos foram inegáveis. Mas aí também a euforia
provocada pela queda das cotações internacionais, do
petróleo resultou num afrouxamento: entre 1985 e 1990
a produção do álcool ficou praticamente estacionária.
Não obstante, a performance do setor energético pode
ser colocada no ativo da década. Quanto ao atraso
tecnológico, essa faceta negativa não se limitou ao setor
energético, mas, sim, abrangeu vários segmentos da
indústria, em decorrência dos fatos já apontados: o
retraimento dos investimentos e as dificuldades do
balanço de pagamentos – aos quais podem ser
acrescentadas certas políticas isolacionistas do tipo da
lei da informática de 1984.

9. Talvez seja lícito condenar a “década perdida”


por não ter resolvido ou pelo menos atacado com
suficiente vigor o problema das disparidades das
rendas pessoais. Nisso, o pecado vem de longe. De
acordo com os levantamentos mais recentes, ainda que
inevitavelmente precários, a concentração da renda teria
aumentado na década: os 10% mais ricos da população
detinham em 1981 45,6% da renda nacional, elev ando-se
para 52,3% em 1989; os 1% mais ricos evoluíram de
13% para 17,3% da renda total; em contrapartida o
quinhão dos 10% mais pobres caiu de 0,9% para 0,6%.
Em números absolutos, cerca de 14 milhões de pessoas
deteriam mais de metade da renda, enquanto os demais
126 milhões se limitariam aos restantes 47%. A certa
altura sustentou-se que o Plano Cruzado teria provocado
387
388
uma salutar redistribuição da renda, mas foi simples
ilusão decorrente da explosão do consumo. Como
novidade entre os fatores desequilibradores vale
mencionar o crescimento de uma classe privilegiada de
altos rendimentos, formada pelos detentores do poder
público, em todos os níveis funcionais e regionais –
reflexo do crescimento da estatização na economia.
Não obstante, apesar da persistência do que se
acostuma chamar “a dívida social”, as mazelas do
cenário distributivo se amenizaram sob alguns aspectos:
na proporção das pessoas alfabetizadas embora ainda
tristemente baixa; no número relativo de residências
com abastecimento d’água, com iluminação elétrica, e
com coleta de lixo. Pelo menos sob esses aspectos, a
década não foi totalmente perdida. (19) Entretanto,
apesar do mencionado programa em matéria de
alfabetização, continuou, em estado idêntico, a
deficiência educacional – mas o assunto sai do campo
estrito da Economia, embora seus efeitos se sintam em
todos os setores, inclusive econômicos.

***

Será que a experiência histórica da década


permite tirar algum ensinamento, descobrir explicações
ou, por ventura, estabelecer responsabili dades? Sem
dúvida, como sempre num processo social, há
obrigatoriamente uma herança do passado, abrangendo
instituições, hábitos, idéias e atitudes coletivas. O
fenômeno é irreversível e só resta lamentar os efeitos
388
389
negativos ou louvar os positivos. Da mesma forma,
devem ser aceitos com resignação os fatores exôgenos
que afetaram o início da década. Alguns desses fatores
tiveram efeito retardado após 1985, podendo-se apenas
censurar o insuficiente empenho em curar os percalços
do passado. Mas caberiam nisso algumas circunstâncias
atenuantes.
Passada a crise internacional do início da década,
o Brasil aproveitou também a conjuntura favorável,
apesar da herança incômoda representada pela divida
externa. Depois, num ambiente internacional propício, a
chamada Nova República entrou num processo de
deterioração econômica, com o crescimento baixo e às
vezes negativo, com inflação crescente beirando formas
hiperinflacionárias e com a desarrumação generalizada
da economia dentro de um ambiente político-social
perturbado.
Entretanto, o segundo qüinqüênio dos anos 80
iniciou-se sob o signo da euforia e da esperança: fim do
regime militar, democracia ainda que numa forma algo
tumultuada e irracional, eleições livres, mais tarde uma
nova Constituição supostamente mais libe ral, e mais
moderna, na medida em que estas duas qualificações não
fossem interpretadas de maneira contraditória.
Nesta segunda metade do decênio, houve também
alguns aspectos positivos, como já assinalei, aspectos
esses ligados à vitalidade e inércia de uma sociedade e
de uma economia assaz maduras. Mas os percalços
subsistentes não podiam mais explicar-se por fatores
externos adversos.
389
390
Vimos que, em vários momentos da exposição
histórica apareceu a responsabilidade do setor público,
tanto na eclosão de crises como na incapacidade de
sanar as surgidas fora do setor. A responsabilidade do
governo (usando o termo num sentido abrangente a
todos os detentores do poder) foi sempre ressaltada
devido à capacidade, com seu poder político/econômico,
sobretudo num modelo de intervencionismo estatal, não
apenas de alterar os rumos da economia e as relações
entre os agentes econômicos, mas também de influenciar
o comportamento do corpo social, suas ações e reações.
Como desculpa de ordem geral, pode-se alegar
que os governos dos anos 80 foram confrontados com
três problemas básicos cujas soluções pareciam
incompatíveis: manutenção do crescimento econômico,
equilíbrio do balanço de pagamentos e combate anti -
inflacionário. O III PND, no final da década anterior,
tentou compatibilizar os objetivos através da ênfase
conferida à expansão da produção agrícola. Entretanto,
outras metas de curto prazo vieram prejudicar a linha
mestra adotada, e por outro lado, como parecia
inevitável, foram cometidos certos erros táticos, como
por exemplo, na opinião de alguns técnicos, a pré -
fixação da correção monetária e cambial ou a
manipulação dos índices da correção monetária a qual
afugentou os poupadores.
Havia, apesar de tudo, uma perspectiva
alvissareira ligada à renovação política – tal como
acontecera quando da Proclamação da República.
Infelizmente, o que se considerou como uma vitória
390
391
política não teve reflexos benéficos sobre a economia
nacional. De forma geral, o período de transição, já
delicado por definição, se processou num cli ma de
confronto e não de consenso, como se esperava
inicialmente. A euforia da abertura política desembocou
numa ilusão democrática que assumiu matizes quase
anárquicas, provocando confusão administrativa,
conflitos de competência e politização espúria. As sim, a
economia foi desprovida do indispensável respaldo de
sólidos quadros político-jurídicos, numa palavra, o
afastamento de um Estado de Direito, condição
indispensável do bom funcionamento da economia.
Um relato histórico fiel registraria muitos
episódios ilustrativos do quadro esboçado. Exempli
gratia, seria suficiente citar dois casos: a frustração do
Plano Cruzado, cujos efeitos foram totalmente
pervertidos por interesses eleitoreiros; e a campanha
pelo mandato presidencial de 5 anos, a qual resultou em
desperdício financeiro e desmoralização do poder
público. Frustraram-se as esperanças colocadas no papel
regulador, equilibrador da nova Constituição de 1988. O
resultado foi um texto híbrido, confuso, às vezes
contraditório: para citar dois exemplos, a descentra-
lização financeira que transferiu recursos para Estados e
Municípios sem a devida contrapartida de obrigações; e
a manutenção de alavancas estatizantes, em contradição
com o discurso liberal.
A confusão administrativa e a politização con -
tribuíram fortemente para a acentuação do mal básico
que era o déficit público. Da impotência de eliminar
391
392
esse déficit decorreu a permanência de um foco in -
flacionário, a diminuição da capacidade de investimento
e a desregulamentação geral da economia.
A degradação do poder e a permissividade daí
decorrente, a confusão administrativa, a incredibilidade
do governo e a desarrumação da economia provocaram
várias reações negativas entre os agentes econômicos: a
recusa de investir, isto é, de acreditar no futuro da
economia nacional; a fuga de capitais para o exterior; a
sonegação fiscal; a corrupção; a resistência a qualquer
medida reformista saneadora; a especulação (a ciranda
financeira propiciada pela ineficiência das medidas
antiinflacionárias); a adoção de medidas individuais de
defesa, eventualmente ilegais contra a inflação; a fuga
da ordem legal como no caso da expansão da economia
informal ou clandestina.
De forma geral e numa avaliação mais pessimista,
assistiu-se a uma certa ruptura entre a sociedade e o
poder público, e ainda mais a uma verdadeira crise de
solidariedade e cooperação. A culpa vai possivelmente
em primeiro lugar para os governantes cujo
comportamento induz e justifica em grande parte as
atitudes do corpo social, a não ser que se trate de um
fenômeno de raízes mais profundas, ligado à crise moral
de caráter mais generalizado em espaço e tempo.
É sob este ângulo que entendo a expressão “a
década perdida”.

Palestra proferida em 21 de maio de 1992.

392
393

NOTAS

(1) Em fins de 1979 a cotação do petról eo era de US$ 12,70. Em


abril de 1979 já atingia US$ 14,54, em julho US$ 18,00. Um ano
mais tarde, em novembro de 1980 alcançava US$ 32,00 e um ano
depois US$ 34,00 por barril; depois começou a queda.

(2) O comércio exterior (turnover) de 6 países princip ais –


Alemanha Ocidental, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Reino
Unido – caiu de US$ 1784,9 bilhões em 1980 para US$ 1667,6
bilhões em 1982.

(3) A taxa de crescimento média do PND dos países


industrializados caiu paulatinamente de 3,6% em 1979 para 0,8%
em 1982.

(4) Ainda nos seis países selecionados, a taxa média da alta dos
preços ao consumidor subiu até 12,5% a.a. em 1980 e se reduziu
para 7,1% em 1982.

(5) Em 1978 a taxa Prime era de 11,75% e a Libor 12,50%; em


1980 chegaram a 21,50% e 16,40% r espectivamente; em 1982
eram ainda de 14,60% e 13,60%.

(6) A dívida externa dos países em desenvolvimento cresceu de


US$ 276,4 bilhões em 1978 para US$ 505,2 bilhões em 1982.

(7) A história e análise do segundo choque do petróleo encontram -


se em dois livros de Ernane Galvêas: A Crise do Petróleo. Rio de
Janeiro, APEC, 1985 e A Saga da Crise. Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1985.

(8) Le Nouvel Etat du Monde – Bilan de la Décennie 1980-1990.


Paris, La Découverte, 1990.

(9) O comércio internacional de mercadorias cresceu de um total


de US$ 1990 bilhões em 1980 para US$ 2880 bilhões em 1988.
Nesse total, e entre as mesmas datas, o volume do comércio

393
394
cresceu 3% nos produtos minerais, 18% nos produtos agrícolas e
52% nos produtos manufaturados. Quanto à origem das expor-
tações, as dos países industrializados aumentaram de 62,5% do
total em 1980 para 70,3% em 1988, enquanto as dos países em
desenvolvimento diminuíram de 29,6% para 21,6% do total.

(10) Como exemplos as reuniões de Nova Yorque em 1985 entr e


os Estados Unidos, Reino Unido, França, Japão e Alemanha ou os
acordos subseqüentes de Paria (1987) e as tramitações dos Sete
Grandes ainda em Paris em 1989. Neste último ano surgiu também
o Plano Brady para facilitar a conversão e liquidação das dívidas
externas.

(11) Em 1981/83 a taxa acumulada foi de 7,1% negativos; em


1984/87 houve aumento de 26,6%; em 1988/90 voltou a ser
negativa em 1,6%.

(12) Os dados sobre o Brasil foram extraídos principalmente da


coleção de anuários A Economia Brasileira e suas Perspectivas.
Rio de Janeiro, APEC, 1981-1990.

(13) Esse déficit foi de 1,5 a 4,7% do PIB em 1980/84, subiu para
a média de 10% em 1985/87 e chegou a 15% ou mais nos anos
seguintes.

(14) No livro do mesmo nome, de Julian Chacel – Rio de Janeiro,


JMC, 1987. Sobre o mesmo assunto ver, de Ernane Galvêas, As
Duas Faces do Cruzado, Rio de Janeiro, APEC, 1987.

(15) A evolução medida pelo índice geral de preços – dispo-


nibilidade interna, foi a seguinte: 65% em 1986, 416% em 1987,
1038% em 1988, 1786% em 1989 .

(16) O superávit comercial registrou os seguintes valores depois


dos fracos resultados de 1980/82 (em US$ bilhões):
1983 – 6,5 1987 – 11,2
1984 – 13,1 1988 – 19,2
1985 – 12,5 1989 – 16,1
1986 – 8,3 1990 – 11,0

394
395
(17) A produção nacional de petróleo b ruto subiu de 10.785 mil
m 3 em 1980 para 37.777 mil m 3 em 1990.

(18) Em 1980 para um consumo global de 1.094 mil bl/d apenas


17% cabiam ao petróleo nacional; em 1990, de um consumo de
1.225 mil bl/d já 50% eram nacionais.

(19) A parcela de pessoas alfabetizadas acima de 5 anos de idade


cresceu de 58,6% para 66,1% entre 1980 e 1989. As residências
com abastecimento d’água aumentou de 60% para 73% do total, as
com iluminação elétrica, de 75% para 87%, as com coleta de lixo
de 49% para 63%.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 38(447): 53-62,


Junho 1992).

395
396

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO:
CONDICIONAMENTOS

Embora se enquadrando no tema do desenvol-


vimento econômico, minha palestra adota um enfoque
limitado, a saber, da sua interdependência com o
conjunto cultural histórico. Assim sendo, não pretendo
tratar do comportamento propriamente dito do desen -
volvimento (produto, renda, emprego, etc.), mas tentar
identificar os condicionamentos do processo no Brasil
das últimas décadas.
É ocioso lembrar que os elementos condicio-
nantes imediatos são puramente econômicos: trabalho,
poupança e investimento, tecnologia. Isto corresponde
ao processo básico. No seu livro clássico sobre o
assunto, W. Arthur Lewis coloca o mecanismo da
causalidade em três níveis: primeiro, os recursos
naturais disponíveis e o comportamento humano; este
por sua vez, abrange como causas imediatas o esforço
para economizar, o aumento do conhecimento e sua
aplicação, e a expansão do volume de capital; por baixo
ficam as causas de terceiro grau: as instituições e as
crenças (diria melhor o sistema de valores) que
determinam o comportamento humano.
Os estudiosos enfatizaram a importância do cabedal
cultural que se encontra nos alicerces do desenvolvimento
econômico “São as mudanças nos valores que os homens
396
397
emprestam à vida... que são de importância decisiva na
orientação dos esforços econômicos em novas direções.”
(John U. Neff) “As forças econômicas devem ser
consideradas dentro de uma matriz sócio-cultural... fatores
políticos, sociológicos e psicológicos são altamente
relevantes... uma completa consideração dos esforços de
uma nação para levar a bom termo o seu desenvolvimento
econômico abarca a totalidade de sua história cultural.”
(Gerald Meier – Robert Baldwin).
Assim sendo, tratarei das diversas manifestações
da sociedade – idéias, atitudes, instituições e políticas – a
respeito do processo de desenvolvimento: primeiro, os
fatores relacionados aos “quadros” do processo que
formam o seu ambiente espaço-temporal: quadro natural,
quadro humano, e quadro histórico. Em seguida abordarei
os fatores ligados às diversas facetas da sociedade:
fatores culturais, sociais, político-jurídicos e econômicos.
Há neste empreendimento várias limitações. Foi
inevitável proceder a generalizações que podem fu gir à
realidade, face às variedades horizontais e verticais no
comportamento da sociedade brasileira. Por outro lado,
os fatores a serem avaliados são, na maioria, de caráter
qualitativo de modo que as avaliações podem ser
altamente subjetivas. Espero que, generosamente, o
auditório as aceite como hipóteses sujeitas a discussão.

***

De acordo com o propósito desta palestra, ao


abordar a questão do quadro geo-fisiográfico não
397
398
procurarei apontar as realidades físicas, mas, sim, o
comportamento da sociedade perante as alterações do
quadro. Em primeiro lugar está a resposta ao desafio da
escassez, uma resposta quantitativa – a ocupação de
novas áreas – mas também qualitativa em que se
incluem as medidas adotadas contra secas e enchentes.
(1) Não se deve desprezar o fato de que a
disponibilidade de terras pode trazer ainda a propensão
para cultura extensiva, desperdício e dispersão dos
núcleos produtivos, embora amenizada pelo progresso
dos transportes e da tecnologia.
Apesar da amplitude dos recursos disponíveis,
aumentaram, pelo menos em certos círculos, as
apreensões quanto ao futuro esgotamento. Voltarei a
falar sobre essa campanha ecológica.
No setor energético, entretanto, a resposta
brasileira ao desafio da escassez foi basicamente
positiva, com a adoção de um vasto programa de
substituição dos derivados do petróleo pelo álcool de
cana-de-açúcar, além da intensificação da produção de
petróleo da plataforma marítima (2) e o ingresso no
campo da energia nuclear. A sociedade soube mobilizar -
se diante do desafio, ficando os percalços por conta das
inevitáveis limitações culturais e tecnológicas.

***

No que tange ao quadro demográfico, o que nos


interessa, tal como no caso do quadro natural é o
comportamento da sociedade diante da configuração e
398
399
evolução deste quadro. Algumas décadas atrás,
provocou preocupação a elevada taxa de expansão
demográfica, dado o ônus que tal fato tinha na estratégia
desenvolvimentista. Foram aventadas medidas racionais
para reduzir tal avalanche demográfica, mas a resposta
predominante da sociedade não foi muito favorável: o
hábito, a inércia, a oposição de diversos segmentos da
sociedade, resultaram numa certa insensibilidade ou
mesmo oposição a qualquer política de controle da
natalidade. Ademais, o problema perdeu sua acuidade,
pois em tempos mais recentes a taxa de expansão
demográfica caiu para patamares mais aceitáveis,
ficando contudo elevada nas camadas mais pobres da
população, de modo que o problema passou para o plano
da distribuição da renda.
A diminuição da taxa de crescimento popu-
lacional refletiu-se forçosamente na pirâmide etária em
que, 40-50 anos atrás, dominava fortemente a faixa da
população jovem, com certo desinteresse pelo grupo dos
mais idosos: era, e ainda é parcialmente, dada
preferência aos mais jovens na distribuição do emprego,
o que sob a ótica do desenvolvimento constitui van -
tagem em termo de dinamismo, porém perda em termos
de experiência e racionalidade. A solução transfe re-se
para o terreno da educação (3).

***

Passando para o quadro histórico, pode-se dizer


que ele se apresentou sob luzes assaz favoráveis.
399
400
Começou com a euforia do fim da Segunda Guerra
Mundial, com a paz garantida pelo medo da catástrofe
atômica e com um esforço, no plano internacional e
regional, de cooperação e integração. O Brasil tirou
proveito da conjuntura, embora tenha adotado
inicialmente um modelo de crescimento introvertido.
Um aproveitamento do bom ambiente externo tornou -se
mais efetivo após 1964 quando o país adotou um modelo
aberto de desenvolvimento econômico. Como já aludi,
as mazelas provocadas pelo choque de petróleo de 1973
foram superadas, mas o de 1979 e a crise do sistema
financeiro internacional não permitiram a mesma
resposta positiva de um Brasil já fortemente endividado.
Uma possível reação positiva foi prejudicada, vez por
outra, por fatores internos, principalmente políticos, de
que falarei oportunamente. Mas acho que subsistiu uma
certa desconfiança em relação ao mercado internacional.

