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TRATADO DE ECONOMIA

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

IH

COLEÇÃO DOS GRANDES TEMAS SOCIAIS


Fazem parte desta coleção as seguintes obras de Mário Ferreira
dos Santos: TRATADO
1)
2)
Tratado de Economia I vol.
Tratado de Economia II vol.
DE
3) Filosofia e História da Cultura I vol.
4)
5)
Filosofia e História da Cultura II vol.
Filosofia e História da Cultura III vol.
ECONOMIA WBLtOTPC» HNMWCr*
6) Análise de Temas Sociais I vcl. *ROf. " 6ENT0 M. DA ROCHA N E T l W
7) Análise de Temas Sociais II vol. AQUISIÇÃO DO ca P 0
8) Análise de Temas Sociais III vol.
VOLUME £uW
H-<2-* EfcolywTff
9) O Problema Social
DATA OE REG.

CLÂS.MF. L0C.jC8S,

II
...l.'._i_ REG. BIB

MAMIMUA - P t

LIVRARIA E EDITORA LOGOS LTDA.


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SAO PAULO

m
l. a edição, em fevereiro de 1962

ÍNDICE

As Relações da Propriedade 11
O Estado e o Capitalismo — Sindicalismo — Imperialismo . . . . 17
Expansão Patronal e Operária 27
A Acção do Estado 31
AI>VERTÊ>í ClA A O LEITO R G Espírito do Capitalismo 37
Acto Económico 41
Sem dúvida, para a Filosofia, o vocabulário é de A Empresa e o Empresário 49
máxima importância e, sobretudo, o elemento etimoló- Extensidade da Empresa Capitalista — O Artesanato 57
gico da composição dos termos. Como, na ortografia Riscos do Proprietário 63
atual, são dispensadas c e r t a s consoantes, mudas, en- A Empresa Industrial e Comercial 67
tretanto, na linguagem d e hoje, nós as conservamos Exploração e Empresa Pública 75
apenas quando contribuem para apontar étimos que Crítica da Empresa e do Empresário 83
facilitem a melhor com p r e ensão da formação histó- O Cooperativismo e sua Zona 89
rica do termo empregado, e apenas quando julgamos Os Pioneiros de Rochdale 93
conveniente chamar a atenção do leitor para eles. A Exploração Cooperativa 103
Fazemos esta observação somente para evitar a es- Cooperativa de Consumo 107
tranheza que possa c a U s a r a CO nservação de tal grafia. Cooperativa de Producção 113
O Estado e a Cooperação 119
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS O Cooperativismo e o Capitalismo 129
O Crédito e o Capitalismo 133
A Função Bancária 139
Ofe Institutos Públicos 147
A Moeda 153
Análise 155
A Formação dos Preços 161
Aspectos da Concorrência 167
Os Monopólios 171
Fixação dos Preços Pela Autoridade Pública 173
Os, Sistemas Monetários 177
Previsões Económicas 181
Iriflacção e Deflacção 185
A Moeda e a Actualidade Brasileira 203

TODOS os DIREITOS RESERVADOS

\
AS KELAÇÕES DA PROPRIEDADE

Entre agentes económicos, a troca é qualquer trans-


missão mútua de bens ou de serviços, formando uma cor-
relação. É ela assim sempre onerosa e realiza-se segundo
uma norma social (moral e também jurídica).
Com tal enunciado, deixamos porta aberta para estu-
darmos um aspecto importante da troca: a forma jurídica,
que é a do contracto.
Juridicamente considerado, o contracto não é apenas o
encontro de duas vontades, mas a limitação recíproca de
uma vontade pela outra sobre um objecto lícito.
É pelo contracto sobre o mercado de serviços que adqui-
re o empresário os factores productivos: natureza, traba-
lho, capital para combiná-los na empresa. E é também atra-
vés de contractos, compra e venda no mercado de productos,
que se escoa o producto obtido pela empresa.
Pode-se verificar três fases no Ocidente:
a) uma fase de regime institucional;
b) uma fase de regime contractual;
c) uma fase de regime variável contractuflí (a nossa).
Analisemos: impõe-se distinguir um contracto de uma
instituição. Numa instituição, reúnem-se meios materiais;
os elementos humanos colaboram para um fim comum.
Ajustam-se os interesses opostos, há um conjunto de obri-
gações no plano jurídico e de deveres no plano psicológico
e moral. Por isso, conclui-se um contracto; aceita-se, ade-
re-se a uma instituição.
Já por vezes temos salientado que toda a história hu-
mana é essa luta entre a liberdade e a autoridade, sobre-
12 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
TRATADO DE ECONOMIA 13
tudo no Ocidente, após a queda do império romano, como
já o salientou Tarde. O Ocidente conheceu momentos de Muda-se, assim, toda a fisionomia da corporação. Ins-
economias dispersas e de economias centralizadas, de preços tala-se a luta entre productores, que defendem encarniçada-
livres, e de preços sociais, ordenados, isto é, regimes eco- mente ante o consumo os seus ganhos. Tal luta, traz, como
nómicos institucionais e regimes contractuais. resultado, a oposição entre productor e consumidor.
O regime corporativo é rigorosamente institucional. É o segundo diástema. Antagonismo interno entre pro-
Não há nele contractos livremente concluídos, mas estatutos ductores, e antagonismo externo entre productores e con-
objectivos ou regras públicas. sumidores.
As relações entre mestres e companheiros são fixadas A dissolução da corporação, já adulterada, foi fatal ante
por um conjunto de estipulações quanto à duração do tra- os golpes da legislação revolucionária. E a luta entre pro-
balho, ao modo de execução, às condições de sua remunera­ ductores, empresários, antes submetidos às mesmas regras
ção e às normas que permitem a passagem, de companheiro estatutárias, em luta económica, trouxe, como consequência,
para mestre. a dispersão dos productores. Eis o terceiro diástema.
A corporação é a construção de uma instituição. Todas essas dissociações (diástemas) criaram um am-
plo campo em favor do contracto.
De início é aberta, para fechar-se a seguir. Até o
século XIV, a corporação dava todas as possibilidades aos Só o contracto poderia unir para um fim comum os
desejosos de obter uma profissão. elementos dissociados, dispersos. Só o Estado poderia exer-
cer uma função coordenadora por entre a dispersão e o an-
Mas a transformação que vai ela sofrer, deve-se a obs- tagonismo.
táculos de ordem jurídica. Os mestres tendem a monopo-
lizar o trabalho, em face do afluxo de productores nos cen- De início, já no alvorecer do capitalismo liberal, o do-
tros urbanos. É o egoísmo das classes, que podemos sentir mínio dos productores particulares e do poder público são
patente entre médicos, advogados, etc. Como o direito de considerados, obedecendo cada grupo leis distintas.
mestre devia ser conquistado, criaram tais condições na A preeminência é dada ao indivíduo, e um princípio de
execução da obra-prima (cuja realização elevava o compa- direito é aceito: a autonomia da vontade. E a fórmula ju-
nheiro à categoria de mestre), que essa conquista tornava- rídica diz que as vontades individuais só se limitam ao dic-
-se quase impossível. tarem a si mesmas uma regra (lei) ou trocar regras (con-
tractos).
Criou-se até restrições tão directas, que só filhos ou
parentes de mestres podiam alcançar a maestria, que se A ideia da autonomia individual leva a várias conse-
tornou um privilégio. quências.
Além desses sobrevieram obstáculos de ordem econó- Se a vontade é autónoma, são os indivíduos soberanos,
mica. A dimensão da unidade de producção cresceu. A e são dependentes em relação a si mesmos. Esses aspectos
tenda de trabalho foi substituída pela oficina, e esta exigia são manifestados no contracto, que é uma expressão e uma
mais capital. limitação das vontades livres e autónomas.
O contracto surgiu, assim, como o meio de unir as acti-
No século XVI, dá-se a alta de preços consecutiva ao vidades. Pelo contracto, passou-se da fase institucional
crescimento do estoque metálico, sem que os salários tives- (corporação) para um regime de acordos, que permitiu o
sem tido o aumento que corresponderia, como sempre suce- ajustamento dos interesses dos productores e consumidores
de. O companheiro via assim suas possibilidades se restrin- por meio de convenções.
girem. Tal facto permitiu que se precipitasse um diástema
(separação) por dissociação, entre o trabalho e o capital. Só posteriormente, com o desenvolvimento do capitalis-
mo das grandes unidades, é que o contracto toma um sentido
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14 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