***

Vamos tratar agora do comportamento da socie-


dade em termos da realidade cultural global. Referindo -
nos, primeiro, ao ideário relativamente dominante, a
primeira pergunta seria se a sociedade desejava o
desenvolvimento econômico? E a resposta é claramente
afirmativa, não apenas por corresponder a faceta perene
da natureza humana, mas também por ser motivada pelo
baixo nível de renda e pela ocorrência da miséria e da
pobreza absoluta.
O avanço do materialismo, nocivo sob vários
400
401
aspectos morais, pode ser considerado como fator
indutivo do esforço desenvolvimentista. Talvez não haja
mais a euforia dos “50 anos em 5” ou do milagre
brasileiro, mas a confiança não falta, apesar dos
atropelos e das decepções da política. Não se deve
subestimar o efeito-demonstração, exacerbado pelo
poder crescente da mídia – o que desemboca às vezes
em imediatismo e numa certa impaciência contra pro-
ducente. De qualquer forma, a sociedade, pelas suas
elites, firmou-se na crença no desenvolvimento e no seu
tratamento racional.
Falando em crenças e racionalidade, pode ser
vista com desconfiança a proliferação de algumas seitas
religiosas de nível excessivamente primário, as quais
demonstram dose excessiva de fatalismo e se apegam às
práticas mágicas, o que desvia do esforço consciente
exigido pelo progresso econômico.
Num plano mais positivo assistiu-se ultimamente
a uma certa desclassificação do desenvolvimentismo em
favor do distributivismo. Esta mudança de prioridade
acentuou-se nos anos 70: a política desenvolvimentista
de JK, por exemplo, não foi questionada do ponto de
vista do distributivismo. Este interesse, evidentemente,
não pode ser descartado, mas a sua ênfase no ideário da
sociedade não deixa de constituir uma complicação para
a política desenvolvimentista: nada mais difícil do que
compatibilizar objetivos.
É fato que existe um crescente inconformismo
com a reinante distribuição da renda, o qual às vezes
parece ligado a uma contestação global do sistema –
401
402
negativismo extremamente nocivo. Não obstante, as
preocupações distributivistas não prejudicam radical -
mente o interesse pelo esforço desenvolvimentista. Este
está sendo ainda considerado ligado à industrialização,
embora o industrialismo tenha perdido algo do seu
ímpeto em favor de uma visão mais globalizante da
economia. A agricultura permaneceu algo margina-
lizada. A idéia de uma reforma mais ampla no campo
fez pequenos progressos, sem que a sociedade encontre
uma solução mais harmoniosa e eficiente em termos de
estrutura agrária e produtividade agrícola (4).
Outra complicação surge do nacionalismo
econômico. Numa forma equilibrada ele se mostrou
fator dinâmico do progresso e atuou proficuamente.
Entretanto nas suas formas mais radicais foi
contraproducente (por exemplo, na reserva de mercado
em informática). Apesar da onda internacionalizante,
tais posições puderam desviar as decisões de política
econômica para uma emotividade irracional. Na mesma
categoria podem ser incluídas manifestações antiliberais
e, como subproduto espúrio tão conhecido, o anti -
americanismo. Tudo isso redunda na redução da
capacidade de absorver poupança e tecnologia externas
com prejuízo do ritmo do desenvolvimento. O fato foi,
contudo, de efeitos limitados.
O desenvolvimento sofreu também em tempos
recentes uma certa inibição por causa do ecologismo.
Sem dúvida, a preocupação ecológica é válida,
colocando em causa perspectivas de longo prazo, mas a
sociedade parece ainda perguntar-se em que medida o
402
403
presente deva ser sacrificado em prol do futuro.

***

No campo dos fatores culturais é de capital


importância o modo em que a sociedade encara e resolve
o problema da educação. Nisso é lugar comum lamentar
o atraso brasileiro, mas não se deve desprezar os
progressos realizados, inclusive no setor do ensino
técnico. (5) Os malogros do Mobral não afetam a
qualificação positiva que se pode conferir ao esforço
educacional.
O que merece destaque é o interesse crescente
que o problema educacional despertou na comunidade,
não apenas nos círculos acadêmicos que nas últimas
décadas reservaram atenção maior a educação como
fator de desenvolvimento. Como comparação, vale
lembrar o reduzido espaço que a educação ganhou nos
primeiros planos econômicos até 1965. A própria
opinião pública começou a enfatizar a educação como
condição sine qua non do progresso. Constitui uma
realidade auspiciosa o interesse dos jovens pela melhor a
do seu nível educacional, embora às vezes esse interesse
não seja acompanhado pela aceitação dos meios algo
penosos de realizá-lo.
No que tange ao conteúdo da educação, pode-se
aplaudir sob um certo ponto de vista o abandono do
beletrismo do século passado e a adoção de um ensino
mais pragmático, mais técnico, mais voltado para os
resultados práticos, embora possa ser questionado o
403
404
materialismo reinante e uma certa desqualificação do
humanismo. Às vezes esquece-se a importância dos
fatores éticos na boa atuação dos agentes econômicos.
Aqui entra em jogo a opção da opinião pública,
mas surge a dúvida quanto ao conhecimento correto das
aspirações do corpo social. Esse conhecimento vem
praticamente através da mídia, cuja diversificação e
capacidade dominam crescentemente a formação de
opiniões populares, às vezes em formas destorcidas.
Decisões importantes relativas ao desenvolvimento
econômico puderam ser induzidas pela mídia para
fórmulas espúrias, por interesse ou simplesmente por
inépcia.

***

Agora vamos abordar os fatores sociais no


sentido restrito da palavra, isto é, ligados à estrutura e
ao funcionamento da sociedade. Acho que se deve
atentar primeiro para o fato de a sociedade brasileira ser
aberta em proporções satisfatórias. Apesar de restrições
feitas com o intuito de desmoralizar o sistema, parece -
me que predomina o “homem cordial”, o que constitui
boa garantia de cooperação, embora com o risco de
decisões emocionais. Alude-se às vezes à discriminação
racial, sobretudo quanto aos negros, mas acho que
muitos fatos concretos não permitem uma conclusão
radicalmente desfavorável.
A miscigenação funciona e a marginalização está
diminuindo: é suficiente olhar para o número de negros
404
405
e mestiços que atuam nos setores político, econômico e
cultural até nos escalões mais elevados. O desenvol-
vimento econômico só pode ganhar com a integração.
Isso demonstra outro aspecto positivo: a mobi -
lidade social vertical. Recentemente organizaram -se
louváveis movimentos de solidariedade e integração dos
denominados “excluídos” – movimentos contudo com
um certo matiz maniqueísta que, pela insistência em
denunciar a exclusão, parecem poder exacerbar conflitos
de classe, prejudicando a mobilização para o desen -
volvimento econômico.
A mobilidade vertical é impulsionada, entre
outras, pela recompensa que através de instituições ou
simplesmente atitudes, a sociedade reserva ao sucesso
econômico. Este oferece, além de riqueza ou bem -estar,
prestígio e poder, mas o caminho é invertido em muitos
casos: o sucesso econômico vai para a classe política ou
sua excrescência, a burocracia. Estes casos corres -
pondem a uma distorção nem sempre vantajosa para o
desenvolvimento econômico. De qualquer forma, dada a
falta de rigidez das estruturas sociais, não estão se
formando classes fechadas, com acesso privativo a
riqueza, apesar da relativa marginalização dos non
possidentes.
Pode-se falar também de um grau assaz elevado
de mobilidade horizontal. Se as migrações internas são
menores do que outrora, há ainda deslocamentos
populacionais entre regiões, sem grades resistências.
Pode haver competitividade regional devido a interesses
econômicos locais, como foi por exemplo a propósito da
405
406
criação de pólos petroquímicos no Nordeste e de
siderurgias no Sudeste, porém sem ameaçar profun -
damente o equilíbrio das decisões finais.
A mobilidade horizontal manifestou-se sobretudo
na transferência do campo para cidade. Fenômeno
complexo, a urbanização constitui processo normal de
reestruturação e modernização com efeitos salutares em
termos de crescimento da classe média, mais dinâmica,
mas a urbanização foi demasiado acelerada e algo
anárquica(6), daí resultando a favelização das cidades
com seus efeitos negativos. Ao mesmo tempo o campo
ficou esvaziado, sem poder compensar totalmente a
perda populacional por progressos técnicos e ins-
titucionais adequados. Por outro lado, a classe média
urbana cresceu desordenadamente, corroída pelo fisca -
lismo e pela inflação.

***

Passaremos agora para outra categoria de fatores,


os político-jurídicos, de grande peso no processo
econômico, em termos de organização, decisões
normativas e participação do governo na economia.
Comecemos com o governo, entendido como o
conjunto de todas as instituições públicas detentoras de
poder de decisão. No concernente aos grupos
participantes ao exercício do poder, o panorama parece
bastante equilibrado, sem preponderância acentuada de
algum grupo: latifundiários ou industriais, civis ou
militares, capitalistas ou sindicatos. Já aludi às
406
407
competições regionais, sem intensidade de natureza a
prejudicar o equilíbrio geral da economia. Ademais, é
suficiente lembrar que abalos políticos com os de 1954,
1961, 1964, 1985 e 1992 não interromperam radi -
calmente o processo do desenvolvimento. Em tese, a
abertura política foi fator de consolidação da economia,
mas esta foi afetada nos últimos aos por fatos que se
prendem em grande parte à própria abertura liberal, ou
melhor, aos seus excessos. (“a embriaguez da
liberdade”). Um elemento perturbador consistiu na
indefinição das relações dos Poderes constituídos,
resultando em conflitos de competência, bem como
choques em função da rotatividade dos agentes de
decisão. Essa descontinuidade administrativa esteve li -
gada também a politização, ao clientelismo e ao empre -
guismo que prejudicaram a racionalidade exigida pelo
desenvolvimento.
A descontinuidade administrativa contribuiu para
confundir os agentes econômicos e reduzir sua
eficiência. Amiúde, os empresários não sabem mais que
normas lhe serão impostas – daí a recente insistência
não transparência das decisões governamentais. Por
outro lado o quadro político-administrativo defende-se
via aumento de suas dimensões, corporativismo e
proliferação burocrática – fenômeno ligado ao próprio
modelo de intervencionismo estatal e constituindo ao
longo dos anos um peso crescente para a livre expansão
da economia.
Muitos dos abusos estão ligados à crise moral,
aliás universal, que age de forma perversa sobre o
407
408
sistema do poder, contribuindo para acentuar a
desconfiança dos governados em relação aos gover -
nantes, e chegando às vezes a uma verdadeira ruptura
entre eles.

***

Para completar o cenário é preciso aludir às


políticas adotadas, não em seus pormenores de im -
plementação, mas apenas em seu espírito geral e nas
reações da sociedade a seu respeito.
E ponto pacífico que a orientação geral da
política econômica continuou sendo dominada pelo
liberalismo. Os programas de governo, mesmo no auge
do planejamento econômico, repetiram insistentemente a
fé nos princípios liberais, e a opinião pública teve de
modo geral as mesmas convicções, salvo uma minoria,
mais ou menos insistente e perturbadora, confessando
simpatias coletivistas, socialistas ou mesmos comu -
nistas. Tais posições tornaram-se mais discretas após a
queda do muro de Berlim, mas não desistiram.
A despeito da nota liberal dominante, o modelo
foi de uma economia mista com uma forte intervenção
estatal no processo econômico. Apenas recentemente
tomou-se posição mais firme no sentido de o Estado
desistir das atividades empresariais e se restringir a ação
normativa e supletiva e mais decidida em setores de
interesse comunitário. A índole individualista da
sociedade parece associá-la de forma orgânica ao
modelo liberal, mas é evidente que subsiste, com
408
409
bastante força, por hábito ou inércia, uma mentalidade
intervencionista ou de paternalismo estatal. Talvez se
trate de um círculo vicioso, mas muitas vezes as
resistências intervencionistas esconderam apenas
interesses corporativistas – veja-se a oposição do
funcionalismo de certos setores à política de
privatização.
Não obstante, domina a economia de mercado. E
a sociedade se integrou crescentemente no mercado, que
cresceu em termos relativos e absolutos com o aumento
da população, a elevação da renda e o crescimento das
dimensões físicas graças ao progresso dos t ransportes,
bem como através da expansão fora das fronteiras
políticas em decorrência da adoção após 1964 de um
modelo aberto de economia.
Apesar dos progressos feitos, o funcionamento do
mercado apresenta às vezes tropeços e contradições,
talvez por simples falta de tradição capitalista.
Distorções puderam decorrer dos abusos dos agentes ou
da própria intervenção excessiva do governo, da
exacerbação das práticas burocráticas e do aumento do
fiscalismo. Isto proporcionou outra distorção rotulada
como “economia informal”, eufemismo para indicar
práticas econômicas fora dos padrões legais. Como no
caso do intervencionismo, a atitude da sociedade oscila
entre a condenação teórica e a aceitação prática.
Na mesma ordem de idéias convém falar sobre a
atitude perante o fenômeno inflacionário. No plano
acadêmico perderam força as teorias que concediam à
inflação um papel desenvolvimentista. No plano social,
409
410
a inflação foi ainda mais desmoralizada depois das
repetidas experiências em que a alta de preços beirou a
hiperinflação. Mas, uma vez mais, pode-se detectar
imprevistos e contradições nas reações do corpo social.
A inflação crônica e a persistência das práticas
individuais ou coletivas de defesa antiinflacionária
criaram uma verdadeira mentalidade inflacionária, d e
caráter especulativo, imediatista e egoísta, a qual
perturba o mercado.

***

Falta acrescentar alguns traços que me pareceram


mais expressivos do comportamento da sociedade a
respeito dos fatores de produção.
No capítulo trabalho, um ponto a assinalar é o
esvaziamento do preconceito em relação à participação
das mulheres, preconceito esse que de fato atingia
sobretudo as classes de posição social mais privilegiada.
Aí deve ser acrescentada a melhora qualitativa, visto
que os progressos educacionais atingiram a população
feminina ativa.
Por necessidade, hábito ou formação cultural
existe uma razoável propensão para o trabalho. Fala -se
vez por outra de uma “vocação lúdica” do povo
brasileiro, mas acho que qualquer generalização é irreal
por extrapolar hábitos de alguns grupos, em alguns
centros, sobretudo urbanos. A democratização da
sociedade, a redução de privilégios de classe ou de
casta, as imposições crescentes do próprio progresso
410
411
econômico e político representaram tantas motivações
para o trabalho. Esse ímpeto pode ter sido prejudicado
pela falta de recompensa devido a má distribuição da
renda, a inflação, aos excessos fiscais e outras
deficiências institucionais ou pela crise moral com seu
excesso de hedonismo. Entretanto há esforços no
sentido positivo: no plano puramente econômico devem
ser citadas as políticas redistributivas de renda, visando
às vezes de forma explícita a classe trabalhadora, como
nos projetos ainda não muito bem sucedidos de
participação de empregados nos lucros das empresas. O
fortalecimento dos sindicatos, salvo abusos demagó -
gicos, representa uma corrente de opinião equilibradora
com efeito sobre as decisões finais.
No caso da poupança e de sua contrapartida, o
consumo, manifestaram-se, tal como em outros casos,
contradições. De um lado uma crescente propensão para
consumo, o que se explicaria pela progressiva elevação
das rendas individuais, pelo efeito-demonstração exa-
cerbado pela mídia e talvez como reação do consumo
reprimido. Talvez se abuse da qualificação de con -
sumismo quando se trata de uma população na maioria
de rendas baixas e com grupos de pobreza e miséria.
Mas, em termos, a expressão contém um grau de
verdade, sobretudo no sentido de que muitos preferem o
consumo conspícuo ou ostentador em detrimento de uma
aplicação mais racional da despesa.
Não obstante, a poupança cresceu (8). É difícil
dizer se houve uma alteração profunda dos hábitos de
despesa ou se tratou apenas de flutuações conjunturais.
411
412
Mas parece fora de dúvida que, sobretudo a partir de
1965, desempenharam papel positivo as inovações
institucionais que criaram novos instrumentos para
captação e aplicação da poupança.
As atitudes em relação ao capital são também
geralmente positivas, salvo certas posições ideológicas
minoritárias, principalmente a respeito dos capitais es-
trangeiros. Na maioria dos casos, os conflitos entre
capital e trabalho ou entre capitalistas e consumidores
não assumem proporções assustadoras, apesar do agra -
vamento provocado pela inflação. A classe empresarial
que se fortaleceu e se conscientizou paulatinamente,
desempenhou, com inevitáveis exceções de caráter
conjuntural ou pessoal, o seu papel positivo, mantendo o
nível de investimentos com a contribuição do setor
público. (9) Uma certa retenção do capital privado pode
explicar-se pela insuficiência da política governamental
em termos de continuidade e transparência. Persiste, por
outro lado, uma certa desconfiança em relação ao
conceito de lucro que alguns grupos estão tentados a
interpretar como uma espoliação.
O empresariado mostrou suficiente espírito de
inovação também, no que tange à tecnologia, com a
adoção de novas técnicas de produção baseadas na
automação e informática. Nisto merece destaque igual -
mente a adesão da mão-de-obra, demonstrando o
trabalhador brasileiro uma notável capacidade de
adaptação com vistas a elevação da produtividade, a
despeito do atraso geralmente verificado neste sentido.
Sem dúvida, a adoção de técnicas capital-intensivas
412
413
pôde prejudicar o objetivo de criação de empregos – é
mais um exemplo da dificuldade de compatibilizar
objetivos conflitantes. Acho que em geral prevaleceu o
espírito modernizador e renovador da sociedade: embora
reconhecendo a necessidade de criar empregos, mostra -
se maior atração pelo uso intensivo da inovação
tecnológica.
Recapitulando, o posicionamento em relação ao
trabalho feminino, à diversificação da poupança e à
modernização tecnológica constitui fator auspicioso
para o futuro do desenvolvimento econômico.

***

Que conclusão pode-se tirar desta exposição, com


suas falhas e insuficiências? Afinal, a conclusão
consiste no que foi dito desde o início: o desen-
volvimento econômico é um processo extremamente
complexo, de equacionamento bastante aleatório, de vez
que entra em jogo uma multidão de condicionamentos
positivos e negativos. Quer isto dizer que o processo
deva ser deixado nas mãos da fatalidade? Obviamente,
não. O processo é de desafios e respostas, e estas
dependem da capacidade mais ou menos racional do
corpo social. O desenvolvimento econômico é feito pelo
homem, na medida em que, dentro das imperfeições de
sua natureza, o homem está capaz de enfrentar seu
destino.

Palestra proferida em 25 de maio de 1995.


413
414
NOTAS

(1) A expansão da área cultivada foi de 232 milhões de hectares


em 1945 para 376 milhões em 1985 (aumento de 62%, menor do
que o crescimento demográfico).

(2) O petróleo da plataforma marítima chegou a ser responsável


por 70% da produção nacional (1992). A produção de cana -de-
açúcar cresceu mais de três vezes entre 1970 e 1989, a de álcool
14 vezes.

(3) O perfil etário modificou-se também: a proporção de idosos


(de mais de 60 anos) aumentou de pouco mais de 40% (1955) para
quase 80% (1991) da população total.

(4) A proporção dos latifúndios diminuiu: a parcela dos


estabelecimentos de mais de 10.000 há cai u de 19% para 16% do
total e a dos mais de 100.000 ha caiu de 0,5% para 0,3% entre
1950 e 1980. Paralelamente houve aumento relativo das proprie -
dades de até 10 ha: 1,5% em 1940; 2,5% em 1980.

(5) Em 1995 havia ainda 18% de analfabetos na população maior


de 15 anos de idade: em 1960 essa proporção era de 39%.

(6) Entre 1940 e 1991 a população urbana cresceu de uma


proporção de 31,2% do total para 73,3%.

(7) Em 1940 apenas 19% da população economicamente ativa era


mulheres; essa participação subiu para 35 ,5% em 1990.

(8) Em percentagem do PIB, a poupança bruta subiu de 14% em


1947 para 20,6% em 1992, tendo passado por um auge de 21,8%
em 1972.

(9) A formação bruta de capital fixo subiu de 14,9% do PIB em


1947 para 18,0% em 1985.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 41(485): 33-43,


Agosto 1995).
414
415

CORRENTES DE IDÉIAS SOBRE


A ECONOMIA BRASILEIRA
(1965-1990)

415
416

CORRENTES E IDÉIAS SOBRE A


ECONOMIA BRASILEIRA (1965/1990)

Neste trabalho tentei fazer um levantamento


sucinto de algumas idéias que dominaram a opinião
pública, as autoridades e os meios acadêmicos no Brasil
em matéria de economia e política econômica. Não se
trata propriamente de uma avaliação de tais idéias,
embora os juízes de valor sejam às vezes inevitáveis. O
objetivo foi basicamente histórico: expor o que
aconteceu com as convicções duráveis ou passageiras –
uma lição quanto à força, mobilidade ou fragilidade das
opiniões e teorias em voga no último quarto de século,
em confronto com os fatos históricos.

***

Nos anos 60 provocaram grande alarde,


comentários e eventualmente protestos as previsões do
Hudson Institute, publicadas no livro O Ano 2000 de
Kahn-Wiener. Vaticinaram que o hiato entre a renda per
capita do Brasil e a dos países industrializados
aumentaria muito até o fim do século. A relação da
renda per capita EUA/Brasil passaria de 12,7 para 20,1;
Alemanha Ocidental/Brasil de 6,8 para 15,4; Japão/
Brasil de 3,1 para 17,0 e assim por diante.
Os fatos, entretanto, encarregaram-se de refutar,
pelo menos parcialmente, as previsões do Hudson
Institute. Já entre 1965 e 1990, a renda per capita do
416
417
Brasil crescera 104,8% (crescimento bruto de 281,3%,
menos expansão demográfica de 86,2%), alcançando
US$ 573 (em dólares de 1965), sensivelmente acima dos
US$ 506 projetados por Kahn-Wiener para o ano 2000.
Ademais, o hiato da renda per capita reduziu-se em
alguns casos (dados de 1988): 7,4 para os Estados
Unidos, 7,1 para o Canadá; e 6,4 para a França (em
1965: 12,7, 8,8 e 6,9 respectivamente). Em outros casos,
realmente o hiato aumentou: Japão, Alemanha Ociden -
tal, mas trata-se de países excepcionalmente dinâmicos.
O erro do Hudson Institute foi de proceder a uma
extrapolação linear a partir da fraca performance
brasileira no início dos anos 60 – um procedimento
bastante primário que prejudicou as previsões e, de uma
certa forma, contribuiu para desmoralizar a futurologia.
É verdade que Kahn-Wiener tiveram a precaução de
advertir em várias ocasiões que estavam trabalhando
num “horizonte livre de surpresas”. Mas isso é
irrealismo, pois o futuro está sempre cheio de surpresas.
De qualquer modo, tais procedimentos encontradiços em
vários planos e programas governamentais, confrontados
com as realidades diferentes, provocaram um certo
abandono das ilusões futurológicas e talvez uma
descrença na própria capacidade antecipativa da política
econômica.
A inexistência do horizonte livre de surpresas
proíbe, de certa forma, projeções de médio e longo
prazos, ou mesmo de curto prazo. O quarto de século
aqui focalizado incluiu pelo menos duas surpresas: os
dois choques do petróleo de 1973 e 1979. É curioso que,
417
418
mesmo depois do primeiro choque, comentaristas
abalizados consideravam altamente improvável uma
nova escalada dos preços do petróleo. Mais uma prova
da precariedade das projeções.

***

Uma projeção destorcida, porém num sentido


otimista, verifica-se quando se fala, entre historiadores
e economistas, da taxa “histórica” do crescimento do
PIB brasileiro, de cerca de 7% ao ano. Sem dúvida que
tal simplificação não nega a existência de flutuações;
mas por que esses 7% representariam um nível “his -
tórico” normal? Na realidade a taxa média no quarto de
século enfocado ficou em torno de 5%. Os 7% cons -
tituem simplesmente a projeção de um curto período
relativamente favorável de 1956 a 1961. A taxa histó-
rica, isto é de prazo mais longo, por exemplo dos
últimos 100 anos, vem se verificado bem menor. A
escolha dos 7% é algo arbitrária e poderia ser con -
frontada com a média de 8,6% de 1967/1980 ou a de
1981/1990 que não passou de 1,5% ao ano.
A presença dessas flutuações nos leva ao
questionamento de outro conceito muito repetido nos
comentários. O de desenvolvimento auto-sustentado.
Esta expressão dá, por um lado, a ilusão de que o
desenvolvimento econômico, uma vez iniciado,
continuará sem interrupção ad infinitum e, ainda mais,
se acelerará de acordo com o admirável processo dos
juros compostos. Por outro lado, aquela expressão
418
419
sugere a visão de um ideal autárquico, a de um país
totalmente fechado, isolado, que para crescer só prec isa
de suas potencialidades próprias, dispensando qualquer
apoio de fora.
Sobre esta última ilusão falarei mais adiante.
Quanto à visão de um desenvolvimento auto-sustentável,
isto é, que continua hoje porque existiu ontem e
continuará amanhã uma vez que acontece hoje, esta
visão só pode ser aceita sob a condição de uma total
simplificação dos fatos históricos. Vimos, aliás, que tal
concepção mecanicista foi responsável por alguns
percalços da futurologia. No caso do Brasil, depois do
arranco razoavelmente identificado em torno dos anos
50, houve excelentes taxas de crescimento seguidas de
um curto período de estagnação ou até retrocesso
(1961/1966). Depois de um período brilhante
(1967/1973), houve altos e baixos com períodos
recessivos em 1981/83 e na passagem da penúltima para
a última década do século. Certos casos históricos
mostram até que a queda do crescimento pode
desembocar num verdadeiro colapso.
Evidentemente, num horizonte livre de surpresas,
internas ou externas, uma vez ocorrido o arranco, cria m-
se condições para um desenvolvimento econômico
durável: expansão de alguns setores industriais
dinâmicos, maior capacidade de poupança e
investimento, mas sobretudo “a existência ou a rápida
eclosão de um arcabouço político, social e institucional”
(Rostow), o que permite falar-se em desenvolvimento
regular, uma situação normal ou bem “um progresso
419
420
continuado, embora flutuante” (idem).
Entretanto, as surpresas são inevitáveis e em
nossos tempos houve a oportunidade de se verificar as
possibilidades de reversão das tendências de
crescimento e de que a noção de desenvolvimento auto -
sustentado é válida apenas rebus isc stantibus.
Atendo-nos apenas ao último quarto de século,
assinalamos que a tranqüila marcha do desenvolvimento
econômico foi interrompida por fatores externos
adversos: os choques do petróleo e o colapso do
mercado financeiro internacional (1981/1983).
Estes últimos eventos ensejaram a retomada da
idéia escapista de que a responsabilidade dos males
recai sempre em cima do estrangeiro – o que seria um
argumento a favor do fechamento da economia nacional.
Entretanto os períodos recessivos no fim dos anos
80 e início dos 90 demonstraram que a auto-sustentação
do desenvolvimento constitui um engodo quando entram
em crise as condições políticas, sociais e institucionais
que ensejaram o arranco e seu desdobramento. Nos anos
60 começou a se sofisticar a idéia do desenvolvimento:
abandonada a fórmula simples do binômio “trans -
porte/energia” começou a se pensar num esquema
correto, baseado em poupança e trabalho, talvez com
maior ênfase na poupança, de vez que o trabalho era
considerado uma condição óbvia. Foi a essência do
modelo Harrod-Domar adotado como instrumento de
análise do PAEG de 1964.
Já no Plano Decenal de 1966 que se limitou a um
exercício macroeconômico sem ser implementado, a
420
421
adoção do modelo Cobb-Douglas implicava na
introdução de fatores institucionais mais complexos.
Entretanto, a tendência mais característica da época foi
no sentido de colocar maior acento nos recursos
humanos e na educação, como parâmetros básicos do
desenvolvimento econômico. A ênfase era certíssima,
contudo parece que a educação foi pensada mais em
ternos quantitativos e, quando qualitativos, apenas sob o
ângulo do preparo tecnológico. De fato, o sucesso
econômico exige transformações culturais mais
profundas e as idéias evoluíram no sentido de que são
necessários esforços por uma mudança qualitativa da
sociedade, cuidando de outros aspectos como
racionalidade, responsabilidade, solidariedade. Os
fracassos da década perdida causaram uma certa
perplexidade, pois não parecia explicável a fraca
performance da economia brasileira quando não era
mais lícito responsabilizar por isso a conjuntura
internacional, já normalizada da segunda metade da
década de 80. Houve um certo despertar – talvez ainda
muito frágil.

***

Observou-se corretamente que uma explicação da


desaceleração do crescimento se encontraria na queda
das taxas de poupança e investimento. Mas por que
aconteceu tudo isso? O problema mereceria uma analise
mais pormenorizada que ultrapassa as pretensões e
dimensões destes comentários. Mas dentro do objetivo
421
422
mais limitado de historiar as mudanças de opinião e
conceitos, parece-me que cada vez mais, a sociedade
entendeu ser o desenvolvimento econômico em grande
medida um problema político, não apenas no sentido de
políticas econômicas governamentais, mas de maneira
mais ampla no que tange ao funcionamento das
instituições, à regulamentação e ordenação da economia,
como também à confiança do corpo social, Pode-se dizer
que se perdeu de certo modo a miragem da inexo -
rabilidade do desenvolvimento. Afinal de contas, isto
pode ter contribuído para uma idéia mais objetiva, mais
madura do processo.

***

Dentro das teorias e opiniões ligadas ao mesmo


problema, os anos 60, no liminar do quarto de século
aqui focalizado, presenciaram a controvérsia em torno
do binômio inflação/desenvolvimento. Durante algum
tempo foram bem recebidas as teses estruturalistas que
redimiam a inflação: ela constituiria um instrumento
desenvolvimentista através do mecanismo da poupança
forçada ou seria um processo inevitável devido aos
estrangulamentos setoriais provocados pelo próprio
crescimento. Alternativamente, ela representaria uma
fatalidade histórica ligada às estruturas econômicas dos
países subdesenvolvidos. Mesmo um economista
ortodoxo pôde afirmar, na época, com o consenso de
muitos outros, que “inflações pequenas, descontínuas e
de curta duração podem ser usadas para redistribuir
422
423
recursos na direção dos investimentos’. (Roberto
Campos).
Essa visão algo pacífica da inflação decorria
também da constatação empírica de que o
desenvolvimento tem podido conviver com a inflação.
Com efeito, a economia brasileira cresceu ao longo de
sua vida independente dentro de um ambiente
inflacionário crônico. Mesmo nos períodos de maior
crescimento econômico a inflação persistiu: em torno da
média anual de 17% nos anos 1950/58, mas subindo
para 35-40% no fim dos anos 50 e para mais no início
da década seguinte, até na fase brilhante do “milagre
brasileiro” nos anos 1967/1973, quando caiu de 80%
para 15% anuais. A excelente performance econômica
nesta fase, num ambiente desinflacionário, conseguiu
por algum tempo criar na opinião pública uma
mentalidade de repúdio à inflação. Na época observava -
se que a inflação podia apenas “criar um clima eufórico
de vendas, nominalmente elevadas e propensão para
consumo” e que ela constituía tão-somente “um ingre-
diente artificial para infundir otimismo e euforia entre
investidores e consumidores” (E. Galvêas).
Outrossim, as teses estruturalistas perderam seu
prestígio anterior, seja por causa das falhas da
argumentação, seja por causa da inconveniência de suas
conclusões.
Essa visão, válida para as “pequenas” inflações e
sob a condição de não funcionar o mecanismo auto -
propulsor da inflação, se esvaeceu com as inflações
galopantes dos anos 80. A aceitação benevolente da
423
424
inflação começou a ser abalada já depois do primeiro
choque do petróleo, quando os preços subiram desde
16% ao ano (1973) até 46% (1976). Com o segundo
choque do petróleo e os desacertos da política
antiinflacionária, a taxa da inflação chegou a 110% em
1980 e, com pequenas flutuações, continuou subindo até
241% em 1985. Os vários planos de combate (Cruzado I
e II, Bresser Pereira, Verão, Collor) contribuíram ape nas
para dar certas freagens, mas também para comprovar a
resistência do processo. O espírito inflacionária firmou -
se dentro da sociedade.
Depois da fase algo eufórica da convivência, veio
com maior vigor a oposição aos males evidentes da
inflação galopante ou da hiperinflação, se assim devia
ou não ser chamada a inflação de 40% ao mês em fins
de 1989 ou de 70/80% em início de 1990: parece mais
uma questão semântica. Porém, era cada vez mais difícil
louvar as virtudes da inflação desenvolvimentista ou
propiciadora de poupança forçada. O que todo mundo
via era a fuga para aplicações especulativas, a ciranda
financeira, a retração dos investimentos, a saída dos
capitais – um processo perverso e insuportável de
redistribuição da renda, bem como políticas antiin -
flacionárias insuficientes e mesmo contraditórias. Isso
resultou em atitudes individualistas de defesa, per -
petuadoras do processo. A cultura inflacionária chegou
ao seu auge. E era difícil a opinião pública aceitar
teorias pró-inflacionárias.

***
424
425

Entre os instrumentos oficiais de defesa contra os


efeitos da inflação colocou-se em primeiro lugar a
correção monetária ou indexação. A atitude coletiva em
relação a esta variou também. No início e durante todo o
período em que a correção acompanhou a marcha
descendente da inflação, ela foi bem vista como um
meio de coexistência pacífica. Entretanto, com o
recrudescimento da inflação e sua renitência, a
indexação começou a ser considerada “la bête noire” do
processo – o mecanismo de realimentação indefinida da
tendência altista.
As altas crescentes de preços tornaram mais
acentuados os procedimentos – de caráter público ou
privado, setoriais ou generalizados – de correção dos
preços e dos rendimentos para seu alinhamento, o qual
nunca chega a se realizar na falta de uma operação
drástica e dolorosa sobre as fontes inflacionárias.
Assim, a indexação voltou com todo o seu falso
prestígio. Ademais, isso contribuiu novamente para uma
certa aceitação passiva do processo inflacionário.
As políticas antiinflacionárias ressentiram-se da
marcha imprevista e às vezes irresistível da inflação,
bem como das atitudes da sociedade por ela provocadas.
A bem sucedida política ortodoxa implementada em
1964/73 que deu pouco crédito às idéias estruturalistas
agitadas naqueles tempos, responsabilizou pela inflação
o déficit orçamentário, a expansão monetária e creditícia
e os excessos salariais. As medidas governamentais
visaram esses parâmetros e a opinião pública se
425
426
convenceu do acerto de tal diagnóstico e da política daí
decorrente.
Os choques externos da década de 70 e início de
80 abalaram em parte a confiança na ortodoxia, mas esta
dominou ainda até meados da década de 80, quando em
face da escalada irresistível dos preços, foram lançados
novos diagnósticos e ensaiados novos remédios
(baseados na teoria da inflação inercial) com êxito
apenas passageiro. Firmou-se entretanto, cada vez mais,
a convicção de que o grande responsável era o déficit
público e a perplexidade foi grande, mais tarde, quando
a redução deste déficit não teve forte impacto sobre a
marcha da inflação. Para esta contribuía toda a
sociedade, como tentei argumentar numa palestra aqui
apresentada no ano passado.
Parece finalmente que a opinião mais
generalizada é de que a inflação constitui um problema
político num sentido não apenas limitado à atividade do
poder público, mas também num sentido mais amplo,
compreendendo fatores sociais, culturais e psicológicos,
e que conseqüentemente exige uma solução política.
Como no caso do problema do desenvolvimento, a visão
estritamente econômica perdeu do seu rigor em favor de
uma concepção globalista, sócio-política.

***

Um problema que preocupou constantemente a


opinião pública e os meios acadêmicos foi o da posição
e das dimensões do Estado dentro da economia.
426
427
Obviamente as idéias a este respeito evoluíram nos
últimos 25 anos, mas, a meu ver, nem tanto quanto se
declarou ou se desejou. É verdade que já tinha passado o
tempo do ideal autárquico proclamado nos tempos
difíceis após a Grande Depressão e durante a Segunda
Guerra Mundial. Não obstante, o ímpeto da atividade
econômica estatal persistiu, por inércia ou por falta de
alternativa eficiente. Os estuturalistas até quiseram dar
uma justificativa teórica – de fato bastante falaciosa:
diziam que uma vez esgotado o modelo exportador de
produtos primários e o de substituição de importações, o
dinamismo da economia só poderia proceder de uma
intensificação da ação do Estado, em termos de
investimentos, produção e direção. O sofisma consistia
na troca das premissas.
Mesmo não levando em conta os interesses
ligados ao processo de estatização e à burocracia, o
estatismo encontrou um respaldo no intuito de
racionalização econômica através do planejamento. Foi
a época do pós-guerra quando os aparentes sucessos
políticos e econômicos da União Soviética conferiram
um brilho supostamente inegável ao sistema de
planificação centralizada.
A profissão de fé liberal, implícita nos anos 40 e
50, passou a receber o tratamento de dogma fundamental
a partir de 1964. Como tive a oportunidade de
mencionar numa palestra anterior, os planos econômicos
governamentais insistiram enfaticamente durante mais
de 20 anos na implantação de um modelo econômico
baseado no mercado e na empresa privada, embora
427
428
admitindo a necessidade da presença do Estado n a
economia, sob a condição de definir e delimitar sua área
de ação. Foi um período de “fúria planejadora” pelo
menos até 1980, portanto de aumento do dirigismo, de
regulamentação administrativa e da criação de
instrumentos burocráticos.
A euforia em torno do planejamento, como
reflexo dos bons resultados atingidos durante o “milagre
brasileiro” foi sucedida por uma certa decepção quando
nos anos 80 a performance econômica começou a
deteriorar-se demonstrando que, em face dos fatores
aleatórios externos e internos, a atividade planejadora e
reguladora do Estado não é suficiente. Ainda mais, a
expansão do setor público conduziu de forma visível à
redução da eficiência, ao emperramento burocrático, à
politização da economia.
Já falei aqui em outra oportunidade sobre o
arrefecimento da atividade planejadora desde o fim dos
anos 70. Não obstante, a presença do Estado na
economia continuou muito forte, propiciando dento da
opinião pública críticas ao modelo intervencionista.
Essa posição crítica foi alimentada também pela onde
liberalizante prevalecente em várias regiões do mundo,
inclusive na área socialista, onde Gorbachev continuou a
obra de Kruschev de destruição dos antigos mitos
leninistas/stalinistas.
O governo instalado em 1990 enfatizou sua
profissão de fé liberalizante no meio de dificuldades
cuja exposição ultrapassaria os limites cronológicos
desta palestra. De fato, se é lícito falar numa corrente
428
429
liberalizante, não devem ser subestimadas as resistência
ideológicas estatizantes e socializantes. Essa dic otomia
contraproducente se materializou nas contradições da
Constituição de 1988. De onde vêm essas resistências?
Seria outro estudo mais amplo a ser feito. Eu apontaria
um primeiro lugar, para a vitalidade dos mitos,
refletindo comportamentos irracionais da sociedade:
apesar dos fracassos políticos e econômicos do modelo
soviético e do seu respaldo ideológico marxista, muitos
ainda não conseguem abandonar as ilusões com que
foram alimentadas durante decênios. Apontaria também
para as tradições de populismo e paternalismo, ainda
conservadas em várias camadas da população e
renovadas com propósitos demagógicos. Finalmente, há
as resistências procedentes dos interesses da burocracia
que luta pela defesa de suas prerrogativas. Mais uma vez
o problema é basicamente político.