diferente, o que estudaremos. Veremos como nela a insti- de estructurar o contracto. A um capitalismo liberal, de
tuição torna a surgir, mas já com as modificações trazidas pequenas unidades, sobrevêm um capitalismo de monopólio,
da sua reciprocidade com o contracto. que agudiza a luta de classes.
O princípio da autonomia da vontade é combatido fe- Assim os contractos de trabalho podem ser estudados
rozmente por todos os deterministas. sob duas formas:
No contracto, é preciso admitir que os agentes contrac- a) contracto individual e
tantes, que nele intervêm, não experimentem nenhum cons-
trangimento. b) contracto colectivo.
No entanto, se considerarmos um sindicato operário, Em qualquer dos dois casos, há uma institucionalização
quer como organização de fins e meios colectivos, que trata por parte do Estado, que estabelece normas reguladas pela
da defesa dos interesses profissionais, estabelece-se entre legislação social do país.
os seus membros uma solidariedade, que é anterior ao con- O contracto de trabalho ou contracto de locação de ser-
tracto. Pode um operário não aderir a um sindicato, e é viços, em sentido restricto, é um contracto pelo qual as pres-
livre para tal, não pode, porém, deixar de estar ligado, pela
solidariedade, aos outros membros de sua profissão. tações de trabalho são trocadas por um salário. Pelo salá-
rio, o trabalhador permanece ante o empregador numa si-
Numa sociedade anónima, temos uma sociedade de ca- tuação de subordinação. Essa subordinação é uma depen-
pitais, ordenada para um interesse comum. Suas regras dência do trabalho no capitalismo.
não podem estar sujeitas a interpretações que se fundem Para alguns economistas, essa dependência é de carác-
na autonomia da vontade.
ter económico; para outros é uma dependência técnica. No
Examinemos a lei. Esta não é, em última análise, uma primeiro caso, justifica-se por estar o trabalhador dependen-
obrigação ditada pelo indivíduo. te do salário, e não dispor de outros recursos para atender
as suas necessidades. O segundo justifica-se também quan-
Não se alegue com as eleições, afirmando-se que na do há direção, controle na execução do trabalho.
formação da lei entra a vontade do eleitor. Essa vontade
não é esclarecida, e além disso a acção do indivíduo não é No Brasil, o trabalho é regulado por uma série de leis,
determinada pela sua vontade, mas pelas condições reais que regulam e determinam suas condições fundamentais.
do meio em que se encontra. Depende da consciência jurí-
dica de sua época e das condições culturais. A técnica ju- Observa-se, assim, uma evolução do contracto no capi-
rídica representa a forma e não a matéria do direito. O di- talismo moderno, que vai do contracto espontâneo ao diri-
reito depende dos meios de constatação. E por isso a lei gido; da ordem pública política à ordem pública económica.
estipula como se deve fazer o contracto, como também esta- No capitalismo atómico, das pequenas unidades (libe-
belece as normas para sua interpretação. ral) os contractos são livres e espontâneos; no capitalismo
Com essa penetração do Estado como legislador, o con- moderno, temos o contracto dirigido, no qual o Estado in-
tracto se institucionalizou. Já não é um acordo entre vonta- tervém activamente.
des livres, mas sim um campo de acção de regras gerais, Esse desenvolvimento se dá pela coordenação de uma
mais ou menos duráveis, no qual o indivíduo pode fazer tão-
-sòmente o que estabelece a lei. Dessa forma, o contracto é série de diversas circunstâncias, tais como:
dirigido pelo Estado, que estabelece condições fundamentais. o progresso da técnica e da economia, pois o capitalismo
Essas transformações se deram por muitos motivos. A é um regime de expansão e intrinsecamente progressivo no
instabilidade monetária do capitalismo gera a necessidade seu sistema de producção e de troca;
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a instabilidade da moeda, influindo no preço, a desi-


gualdade de situação e de poder das diversas camadas de
operários qualificados e não qualificados, e seu antagonis-
mo com os empresários e os capitalistas, que leva o Estado a
regular tais relações para evitar os choques.
Aos poucos a ordem pública política se transforma em
ordem pública jurídica. O ESTADO E O CAPITALISMO — SINDICALISMO
Num capitalismo atómico e liberal, o Estado mantém-se — IMPERIALISMO
fora da actividade económica. Êle é apenas um espectador
dos choques e lutas de escala pequena, quase reduzidas a
um número ínfimo de operários. Cuida apenas que se res-
peitem as suas normas, as suas regras. A ordem pública é Muitos consideram como "sujeito económico", os ho-
estritamente política e é estável ou durável pelo menos. "" mens ou os grupos, que mantêm as relações de proãucção e
de troca, e que são considerados como os principais benefi-
No capitalismo moderno das grandes unidades, dos gru- ciários dessas actividades.
pos monopolizadores, os choques são mais violentos e fortes,
e a ordem é ameaçada. O interesse económico é posto à Segundo a posição mercantilista, o Estado é propria-
frente. O Estado intervém, regula, determina, interdita, mente o sujeito económico. O indivíduo é o meio, o instru-
estabelece normas. E justifica sua acção pela defesa do mento do poder e da riqueza do Estado.
interesse geral. Dessa forma institucionaliza, estatiza o
contracto, que passa do campo das relações livres para o Com os Fisiocratas, é o indivíduo o sujeito económico.
campo do Estado. O Estado apenas reconhece a ordem, elimina as contradi-
ções, as resistências. O bem do indivíduo é considerado em
O papel do Estado, tão importante, crescentemente do- primeiro lugar. Esta é a posição na fase industrial do ca-
minador na sociedade capitalista, merece um estudo espe- pitalismo.
cial, porque êle prepara o advento do regime cesariocrata.
E é o que faremos oportunamente. Na fase predominantemente financeira do capitalismo,
retorna o Estado a ser o sujeito económico, como se verifica
na segunda metade do século XIX. Essa compreensão sur-
ge nos estudos da Escola histórica, e sobretudo em List.
Essa é a posição das escolas socialistas (autoritárias)
e democráticas (não as libertárias). O Estado ou as colec-
tividades públicas passam a ser o sujeito económico. Da
utilidade subjectiva, predominante na fase industrial, passa-
-se para uma apreciação objectiva das condições, para uma
utilidade calculada, diferente da soma das utilidades ou das
utilidades dos indivíduos.
Essas collocações diferentes correspondem também a
concepções diferentes da Economia.
Quando o sujeito económico é o Estado, o económico
pertence à administração pública, à política.
18 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 19