***

É ponto pacífico que o início do quarto de século


aqui focalizado assistiu a uma radical mudança no
modelo econômico brasileiro no que tange ao setor
externo. Passou-se de um modelo fechado, introvertido,
para um modelo aberto, extrovertido, em que merece
maior atenção o intercâmbio comercial e financeiro com
o exterior. Essa mudança de posição foi aparentemente
tranqüila, mas não deixou de provocar controvérsias.
Sem dúvida, antes de 1965 ou mesmo desde o fim
da Segunda Guerra Mundial, ocorrera uma mudança na
429
430
política econômica em comparação com o período
posterior à Grande Depressão, quando por motivos bem
conhecidos houve uma ruptura do sistema econômico
internacional. Políticas econômicas nacionais, defen -
sivas e eventualmente agressivas, haviam provocado o
estancamento, do comércio internacional com a pre -
valência da filosofia autárquica – fonte de tensões que
contribuíram para a explosão bélica final.
O triunfo das potências liberais que se esforçaram
por reorganizar a economia mundial no pós-guerra,
propiciou uma recomposição do sistema econômico
internacional, fundamentado nos princípios do libera -
lismo econômico e da cooperação internacional.
O Brasil integrou-se naturalmente na nova ordem
internacional, adotando uma postura libe ral, embora
subsistissem resistências protecionistas, nacionalistas,
às vezes chauvinistas, bem como a ilusão da solução
autárquica. Tal filosofia marginalizava de certa maneira
o comércio exterior, embora a própria substituição de
importações implicasse na abertura para o exterior para
ser possível absorver capitais, tecnologia e
equipamentos necessários ao processo substitutivo. O
fato é que houve uma verdadeira estagnação das
exportações e dos coeficientes de comércio exterior.
Entretanto, não foi desprezada a entrada de capitais
estrangeiros seja sob forma de empréstimos ou de
capitais de risco (v. sobretudo a Instrução nº 113/1955
da SUMOC) , pelo menos até 1962 quando prevaleceram
algumas idéias xenófobas (v. Lei nº 4131/1962).
Uma sensível mudança veio a partir de 1964
430
431
quando, aparentemente com a adesão da opinião pública
e de boa parte dos círculos acadêmicos, o governo
adotou de forma explícita um modelo econômico aberto.
A idéia era de acelerar e melhorar qualitativamente o
desenvolvimento econômico através da integração
maciça de poupança externa, tecnologia e equipamentos.
E para as necessidades da importação e do serviço de
capitais era imprescindível incrementar as exportações,
o que foi feito primordialmente através de uma política
cambial realista e do sistema de incentivos fiscais e
creditícios. Aliás, a característica do modelo foi esse
interesse pela expansão das exportações. Uns 15 anos
depois, o III PND enfatizou mais o papel estratégico das
exportações, não apenas como respaldo do balanço de
pagamentos que na época há havia começado a
apresentar graves problemas, mas também como fonte
de renda e emprego e como instrumento redistributivo
da renda regional e pessoal.
O coeficiente de exportação chegou à média de
9,2 em 1980/84 e o de importação a 7,9 (em 1960/64,
4,5 e 6,0 respectivamente). Em valores constantes a
média anual das exportações cresceu 655% e a das
importações 586% entre 1960/64 e 1980/84.
Num ambiente internacional favorável, o modelo
foi um sucesso, contribuindo para fortalecer a posição
dos seus partidários.

***

Evidentemente o modelo aberto não estava


431
432
desprovido de riscos, de vez que era sensível às
eventuais perturbações da economia internacional. De
fato, a década de 70 foi profundamente abalada pelos
dois choques do petróleo, que afetaram em diversas
proporções tanto os países em desenvolvimento como os
industrializados, tanto os países do mundo ocidental
como os do bloco socialista, estes supostamente mais
estanques em relação ao exterior.
Como indicador expressivo pode-se mencionar a
evolução do PIB dos países industrializados, a qual
acusou queda em 1974/75, se redirecionou em 1976/79 e
voltou a se desacelerar 1980/82. Por outro lado
verificou-se uma queda no volume do comércio
internacional: também entre os países industrializados,
em 1980/82, as importações acusaram queda anual
média de 0,5% e as exportações um modesto aumento de
3,1% ao ano, contra crescimento de 6,8% e 6,4%
respectivamente no biênio anterior.
Obviamente, os países em desenvolvimento, com
menor capacidade de resistência, sofreram mais. Para
compensar as graves restrições impostas aos seus
balanços de pagamento tiveram que se submeter a um
perigoso processo de endividamento externo, de modo
que a dívida externa bruta desses países subiu de US$
96,8 bilhões em 1973 para US$ 505,2 bilhões em 1982 –
um crescimento de 5,2 vezes em 10 anos. A crise fi -
nanceira internacional de 1981/83 agravou substancial -
mente a situação.
O Brasil não constituiu de forma geral uma
exceção nessa degringolada generalizada. Sem entrar em
432
433
detalhes que foram melhor expostos e analisados por
outros (v. Galvêas), citarei apenas poucos números: o
déficit acumulado da balança comercial foi de US$ 27,5
bilhões em 1974/80, com uma exportação anual média
de US$ 12,4 bilhões e importação de US$ 16,3 bilhões.
Aproveitando, entre 1973 e 1980, a boa posição
dos juros internacionais, às vezes negativos em termos
reais, o Brasil optou por uma política de sustentação do
desenvolvimento econômico através do endividamento
externo. Realmente assim foi possível garantir taxas
razoáveis de crescimento do PIB (entre um mínimo
anual de 4,9% e um máximo de 10,3%). A dívida
externa cresceu, e com a escalada dos juros inter -
nacionais após 1979 e o colapso do sistema financeiro
internacional, a situação se tornou intolerável: a dívida
externa que em 1979 era de US$ 49,9 bilhões, atingiu
US$ 107,5 bilhões em 1987. Ademais as restrições
externas, como já vimos, provocaram a queda brutal da
taxa de crescimento econômico: em 1981/83 o PIB
registrou uma redução de quase 8%.
O desenrolar inesperado dos acontecimentos
externos forneceu argumentos aos críticos da política
adotada de crescimento econômico lastreado pelo endi -
vidamento externo. Tudo isso resultou num certo
desencantamento com o modelo aberto, sem contu do
firmar-se uma alternativa válida nos meios acadêmicos
ou mesmo na opinião pública em geral.

***

433
434
Vale finalmente lembrar que durante muito tempo
prevaleceu uma teoria que conferia ao setor externo um
papel positivo, propiciador da industrialização e do
desenvolvimento, porém, pode-se dizer, às avessas: a
deterioração do mercado internacional favoreceria o
crescimento da indústria nacional como se fosse graças
a uma proteção compulsória. Esta “teoria dos choques
externos” iniciada por um comentário de Hannibal Porto
(1992) e reforçada pela autoridade de Roberto
Simonsen, rezava que os grandes momentos de
interrupção do intercâmbio mundial – a Primeira Guerra
Mundial, a Grande Depressão e a Segunda Guerra
Mundial – agiram favoravelmente, induzindo os empre-
sários a proceder a investimentos industriais substi -
tutivos das importações afetadas pela conjuntura externa
adversa.
Ocorreu aí também uma reação que questionou
fortemente essa visão e considerou a ruptura no sistema
internacional como especialmente prejudicial, pelo
menos a curto prazo. Contrariando posições acadêmicas
bastante enraizadas, aquele questionamento pela cor -
rente revisionista referiu-se tanto à Primeira Guerra
Mundial (Warren Dean, como à Grande Depressão
(Carlos Manuel Peláez) e à Segunda Guerra Mundial
(Mircea Buescu). Ulteriormente o revisionismo tornou -
se mais maleável, reconhecendo que os choques ex -
ternos podem ser tido reflexos positivos a prazo mais
longo. Isto é, o impacto do choque externo provocara
novas atitudes empresariais que iriam frutificar após a
normalização do cenário internacional.
434
435
É interessante que a tese dos choques externos
ressuscitou depois do segundo choque do petróleo, no II
PND, talvez por necessidades estratégicas. (O II PND
fala em desequilíbrios devidos à alteração das relações
econômicas internacionais, porém “no momento
seguinte” a reorientação adequada da política econômica
“transformou o desafio internacional em fator de
dinamização do crescimento”). Interpretou-se aí a crise
do petróleo, portanto, como um estímulo, um desafio
que exigiu uma resposta positiva da economia nacional,
como por exemplo no grande programa do Pró-Álcool e
nos esforços de substituição de importações de bens de
capital.
Entretanto a capacidade de resposta era bem
diferente da prevalecente nos choques anteriores. Nos
anos 70 o Brasil já dispunha de capacidade industrial e
tecnológica que permitia a resposta positiva. Ademais,
salvo por pouco tempo, o sistema internacional
continuou funcionando com eficiência, logo a ruptura
não era tão rigorosa. Pode-se dizer, de modo geral, que
as mazelas sofridas nos anos 80 afastaram todas as
simpatias pelos “choques externos”.

***

Inevitavelmente, foram abrangidas nesta


despretenciosa comunicação apenas algumas opiniões e
teorias certas ou erradas, que alcançaram relativo
sucesso no último quarto de século. Espero contudo que
o apanhado apresentado tenha podido dar uma noção da
435
436
fugacidade das idéias econômicas, o que, afinal de
contas, caracteriza todos os empreendimentos humanos.
O ensinamento da História é que devemos ser muito
precautos e circunspectos em face da voga temporária
de certas opiniões e teorias, inclusive quando adotadas
nos mais acadêmicos ou agitadas nos discursos
políticos.
Sem dúvida, os problemas aqui abordados exigi -
ram análises mais aprofundadas, para isso, a palestra
precisava dispor de mais tempo, o autor da mais
competência e o auditório mais paciência.

Palestra proferida em 12 de março de 1992.

BIBLIOGRAFIA

BUESCU, Mircea. Guerra e Desenvolvimento. 1976.

CAMPOS, Roberto de Oliveira. A teoria do Colapso. 1966.

DEAN, Warren. A Industrialização de São Paulo . 1971.

GALVÊAS, Ernane. Brasil: Economia aberta ou fechada? 1982.

GALVÊAS, Ernane. A Crise do Petróleo. 1985.

LANGONI, Carlos Geraldo. A Economia da Transformação. 1975.

PELÁEZ, Carlos Manuel. História da Industrialização do Brasil.


1972.

436
437
SIMONSEN, Mário Henrique. Brasil 2001. 1969.

SIMONSEN, Mário Henrique. Brasil 2002. 1974.

VELLOSO, João Paulo dos Reis. A Solução Positiva. 1978.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 37(444): 49-58,


Março 1992).

437
438

CAPITAIS ESTRANGEIROS
(Um debate no Conselho Técnico)

O presente trabalho comenta algumas palestras


proferidas entre 1955 e 1958 no Conselho Técnico da
Confederação Nacional do Comércio e publicadas n a
Carta Mensal. Elas foram reunidas, junto com outras
palestras, num volume sob o título Problemas Econô-
micos e Financeiros (1958). Escolhi os debates em torno
dos capitais estrangeiros por constituírem um capítulo
expressivo na história das idéias econômicas no Brasil,
representando também um testemunho da atuação do
Conselho Técnico na difusão e discussão daquelas
idéias.

***

Para melhor compreensão das posições assumi -


das, parece-me oportuno lembrar inicialmente, de modo
sucinto, o ambiente histórico e ideológico, no âmbito
nacional e internacional, no momento em que se
processaram os debates.
A conjuntura internacional naqueles anos
posteriores de apenas uma década ao fim da Segunda
Guerra Mundial (1), foi dominada pelo programa da
reconstrução após os danos da guerra e pelo problema
do desenvolvimento, tornado este assunto de premente
438
439
atualidade em decorrência da liberação das antigas
colônias (“O Grande Despertar” – na expressão de
Gunnar Myrdal). Isso exigiu uma forte mobilização de
capital em dimensões planetárias, o que determinou a
organização do Banco Internacional de Reconstrução e
Desenvolvimento (BIRD). Assim, vê-se que o problema
debatido no Conselho Técnico era de incontestável
relevância.
As soluções estavam dificultadas pelos desequilí -
brios monetários e cambiais (para cuja solução havia
sido criado o Fundo Monetário Internacional),
acentuados pela escassez de dólares (the dollar gap) –
sinal da discrepância entre a penúria no mundo e a
posição preponderante dos Estados Unidos. A
paralisação do sistema internacional e as dificuldades
comerciais e cambiais tornaram preocupante o problema
do balanço de pagamentos, preocupação essa que se
revelará nos debates em pauta.
Por outro lado, os desequilíbrios monetários pro-
vocados pela guerra e persistentes no pós-guerra colo-
caram na berlinda o problema da inflação, espectro
ameaçador ressuscitado pelas experiências infelizes de
certos países europeus. De qualquer forma, a fim de
compreender o ambiente ideológico, é bom não esquecer
que a idéia dominante era a do liberalismo e do multila-
teralismo econômico, em oposição às políticas autárquicas
praticadas no período entre a Grande Depressão e a
Segunda Guerra Mundial. Tal universalismo enfrentava
ainda os obstáculos criados pelo nacionalismo renitente
bem como pela posição contestatória assumida pelo
439
440
comunismo agora vitorioso ao lado dos aliados ocidentais.
Essas tendências poderão ser descobertas em intensidades
variadas no confronto de idéias de que vamos tratar.

***

O ambiente nacional era também de euforia,


decorrente da paz externa e da renovação política interna,
com a volta para um regime liberal democrático. O Brasil
queria abrir-se ao fluxo internacional de mercadorias e
capitais (2). Entretanto, os vestígios das políticas
anteriores subsistiram durante a presidência Vargas e
exacerbou-se um nacionalismo econômico, tal como se
manifestou na campanha “O Petróleo é nosso” (3). O
conflito chegou finalmente a uma solução de compromisso
com a lei 2004/1953 que criou a Petrobrás (4).
A política econômica tornou-se mais liberal
durante o governo Kubitschek, mas teve que enfrentar
ainda as resistências nacionalistas de franca oposição à
colaboração dos capitais estrangeiros (5). As
dificuldades ligadas ao setor externo persistiram (6),
mas de forma geral foi adotada uma atitude assaz
equilibrada no concernente aos capitais estrangeiros (7).
A reação nacionalista antiliberal iria explodir apenas
mais tarde durante a curta presidência Goulart.

***

Entre os depoimentos aqui analisados vem em


primeiro lugar o relato feito por Glycon de Paiva (1955)
440
441
sobre os debates ocorridos em Washington na reunião
dos governadores do FMI e do BIRD. Dispensarei aqui
as opiniões de vários participantes estrangeiros, limi -
tando-me à posição brasileira a cargo de Eugênio Gudin.
Seus comentários (complementados em palestras de
1957 e 1958) referem-se primeiro às limitações que po-
dem ocorrer aos fluxos de capitais do lado dos países
fornecedores ou recipientes. A contribuição positiva dos
capitais estrangeiros parece tão óbvia ao autor que não
exige maior demonstração. A formulação lapidar é dada
por Glycon de Paiva, citando as palavras pronunciadas
pelo delegado inglês na referida reunião internacional:
“Financiar desenvolvimento econômico sem lançar mão
do capital internacional é impor ao povo gravames e
restrições desnecessárias”. Segundo Gudin, salvo limita -
ções impostas para eliminar excessos e evitar processos
inflacionários, as possibilidades dos capitais estrangei -
ros são ilimitadas para propiciar “maior exportaç ão,
maior substituição de importações, maior produção
doméstica”. Não é de estranhar pois que Gudin censure
a reduzida contribuição dos países desenvolvidos no
fluxo de capitais em direção aos subdesenvolvidos.
Em outro documento Roberto Pinto de Souza
(1958) enumera os méritos da captação dos capitais
externos: adição à insuficiente capitalização interna,
aumento da capacidade de importar, absorção de
tecnologia mais avançada e eventual subsídio para o
equilíbrio no balanço de pagamentos. Mesmo Caio
Prado Jr. (1957), apesar de suas restrições – como
veremos mais adiante – reconhece pelo menos os
441
442
méritos do capital de financiamento, enquanto que “o
capital que cria aqui empresas subsidiárias é
prejudicial”. Nesta última ressalva difere frontalmente
de Gudin que prefere os investimentos por serem mais
eficientes do que os financiamentos e por acompa-
nharem a conjuntura.
Gudin, economista liberal ortodoxo (talvez
demasiadamente ortodoxo), coloca apenas algumas
condições racionais para o bom aproveitamento do
aporte estrangeiro: que não exceda uma certa proporção
do produto real (embora Gudin não considere o perigo
de desnacionalização da economia); que não tenha uma
aplicação ineficiente; que não provoque inflação (8).
Vê-se que restrições não são feitas ao processo em si de
participação de capitais estrangeiros, mas apenas ao
modus operandi – aos abusos ou desvios do correto
aproveitamento das fontes externas do capital. Gudin
assinala também os obstáculos a enfrentar pela abertura
aos capitais estrangeiros: a oposição dos que temem a
competição estrangeira e a dos círculos nacionalistas
xenófobos.
Disto tratarei mais adiante.
O debate em pauta concentrou-se entretanto em
grande parte ao problema do balanço de pagamentos,
isto é, ao desequilíbrio nele provocado pelo serviço dos
capitais estrangeiros, principalmente os de empréstimo.
Tal preocupação aparece eventualmente na posição do
próprio Gudin que, como bom ortodoxo, enfatizava o
equilíbrio das contas externas (e subsidiariamente –
outro dogma ortodoxo – o papel nefasto da inflação),
442
443
porém não ao ponto de rejeitar para tal o aporte
estrangeiro: teria sido uma incoerência (9). Sem negar a
eventualidade de desequilíbrios provocados pelo movi -
mento de capitais, Gudin ressalva que estes dese-
quilíbrios podem surgir de outras causas, principalmente
do que ele chama de “crises” da balança comercial. A
experiência dos anos recentes, com o choque do petróleo
e o abalo do sistema financeiro internacional, forneceria
uma comprovação da hipótese de Gudin.
Entretanto, os adversários, basicamente ideológi-
cos, dos capitais estrangeiros insistem de forma radical
nos desequilíbrios “inevitáveis” e crescentes por eles
provocados. Diz Caio Prado Júnior: “o apelo às
inversões estrangeiras cria encargos que acabam
superando aquilo que eles dão” – um sofisma, pois
compara a entrada única do capital com o fluxo de
encargos do capital sem levar em conta os custos
gerados por aquele capital”. (10).
Sem comprovação estatística, Prado declara que
“as remessas de lucros para exterior traze m prejuízos
para as importações” – mas isto pode acontecer por
causa da insuficiência das receitas cambiais. Pode -se
realmente criticar a política econômica da época por
uma certa incoerência: enquanto se liberava o mercado
de câmbio, não se tomavam medidas de incentivo às
exportações que ficaram estagnantes ou mesmo
decrescentes (v. quadro 1) – política mudada apenas em
1964. Gudin observou, como aliás se pode constatar do
referido quadro, que o serviço dos capitais tem peso
limitado na formação do balanço de pagamentos; as
443
444
amortizações tiveram peso maior mas afinal de contas
elas representavam uma redução da dependência em
relação àqueles capitais.

Quadro 1
Balanço de Pagamentos 1950/1959
Dados selecionados

(em US dólares milhões)


Balan-
Inves- Finan- Amor- Balanço
ça Expor-
Ano timen- cia- tiza- Juros Lucros de
comer- tação
tos mentos ção pagtos.
cial

1950 425 1359 3 28 -85 -27 -47 52


1951 68 1771 -4 38 -27 -20 -70 -291
1952 -286 1416 9 35 -33 -22 -14 -615
1953 424 1540 22 44 -46 -34 -93 16
1954 148 1558 11 109 -134 -48 -49 -203
1955 320 1419 43 84 -140 -35 -43 17
1956 437 1483 89 231 -187 -67 -24 194
1957 107 1392 143 319 -242 -67 -26 -180
1958 65 1244 110 373 -324 -58 -31 -253
1959 72 1282 124 439 -377 -91 -25 -154

Eram, portanto, altamente alarmistas as adver-


tências de Prado Júnior: “as novas inversões es -
trangeiras... trazem um elemento de agravamento do
desequilíbrio... um endividamento progressivo... implica
uma compressão de certas importações essenciais para a
própria sobrevivência da economia brasileira, como as
de equipamentos”. (11) Na realidade, tais perspectivas

444
445
negativas, algo demagógicas, não eram inevitáveis ou
implícitas na política de abertura. De fato, não se
efetivaram (12) a não ser muito mais tarde, nos anos
1970/80, em condições peculiares muito diferentes.
Prado Júnior acrescenta que os capitais entrados
“não criam automaticamente como antes os recursos
necessários para a liquidação internacional das
obrigações assumidas” – “como antes”, isto é, quando
os capitais se destinavam, à expansão das exportações,
fase que foi devidamente superada.

***

É bastante curioso que em grande parte a


discussão sobre os perigos e desvantagens da entrada de
capitais ficou concentrada prioritariamente sob o ângulo
do balanço de pagamentos, mas não faltaram reparos
num sentido diferente. Já na palestra de 1955 Gudin
observara que “os Estados Unidos não compreenderam o
caráter multiplicador do investimento internacional em
termos de emprego, produção, mercado de bens e
títulos” – colocando a discussão numa perspectiva mais
ampla, não limitada aos efeitos sobre o balanço de
pagamentos. Rejeitava em seguida explicitamente
aquela visão estreita: “Alguns imaginam que os únicos
investimentos bem fundados são aqueles que contribuem
para a melhoria do balanço de pagamentos do país re-
cipiente... investimentos existem que podem determinar
um excelente crescimento de atividade econômica e que
não representam qualquer ação direta sobre o balanço de
445
446
pagamentos”.
O argumento está repetido em outro trecho,
referindo-se desta vez aos financiamentos: “Quando um
empréstimo é concedido a um país subdesenvolvido
surgem condições novas de emprego, de incremento do
comércio, de expansão do mercado”... Este enfoque
diferente que permite uma avaliação global do aporte
dos capitais estrangeiros sou sumariamente definido por
Roberto Campos, durante o debate (1957). “Os efeitos
dos investimentos estrangeiros não devem ser consi -
derados à luz do balanço de pagamentos e sim da renda
nacional.” (13) Uma posição totalmente oposta à d e
Prado Júnior a qual, no desejo de desmoralizar o papel
dos capitais estrangeiros declara peremptoriamente que
“a questão de renda nacional não entra em jogo”.

***

A discussão não deixou de abordar o tema


polêmico, de caráter político/ideológico, representado
pelo nacionalismo como estorvo inevitável à entrada dos
capitais estrangeiros. De acordo com Gudin, a avaliação
lógica do problema é contaminada por “aspectos
irracionais” ligados a um “nacionalismo exclusivista...
um nacionalismo vesgo misto de jacobinismo e do
fantasma do imperialismo econômico e político”. Gudin
apressa-se em observar que o imperialismo dominante
do século XIX era na época do debate “defunto há mais
de trinta anos”. Entretanto, a insistência ideológica
devia sobreviver até os nossos dias.
446
447
A rejeição do estrangeiro pode se explicar
eventualmente, segundo Gudin, “por um complexo de
inferioridade que afasta a aproximação e a colaboração
do capital estrangeiro” – um verdadeiro medo da livre
competição. Ao mesmo tempo, uma concepção com-
partimentada da economia mundial, bem oposta à atual
globalização, particularmente acirrada quando se trata
da exploração das riquezas naturais (aí Gudin pensou
com certeza nos combates emocionais, na época, em
torno do “Petróleo é nosso”).
Havia, portanto, os opositores da colaboração
estrangeira, eventualmente sem uma manifestação
explícita contra o imperialismo, mas quase
evidentemente como rejeição do capitalismo e do
liberalismo econômico. O capital estrangeiro era visto
como o inimigo da economia nacional, um inimigo
abusivo e espoliador. Ele perseguiria apenas a obtenção
de benefícios para fora do país: “ele continua
permanentemente ligado à sua fonte”, diz Caio Prado,
referindo-se especificamente ao capital de investimento.
Em sua atuação dentro do território nacional, ele
praticaria atos abusivos sem benefícios para os
nacionais – prática em que “é de presumir que estejam
fortemente apadrinhados”, mais uma vez a tese
antiliberal da cumplicidade capitalista. Ainda mais, ele
atuaria “através da manipulação do mercado acu-
mulando lucros maiores”. O aumento da produção
basear-se-ia simplesmente num “consumo discriminado,
criado por uma hábil propaganda e por um sistema de
distribuição e venda muito perfeito”. O alvo era, na
447
448
época, a Coca-Cola, colocada na berlinda como caso
típico de uma infiltração estrangeira que não visava be -
nefícios para o povo brasileiro e seu bem-estar. O cunho
marxista da oposição aparece nitidamente quando Prado,
referindo-se de forma implícita ao processo da mais-
valia, declara que “esses empreendimentos (estran-
geiros) representam uma maneira de captar a maior
parcela do valor que se entrega ao consumidor”. (14) É
oportuno mencionar que tais afirmações não se apóiam
em nenhuma, ou muito vaga, evidência empírica.

***

O nacionalismo econômico e a xenofobia pre-


tendem colocar-se num plano mais objetivo quando aler-
tam sobre o perigo da desnacionalização da economia. O
vaticínio de Caio Prado é que “acabaremos tendo no
Brasil, nas indústrias, o que não passará de um aglo -
merado de subsidiárias e filiais de empresas estran-
geiras”. Como se trata de futurologia, a veri ficação
deveria ser procurada pelo autor na realidade estatística,
mas nenhum esforço está sendo feito neste sentido. E a
história não ia confirmar a previsão catastrófica. De
fato, uma vez admitida e procurada a entrada de capitais
estrangeiros de investimento, a desnacionalização não é
uma fatalidade, mas apenas função da política econô -
mica de amparo às empresas nacionais.
As críticas mais específicas no debate em pauta, a
respeito da desnacionalização, dirigiam-se à Instrução
113/1953, da SUMOC, que para acelerar o processo de
448
449
industrialização permitiu a entrada de equipamentos
industriais completos sem cobertura cambial. Segundo
uma dessas críticas (Roberto Pinto de Sousa – 1958)
esta facilidade oferecida ao investimento estrangeiro
traria além da sangria da remessa de lucros uma
concorrência nefasta ao capital nacional sem proteção,
nem permitiria a acumulação deste capital, enquanto que
as empresas estrangeiras nunca se nacionalizaram (o que
constitui também futurologia). A crítica passa para o
segundo plano os progressos que se obteriam em termos
de criação de emprego, crescimento da renda nacional,
substituição de importações, etc. (15).
Evidentemente não deve ser dispensada uma
política de defesa da indústria nacional e os críticos em
foco têm a desculpa de ter-se manifestado, em parte,
durante a vigência da tarifa aduaneira de 1934, que por
suas alíquotas específicas tinham se tornado totalmente
inócuas (a incidência média de 35% tinha caído para
2,3% em 1956). A situação mudou a partir da Lei 3244,
de 1957, que adotou alíquotas ad valorem, o que as
tornou imunes à inflação crescente.
Mas, mesmo antes, a economia nacional não
estava sem proteção: é suficiente lembrar os setores de
atividade reservados aos nacionais: navegação, minas e
energia, cabotagem, para citar apenas os principais.
Ademais, não era lícito falar em uma desnacionalização
da economia quando se olhava para a evidência
estatística (16) e, sobretudo, quando se verificava que os
setores estratégicos da economia eram ocupados pelas
empresas estatais (17): os liberais podiam deplorar um
449
450
excesso de estatização mas não se podia dizer que a
liberdade concedida aos capitais estrangeiros periclitava
o grau de autonomia da economia nacional. Entretanto,
os idiossincrasias existiam como continuam existindo, a
despeito dos apelos para a racionalidade econômica.
A controvérsia a respeito dos capitais estran -
geiros continuou nos anos subseqüentes, culminando
com o abalo produzido pela lei 4131/1963 sobre a
Petrobrás, altamente restritiva, até a sua alteração num
sentido liberal pela lei 4360/1964, que consagrou as
teses gloriosas no debate aqui comentado do Conselho
Técnico da Confederação Nacional do Comércio.

NOTAS

(1) A bibliografia é imensa. Entre os trabalhos acessíveis no


Brasil: M. Niveau. História dos Fatos Econômicos Contem -
porâneos. 1969.

(2) Após a guerra vingou a idéia de abandonar o isolacionismo


econômico (conf. John D. Wirth. A Política do Desenvolvimento
da Era de Vargas. 1973).

(3) “Surgiu um nacionalismo de cunho agressivo, a títulod e


réplica do nacionalismo que sempre existiu... Esse nacionalismo
caboclo passou a substituir certos conceitos de patriotismo lírico e
ingênuo.” (Herculano Borges da Fonseca, Regime Jurídico do
Capital Estrangeiro. 1963).

(4) A história do episódio, contada sob o ângulo da visão


nacionalista ou mesmo xenófoba, encontra -se em: Jesus Soares
Pereira. Petróleo, Energia Elétrica, Siderurgia. 1975.

(5) Assim formou-se uma Frente Parlamentar Nacionalista, “grupo

450
451
de pressão com uma plataforma nacionalista, que condenava o
imperialismo em geral e o capital estrangeiro em particular,
principalmente em matéria de petróleo e remessa de lucros”.
(Maria Victoria de Mesquita B enevides. O Governo Kubitschek.
1976).

(6) De acordo com a pesquisadora do assunto, os problemas


enfrentados pelo governo Kubitschek foram: o déficit do balanço
de pagamentos e a deterioração das relações de troca; os pontos de
estrangulamento; e a inflação. (Benevides, op. cit.).

(7) O marco foi a lei nº 1807/1953 que implantou o mercado livre


de câmbio com liberdade para o movimento dos capitais
estrangeiros. Uma exposição crítica do regime jurídico dos
capitais estrangeiros encontra-se em Fonseca, op. cit.

(8) O perigo da inflação era talvez um tanto exagerado por Gudin


dentro de sua ortodoxia, pelo menos nos padrões que iriam
imperar mais tarde. O índice geral de preço ao consumidor
registrou a seguinte evolução (em % ao ano):
1951 – 13,0 1955 – 22,5
1952 – 17,1 1956 – 23,0
1953 – 13,2 1957 – 21,3
1954 – 18,3 1958 – 13,7
As ligeiras e passageiras pressões para cima podiam, contudo,
preocupar um ortodoxo como Gudin.

(9) Uma colocação correta do problema encontra -se num texto


mais recente: “Feita a opção de acelerar o desenvolvimento
econômico utilizando maior parcela de financiamentos externos
não se trata mais de saber se a dívida externa do País crescerá ou
não... tudo o que se pode discutir é a forma pela qual se
administrará o crescimento dessa dívida.” (Ernane Galvêas,
Brasil: Economia Aberta ou Fechada? 1982). O argumento é
válido, em termos, para os capitais de investimento.

(10) Roberto Campos fez uma análise percuciente do problema


dos capitais estrangeiros num pequeno estudo – “Controle da
remessa de lucros e empresas estrangeiras” – incluído em:
Economia, Planejamento e Nacionalismo . 1963. Ele assinalou o
451
452
sofisma de comparar a remessa de rendimentos, que é um fluxo,
com a entrada de capitais que é uma adição de estoque,
sublinhando que não se deve exagerar a sua importância no
panorama mais amplo do balanço de pagamentos.

(11) Foi na época deste debate que o governo brasileiro iniciou


uma política de câmbios múltiplos com a Instrução nº 70/1953 da
SUMOC e a Lei nº 3244/1957, justamente para p roteger as im-
portações essenciais.

(12) A conta de capitais estrangeiros apresentou realmente um


saldo negativo de US$ 230 milhões em 1947/1953. Entretanto,
após a Lei nº 1807/1953 entre 1954 e 1960 o balanço tornou -se
positivo nos detalhes seguintes (em US$ milhões):
Empréstimos entradas: 3.047
amortização: -1.921
juros: - 467
saldo: 659
Investimentos entradas: 721
lucros remetidos: -269
saldo: 452
Saldo total: 1.111

(13) A idéia foi retomada no trabalho citado na nota (10) supra em


que Campos apresenta um quadro abrangente do ativo e do
passivo do movimento de capitais estrangeiros, em primeiro lugar
em relação à renda nacional e complementarmente ao balanço de
pagamentos.

(14) Em outra ocasião, Caio Prado tinha se mostrado mais


contundente – talvez o Conselho Técnico o tenha inibido! Referiu -
se então “à situação de dependência e subordinação orgânica e
funcional da economia brasileira com relação ao conjunto
internacional”. E precisando a idéia: “As inversões estrangeiras
são elementos de um sistema amplo e geral e a vida econômica do
Brasil é... função de contingências da luta de monopólios e grupos
financeiros internacionais concorrentes”; E dando o nome
específico ao processo: “o imperialismo atua como um poderoso
fator de exploração da riqueza natural”. Voltando para o problema
do balanço de pagamentos: “O capital internacional invadido no
452
453
Brasil representa um importante fator de desequilíbrio das contas
externas e déficits crônicos.” ( História Econômica do Brasil.
1960).

(15) É oportuno lembrar que entre 1955 e 1959 a indústria de


material de transporte, a principal beneficiária da Instrução 113,
acusou um crescimento de 393%, enquanto a indústria em geral
não passou de 47%.

(16) Contrariamente às previsões pessimistas dos adversá rios dos


capitais estrangeiros, a participação destes na economia nacional,
embora tenha aumentado, não chegou a ter uma posição pre -
ponderante. De acordo com o levantamento feito em 1974 a
participação no valor das vendas totais das 5.113 maiores em -
presas do País desdobrava-se da forma seguinte: Governo: 16,1%;
empresas privadas: 55,8%; empresas estrangeiras: 28,1%.

(17) “O governo praticamente controla o sistema financeiro e


cambial, os transportes e as comunicações, bem como a energia e
a indústria de base, tornando mais forte ainda o Poder Nacional.”
(Galvêas, op. cit.). Muito recentemente, a participação do
Governo na economia está em vias de se modificar, porém sem
perder o controle.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 43(508): 17-26,


Julho 1997).

453
454

NOTAS HISTÓRICAS SOBRE IMPERIALISMO,


DEPENDÊNCIA E DOMINAÇÃO

Os acontecimentos ocorridos no mundo


comunista em torno do ano 1990 foram uma verdadeira
explosão, uma mudança antes impensável mesmo em
tempos que Galbraith judiciosamente qualifico u como
“a era da incerteza”. É verdade que sinais de
transformação vinham de mais longe, pois as próprias
revoluções não surgem ex nihilo, mas sim, seguem uma
certa lógica evolucionista.
As conseqüências dessa explosão não são ainda
bem definidas. Por enquanto, pode-se lembrar
resumidamente os traços imediatos da mudança: o
desmoronamento do império soviético, inclusive dentro
das fronteiras da antiga União; o fracasso do modelo de
planificação econômica centralizada, antes considerado
verdadeira panacéia; finalmente, a desmoralização do
arcabouço ideológico marxista-leninista.
A propósito deste último ponto pôde-se ler, nos
comentários ocidentais afirmações como: “o marxismo
ocupa agora um lugar secundário no pensamento
ocidental” (Le Nouvel Etat du Monde, 1991). Ou ainda:
“Como força ideológica, a idéia de uma superioridade
econômica (ainda que virtual) do socialismo pareceu
definhar definitivamente durante os anos 80.” (ibidem).
Por outro lado, Henry Kissinger, numa recente palestra
no Brasil, aludiu ao desmoronamento do comunismo
como movimento político (Centro de Economia Mundial
454
455
– FGV, 1992).
Essa avaliação parece precipitada. A força e a
inércia dos mitos, depois da longa propaganda a favor
do socialismo e comunismo são capazes de garantir
maior longevidade às suas propostas político-econômi-
cas a despeito de sua derrota. Além do mais, a
existência da pobreza e da miséria, da má distribuição
da renda, e de outras injustiças sociais favorecem o
fascínio exercido pelas propostas utópicas do socialismo
que, nas palavras de Schumpeter, “promete o paraíso no
mundo real”.
Obviamente, depois do que aconteceu no “paraíso
comunista” os seus partidários considerariam impru -
dente sustentar uma defesa explícita e direta do
comunismo. Prefere-se insistir na crítica do capitalismo
e do liberalismo sob os títulos de imperialismo, colo -
nialismo e outros males supostamente comprovados: é a
defesa indireta do mito.
Esse empenho em salvá-lo a todo custo constitui
prática tradicional: a versatilidade da defesa do dogma e
os subterfúgios nela usados podem ser identificados ao
longo dos anos. Partindo dessas indicações, a presente
palestra quer apontar alguns usos e abusos de conceitos
como imperialismo ou colonialismo, e finalmente tentar
encontrar um caminho mais objetivo, neutro, para
definir as situações evocadas pelos conceitos
mencionados. Naturalmente, analisar em profundidade
todos esses conceitos seria tarefa incompatível com as
limitações de tempo da palestra e de competência do
autor.
455
456

***

Um dos temas mais repetidos entre os nossos


historiadores marxistas-leninistas em suas publicações e
pronunciamentos é o imperialismo: o termo aparece ad
nauseam, às vezes graças ao seu matiz dramático, mas
não forçosamente dentro do esquema rigoroso de Lênin,
a saber: a fase final do capitalismo quando seus agentes
buscam novos mercados a fim de salvar mais-valia e, no
limite, chega a práticas realmente imperiais: intervenção
na política interna, aplicação da força, a guerra e a
conquista colonial. Mais adiante abordarei algumas
críticas feitas a essa teoria, nas palavras de analistas
competentes.
Por enquanto, quero sublinhar o caráter nega -
tivista, contestatório das teses dos seguidores marxistas,
empenhados em condenar a todo custo o capitalismo
pelas suas práticas espoliatórias. Os termos são
aplicados indiscriminadamente, misturando o imperia -
lismo com o colonialismo, dentro da ofensiva ideológica
exercida pela inteligentsia esquerdista. Há sinais claros
de que tais investidas vão se perpetuar apesar da crise
do comunismo – ou talvez melhor: devido à crise do
comunismo, como uma reação de defesa dos mitos.
A crítica se estende a todo o sistema comercial e
financeiro internacional, visto como um instrumento de
exploração e espoliação. É suficiente observar o
desprezo com que os historiadores marxistas tratam
aquele sistema a despeito das vantagens por ele
456
457
proporcionadas tanto aos países mais desenvolvidos
quanto aos mais atrasados, como se esclareceu desde os
tempos de Ricardo, e como se verificou, por cima de
inevitáveis percalços, ao longe de dois séculos de
liberalismo.
Para aqueles historiadores, o mercado interna-
cional não passou de um “ingrediente” da conquista
econômica. O seu efeito se resumiria a uma relação de
submissão da economia nacional aos interesses externos,
considerados conjuntamente, sem nenhuma discrimi-
nação mais criteriosa. O sistema internacional é definido
lapidarmente como “uma situação de dependência e su -
bordinação orgânica e funcional da economia brasileira
com relação ao conjunto internacional”, (Prado J r.) –
sem nenhuma referência à idéia de cooperação e
interdependência, ou de vantagens recíprocas.
Esse silêncio é característico entre muitos
historiadores “revisionistas” da história econômica do
Brasil que procuraram originalidade condenando o
modelo exportador vigente desde à Independência e
graças ao qual foi possível a expansão cafeeira e
portanto a colocação, ainda que retardada, das bases do
futuro progresso econômico do País. Para esta categoria
de historiadores, a economia cafeeira “foi largamente
explorada pelo capitalismo internacional... os seus
lucros canalizaram-se para a remuneração dos capitais
internacionais neles invertidos” (Prado Jr.). Tais
proposições ainda abundam nos livros-texto
universitários.
Que houve interesses externos, às vezes
457
458
prevalecentes, não se pode negar, mas parece exagerado
um comentarista sério e competente – e não marxista,
mas seguindo a onda – insistir em denominar como
matiz de nosso crescimento econômico no século XIX, e
mesmo depois, a “formação dependente” como uma
conotação visivelmente depreciativa (Lorenzo Fernan -
dez). Afinal, existiu em toda a história econômica um
crescimento puramente autônomo? A Inglaterra durante
a primeira Revolução Industrial? Os Estados Unidos
durante o seu take-off no início do século XIX? Seria
fastidioso, repetir aqui conhecidas experiências his -
tóricas que demonstram a importância do aporte externo
do desenvolvimento dos mais poderosos e bem suce-
didas economias.
O conceito de dependência tem um fundo de
realismo, mas os marxistas e semelhantes lhe dão um
sentido unívoco, apenas de espoliação capitalista,
quando a realidade é mais complexa. Será que o Brasil
do século XIX se encontrava numa situação de total
dependência econômica no sentido de que sempre os
centros de decisão se encontravam no exterior? Ou, mais
especificamente, por exemplo, que o mercado de café
foi sempre um buyer’s market? A dependência neste
caso seria em razão direta com o grau de
vulnerabilidade econômica e, sob este aspecto, o Brasil
era evidentemente mais fraco, como fornecedor de um
artigo de sobremesa para os consumidores, mas
elemento vital para a sua economia. Entretanto houve
reversões quando o mercado de café se tornou um
seller’s market. Esta condição pôde justificar, porém
458
459
como efeitos questionáveis, a política de valorização
iniciada com a convenção de Taubaté.
Numa forma mais amenizada e indireta, a
condenação do sistema internacional foi feita pelos
estruturalistas sob a alegação de que o mercado mundial
é estruturado de modo a prejudicar secularmente as
economias mais atrasadas, portanto a perpetuar um
mecanismo de espoliação em escala mundial. Não se
trataria mais do esquema aparentemente rigoroso do
imperialismo leninlista, mas não deixa de conter no seu
bojo um repúdio ao mercado livre internacional . Entre
outras, tal tese sustenta que a existência do Centro
desenvolvido e da Periferia subdesenvolvida “impõe nos
casos extremos que as decisões que afetam a produção e
o consumo de uma economia dada são tomadas em
função da dinâmica e dos interesses das economias
desenvolvidas” (Cardoso). Tal posição é mais ponderada
do que a do imperialismo, mas persiste ainda a sugestão
da inevitável espoliação capitalista. Fica rejeitada
explícita ou implicitamente a idéia de independência, ou
seja a capacidade autônoma na tomada de decisões
econômicas – o que não passa de um exagero histórico.