Na segunda fase, é a constatação e a análise das leis que É da essência do capitalismo a divisão entre o factor
r
&gulam a actividade dos agentes individuais. trabalho e o factor capital. Os conflitos de interesse, que
se formam entre os agentes económicos desses dois factores,
Na terceira fase, temos uma integração da economia e interessam directamente ao Estado que procura, por todos
^ssas leis. os meios, arbitrá-los.
A utilidade, considerada até então subjectivamente, Os elementos representantes dos dois factores lutam
Passa a ser objectivamente considerada. entre si para aumentar seus rendimentos e poder, e seria
Temos, na primeira fase, o capitalismo controlado pelo uma ingenuidade querer negá-la como um facto social.
estado mercantilista; na segunda, a fase do capitalismo li- Polarizam-se os interesses e as reivindicações, e é o
beral ; na terceira, a do capitalismo das grandes unidades, do Estado sempre acusado por uns e por outros, na proporção
Monopólio, controlado pelo Estado (socialismo autoritário, em que tende mais para um lado que para outro.
capitalismo de Estado).
AM.CIO, l*i3úCfc U U 1 U X LLA<X^t*\J \Á\J& *A£,\yXXK/\*tJ v - v \s xx \J n u ^ v ~ , —- ~
Confundem-se aí as categorias do direito público com factores, não se processa amorfamente, mas por sedimenta-
is do direito privado. ções de classe, os sindicatos (patronais e operários).
A iniciativa e as relações que dependem dos grupos con- Essa palavra (sindicato) vem do antigo termo síndico,
trolados pelo Estado tornam-se mais numerosas. Entre es- a quem cabia a sindicância, assumindo posteriormente, pela
ses, temos os serviços de interesse geral. forma moderna, a significação de uma associação de comer-
Subordina-se o Estado aos interesses económicos, pelos ciantes ou não, para tratar, em comum, de determinados
atuais é penetrado, mas procura subordiná-los, por sua vez, interesses. Hoje, o sindicato é uma organização de classe
3.os valores morais. para tratar dos respectivos interesses económicos.

Mas uma análise do capitalismo ao lado do Estado e de Analisemos primeiramente o sindicalismo operário, de-
Sua estructura nos permitirá uma melhor visão de tão im- pois o sindicalismo patronal, para, finalmente, ligar tais
movimentos à acção do Estado.
portante tema da actualidade.
Já tivemos ocasião de falar nas corporações. Estas
Uma das primeiras intervenções do Estado na econo- mostravam duas formas de coerência: a confraria e o com­
mia é a que se manifesta pela determinação dos preços do panheirismo.
Cercado, o tabelamento, pelo qual procura corrigir o fun-
cionamento do mercado, conciliando os interesses divergen­ Com o decorrer do tempo, os mestres, receosos da con-
tes, arbitrando quando necessário. corrência de novos oficiais, organizaram-se de forma fe-
chada, criando os maiores embaraços à ascenção de novos
A segunda intervenção consiste nas explorações públi­ elementos, cavando, assim, um abismo, uma separação en-
cas. Interdiz actividades económicas por meio de monopó- tre os empregadores (diástema) e os assalariados. É nessa
lios do Estado, ou por leis proibitivas; cria legislação pro- fase que começam a surgir os primeiros grupos profissio-
tectora, lança impostos que aumentam o custo, intervém di- nais de composição operária.
lecta e indirectamente para fixar e ditar preços.
Surgem, então, as confrarias. No início, são associa-
A intervenção do Estado nos preços do mercado, para ções de carácter essencialmente caridoso e religioso, e agru-
correção dos desvios, termina por tornar-se de esporádica pam patrões e operários de uma mesma profissão. Mas, à
em permanente, como se vê actualmente em quase todo o proporção que se separam economicamente patrões e operá-
inundo e essa intervenção se processa das maneiras mais rios, a confraria muda de carácter. Fundam-se, então, con-
diversas. frarias de operários e, para evitar as rixas que se travavam
TRATADO DE ECONOMIA 21
20 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

sínio. Nunca se fêz uma estatística sobre essas mortes,


entre operários e patrões, põem-se a reunir em dias dife- mas poder-se-ia dizer que, por ideias, os trabalhadores ma-
rentes e a celebrar também, em dias diferentes, a festa do taram mais trabalhadores do que os esbirros dos patrões.
mesmo santo da confraria. Nos últimos cem anos, depois que penetraram no movimento
Tais factos, naturalmente, não obedecem a uma regra operário as doutrinas socialistas, os ódios, que dividem a
absoluta, mas apenas são verificáveis na história com certa classe trabalhadora, são mais intensos do que os que os se-
constância, ao lado de outros, de formas diferentes. O que paravam do patronato. A luta ideológica, com os "ilumi-
apenas nos convém salientar é que, nas confrarias, a sepa- nados messias", serviu apenas para evitar que a transfor-
ração entre operários e patrões processa-se já de maneira mação do capitalismo numa forma mais humana de vida
bem acentuada. social se observasse mais rápida, porque essa luta não só
serviu para obstinar os contendores, como para dividi-los
Já o companheirismo surge com o alvorecer do capita- e enfraquecê-los.
lismo. É combatido a princípio pelo Estado com severidade.
Institui-se, de início, com um sentido mutualista, como cai- O sindicalismo sofreu os males dessa luta e ainda so-
xas de socorros mútuos. Apesar de combatidos, organizam- fre, porque nela penetrou as valorações e interpretações
-se clandestinamente, entram eficazmente na luta contra os políticas, dividindo quando devia unir, atirando o choque
patrões e têm, como finalidade principal, recrutar a mão quando se impunha uma trégua. Não podemos aqui traçar
de obra, monopolizá-la, para enfrentar as exigências dos a história do sindicalismo porque é vasta.
mestres e dos patrões. O germe da greve já está aí. Essas
organizações já são verdadeiros organismos de combate. O sindicalismo operário forma-se sob o signo da luta,
do combate. O sindicato é um organismo de luta e de com-
É impossível relatar a história da luta do Estado contra petição, por isso se distingue da cooperativa que é um or-
tais organizações e da violência sanguinária que a acompa- ganismo de cooperação.
nha. (Aos que desejarem conhecer a história desse período
podem ler Martin St-Léon — "Histoire des corporations de A luta pelo sindicalismo é económica. Por se ter tor-
métiers", em 3 vols.) nado política, isto é, por se ter submetido a Economia à
Política, precisamente por aqueles que afirmam que a Políti-
Os diversos movimentos revolucionários verificados na ca se subordina à Economia, é que o sindicalismo serviu
Europa, a Revolução Francesa, a de 1848, a 1871, e as con- para desunir, separar os trabalhadores, bem como despres-
quistas de muitas leis, obtidas à custa de muito sangue e tigiar ante os seus próprios olhos as grandes possibilidades
muito sacrifício, acabaram por dar aos trabalhadores o di- do sindicalismo como organismo de luta dentro do regime
reito de se organizarem em unidades de defesa de seus inte- capitalista.
resses económicos, os sindicatos.
No início, sabiam bem claramente os operários o que Marcadas essas notas fundamentais, examinemos agora
queriam. Mas, com o decorrer do tempo, penetraram em o sindicalismo patronal.
seu meio os elementos intelectuais, trazendo suas doutrinas, Se voltarmos para o passado, vemos que, enquanto o
interpretações, algumas com a marca da infalibilidade, e as Estado combatia energicamente o sindicalismo operário, fa-
lutas já não se travavam contra a classe oposta, mas entre vorecia, por todos os meios legais e ilegais, estimulando tan-
os componentes da mesma classe. E nessa luta se deu um to quanto possível, o sindicalismo patronal, como vemos en-
impulso, um afã talvez muito maior e mais efectivo que na tre nós.
luta anterior.
Estudar-se a história do sindicalismo operário é ler a A formação das câmaras sindicais, das uniões do co-
história ambiciosa de tantos iluminados e chefetes "salvado- mércio e da indústria foram sempre favorecidas por todos
res" do proletariado, que o arrastou à violência e ao assas- os meios ao alcance do Estado.
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 23
22