***

Especialmente radical e irracional é a investida


contra os capitais estrangeiros – ação tão conhecida no
posicionamento do grupo que pode ser designado como
a Esquerda. Esta vê na entrada dos capitais estrangeiros
um fenômeno imperialista, apenas uma invasão
459
460
espoliatória. Quando se tem a pretensão de invocar uma
verificação empírica, a argumentação é simplesmente
falaciosa: confronta-se o montante de capitais entrados
com o volume acumulado das saídas a título de lucros e
juros remetidos para fora (Carone), ou seja: compara -se
um estoque com um fluxo. Nenhuma referência, do lado
do ativo, aos ganhos em termos de produto, emprego,
tecnologia – resultantes da entrada daqueles capitais.
Há apenas alusões a “manobras políticas”, mas a
condenação é radical: “A vida econômica (do Brasil),
não é função de fatores internos, de interesses e ne -
cessidades da população que nele habita, mas de
contingência da luta de monopólios e grupos financeiros
internacionais concorrentes” (Prado Jr.). O modelo
marxista é básico nessas exposições: o objetivo do
movimento de capitais é “extorquir em proveito próprio
a mais-valia do trabalho brasileiro” (ibidem). O
resultado é que “o imperialismo impede a estruturação
normal na base das verdadeiras e profundas ne-
cessidades da população do país” (ibidem). Nenhuma
alusão a uma cooperação, mesmo que desequilibrada,
entre os fatores de produção internos e o capital externo.
Na argumentação, mesmo sem uma referência explícita
ao imperialismo leninista, o conceito é subentendido
como uma realidade já comprovada.
De fato, muitas vezes o termo “imperialismo” é
empregado num sentido mais genérico, como um
processo de espoliação operada pelos mais fortes
(sempre capitalistas) contra os mais fracos. Mas o termo
“imperialismo”, sob a autoridade dos profetas Marx e
460
461
Lênin, exerce um fascínio, um impacto emocional.
Tanto é que, por exemplo, os historiadores do tipo
mencionado tentam demonstrar a sua presença
(espoliação através de juros, comissões, etc.) já desde os
primeiros empréstimos contratados pelo Império,
portanto no tempo em que o capitalismo ocidental não
tinha chegado à maturidade do esquema leninista.
Historiadores mais objetivos reconhecem que os
investimentos estrangeiros foram feitos em “setores de
atividades completamente novos entre nós”,
investimentos “que exigiram avultados capitais de que
não dispúnhamos” (Ferreira Lima). Mas, por cima destas
verdades, a tentação anticapitalista é grande demais, de
modo que, o mesmo autor se apressa a denunciar que
“nossa incursão na economia internacional nos sujeitava
completamente às grandes potências... drenando para
fora toda fonte de recursos” (ibidem). Anotem o caráter
absoluto da alegação:
Poder-se-ia encontrar uma certa justificativa des-
sas teses se fossem apresentadas em formas mais mo -
deradas. Mas a fúria anticapitalista e antiliberal chega a
termos apocalípticos: comentando a política de endi -
vidamento externo desde o Império fala-se em “abismo
financeiro”, “Brasil – presa fácil da especulação”,
“tentáculos absorventes” (credores dos capitalistas) –
expressões que se encontram até em analistas moderados
(como, por exemplo, Valentim Bouças).
As citações feitas já têm 30 a 40 anos, mas não se
considerem obsoletas. Expressões semelhantes aparecem
em trabalhos recentes, em artigos de jornal, nos
461
462
panfletos que surgem todos os dias nos meios de
comunicação, nos slogans e chavões dos políticos.
Palavras como colonialismo, imperialismo, dependência,
espoliação rendem em propaganda política. A confusão
semântica representa um bom instrumento de conquista
da opinião política, da mesma forma como se brinca
com os conceitos de liberdade e democracia.

***

É recomendável pôr alguma ordem nos conceitos:


cada termo – imperialismo, colonialismo, dependência –
deve, numa boa disciplina aristotélica, dizer alguma
coisa específica e não é logicamente válido jogá -los, uns
em cima dos outros, com o objetivo de condenar os
pecados do capitalismo. Uma análise criteriosa pode
identificar excessos e abusos, mas as modalidades e
intensidades são bem diferentes. No discurso da Es -
querda, a ação das multinacionais quase se confunde
com um empreendimento colonialista – alegação que é
conceitual e historicamente incorreta.
Imperialismo não é manobra comercial, é um
exercício de poder, de poder político – a raiz do
vocábulo é imperium, o poder da autoridade. No próprio
esquema de Lênin, que representa a matrix pura do
imperialismo – o traço típico não é a busca em si da
mais-valia, mas sim, o exercício do poder a fim de
extrair a mais-valia.
Para Lênin, a busca desesperada da mais-valia,
quando as fontes internas estão se esgotando, leva
462
463
necessariamente ao aproveitamento espoliatório de zo -
nas novas onde os salários baixos evitam a redução
progressiva da taxa de lucros. Isso faria parte da própria
lógica do capitalismo, mas nesta fase de espoliação fora
das fronteiras – “o mais alto estágio do capitalismo”,
nas palavras consagradas de Lênin – o traço carac-
terístico é a aplicação do poder, a necessidade dos
capitalistas de interferir na condução política, impor
suas condições, submeter o país através da força,
inclusive pela guerra. O imperialismo consiste justa -
mente na interferência do poder político – que, no
modelo de Lênin, é uma decorrência necessária do
capitalismo na sua fase final de maturação.
A introdução do conceito do imperialismo na
argumentação marxista respondeu à necessidade de
explicar o fortalecimento do capitalismo, contrariamente
ao pensamento marxista originário, isto é, explicar a
postergação do debate do capitalismo. Neste sentido,
Galbraith observou que “(a idéia de) imperialismo
preencheu uma enorme lacuna no pensamento
revolucionário, bem como em sua política”. Entretanto,
tomando o termo de imperialismo na sua característica
de exercício do poder político, ele deixa de constituir
um título exclusivo de condenação do capitalismo.
Assim, W. Arthur Lewis pôde anotar: “o desejo de
explorar outros povos pode persistir também na
sociedade socialista”. De fato, na Europa Or iental falou-
se correntemente em imperialismo soviético, uma
realidade contundente que não tinha nada de subproduto
do capitalismo.
463
464
A ambigüidade dos seguidores de Marx -Lênin
consiste em usar o termo genérico de imperialismo, isto
é, ação imperial, ação de força e opressão, como argu-
mento a favor da tese de que o capitalismo maduro deve
obrigatoriamente desembocar no abuso de poder em
escala internacional e por isso deve ser condenado sem
remissão. Essa ambigüidade justificou Schumpeter a
referir-se ao “termo equívoco e amiúde aplicado erra-
damente de imperialismo”, explicitando que “podemos
sempre definir o imperialismo de tal modo que
signifique exatamente o que implica na interpretação
marxista”.
Contra o panorama rocambolesco da conspiração
capitalista-imperialista em escala mundial, a crítica
objetiva observou que “a realidade em todos os países
industrializados é o poder empresarial e não o poder
empresarial internacional” (Galbraith) e que, longe
daquele esquema golpista do capitalismo, “os grupos
capitalistas se modelam infinitamente mais sobre a
política do país do que a modelam” (Schumpeter).
Aliás, aludindo à comprovada versatilidade da
argumentação marxista, o último autor citado proferiu
um veredicto final: “Esta teoria do imperialismo oferece
um bom exemplo, senão o melhor, de modo de que o
sistema marxista usa para resolver os problemas,
fortalecendo ao mesmo tempo o seu prestígio”.
Por outro lado, a investida contra o capitalismo é
reforçada pela inclusão da noção de colonialismo.
Misturam-se os conceitos e fala-se tranquilamente do
neocolonialismo como uma característica do
464
465
capitalismo, inclusive atual. Esquece-se que a
dominação colonial é “o governo de um povo por uma
potência geográfica e etnicamente distante” (Galbraith)
– não exploração como seria feita, por exemplo, pelas
multinacionais, mas um governo, um exercício de poder.
Houve realmente colonialismo pré-capitalista na grande
expansão dos séculos XVI-XVIII. Houve também um
novo colonialismo no século XIX, na África e na Ásia,
fatos históricos de caráter peculiar. Entretanto, aplica-se
os termos de imperialismo e colonialismo, num sentido
vago, emocional, com o intuito de identificá-los com o
capitalismo e condenar este capitalismo como único
instrumento de espoliação.

***

Acho que os fenômenos de poder e coerção nas


relações econômicas poderiam ser colocados numa
perspectiva mais ampla, mais abrangente, no quadro do
conceito de dominação. Este problema já foi levantado
em vários níveis: no nível dos indivíduos, das empresas
ou das nações. a existência de agentes dominantes e
dominados. O enfoque foi proposto desde o século
passado, sobretudo no nível das empresas, como em
BöhmBawerk, ou no nível de grupos como em Veblen.
Uma análise mais percuciente foi formulada por
François Perroux. Mas, afinal, o próprio Aristóteles em
sua política não menciona o roubo como um dos meios
para adquirir riqueza?
Pode-se colocar o problema por cima das
465
466
instituições político-econômicas que são apenas capazes
de oferecer maiores ou menores oportunidades d e
dominação. Acho possível partir de uma realidade
psico-fisiológica: a consciência da personalidade e sua
afirmação, a qual inclui a tendência de impor aos outros
agentes as próprias decisões – evidentemente em se
falando do processo econômico, decisões que visam a
aumentar o bem-estar. Já Veblen falou da “inclinação do
homem para a dominação e a coerção”. E Perroux é mais
explícito: “Cada ser humano, sendo como é egoísta,
exerce uma dominação no mundo externo... O poder é
procurado por si mesmo. Mais do que metas de
incremento material, as tendências egoístas do homem
individualizado estão na base de uma afirmação de si
próprio”. Seria então uma libido dominandi natural, a
qual, entretanto, obviamente não é responsável por todo
o comportamento humano: o ser humano, ao exercer a
dominação, reconhece nos outros, seus semelhantes, e
portanto pode ser levado, dentro das inevitáveis
contradições humanas para uma atitude de solidariedade
e cooperação. “O homem, devido à razão com que é
dotado, tem a faculdade de sentir a dignidade na pessoa
do seu semelhante como na sua própria pessoa e afirmar
assim sob esse aspecto sua identidade com ele”
(Servier). Não impera forçosamente a idéia de homo
homini lupus (Plauto), mas também às vezes a bela
oração de Terêncio: homo sum, humani nihil a me
alienum est.
A teoria da dominação traz uma visão mais
ampla, superando a obsessão da espoliação capitalista.
466
467
Já John Bates Clark se referiu a casos de exploração por
parte de qualquer fator de produção e não apenas do
capital – trata-se apenas de relações de força (apud
Barre). De acordo com Perroux, o exercício do poder e
da coação pode ser até não intencional – o que poderia
ser achado irrealista, a não ser que a não-
intencionalidade seja entendida como um processo
inconsciente decorrente da própria natureza humana, tal
como sugeri antes. E Perroux acrescenta que o efeito de
dominação fica “em oposição lógica com a
interdependência recíproca e universal” – uma outra
formulação das tendências opostas já mencionadas, a da
imposição da própria vontade aos demais seres humanos
ou a da solidariedade com aqueles seres.
Na escala internacional, Perroux sublinhou o
valor operacional do conceito de dominação, de vez que
“tem por objetivo substituir aos conceitos vagas ou
apaixonados sobre o imperialismo... verificações e
regras inevitáveis”. Perroux viu o mundo econômico
como “um conjunto de relações patentes ou
dissimuladas entre dominantes e dominados” e, ainda
mais, contrariamente às habituais críticas da Esquerda
afirma que “o crescimento econômico mundial teve
lugar por ação das economias nacionais sucessivamente
dominantes”.
Sem dúvida, essa visão deve ser corrigida
acrescentando-se-lhe as inevitáveis facetas escuras do
quadro. Seria interessante redigir uma história da
dominação econômica em escala internacional,
identificando primeiro as motivações, basicamente a
467
468
busca de riqueza e poder, completadas pela corrida atrás
de prestígio, triunfo de crenças religiosas e outras, não
se esquecendo o importante papel desempenhado pelo
nacionalismo exacerbado, muitas vezes motivador de
dominação, opressão e extorsão.
O relato histórico poderia mostrar as diversas
fases, forma e graus da dominação, desde a conquista
imperial escravista da Antigüidade, passando pela
disputa entre os Estados nacionais na época moderna e
em continuação o colonialismo dos séculos XVI-XIX, o
autêntico colonialismo que consiste na completa sub -
missão política da colônia ao poder da metrópole a fim
de propiciar sua exploração. Os leninistas poderiam
acrescentar os casos, embora questionáveis, em que a
conquista imperial teria decorrido de busca externa da
mais-valia. Num esquema objetivo, sem preconceitos
ideológicos, poderiam ser incluídos processos de do -
minação econômica pacífica, como a das multinacionais,
sem intervenção político-militar. Lembre-se os gritos de
alerta que a dominação norte-americana provocou
depois da Segunda Guerra Mundial, tal como aparecem
no célebre best-seller de Servan-Schreiber, O Desafio
Americano. Quando a conjuntura mundial mudou, a
advertência se deslocou para o Desafio Japonês, título
do livro de Hakan Hedberg, mas, vejam: desafio
pressupõe uma certa competição e não um império
absoluto.
Afinal, tais jogos de poder em torno do problema
econômico, sempre existiram e vão existir, sem
assumirem, com necessidade, os extremos descritos pelo
468
469
marxismo-leninismo e constituíram apanágio exclusivo
do capitalismo. Os choques do petróleo de 1973 a 1979
são exemplos de dominação exercida pelos países ainda
longe da fase de maturidade capitalista do modelo de
Lênin.
Uma curtíssima excursão pela história econômica
do Brasil permitiria identificar certas relações de
dominação sem os aspectos excessivos imaginados pelos
campeões à outrance das teses do imperialismo e do
colonialismo. Dominação, mas sem aquela idéia de que
os centros decisórios se fixaram inexoravelmente fora
do país. Refiro-me ao Brasil independente, porque nos
tempos coloniais, por definição, o centro de decisão se
achava na Metrópole.
Os primórdios da Independência foram interpre -
tados como uma continuação camuflada das relações
coloniais – foi dito que o Brasil trocou apenas de me-
trópole: Inglaterra no lugar de Portugal. Como ilustra -
ção típica indica-se o tratado de 1810 com a Inglaterra.
Sem dúvida, tratava-se de um pacto leonino, de do-
minação, uma situação de independência, porém não
absoluta, tanto é que, quando caducou o tratado, não foi
renovado e o Brasil iniciou uma política comercial
autônoma, até protecionista, embora ainda tímida.
O episódio da abolição do tráfico africano é
também expressivo: apesar das pressões da Inglaterra,
chegando quase a um estado de guerra, o Brasil aderiu
ao tráfico durante quase 40 anos. Foi um caso de
dominação, mas não de dependência absoluta.
O Brasil inseriu-se no sistema comercial
469
470
internacional, mas isto não o impediu de praticar uma
política autônoma de padrão-ouro, fugindo às exigências
ortodoxas de equilíbrio orçamentário, câmbio estável e
contenção monetária. Reinou um pragmatismo que, a
despeito das eventuais pressões revelava um centro
autônomo de decisão.
Necessariamente também, as crises do sistema
econômico internacional se refletiram na economia
nacional – um aspecto de dominação mas também de
interdependência. Uma tese muito em voga, embora
frágil, foi a de que a inflação brasileira no século XIX
teria resultado de duas verdadeiras conspirações:
durante as depressões, os países industrializados
importadores de café teriam forçado a queda das
cotações do café para se ressarcirem de seus prejuízos;
por sua vez, os exportadores de café forçaram a
desvalorização cambial para manterem suas rendas em
moeda nacional. Entretanto, não se comprova uma
situação de dependência absoluta; apenas um jogo de
dominação, mais complexo da realidade, longe de
caracterizar um esquema imperialista.
Mais expressivo é o caso das políticas de defesa
do café. Nisso, o Brasil, gozando de uma posição do -
minante no mercado do café – tentou implementar uma
política autônoma de valorização com resultados ques -
tionáveis, mas caracterizando uma relação de domi -
nação, sem que, com isso, provocasse um processo
imperialista ou de submissão de seus parceiros
comerciais.
Não me demorarei mais em outros exemplos
470
471
históricos.

***

Que conclusão poderia ser tentada a partir das


notas perfunctórias desta palestra? Seria possível
identificar alguns pontos sujeitos a posterior meditação,
referentes aos conceitos abordados, a saber:
- o termo de imperialismo é próprio ao esquema
leninista, sujeito a restrições e não obstante usado
abusivamente por razões ideológicas, às vezes num
sentido genérico, para efeito de condenação do
capitalismo, supostamente único agente de coerção
imperial;
- o termo de colonialismo designa uma forma
histórica específica, mas é usado em situações
impróprias, também com o propósito de desmoralizar o
capitalismo;
- o conceito de dependência corresponde melhor
às realidades político-econômicas, mas é amiúde
aplicado num sentido pejorativo, com prejuízo da idéia
mais realista de interdependência;
- o conceito de dominação parece abranger, como
subcategorias, todas as noções antes mencionadas, de
maneira mais isenta, desligada dos conflitos ideoló -
gicos, porque oriunda – a meu ver – de uma realidade
psico-fisiológica do ser humano.
Mas, como se dizia na jurisprudência romana; sub
judice lis est – a causa está sob julgamento.

471
472
Palestra proferida em 17 de maio de 1993.

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1993).

473
474

INFLAÇÃO:
MENTALIDADES E ESTRUTURAS

Nos infindáveis debates em torno da inflação


brasileira repetiu-se com crescente insistência, que a
inflação constitui principalmente um problema político.
Sem dúvida, ninguém pretende ignorar ou minimizar o
seu caráter econômico, visto que é definida numa forma
tradicional como “um excesso de demanda monetária”
(conf. Emile James), face a “uma oferta insuficiente”.
Um desequilíbrio que se resolve através da “elevação
contínua do nível geral de preços”.
O caráter político do processo – entendendo-se o
termo “político” lato sensu, isto é, que afeta a vida da
sociedade inteira – esse caráter aparece de modo patente
numa visão mais sociológica da inflação, que a define
como “uma luta entre diversas classes sociais pelo
produto total” (segundo Delfim Netto) --ou nas palavras
de Eugênio Gudin, como “uma tentativa perpetrada por
um grupo econômico de se apropriar de uma parte da
renda real pertencente a outros grupos” -- uma
apropriação via elevação dos preços. O mesmo sentido
competitivo manifesta-se na afirmação de que “a raiz
sócio-política das inflações crônicas... se pode encontrar
na incompatibilidade da política distributiva do
governo” – como diz Mário Henrique Simonsen.
É mister, portanto, considerar o processo
474
475
inflacionário não apenas isoladamente como processo
econômico, mas dentro da realidade sócio-política que
pode oferecer uma explicação das origens da inflação a
partir de certos comportamentos da sociedade. Afinal, o
mencionado desequilíbrio entre demanda e oferta pode
ser provocado ou, pelo menos, facilitado por qualquer
das manifestações do corpo social: mentalidades,
atitudes, instituições, estruturas. Alguns fatores serão
mais propícios ao desencadeamento ou à alimentação da
inflação, tornando a respectiva economia mais
vulnerável ao fenômeno. Será, logo, útil detectar – pelo
menos a posteriori – esses fatores com vistas à sua
eliminação ou ao seu amortecimento.
Esse enfoque sócio-político-psicológico do
fenômeno econômico não constitui novidade – apenas
fica amiúde esquecido. No que tange ao comportamento
dos indivíduos perante a inflação, já Albert Aftalion
sublinhou que “é na mentalidade do detentor de renda
que é necessário analisar todas as grandes decisões que
influem sobre o futuro da moeda” (apud P. L. Reynaud).
Por outro lado, é preciso considerar a existência de uma
certa configuração social favorável à inflação; “para a
pressão inflacionária se transformar em inflação são
necessárias certas condições estruturais”, diz Emile
James.
Evocar a importância das estruturas não quer
dizer adotar as posições do estruturalismo para o qual os
aumentos de preços derivam de pressões decorrentes da
oferta estruturalmente inelásticas por exemplo no caso
de uma agricultura secularmente atrasada ou de um
475
476
comércio exterior baseado na exportação de produtos
primários.
Tal teoria, muito exaltada após a Segunda Guerra
Mundial, principalmente sob a égide da CEPAL e de seu
mentor, Raúl Prebisch, não goza mais, hoje em dia, do
mesmo prestígio. Não obstante, ela contém uma dose de
verdade, porém um valor explicativo limitado, insu -
ficiente para caracterizar toda e qualquer inflação. O
próprio Gudin, que não era nada estruturalista, admitiu
certa vez a existência de “estruturas inflacionárias”,
principalmente nos países subdesenvolvidos, devido a
suas condições peculiares políticas e econômicas. De
fato, o caráter crônico do processo deita suas raízes nas
mentalidades e estruturas inflacionárias imperantes no
país.
Isso nos leva a uma concepção que constitui o
embasamento teórico das presentes despretenciosas
considerações. Compreende-se o fenômeno inflacio-
nário, bem como qualquer outro lado econômico, como
sendo imerso na complexa realidade histórica, sendo
condicionado pelos fatores constitutivos dessa realidade,
ao mesmo tempo que condicionando os seus demais
componentes. Trata-se, até certo ponto, de uma inversão
da posição marxista para a qual a infra-estrutura
econômica – o modo de produção – representa o condi-
cionamento único e absoluto da super-estrutura social,
das idéias e das instituições.
As estruturas englobam elementos complexos e
variados: elementos geográficos, demográficos, morais,
institucionais, sociais e, obviamente, econômicos. Estas
476
477
estruturas, que correspondem a certas mentalidades do
corpo social podem favorecer ou gerar inflações porém
não obrigatoriamente.
É lícito incluir entre esses condicionamentos
fatores que podem ser qualificados de “neutros” em si,
mas que na realidade puderam exercer alguma influência
sobre o processo inflacionário. Antecipando os exem -
plos históricos, poderia citar o fenômeno da seca
crônica no Nordeste ou a excessiva expansão demo-
gráfica ou a urbanização rápida e descontrolada. Ade -
mais, condicionamentos inflacionários podem ser total -
mente exógenos – vejam as duas guerras mundiais, ou
os choques do petróleo de 1973 e 1979.
O que interessa aqui é identificar ao longo da
história os condicionamentos – não apenas econômicos
– que proporcionaram ou facilitaram o processo
inflacionário, tornando-o crônico. Para efeito de análise
pode-se seguir um modelo tradicional (conf. Delfim
Netto) em que figuram como parâmetros principais: o
déficit governamental; o crédito ao setor privado; os
reajustes salariais; e a taxa de câmbio.
Os economistas identificam e analisam estas
causas diretas da inflação. Agora a tentativa consiste em
olhar para um segundo plano por baixo das causas
imediatas, afim de descobrir os condicionamentos que
propiciaram e eternizaram os mecanismos infla-
cionários.
Sem dúvida, os próprios condicionamentos têm,
por sua vez, causas anteriores; mas procurá-las seria
enfrentar uma verdadeira probatio diabolica, sem fim.
477
478
O historiador da inflação deve limitar-se à identificação
dos condicionamentos históricos – mentalidade e
instituições – que constituíram as oportunidades do
processo inflacionário.

***

Um exemplo concreto deste modelo de


investigação, tal como esbocei em 1976 numa palestra
no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, aborda o
processo inflacionário no século XIX. Um dos fatores
inflacionários foi o permanente déficit orçamentário –
financiado por emissões de papel-moeda. Não
prevaleceram os preceitos do padrão-ouro, subproduto
do liberalismo econômico então reinante. Vingou o
pragmatismo – mais acessível. O que se encontrava atrás
desse déficit crônico? Do lado da despesa, as revoluções
(os abalos da nova estrutura política independente), a s
guerras (principalmente a do Paraguai), as despesas com
as secas do Nordeste. Com um caráter menos
insuperável: o excesso de funcionamento público – a
“empregomania”, na expressão de Nabuco de Araujo –
sinal de uma estrutura política ainda imatura. Do la do da
receita, a exigüidade da base tributável, limitada
sobretudo ao imposto sobre importações – sinal de uma
estrutura econômica vertida para o exterior, de um
mercado interno precário e de um baixo nível de rendas
individuais, além de um liberalismo irracional que
impedia o aumento do imposto sobre importações.
Ademais, o despreparo administrativo, herança dos 300
478
479
anos de colonialismo e reflexo do baixo nível edu -
cacional. A sonegação dos impostos poderia ser ligada à
característica cultural que Affonso Arinos rotulou como
“desrespeito à ordem legal” – para ele um resíduo índio-
africano; de qualquer modo, uma mentalidade
persistente.
A procura de soluções fáceis e imediatistas levou
à política de empréstimos externos de caráter fiscal que
se avolumaram em bola de neve. A dívida externa, além
das remessas particulares dos imigrantes – outro aspecto
estrutural – pesou fortemente sobre o balanço de
pagamentos, criando repetidas pressões inflacionárias.
Havia também uma fragilidade estrutural no
balanço de pagamentos pelo fato de se sustentar quase
unicamente nas exportações e estas praticamente no café
e mais alguns poucos produtos primários. Os
estruturalistas exageram o papel do estrangulamento
externo, mas este aspecto não pode ser minimizado, na
medida em que contribui para a desvalorização cambial,
encarecendo os produtos importados, embora, segundo
minhas pesquisas, o papel inflacionário dos produtos
importados tenha sido, na época, bastante modesto.
A expansão monetária através de emissões de
papel-moeda resultou em vários casos do excesso de
crédito para atender à demanda especulativa dos agentes
econômicos – uma mentalidade imediatista de efeito
inflacionário. Isso aconteceu, por exemplo, após a
reforma bancária de 1853 (na época em que José de
Alencar escreveu a peça “O crédito”, em que ironizava
os excessos criditícios e Ferreira Soares se referia a um
479
480
“carnaval bancário”). Também em maior medida, no
início da República – quando a expansão monetária e
creditícia acompanhou a febre de especulação bursá til
(descrita pelo Visconde de Taunay no seu opúsculo “O
Encilhamento”). Os excessos poderiam ser debitados à
frágil estrutura bancária – sem quadros, sem tradições -
mas, eventualmente, a um certo espírito de jogo que
Afonso Arinos inclui na mentalidade coletiva da
“salvação pelo acaso”.
No caso do custo da mão-de-obra houve uma
situação sui generis. O liberalismo que levou à abolição
do tráfico africano e, finalmente, do próprio instituto
escravista, provocou a curto prazo, a despeito de seus
méritos humanitários, o encarecimento da mão-de-obra
escrava até sua substituição pelo trabalho livre – um
elemento do lado da inflação de custos.
A ação direta sobre os preços sob forma de
especulação e açambarcamento, assinalada por exemplo
por Sebastião Ferreira Soares em 1860, explica-se pelos
resíduos da mentalidade mercantilista e, mais ainda,
pela inconsistência de um mercado que permitia mo -
nopólios e oligopólios, e eventualmente por uma certa
falta de solidariedade social: Ferreira Soares fala em
“sistema de se enriquecer fazendo a miséria pública”. E
também, pela ausência de estruturas políticas e
administrativas aptas a impedir tais práticas.
Finalmente, deve-se apontar a inelasticidade da
produção agrícola de alimentos, setor em que a carestia
apareceu de modo mais acentuado, como o ressaltaram,
em várias oportunidades, as Falas do Trono.
480
481
Os meus levantamentos estatísticos sugeriram que
as altas de preços no século XIX foram mais graves
entre os produtos nacionais de consumo interno do que
os de exportação ou importação. As origens vinham de
longe, desde a marginalização da agricultura de
subsistência devido à mentalidade mercantilista,
agravada no século XIX pela concentração dos
interesses em torno do café. Essa insuficiência da
produção agrícola poderia ser ligada também a certas
estruturas culturais, como a que Afonso Arinos
denunciou como “desapego à terra”.

***

Não vou me alongar mais nesse panorama do


século XIX. Esta excursão pelo passado poderia parecer
ociosa, porém vale observar que alguns dos seus
aspectos se repetiram mais tarde. O cotejo do passado
mais longínquo com os tempos mais recentes revela a
permanência de condicionamentos inflacionistas, a
despeito das alterações sofridas pela economia e pela
própria cultura do Brasil. Senão, vejamos:
- O déficit orçamentária permaneceu, com poucas
exceções, crônico, tendo nos seus alicerces o despreparo
administrativo, as despesas suntuárias (vide construção
de Brasília), as limitações estruturais da receita (até
1964 a arrecadação do imposto de renda, introduzido
apenas em 1924, foi insignificante); a politização da
despesa (por exemplo quando do torpedeamento do
Plano Cruzado). Eugênio Gudin quis identificar a causa
481
482
das inflações latino-americanas no surgimento, após
1930, de governos populares propensos a despesas
demagógicas “sem consideração do preço a pagar”.
- Um sério agravamento decorreu da crescente
mentalidade estatizante que aumentou exageradamente o
aparelho administrativo e a despesa com um funcio -
nalismo público superdimensionado.
A procura de soluções fáceis para o déficit
público levou – como sempre – ao recurso a emissões de
papel-moeda e, alternativamente, ao apelo excessivo
para a dívida pública, constituindo-se num ônus
crescente em bola de neve. A história recente da dívida
pública interna oferece um exemplo típico.
- O populismo pode explicar em certos anos
(como em 1961/1964), os excessos de uma política
salarial distributivista que resultou numa pressão de
caráter inflacionário.
- A atuação empresarial mostrou também
excessos em várias oportunidades, quando, aproveitando
a estrutura mono-e-oligopolística do mercado e a
estrutura desequilibrada da distribuição da renda
nacional, procedeu a manipulações excessivas de
preços. Múltiplas experiências recentes denunciam tal
mentalidade.
- Do lado dos consumidores, características
culturais e mentalidades levaram às vezes à exacerbação
do efeito-demonstração e ao excesso do consumismo,
acentuando a pressão inflacionária do lado da demanda.
- Práticas mercantilistas continuaram por muito
tempo no comércio exterior, por exemplo, com a defesa
482
483
do café e a desvalorização forçada da taxa de câmbio,
como em 1906 e 1926.
- A alteração estrutural da agricultura no sentido
de maior diversificação da produção reduziu a sua
pressão inflacionista, que, não obstante, perdurou
devido às falhas estruturais da comercialização e do
armazenamento e, em boa medida, por causa da
miragem da mentalidade industrialista que relegou a
agricultura para o segundo plano.
- Entre as posições favoráveis à inflação vale
acrescentar uma certa corrente de pensamento estru -
turalista, rezando pela inevitabilidade do fenômeno
inflacionário ou mesmo pela sua exaltação como
instrumento desenvolvimentista.
- Ademais, o próprio desenvolvimentismo à
outrance – isto é, sem consideração pelas capacidades
reais da oferta – justificou excessos inflacionários.
Referindo-se à política de Kubitschek disse um
historiador: “O recurso à inflação garantiu, em parte, o
crescimento econômico do país”. (Benevides)

***

Identifiquei até aqui de forma rudimentar


elementos que propriamente não fazem parte do
processo econômico da inflação, mas que puderam
induzi-lo ou sustentáculo. Entretanto, a própria inflação,
ao permanecer e ao agravar-se, cria mentalidades e até
estruturas específicas que constituiriam o que se poderia
chamar de “universo inflacionário”, e agiriam como um
483
484
processo de causação circular.
Quando anos atrás escrevi uma história dos
preços no Brasil entre o fim do século XVI e o do
século XIX (300 Anos de Inflação) anotei que a
inflação brasileira tinha sido amena, um tipo de inflação
rastejante, a taxas anuais abaixo de 10%, mas que pelo
fato de ser crônica, multi-secular, influenciou a
sociedade no sentido de traumatizá-la, de fazê-la aceitar
facilmente a inflação e eventualmente prepará-la para
patamares mais elevados. Outros falaram com
propriedade, em “tolerância inflacionária”, na expressão
de Mário Henrique Simonsen.
Alguns analistas acharam que as sociedades
latino-americanas suportariam, sem reação, altas de
preços de até 25% anuais, mas este patamar me parece
um tanto exagerado – talvez uns 15% sejam mais
realistas.
Acontece, entretanto, outro fenômeno como resul -
tado da persistência crônica da inflação. A convivência
com a inflação, sobretudo quanto esta assume inten -
sidade maior, leva os agentes econômicos a mudarem de
mentalidade e comportamento. É como se a inflação
fosse o estado natural da economia, requerendo
respostas adequadas da comunidade. O resultado é o
fortalecimento e a maior duração da inflação. Essa
passagem para a “mentalidade inflacionista” – a mu-
dança psicológica do corpo social – talvez não tenha
sido bastante ressaltada, a não ser recentemente.
Não obstante, encontram-se observações perti-
nentes como, por exemplo, a de que no Brasil, já na
484
485
década de 1960, devido à maior intensidade da inflação,
“um clima de especulação se instalou em todos os
setores de atividades”, como descreveu Ernane Galvêas.
Mudanças semelhantes foram detectadas em outros
países, como na França na mesma época. Escreve M.
Niveau: “A psicologia do consumidor francês habituado
à inflação aceita as altas contínuas com processo
normal... ele não mais procura os melhores preços nos
mercados... é a completa inversão da lei da oferta e da
procura”.
De fato, no universo inflacionário, os agentes
econômicos procuram esconder distorções e abusos atrás
do processo inflacionário: o que em linguagem correta é
especulação, transforma-se em “remarcação de preços”
– a inflação vai esconder a manobra especulativa. A
estocagem ou o açambarcamento constituem apenas
“defesas” contra a inflação futura, porém ao mesmo
tempo perpetuam a inflação. Do lado dos salários,
aumentos insólitos são apresentados como simples
“reajustamentos” em relação a inflação esperada. E,
como sempre nos fenômenos sociais, a expectativa de
um fato provoca o aparecimento do próprio fato e dessa
forma as operações derivadas da mentalidade infla -
cionária vêem-se justificadas a posteriori.
Neste sentido, um economista mais frio disse que
num ambiente inflacionário “todos os membros da
economia deveriam converter-se em especuladores”. (N.
Georgescu-Roegen).
A mentalidade inflacionária funciona, tanto do
lado da oferta como do lado da demanda, ajudada mais
485
486
uma vez pela estrutura do mercado mono -oligopolista e
pela desigual distribuição nas rendas pessoais –
elemento estrutural que favorece a inflação e, por sua
vez, é agravado pela inflação.
Do lado da demanda, a resposta inflacionária é a
febre consumista, como foi possível verificar no Plano
Cruzado.
A este propósito, seria oportuno lembrar que a
idéia de inflação inercial, que foi o diagnóstico do Plano
Cruzado, tinha a sua dose de verdade. Entretanto, se o
choque heterodoxo então aplicado apagou a inflação
passada, a falta de outras medidas ortodoxas permitiu a
realimentação da mentalidade inflacionária – as
expectativas inflacionárias de que tanto se falou nos
anos 60.
Sem dúvida, não se pode levar o combate
antiinflacionário exclusivamente para o plano
psicológico, mas este não deve ser menosprezado. Já
depois da Segunda Guerra Mundial, referindo-se à
inflação, que grassava nos países europeus, um relatório
da antiga Sociedade das Nações (1946) afirmou que “o
tormento inflacionário foi principalmente resultado de
fatores psicológicos”.
Essas mentalidades são às vezes profundamente
enraizadas no espírito da comunidade, sustentadas por
estruturas inflacionárias que vem de longe e sob as mais
variadas formas. Qualquer política antiinflacionária
encontrará a resistência das mentalidades e das es -
truturas, dificilmente removíveis a curto praz o. Assim
sendo, um combate eficiente de longo prazo contra a
486
487
inflação exige, em última instância, do corpo social,
alterações de comportamento no sentido da racio -
nalidade, moralidade, solidariedade e patriotismo. Mais
uma vez, ao enunciar tais objetivos, o impasse eco-
nômico desemboca num problema educacional.

Palestra proferida em 2 de agosto de 1990.

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Kubitschek – Desenvolvimento Econômico e Estabi-
lidade Política 1956-1961. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
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CIPOLLARI, Pedro; CARVALHO, Eduardo Pereira de.
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(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 36(427): 7-14,


Outubro 1990).

489
490

O FASCÍNIO DO
DISCURSO MARXISTA

Tornou-se lugar comum apontar a importância


histórica do desmoronamento do império soviético
simbolizado pela queda do muro de Berlim. O abalo
político teve efeitos inclusive no plano doutrinal: a
ideologia marxista-leninista foi profundamente afetada,
perdendo a força com que se apresentou durante
décadas. Constituiria entretanto uma inferência preci -
pitada concluir que com isso a Esquerda abandonou suas
posições, tanto é que um historiador francês, François
Furet, chegou a vaticinar que esta vasta falência
(soviética) continuará a gozar de circunstâncias
atenuantes na opinião pública mundial e talvez a
conhecer uma renovação de admiração.
O fenômeno é intrigante por ter-se manifestado
sistematicamente ao longo da história pública do
comunismo desde 1917 até o citado abalo n os anos 90.
O fascínio do discurso marxista resistiu através das
fases daquela história. Presos por este fascínio os seus
admiradores defenderam-no com perseverança e
fanatismo. Essa dedicação a uma causa poderia
eventualmente ser apreciada como prova de força moral
e devoção, porém tal julgamento torna-se questionável
diante dos meios empregados na defesa de suas
convicções: deturpação dos fatos, camuflagem da
490
491
realidade, propaganda de má fé. E causa espanto o fato
de que tais meios foram e são sistematicamente
praticados por segmentos das elites intelectuais. O
presente trabalho tenta historiar e analisar esta
capacidade de sobrevivência do fascínio exercido pelas
ilusões marxista-leninistas sobre as elites intelectuais.