No entanto, observa-se que nos sindicatos operários hou- Com o decorrer do tempo, é natural que se formem
ve sempre maior solidariedade, maior unidade pela homo- duas perspectivas, dois ideais, duas morais, duas ideologias,
geneidade dos elementos componentes, enquanto no sindica- inevitavelmente antagónicas.
lismo patronal a coerência, a unidade, foi obtida muitas ve- O patronal defende o benefício, o provento da sua clas-
zes em face da oposição que sentiam dos trabalhadores e se; é defensivo.
pela necessidade do Estado de se apoiar e de ser apoiado
pelo patronato. Por outro lado, o espírito do "cada um por O sindicato operário luta, combate, tem a mística da vio-
si" do capitalismo não facilitava a formação da unidade. A lência do combate sem tréguas. E nesse combate, nessa lu-
arquitetura sindical operária é homogénea. O operário per- ta, não seria de admirar que surgissem os ódios, e que esses
tence a um sindicato. ódios servissem de base para a fundamentação de ideais re-
volucionários.
Mas sendo heterogénea a constituição do patronato,
muitas vezes um indivíduo faz parte de muitos sindicatos, Todos os factos do movimento social, no capitalismo,
porque é constrangido a tal. As federações patronais se nos mostram, apesar de não o quererem compreender mui-
entrecruzam. tos, que nem histórica, nem psicológica, nem moralmente, o
sindicalismo operário e o sindicalismo patronal encontram
Assim como os sindicatos operários se federalizam em um meio de ser plenamente assimilados, como muito bem o
federações e confederações, também se federalizam os sin- mostrou Perroux.
dicatos patronais. E a federalização se processa por sedi- As soluções oferecidas para tal antagonismo serão es-
mentação das profissões (federações dos trabalhadores, tudadas em lugar oportuno, bem como as novas sugestões
federação das indústrias, do comércio, e t c ) . oferecidas para um desenvolvimento ulterior do grande te-
Quer operário quer patronal, o sindicato representa a ma social da luta de classes, que é uma resultante apenas da
defesa dos interesses (quando é realmente um sindicato) competição dos interesses, e não da cooperação dos interes­
dos membros que o compõe. O sindicato operário quer me- ses, como veremos.
lhorar o salário, as condições materiais e morais da execução
do serviço. O sindicato patronal combate a acção unilate- * * *
ral do sindicato operário, e procede em defesa dos interes-
ses do patronato.
Tanto a conjugação das forças patronais como as ope-
Para a boa efectivação dessa luta, necessita o sindicato rárias, não se contentam em reunir os elementos dispersos
de unidade, por isso de disciplina. Para tanto, organiza os e defender-lhes os direitos. Ambos agrupamentos querem
grupos, cria punições. Obtida essa unidade, luta pela ob- impor uma visão geral própria à comunidade nacional.
tenção dos direitos que reivindica.
Esse espírito de imposição nasce da convicção que têm
São os sindicatos patronais e operários realidades que ambos agrupamentos de que o justo, o verdadeiro, o que é
apresentam diferenciações dignas de nota. razoável, estão condicionados ao seu ponto de vista. Actua
aqui mais uma lógica afectiva do que o mero formalismo
O sindicato operário nasce espontaneamente, como uma lógico.
defesa natural do trabalhador ante a miséria que o avassala.
É um organismo que luta para obter o que lhe falta. Ambos têm a convicção de uma evidência: que o justo
está do seu lado. E como todo homem, quando tem a con-
O sindicato patronal desenvolve-se em função desse an- vicção de uma evidência não admite, não tolera, não aceita a
tagonismo e luta por não ceder os direitos adquiridos, ou, contradição, nem o desmentido, quer, por isso, salvar os ou-
quando os cede, por obter outros. tros do erro, e quando há resistência, impor-lhe a verdade.
24 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 25

Esse espírito totalitário é imperialista. Porque há im- órbita de um ou de outro pólo. No entanto, já Proudhon o
perialismo onde se deseja impor uma verdade aos outros. expusera, e Burhan o examinou mais próximo a nós, o pa-
E a imposição se dá quando se tem força para tanto. pel histórico do técnico, que, aos poucos, torna-se o gerente
de todos os bens do capitalismo.
Nessa luta totalitária, de imposição total de sua ver-
dade, o carácter imperialista se manifesta pela incorporação Não só os técnicos gerem, como são, de uma maneira
à sua verdade, dos elementos dispersos afins, pela acção que crescente, grandes usufrutuários dos benefícios, o que os le-
leva a fazer desertar elementos dos adversários e pela expan- va a pender para a órbita do patronato. Mas o facto de
são, sem limites, de suas funções. terem eles o controle económico da producção, leva-os tam-
bém a apoiar-se no agrupamento trabalhador, não para ga-
Examinemos estes aspectos importantes: rantir ou aumentar a expansão deste, mas para assegurar o
Entre o trabalhador e o empregador, há uma série de seu controle.
elementos intermédios, cujos interesses pendem, ora para No tempo do feudalismo, foram os burgueses os geren­
um pólo, ora para outro. Nem sempre é fácil distinguir o tes, e quando dominaram o poder económico, estatuíram sua
trabalho de o capital, daí a dificuldade de especificar a vitória através da revolução política, que é sempre estrepi-
ciasse, como o desejam os socialistas. tosa.
O camponês (o campesinato) é um tanto refratário à Esses elementos são recrutados para os dois pólos, mas
técnica do capitalismo. Resiste, por que, nele, a separação neles se forma, a pouco e pouco, uma consciência de classe,
entre o factor trabalho e o factor capital não é ainda bem torna-se uma classe para si. (Voltaremos ainda a este
clara. O tradicionalismo é mais subsistente e as relações tema).
humanas são mais amplas.
O recrutamento fora das fronteiras dos grupos consiste
Considera Ramuz o campesinato não propriamente uma quase sempre no esforço em provocar deserções no adver­
classe, mas um estado. sário.
E explica-o por que. Ser camponês não é apenas ter, Um dos processos mais conhecidos do capitalismo é o
exercer uma profissão, mas ter um modo de vida determi- sindicato amarelo misto, em que se misturam patrões e ope-
nado, uma maneira de ser; é participar de um conjunto coe- rários.
rente de comportamentos sociais. O camponês não existe
apenas hoje. Existiu sempre, enquanto outras funções va- Por outro lado, temos outra constante do movimento
riam. Ser camponês é participar de uma categoria econó­ sindical operário, que consiste na conquista do elemento do
mica fundamental, de uma actividade productiva de base. artesanato e do elemento pequeno-burguês, os pequenos
patrões.
Assim o sindicalismo dos trabalhadores do campo é mais
difícil de realizar-se, enquanto é mais fácil o dos emprega- Verifica-se, assim, que a expansão é realizada através
dores. da conquista desses elementos intermediários entre os dois
roolos.
O funcionário público actua numa área diferente da
producção e da troca. Com o decorrer da hipertrofiação do
Estado omnipotente e único, o funcionalismo, como força
eleitoral e política, obtém um estatuto que o separa da pro-
ducção e torna-se o usufrutuário maior do Estado.
Os técnicos e os trabalhadores intelectuais formam duas
novas modalidades, cujos interesses podem levá-los para a
EXPANSÃO PATRONAL E OPERÁRIA

Os dois agrupamentos, organizados sindicalmente, pro-


curam, por todos os meios, o domínio integral do sistema da
producção e da troca, em seu exclusivo interesse. Para as-
segurar esse domínio, procuram apossar-se da máquina do
Estado e modelá-la no sentido que lhes é conveniente.
Possui o sindicalismo patronal, historicamente, o domí-
nio político e económico, e não quer perdê-lo. Ao contrário;
além de conservá-lo, quer organizá-lo de modo que possa
servir aos seus interesses e impedir o desenvolvimento das
forças contrárias.
A influência patronal no Estado manifesta-se de duas
formas:
a) clara — pelo domínio do poder do Estado pelos
monopólios, cartéis, trustes, etc, próprios do capitalismo das
grandes unidades, como foi o caso da Alemanha, após a pri-
meira guerra mundial;
b) veladamente — através das influências parlamen-
tarias, pressões financeiras, imprensa e propaganda.
Quanto ao proletariado, convém distinguir também:
No início, as associações proletárias não contestam os
direitos do capitalismo, mas apenas procuram corrigir de-
feitos, limitar excessos, impedir injustiças.
Lutam por salários mais elevados, melhores condições
materiais e morais de trabalho. Mas, posteriormente, alar-
gam-se as suas pretensões e desejam uma transformação da
economia capitalista e querem substituí-la por uma economia
propriamente sindical. De meio de defesa, torna-se o sin-
dicato um meio de luta, e posteriormente, uma célula de
base para a reconstrução social. (Estas são, em linhas mes-
28 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 29

tras, as ideias do Anarco-sindicalismo). Politicamente, fo- pouco, e os cristãos de que os anarquistas querem demais.
ram os sindicatos operários perseguidos até conquistarem Além disso, os primeiros não acreditam na sinceridade dos
seu direito de cidade, isto é, seu reconhecimento pelos pa- cristãos, porque afirmam que estes são manejados pelos in-
trões e pelo Estado. teresses patronais ocultos, embora reconheçam que há indi-
No início, não quer o sindicato operário senão defen- vidualmente expressões respeitáveis de sinceridade.
der-se do Estado e dos patrões, mas termina por desejar Em suas linhas gerais, combatem os anarquistas a so-
substituir o Estado, substituir o "governo dos homens" pe- lução marxista por considerarem nela um erro fundamen-
la "administração das coisas", isto é, a desaparição do Es­ tal. Marx confundia negação por privação e negação com
tado político, substituído pela Administração social, funda- alteriãade. A opressão não é uma antítese da liberdade,
da nas comunidades livres (Anarquismo), ou numa nova nem esta daquela. Na opressão há carência, privação da
estructuração do Estado, mas já proletário, que exerce sua liberdade. Dessa forma nunca a opressão poderia alterar-
ditadura sobre todos, e dá a nova ordem social (socialismo -se em seu contrário, a liberdade, porque o semelhante gera
autoritário, marxismo, e t c ) . Quando o sindicato operário o semelhante. Assim, nunca a ditadura gerará liberdade,
forma a célula de base de uma estructura administrativa e se o reino da liberdade é o desejo dos marxistas, a dita-
não política, temos o anarco-sindicalismo, quando além de dura do proletariado (ou sobre o proletariado), gerará
administrativa é política, temos o sindicalismo marxista ou apenas a hipertrofia do Estado. Quando Lenine e os mar-
de feição marxista. xistas asseguravam que o Estado proletário seria um esta-
As críticas, que se formam contra o sindicalismo revo- do em deperecimento, afirmavam os anarquistas (antes
lucionário, baseiam-se todas no princípio de que o proleta- da revolução russa), que em vez de deperecer, esse estado
riado, os assalariados em geral, não formam a nação, como se hipertrofiaria.
é provado estatisticamente. Dessa forma, sua ditadura é Os factos, posteriormente, comprovaram que as críti-
apenas uma ditadura que nem sequer vem em seu benefício, cas dos anarquistas estavam mais certas.
nem no da sociedade humana.
Apresentamos em outros trabalhos nossos um paralelo
Surgem aqui as críticas dos anarquistas, que desejam das opiniões anarquistas e das marxistas, antes, durante e
uma estructuração social que respeite o homem, pois este depois da revolução russa, apesar de os anarquistas terem
precede a classe, e vale mais que a classe e deve estar pre- sido sempre apresentados como utópicos; contudo, tinham
sente sempre como a verdadeira concrecção, enquanto a clas- uma acuidade na observação dos factos muito maior que os
se é uma abstracção. marxistas, apesar de serem estes "científicos".
Daí afirmarem que todas as soluções que tomem esse ru-
mo são fictícias e redundarão em prejuízos e brutalidade,
porque, na verdade, são utópicas, pois se fundamentam em * * *
abstracções. A solução, que humaniza o homem, é a con-
creta, embora seja ela considerada utópica pelos marxistas
e sequazes. Recapitulando os temas acima tratados, podemos consi-
derar o histórico dessa luta em seu sentido actual: isto é,
As opiniões anarquistas têm muita semelhança com as aplicá-lo aos factos que decorrem. Essa luta continua na
opiniões sociais dos cristãos, que também se fundam nos sociedade hodierna, com uma violência não inferior à an-
postulados de Proudhon, como se observa no movimento tiga.
cristão-social na França.
As "contradições", inerentes ao regime capitalista, que
Embora anarquistas e cristãos se digladiem, lutam no levam à polarização dos interesses, não podiam evitar a
mesmo terreno. Os anarquistas os acusam de quererem luta. Procuram encarnar esses dois pólos, hoje, as potên-
30 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

cias em choque. No entanto, ambas usam de bandeiras no-


vas e se intitulam defensoras de ideais, que as ultrapassam.
Uma análise da situação russa e da americana impu-
nha-se aqui. Mas, para fazê-lo, teremos primeiramente que
examinar outros aspectos, categorias e conceitos económi-
cos, para que essa análise permaneça em terreno sólido.
Então poderemos ver claramente quanto há de rigor ou não A ACÇÃO DO ESTADO
nessas pretensões, bem como se as duas soluções preconi-
zadas formam realmente um dilema, isto é, se temos de es-
colher uma ou outra, e se não há outras posições, indicadas
pela Economia, pela História e pela Técnica e sobretudo Pretendendo ajustar os interesses em luta na socieda-
pela Ética, e com o exame das ciências culturais. de, para estabelecer a "paz social", a intervenção do Estado
se processa, como já vimos, pela fixação dos preços, pela
Mas tal análise exige outras que a precedem, e virá nos legislação, etc. No entanto, em certas circunstâncias his-
próximos volumes. Estudemos a seguir a acção do Estado tóricas, impõe-se uma intervenção mais directa e efectiva,
para enfrentar tais problemas. e podemos analisá-la sob as duas formas mais conhecidas:
a autoritária e a democrática, que são as formas típicas da
* * * época que vivemos.