***

Um bom ponto de partida encontra-se nas


palavras de Joseph Schumpeter que reconhecera vários
méritos em Marx. Observa Schumpeter: “Sob um certo
importante aspecto, o marxismo é uma religião... ele
pertence ao grupo de religiões que prometem o paraíso
na Terra”. E conclui: “Isso explica o sucesso do
marxismo”. Estas palavras constituem um pertinente
epígrafe à tese aqui exposta.
A força do dogma deriva também do fato de se
pretender científica e com isso pode satisfazer o espírito
dos positivistas. Porém não deixa de ser estranha essa
mistura de materialismo dialético e histórico com uma
dose de quase misticismo. A pretensão científica
mistura-se com uma visão escatológica e os marxistas
não se incomodam em manipular fatos e idéias a fim de
sustentar seu dogma. Escreveu um competente
historiador da Economia: “A transferência ilegítima, no
sistema marxista, de postulados não provados de um
campo para outro, cujos silogismos são então
transformados em racionalizações do que se tinha
postulado inicialmente... constitui o fascínio peculiar d o
491
492
sistema”. (Erich Boll)
Poderíamos ir mais longe e encontrar a
explicação dessa adesão a uma doutrina místico -
científica no avanço do positivismo desde o século XIX
e na sua obra de solapar as religiões tradicionais: “É no
século XIX que a História substitui Deus como Todo-
Poderoso sobre o destino dos homens... porém é no
século XX que se manifestam as loucuras políticas desta
substituição” (Furet). Já Renouvier tinha afirmado que
“o mundo sofre da falta de fé numa verdade
transcendental” (apud Furet) e os marxistas pensaram
tê-la encontrado nos ensinamentos dos mestres Marx e
Lênin.
Com essa mistura de adesão quase mística e
pretensão científica, os marxistas e depois os leninistas
e stalinistas chegaram à convicção de possuir armas
infalíveis para resolver todos os problemas da
Humanidade. Evidentemente tal convicção representa
um forte atrativo não apenas para as massas, mas
também para as elites intelectuais que aqui nos
interessam.
Mas o processo sedutor pode ser mais detalhado.
Basicamente, o socialismo brilha pelas promessas do
seu discurso: pura e simplesmente o paraíso terrestre,
numa abundância sem limites superando a escassez da
Natureza. Mas qual era o elemento motor do processo?
A contrapartida desta perspectiva idílica é um panorama
de ódio, uma vez que a História é movida pela luta de
classes, uma forma de bellum omnium contra omnes. E
a solução não surgirá através do amor “que move as
492
493
estrelas” na imagem de Dante, mas de uma relação de
força, a ditadura do proletariado, isto é, a organização
do ódio para a destruição da classe inimiga. Esse ódio
pode também exercer um verdadeiro fascínio sobre
todos aqueles que estão descontentes com o presente,
mais especificamente com a sociedade capitalista.
O anticapitalismo ou daí o antiliberalismo das
elites encontrou apoio inicialmente talvez como uma
reação emocional contra a Grande Guerra pela qual foi
responsabilizada a sociedade liberal capitalista. Acres -
centando a Segunda Guerra Mundial, tiraram daí a
conclusão de que eliminando o capitalismo se acab a
com as guerras. Mais tarde, agiu no mesmo sentido a
Grande Depressão, concluindo-se que a proposta
socialista levaria a um equilíbrio econômico perfeito.
As elites passaram por cima das contradições e
confusões socialistas ou comunista: levadas pelo
fanatismo ideológico, simplesmente abandonaram os
valores tradicionais da cultura ocidental. Pode-se
portanto falar de uma “traição dos intelectuais”,
retomando a expressão lançada por Julien Benda como
título de seu livro outrora de grande sucesso. Benda
denunciou os intelectuais (les clercs) – as elites que têm
a função de “defender os valores permanentes e
desinteressados como a justiça e a razão. Elas traíram
essa função a favor dos interesses práticos”, ou seja,
políticos. Assim, a idéia de liberdade pura foi
substituída pelo conceito de liberdade econômica, a
justiça pelos objetivos da revolução, a razão pelo
argumen6to da autoridade política – Marx, Lênin,
493
494
Stalin. Esta substituição foi feita graças a um arrasador
aparelho de mistificações e falsificações.
O livro de Benda, ou pelo menos seu título, foi
lembrado por outro livro muito recente de autoria de
Christopher Lasch: A Rebelião das Elites e a Traição da
Democracia – título que lembra ainda mais a célebre
obra de Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas. Ortega
tentara explicar a decadência espiritual do Ocidente pela
invasão das massas culturalmente despreparadas para
exercer o poder conquistado. E agora Lasch condena as
atuais elites pelos pecados apontados por Ortega nas
massas, entre elas a incapacidade de organizar e viver o
verdadeiro liberalismo. Houve também nessa adesão
anticapitalista das elites o seu empenho em evitar
qualquer aproximação com o espírito burguês, consi -
derado o mais desprezível dos qualificativos.

***

Continuando o exame do fascínio exercido pelo


marxismo, encontraremos como linha mestra a antili -
beralismo e seu subproduto, o anticapitalismo. Entre
suas motivações não faltam boas intenções: afinal, o
inferno está pavimentado com boas intenções. Nesta
categoria poderia entrar um certo idealismo utópico, o
anseio por um igualitarismo ideal – uma visão idílica
tipo Rousseau: de fato, aquela promessa do paraíso que
vimos caracterizar a escatologia marxista.
Com isto, os marxisto-leninistas construíram um
modelo político-econômico ideal e, sendo ideal, rico de
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todas as perfeições. Eles insistiram em comparar esse
modelo com o modelo capitalista real, o qual, sendo
real, não podia deixar de ter imperfeições com todos os
empreendimentos do gênero humano. Conduzidos pela
ilusão da proposta marxista, ficaram obcecados pela sua
realização e pela revolução que devia implantar o
modelo. Daí uma forte propensão para a engenharia
social em cujo nome o regime soviético, paradigma do
processo, achou oportuno usar todos os tipos de
coerção. Cultivam o sonho de uma sociedade totalmente
planificada sem riscos ou surpresas – esquecendo que o
preço a pagar seria a perda da liberdade.
Onde aparece a culpa das elites intelectuais? Em
primeiro lugar na desinformação quando elas pela sua
própria essência tinha o dever de procurar e dizer a
verdade. As eventuais alegações de ingenuidade no
conhecimento das realidades comunistas não constituem
uma desculpa para uma classe por definição esclarecida.
É, por exemplo, estarrecedor que Sidney e Beatrice
Webb, distintos intelectuais do socialismo fabiano
inglês, declararam que a URSS representava o início do
desaparecimento do Estado. Isto quando o aparelho
político e policial do Estado Soviético estava no seu
auge. Ignorância ou má fé?
É verdade que a poderosa propaganda soviética
escondeu as realidades, e o fanatismo das elites tornou -
as presa fácil daquela máquina. Para uso externo a
realidade soviética foi sistematicamente fantasiada (o
potemquinismo, na expressão de Guy Sorman) e as
elites caíram nessa armadilha. É deprimente a história
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de ilustres intelectuais ocidentais, como os Webb já
citados, ou Romain Rolland, prêmio Nobel de literatura,
que visitaram a União Soviética, e só vendo as aldeias
de Potemkin não pouparam elogios ao regime quando de
lá voltaram.
O fanatismo fez com que aqueles partidários
desconsiderassem as advertências feitas por conhece -
dores do regime comunista, os que viveram aquela
realidade e ficaram desiludidos com as falsas promessas.
A propósito desta circunstância vale citar a declar ação
do filósofo inglês Bertrand Russel, de que “o
bolchevismo... é o regime detestado como uma tirania
na Rússia mas esperado como uma libertação fora da
Rússia” (apud Furet).
As advertências vieram de gabaritados ex -
comunistas como Pierre Pascal, Boris Souvarine, Panait
Istrate, Ignazio Silone, André Caliga e o mais célebre, o
romancista francês, prêmio Nobel, André Gide, que
visitou a URSS e na volta (1936) publicou suas
impressões, um verdadeiro escândalo para a Esquerda.
Por exemplo, escreveu Gide: “Duvido que em qualquer
país hoje em dia... o espírito seja menos livre, mais
submisso, menos aterrorizado, mais vassalizado”. Mais
tarde, já depois da Segunda Guerra Mundial, a
propaganda comunista foi fortemente desmentida pelos
livros de dois conhecedores por dentro do regime,
Victor Kravchenko (Escolhi a Liberdade) e Milovan
Djilas (A Nova Classe), bem como Orwell, Koestler e
outros.
Mas a traição dos intelectuais aparece de forma
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patente nos meios por eles usados na defesa do dogma.
Um método consistiu em simplesmente omitir os fatos
negativos da gestão comunista, na URSS. Os sim -
patizantes evitaram lembrar o genocídio da coletividade
agrícola, os expurgos, as deportações e liquidações ou
eventos políticos degradantes como o pacto Ribentropp -
Molotov que abriu as portas à Segunda Guerra Mundial.
Os aduladores do modelo falaram ad nauseam nos
progressos econômicos propiciados pela planificação
centralizada, mas não fizeram referências ao seu custo
em termos de trabalho forçado, compressão insuportável
do consumo, falta de eficiência e desperdício.
Quando os fatos não foram silenciados, foram
colocados num contexto em que a interpretação dos
valores tradicionais confundissem a opinião pública.
Hayek já escreveu que para se conseguir o abandono dos
antigos valores, “a técnica mais eficiente... é continuar a
usar as antigas palavras alterando-lhes o sentido”.
Assim, falaram ainda em liberdade, justiça, legalidade,
etc., contudo num sentido contrário ao tradicional. Às
vezes, admitindo os fatos, os partidários do comunismo
procederam a verdadeiras acrobacias semânticas para
disfarçar a realidade. Um professor sério como Charles
Bettelheim chegou a usar eufemismos como por
exemplo “meios psico-físicos de coerção”, para designar
o arsenal de horrores usado pelo regime comunista.
Um exemplo de desvio das realidades foi a
identificação da URSS com a luta antifascista, de modo
que os adversários do fascismo acharam na URSS a
encarnação desta luta – esquecendo que ela própria era
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um modelo de totalitarismo e que a essência do regime
comunista não diferia do fascismo, como tão bem
demonstrou Hayek. Até se admitir essa semelhança, o
comunismo soviético gozou dos louros da luta e
finalmente da vitória contra o fascismo.
A confusão foi ilimitada, oriunda da ingenuidade
ou da má fé dos partidários. Já seria de estranhar que o
homem do valor de H. G. Wells escrevera que “o
comunismo apesar de tudo e a despeito de Marx podia
tomar um poder construtivo enorme”. E por sua vez,
Bernard Shaw afirmou que “Stalin é um bom fabiano e
isto é o que de melhor se pode dizer de qualquer um”.
Às vezes a interpretação eufemística podia
explicar-se por interesses políticos. Assim não é de se
estranhar que Joseph Davies, sendo embaixador norte -
americano na URSS na época dos grandes processos de
expurgo, a eles assistiu sem entender nada ou não querê -
lo por dever do ofício. Mais incomoda é a desculpa que
o grande liberal Hayek invoca no prefácio da edição de
1976 do seu livro O Caminho da Servidão: “A pouca
ênfase que dei è relevância da experiência da Rússia foi
uma falha talvez perdoável quando lembramos que,
quando escrevi o livro, a Rússia era nossa aliada na
guerra”. A verdade teve limites políticos mesmo para
um intelectual como Hayek.
E para fechar esta série de citações de
ambigüidades, vejamos o que escrevia Jorge Amado no
momento em que a URSS e Stalin se encontravam no
seu auge: “Eu amava a URSS exatamente porque lá não
só existe a liberdade de crítica e de imprensa, como o
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exercício do direito de crítica é mesmo um dos
princípios em que se funda a sociedade soviética” (O
Mundo da Paz, 1952). O autor confessou estar pensando
“na imensa ação moral da URSS sobre o nosso tempo”.
E mais: “O passado – os restos de um podre mundo
capitalista – jamais poderá vencer o presente soviético”,
lembrando a “força invencível do mundo que Lênin e
Stalin haviam criado”. Sonho? Ou delírio?

***

Em meados do século a ilusão marxista sofreu


sérios abalos. O momento crucial foi o histórico
discurso de Krushev no XX Congresso do PCUS (1956),
quando denunciou os crimes do stalinismo. Começou um
processo de revelação das realidades comunistas,
confirmando o que anteriormente os partidários e
simpatizantes do sistema qualificavam de mentiras
forjadas pelos capitalistas. No clima de relativa
liberalização as denúncias intensificaram-se, oriundas
especialmente de dentro do sistema – foram, por
exemplo, as obras de Pasternak e Soljenitsin, para não
falar dos repetidos testemunhos dos refugiados dos
países satélites da Europa Oriental. A contestação
começou também de dentro, no campo econômico como
as propostas de reforma apresentadas por Liberman e
Trapeznicov na União Soviética. O golpe de
misericórdia foi dado por Gorbachev, questionando o
regime tanto no plano político como no econômico, sem
contudo rejeitar as bases do pensamento leninista.
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Mas o nosso propósito não é discutir as causas e
os efeitos das críticas e eventuais reformas, mas sim,
perguntar qual foi a reação das elites fascinadas pelo
marxismo em face das revelações agora incontestáveis
sobre o regime. Elas, sempre movidas pelo fanatismo,
simplesmente persistiram na defesa do sistema a
despeito da evidência dos fatos. Essa defesa continua
sendo feita através dos mesmos métodos já men -
cionados: silêncio a respeito dos fatos incontestáveis,
deformação dos mesmos, subterfúgios semânticos, e
assim por diante.
Em face da denúncia oficial do stalinismo a
reação defensiva da Esquerda consistiu em rejeitá -lo
separando-o do socialismo “puro” de Marx e Lênin e
escondendo o fato de que os germes do stalinismo –
autoritarismo, centralização do poder, estado policial –
se encontram na tradição de Lênin e mesmo de Marx.
Tanto é que até um grande comunista como Trot sky,
quando magoado pela perseguição stalinista, identificou
a evolução fatal do sistema: da ditadura do prole tariado
para a do Partido e finalmente para a do Chefe do
partido.
As elites esquerdistas voltaram para a velha
prática ilusionista, discriminando o socialismo “real”, já
condenado, de um outro “socialismo ideal”, a velha
utopia do paraíso socialista, considerando o stalinismo
como uma simples crise conjuntural dentro da perfeição
do modelo marxista. Dentro dessa tática de acenar com
a perspectiva de um outro socialismo, foi ressuscitada a
figura de Bukharin, suposto paradigma de um
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“comunismo com rosto humano” pretedindo o fato de
que o próprio Bukharin foi um seguidor de Stalin de
cuja política participou até sua própria liquidação.
É um verdadeiro fetichismo quando a Esquerda se
refere, sem maior aprofundamento, a um outro
socialismo, não explicando como seria e como
funcionaria, mas que seria ainda socialismo. Assim, um
líder comunista pátrio, tendo honestamente admitido o
fiasco da teoria marxista e o colapso do socialismo real,
conclama que “temos que reinventar o socialismo”.
(Roberto Freire, JB, 9.06.1991)

***

Confesso que me faltam capacidade e fôlego para


analisar todas as manifestações das elites neste período
em que o fascínio pelo marxismo resistiu aos desmen -
tidos dos fatos. Escolhi apenas o exemplo de um
scholar, historiador, professor da Universidade de
Londres e muito louvado pela Esquerda: Eric
Hobsbawm. Refiro-me especialmente a um livro recente,
A Era dos Extremos (1995). Aparece nele o mesmo
empenho em camuflar ou deformar as realidades a fim
de não marcharem a imagem da experiência com unista
representada pela União Soviética. Torna-se evidente o
propósito de minimizar ou mesmo ignorar todos os
graves acontecimentos que comprovadamente estigmati -
zaram aquele regime: a coletivização agrícola e a
liquidação dos kulaks, as deportações e o t rabalho
forçado, os expurgos, o pacto de 1939, a espoliação dos
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países satélites. A despeito das revelações de Gorba -
chev, Hobsbawm sustenta ainda que o sistema socialista
é “economicamente racional em teoria”, mais uma vez a
ilusão do modelo ideal. Aconselha pois “separar a
questão do socialismo de forma geral da experiência
específica do socialismo realmente existente” – a velha
condenação do socialismo real para salvar o dogma.
Assim Hobsbawm, como os seus antecessores ou
coevos, acena com outras alternativas indefinidas: “o
fracasso do socialismo soviético não se reflete sobre a
possibilidade de outros tipos de socialismo”. Quais?
A benevolência para com a União Soviética
estende-se às suas ações políticas. Hobsbawm afirma
tranqüilamente que “a URSS não era expansionista e
menos ainda agressiva, nem contava com qualquer
extensão maior do avanço comunista além do que se
supõe houvesse sido combinado nas conferências de
cúpula de 1943/45” e que “não há índice concreto de
que ela pretendesse ampliar as fronteiras do comunismo
até meados da década de 70”. A URSS apenas “usou
uma conjuntura favorável que não criara”. Se os avanços
dos Estados Unidos são imperialistas, os da URSS
representam tão somente a expansão “normal” do
socialismo. Parece que Hobsbawm viveu num outro
planeta ou o fascínio marxista o cegou por completo.

***

Essa mistura de fanatismo e confusão surge


eventualmente mais acentuada no Terceiro Mundo onde
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as elites, além das motivações já mencionadas, estão
menos preparadas e mais sensíveis às promessas
comunistas, bem como à obra da propaganda devido ao
impacto emocional da pobreza ali reinante. A idéia
infiltrada pela propaganda é que só o modelo
socialista/comunista pode resolver os problemas, a
despeito das experiências reveladoras do Império
soviético. Ademais, as reivindicações igualitaristas não
são desprovidas de um certo ódio e revanchismo para
com o mundo capitalista e daí para com o liberalismo
em geral.
Entretanto as suas elites não esclarecem o
funcionamento efetivo da proposta comunista tanto no
plano da igualdade quanto no da liberdade. Rejeitando o
rigor dos dogmas marxistas e descartadas as pretensões
teóricos de Lênin, para não lembrar mais o des -
moralizado modelo stalinista, sobram aos defensores do
mito marxista sobretudo posições negativas centradas
em torno do antiliberalismo, criticar o liberalismo
onerando-o com todos os pecados possíveis: capitalismo
selvagem, imperialismo, colonialismo. Abandona-se
formalmente o cabedal teórico do marxismo ao mesmo
tempo que se continua usando e abusando dos conceitos
tradicionais de imperialismo, dependência e eviden -
temente anticapitalismo e antiamericanismo.
Pode-se dizer que o fascínio do discurso marxista
se manifesta sobretudo em formas negativistas. Essa
posição, bastante cômoda como qualquer crítica des-
trutiva, foi uma constante na atitude dos simpatizantes.
“É fundamental que o argumento comunista foi
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principalmente negativo: anticapitalismo, antifascismo,
etc. O mesmo acontece agora: exemplo, as críticas ao
neoliberalismo sem definir os méritos do comunismo”.
(Furet)
Afinal de contas, a capacidade de sobrevivência
do fascínio marxista estaria ligada, em grande parte, a
essa posição negativista, ao arsenal de críticas a outras
propostas, sem que o socialismo se sinta obrigado a
assumir seus fracassos e justificar as suas propostas. É
suficiente a obstinação cega de seus discursos,
sustentados por uma bem articulada propaganda, graças
à infiltração nos meios de comunicação. E a explicação
desse fanatismo talvez deva ser procurada naquela
observação inicialmente citada de Schumpeter sobre o
caráter quase religioso do discurso marxista – a
promessa de um paraíso terrestre.

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

BENDA, Julien. La Trahison des Clercs. 1927.

BETTELHEIM, Charles, La Planification Soviétique. 1945.

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HAYEK, F. A. The Road to Serfdom. 1944.

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SADER, Emir (org.). O Mundo Depois da Queda. 1995.

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VON MISES, Ludwig. The Anti-Capitalism Mentality. 1972.

(Transcrito de Carta Mensal, Rio de Janeiro, 42(498): 77-85,


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