A FORMA AUTORITÁRIA
Quanto ao imperialismo em sentido económico, que ul-
trapassa as fronteiras de uma nação, teremos oportunidade As mais importantes que conhecemos, em nossos dias,
de estudá-las após o exame de outros aspectos de interesse foram a da Alemanha hitlerista e a da Itália fascista.
fundamental.
Examinemos suas diferenças e similitudes.
1) O Estado parlamentar, com seu princípio repre-
sentativo, princípio da divisão dos poderes, a livre concor-
rência, etc, é substituído por um Estado que se considera
representante directo da nação (Itália) ou do povo (Alema-
nha).
2) Organizam-se agrupamentos corporativos, que são
organismos públicos que lutam contra a dispersão da pro-
ducção do capitalismo, impondo uma colaboração pacífica e
jurídica do trabalho e do capital; isto é, lutam contra o
antagonismo que dispersa a producção, suprimem o direito
de greve e estabelecem um tribunal de trabalho, no qual são
julgadas as pendências entre patrões e operários, cujo tri-
bunal lança sentenças, que são sancionadas pela lei.
A técnica democrática foi aplicada na própria Alema-
nha, durante a República de Weimar, e é aplicada também
hoje na França.
32 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 33

Neste país, o Estado é parlamentar, e mantém todos os Dessa forma se vê que em ambas manifestações, a da
seus princípios. Não há agrupamentos corporativos per- Itália e a da Alemanha, há bastante similitude, e formam
manentes de carácter público ou semi-público. Mantém-se um grupo que se opunha às experiências dos países demo-
o direito de greve, embora se delimite a sua extensão. cráticos.
A greve tem sido uma arma usada muito mais para Na Alemanha Weimariana, que precedeu à Alemanha
fins políticos que para fins económicos. Essa prática des- fascista, houve diversas experiências de socialismo demo-
virtuada tem o deliberado interesse de desmoralizá-la como crático, realizadas com o apoio de todos os partidos políti-
meio de luta, para poder levar os trabalhadores ao deses- cos intitulados socialistas, inclusive o comunista. Procura-
pero e concomitantemente à insurreição. vam, por todos os meios, conservar as instituições básicas
do capitalismo, manter o mercado, embora controlando-o, e
Analisemos as duas técnicas: o salariato. Mas essas providências levaram a enfrentar
o problema do Estado e a procurar a sua reforma.
Na Itália, pela lei de 3 de Abril de 1926, foi organizada Foi instituída a arbitragem obrigatória como meio de
em suas bases, a corporação. Os sindicatos oficializados solução das diferenças colectivas económicas e sociais.
passaram a ser oficiais, e seus estatutos submetidos ao con- Grandes dificuldades surgiram para manter essa arbitra-
trole do Estado.
gem. Há dificuldade em delimitar um conflito colectivo de
Posteriormente, o sindicato foi cedendo sua posição um conflito individual, e impedir que um individual se tor-
para ser substituído pela corporação que agrupava patrões ne no movimento colectivo de uma greve, criando dificul-
e operários, e era dirigida por um ministro de Estado, no- dades de ordem económica e social para solucionar e en-
meado pelo governo. frentar finalidades não somente diferentes mas até opostas.
Os tribunais de arbitragem e as juntas de conciliação
Na Alemanha, com o decorrer do tempo, atingiu-se a são comuns hoje nos países democráticos, variando suas
uma organização, que embora não sendo bem a corporação,
teve um carácter de Stand, cujo nome adquiriu. Nela se normas, segundo a legislação de cada país.
reuniam as actividades profissionais num quadro mais amplo As diferenças que caracterizam a técnica democrática
que os das profissões. Os membros dessa organização, sub- e a autoritária, podemos salientá-las do seguinte modo.
metidos a regras comuns de acção, tendiam para uma cola-
boração pacífica entre o trabalho e o capital. O número No Estado democrático: este aceita que a sociedade
desses Standen era pequeno. Em 1933, quando os hitleris- civil é diferente dele e tem uma existência relativamente
tas assumiram o poder, destruíram as organizações socia- independente. Respeita certas particularidades e diversida-
listas, os sindicatos, as cooperativas, os partidos. Na Fren­ des dos agrupamentos, enquanto nos países autoritários, o
te do Trabalho, reuniram trabalhadores e patrões e as pen- Estado e a população civil são apresentados como uma uni-
dências eram resolvidas em tribunais de honra social, nos dade, e as decisões daqueles são impostas como próprias da
quais eram julgados os atentados à honra da mão de obra sociedade civil.
ou à honra do povo alemão. No regime autoritário, o sindicato é submetido ao Es-
tado, enquanto no democrático é (quando é) mais ou menos
Nessa mesma época, organizou-se a Corporação alimen­ livre. A liberdade consiste em poder organizar, estabelecer
tar do Reich, na qual se filiaram os camponeses, uma ver- suas normas de acção, poder entrar ou dele sair o trabalha-
dadeira corporação alimentar, com a conjugação de grupos dor, liberdade de escolha de seus dirigentes sem interferên-
sindicais agrícolas. Posteriormente, foram criados grupos cias do Estado. Essas são as diferenças.
patronais e subgrupos em 1934, e, em 1936, grupos de tra-
balhadores assalariados e os grupos patronais mantinham Embora tão grandes as diferenças, há muitos pontos
ligações e colaboração por meio de comissões mistas e iguais. de semelhança. E tal se dá porque toda e qualquer arbi-
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
TRATADO DE ECONOMIA 35
34

tragem, toda forma de conciliação procura remediar as con- b) quando os partidos representam interesses de gru-
tradições e não resolvê-las. A colaboração forçada num pos económicos ou de classes, ou quando não reconhecem
mundo de competição tem sempre que lançar mão da pres­ a ordem democrática e lutam contra ela.
são, quer estatal, quer extra-estatal, sob pena das arbitra- É natural, portanto, que os democratas procurem de-
gens permanecerem em terreno puramente platónico, para fender a democracia, combatendo tenazmente os que atacam
usarmos o termo no sentido popular. seus princípios. Até aqui é de reconhecer-se esse direito
É que a acção do Estado, na intervenção das lutas que de defesa, o qual não implica um juízo de valor, não im-
plica que seja realmente a democracia nesse sentido clássico
surgem do antagonismo entre as classes, entre a detentora a que melhor corresponda aos interesses humanos, gerais,
dos meios de producção e a detentora do trabalho, exige que o que é discutível, e o é pelas diversas doutrinas e corren-
êle se adapte ao antagonismo, como órgão capaz de enfren- tes sociais.
tá-la. Tal condição predispõe as grandes reformas do Es-
tado, que não solucionam os conflitos mas apenas os sus- O que se observa no momento que atravessamos é que a
pendem, ressurgindo mais agudos depois. política penetra na economia capitalista, isto é, o Estado
Vejamos essas transformações. intervém para substituir e herdar o que pertencia aos ca­
pitalistas.
Tanto a democracia como o capitalismo moderno sofre-
ram profundas transformações em sua estructura. O parlamentarismo oferece defeitos: tem meios de in-
formação económica muito limitados, porque os serviços
Quando o capitalismo era de pequenas unidades, como públicos são sempre emperrados pelo burocratismo inevitá-
já estudamos, não podiam os grupos formados intervirem vel, imanente ao regime centralizado de administração pú-
no conjunto. Hoje temos grupos monopolizadores consti- blica. Por outro lado é um organismo lento em suas deli-
tuídos, que procuram excluir-se uns aos outros, que lutam berações, não podendo enfrentar com eficiência certos fac-
entre si em grandes batalhas surdas. Uma série de parti- tos económicos que se dão com tal rapidez e significação,
dos políticos de programas variados, quase sempre os mes- que exigem uma imediata providência. Além disso, o par-
mos, digladiam-se, estabelecem alianças, desviam a activi- lamento é composto de elementos ligados aos interesses em
dade humana para lutas estéreis, desejam o monopólio de antagonismo e nem sempre suas deliberações correspondem
poder, embora seja tal desejo o mais anti-democrático. ao desejo popular dos que os elegeram.
Formam alianças com o intuito de dominar plenamente e
totalmente o poder, de constituir monopólios políticos à se- Tais circunstâncias levaram naturalmente às reformas
melhança dos monopólios económicos. do Estado, ao remediamento e não à cura.
É da essência da democracia e do capitalismo, para po- Assim, logo após à primeira guerra mundial, constituí-
derem funcionar normalmente, respeitarem a lei democrá- ram muitos Estados democráticos e parlamentares os con-
tica fundamental, a da liberdade. selhos nacionais económicos que funcionam em alguns paí-
ses com bastante autonomia, constituindo áté um poder
No capitalismo liberal tal lei era naturalmente aceita novo, como muitos o querem ver. No entanto, sua subor-
e cumprida dentro naturalmente dos interesses em antago- dinação ao Estado os levava e leva a uma subordinação aos
nismo. Essa lei admite a concorrência dos partidos e seus interesses políticos dos grupos dominantes. E o Estado
programas, que lutavam entre si para terem a preferência muitas vezes intervém na formação desses conselhos para
pública, e para tal tinham, naturalmente, de realizar obras assegurar esses interesses.
que justificassem essa preferência ante o eleitor.
Deixa de existir a democracia, quando a) o Estado in- Num sistema socialista planificado, os conselhos eco-
tervém para assegurar, indefinidamente, direitos adquiridos, nómicos, pensam alguns tratadistas, poderiam ter seu ver-
e quando intervém no mercado, na distribuição; dadeiro sentido e tornarem-se verdadeiros representantes
36 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

da sociedade dos productores, distintos do Estado. Tal


ponto de vista encontra oposição em factos que não devem
ser desprezados.
Em qualquer sociedade, onde o salário se estabeleça,
as diferenças da ordem da divisão do trabalho e da admi-
nistração fomentarão antagonismos inevitáveis e não impe-
dirão que as divergências se estabeleçam. O ESPÍRITO DO CAPITALISMO
O conselho económico não pode assumir o poder, por-
que constituído este por um Estado político, este não ce-
deria seus direitos em benefício de um organismo económi- No tocante ao tema deste ponto, duas posições são fre-
co. E se tal fosse possível, teríamos apenas uma passagem quentemente tomadas, quanto à formação do "espírito do
de poder, sem evitarem-se os males que dele decorrem. capitalismo":
Para solucionar as reformas necessárias do Estado, a) que esse espírito condicionou a aparição do siste-
foram propostas várias soluções, tais como a formação de ma;
câmaras especializadas que, ao lado da eleita pelo sufrágio
universal, fossem câmaras de grupos, nas quais se assenta- b) que a aparição do sistema condicionou esse espí-
riam os representantes dos agrupamentos económicos (to- rito.
dos os sindicatos), dos corpos científicos (ensino público de Temos na primeira posição, a clássica posição dos crí-
todos os graus, ensino particular, sociedades e instituições ticos do capitalismo, na segunda as interpretações chama-
de pesquisas e de vulgarização, etc.) grupos desinteressa- das de materialistas.
dos (associações de educação, de assistência, formações ju-
venis e grupos confessionais, de qualquer espécie). Com Nossa posição é outra:
essa representação se teria uma representação integral da
sociedade, sem os prejuízos das eleições de sufrágio univer- Certos factores ideais, constantes no capitalismo, mas
sal, que não reproduzem o verdadeiro intuito da população. que ultrapassam o seu âmbito (que lhe são transcendentes),
Essa representação teria ainda um valor, pois seus repre- coincidem com os factores reais, que compõem o mesmo ca-
sentantes seriam o que são, e não lutariam por ser o que pitalismo. A contemporaneidade dêãses factores permite-
não são. Teriam consciência do que são e do que virão a -nos estudemos o espírito do capitalismo que se forma atra-
ser. vés da reciprocidade desses factores de ordem dinâmica
diversa.
Além disso, seria perfeitamente democrática, porque
seria uma representação total dos elementos sociais. Analisemos primeiramente uma série de aspectos e jus-
tifiquemos, afinal, as nossas opiniões, que se fundam na
contemporaneidade dos factores reais e ideais, evitando, de
vez, a colocação da anterioridade de um factor ou de outro,
tão do gosto do idealismo absoluto e do materialismo, em
todos os seus matizes.
A presença de certos móveis de carácter subjectivo
(emergência caracterológica do empresário utilitário, como
veremos) permitiram que certos acontecimentos (institui-
ções, normas, etc.) fossem aproveitados e empregados de tal
forma, que, por sua vez, influíram sobre os mesmos móveis,
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO D E ECONOMIA \\\\
38

e estes sobre os acontecimentos, numa recíproca actuação, Temos interesse para os bens que nos satisfazem esaaw
até constituir o arcabouço do capitalismo. necessidades e, esse interesse está marcado pelo próprio
bem, se para fins materiais ou espirituais. Frequentemen-
J á vimos, ao estudar a história da técnica e as suas te, considera-se apenas como interesse o que nos aproxima,
fases, uma série de coordenadas, que permitiram o advento nos dirige para os bens que satisfazem necessidades mate-
do capitalismo ocidental. riais, ou que são directamente dirigidos para bens mera-
No exame dos actos humanos, verificamos um inva­ mente materiais. Costuma-se dizer que é desinteressado o
riante: o interesse. O homem não se dedica a isto ou ímpeto dirigido para fins culturais, espirituais, etc. No
aquilo, não analisa isto ou aquilo, não pensa sobre isto ou entanto, quando se deseja justificar uma ordem de coisas,
sobre aquilo, não atende para isto ou àquilo, para o qual onde predomina o interesse material, costuma-se argumen-
não tenha interesse. Em todos os actos humanos há a pre­ tar com o interesse tomado em seu sentido extenso, como
sença constante desse elemento que coordena, com outros, os capitalistas, que desejam justificar sua ordem de coisas
todos os actos humanos. sob a alegação, sob o fundamento dos interesses de ordem
geral, em sentido extenso, para justificar o interesse em
No entanto, não devemos pensar que ao dizermos que sentido restrito do capitalismo, como, por exemplo, ao tra-
o "homem é movido pelo interesse", estejamos dizendo algu- tar-se do estímulo de produzir.
ma coisa de novo, porque todos os actos humanos apresen-
tam, para quem os pratica, um interesse. Dados esses elementos prévios, estamos aptos a estudar
o acto económico para, depois, estudarmos a actividade eco-
Contudo, não é muito difícil compreendermos desde nómica do capitalismo.
logo que no termo interesse é que está todo o problema. De
sua nítida compreensão, tudo se esclarecerá. Ora, poucas
palavras sofreram tanta deturpação no seu sentido como
esta, a qual empregada em tantos e variados sentidos.
Devemos recordar a distinção que fizemos, quando
examinamos o acto económico, do lado pessoal e do lado m-
dividrial do ser humano.
O interesse pode ser material ou pessoal. O que marca
o sentido económico de um facto é o seu lado oneroso, como
já vimos, a troca onerosa, e que não se destina à satisfação
de uma necessidade pessoal ou individual.
O interesse é de origem afectiva. A palavra é forma-
da de mter e esse, duas palavras latinas que significam
entre e ser, estar; interesse é um verbo latino, formado da-
quelas duas palavras, que significa estar dentro, participar
de...
Em todo interesse há uma afectividade, um impulso
páthico, um querer o objecto. Se entre vários objectos, es-
colhemos um, esse é sempre o que nos provocou o interesse.
J á vimos que nossas necessidades são de ordem mate-
rial ou de ordem espiritual.
ACTO ECONÓMICO

Em acrescentamento ao que já dissemos de tão impor-


tante categoria, já vimos que se não houvesse raridade
económica nem limitações de bens e de tempo, não haveria
nenhum custo, nenhuma onerosidade para a satisfação das
necessidades humanas. Aproveitando um estudo de Rõpke,
economista moderno alemão, há em todo acto económico
uma luta contra uma raridade, contra uma insuficiência,
um combate contra um deficit de meios (ein Nitteldefizit).
Essa luta pode revestir três formas:
a) pelo emprego da violência ou da astúcia. Ex.: o
roubo ou a guerra para submissão de outros povos;
b) pelos actos desinteressados (desinteressados aqui é
empregado em sentido económico), como os actos
humanitários, de fraternidade, de caridade, etc.;
c) pela troca de prestações contra prestações, os cha-
mados actos da vida dos negócios.
Essas três formas muitas vezes se combinam. Por
exemplo, pode haver combinação da violência com a troca,
como vemos na história do colonialismo, na acção da me-
trópole com a colónia. Aquela, sob a proteção das armas,
tem uma posição privilegiada como parte contractante. O
mesmo também pode dar-se no contacto entre civilizados e
povos primitivos, em que aqueles levam uma superioridade
sobre os últimos, como nas trocas entre civilizados e tribos
primitivas.
No capitalismo actual, temos ainda os casos dos mono-
pólios, os quais, por sua posição privilegiada, têm uma si­
tuação preferencial. Nesses casos, não temos trocas puras,
mas combinadas com pressão.
42 MÁRIO F E R R E I R A DOS S A N T O S TRATADO D E ECONOMIA 43

Também podem dar-se combinações das trocas com terna. Nas épocas mais atrasadas, havia maior solidarie-
móveis considerados desinteressados ou altruístas. Temos dade e respeito interno, enquanto a violência era maior
exemplos nos médicos, que aliam uma obra social e altruís- quanto aos elementos estranhos à estructura. Da pilhagem
tica (nos casos de vocação), e também nos sacerdotes, pio- primitiva, chegamos ao mercado. Mas, em compensação,
neiros quando vocacionais. até o espírito comercial penetrou no âmbito da família. Hou-
ve, dessa forma, uma diminuição da tensão defensiva das
Tais combinações são variáveis e têm graus correspon- estructuras, como também da agressividade entre elas, que
dentes às estructuras em que se realizam, quanto à família, à foi substituída mais pela astúcia.
classe, à nação, etc.
Por isso se torna muito difícil precisar a relação das
Encontramos nessas estructuras princípios morais di- combinações entre os métodos que acima citamos.
ferentes. Há frequentemente mais solidariedade, mais co-
operação numa família, menor numa classe, e muito menor, Analisemos a crítica dos socialistas.
quase sempre, quando a estructura é "nacional". Há uma
moral em relação aos membros que as compõem, e outra pa- Para estes, o sistema capitalista é um sistema de vio-
ra os membros exteriores. Mesmo dentro dessas estructu- lência. O empresário (cujo estudo faremos mais adiante)
ras, segundo as componentes, há diferenciações, por ex., en- é imperialista, é expansista. Seu imperialismo se exerce
tre mulher e marido, entre mãe e filhos, entre pai e filhos, contra os trabalhadores. A luta de classes se manifesta aí
etc. num combate constante. A troca é sempre prejudicial ao
trabalhador, que dá mais do que recebe.
São menores as restrições quando se trata com elemen-
tos de estructuras estranhas. Explorar um elemento de uma O capitalista responde negando tais afirmativas e jus-
classe estranha ou de um país estranho causa menos indig- tificando sua posição como classe, assegurando que sua fun-
nação do que quando se trata de elemento de uma comuni- ção social é útil e necessária, que também presta serviços.
dade, (estructura que tem maior coerência). Tais factos
criam restrições às concepções de moral humanista, univer- * * *
salista. Estamos aqui apenas formulando juízos de existên-
cia, e não juízos de valor. Vemos o que é e o que devera ser. Toda economia tende ao máximo de utilidade, à maior
A moral humanista dirige-se para um dever ser. Pode satisfação das necessidades.
ela verificar o que é, mas deseja transcendê-lo. Sentimos Esse é o móvel de toda a economia, de todo sistema, seja
que aqui estejamos palmilhando um tema que é mais de Fi- de economia fechada, artesanal, capitalista ou socialista.
losofia que de Economia, porque, para uma boa compreensão As disputas se travam, no entanto, em saber ou_ justi-
deste tópico, precisaríamos expor nossa teoria das tensões ficar como se dá essa satisfação; se essas utilidades são cor-
estructurais, que nos mostram um pluralismo mtenso e ex- respondentes aos esforços, se sua distribuição é justa, ou
tenso da sociedade humana. As estructuras sociais (comu- não. \
nidades, grupos, famílias, etc.) formam tensões próprias,
têm uma ética que lhes é imanente (dentro delas), que lhes A visão e a análise de tais factos estão condicionadas à
é peculiar. As acções, que prejudiquem a terceiros, quando perspectiva das diversas estructuras e variam segundo estas.
da mesma estructura, são consideradas de um valor nega- O comerciante, que aumenta descabeladamente os preços das
tivo maior, do que quando se trata de elementos estranhos utilidades, vê com maus olhos quando adquire outras por
à comunidade. Tal observação é facilmente compreensível. preços elevados, que não constituem, naturalmente, bens da
Essas atitudes não são equivalentes. sua esfera de actividade.
Uma observação da História nos mostra que, no entan- Estudemos agora os elementos que impulsionam o ca-
to, têm havido modificações na intensidade dessa moral in- pitalismo.
44 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 45

a) A busca de maior ganho monetário possível. Nas Convém anotar as relações entre o capitalismo e o
economias, como a fechada e a artesanal em parte, é a sa- liberalismo. Na verdade, o capitalismo exige certa "liber-
tisfação directa das necessidades que leva aos maiores es- dade" de acção, contudo não se pode daí concluir que o ca-
forços. Não os move o maior ganho, mas a maior satisfa- pitalismo e o liberalismo estejam fatalmente entrosados, co-
ção das necessidades. Na economia capitalista, o ganho é mo se fossem equivalentes. Na verdade, o liberalismo per-
expresso em m,oeda, por isso tende à maior soma de ganho mite o desenvolvimento do capitalismo, por afastar as bar-
em moeda. Os exemplos filantrópicos não negam essa ló- reiras e resistências ao seu desenvolvimento, mas o libera-
gica do capitalismo, que é predominante e avassalante quan- lismo, para surgir, implica, previamente, que já existam
do do seu domínio como sistema. organizações capitalistas.

A moeda, de meio, transforma-se em fim. Tudo é cal­ É o mercado (a concorrência) essencial ao capitalismo.
culado em moeda. Essa concorrência, útil até certo período, gera também o
monopólio que procura destruí-la, contorná-la.
a) O capitalismo desenvolve certos aspectos da econo-
mia e delimita claramente outros. Numa sociedade pré-ca- Não impede o capitalismo, com seu espírito de ganho in
pitalista, o camponês, por exemplo, não sabe, no fim do ano, infinitum (ao infinito), que se dêem também actos gratui-
o que ganhou ou perdeu de forma certa, segura. Com a moe- tos, filantrópicos, bem como manifestações de gratuidade, de
da é permitido saber-se seguramente. Essa capacidade de paternalismo, da parte de elementos capitalistas.
medir, de saber quanto é certo e delimitadamente, estimula Revela-nos ainda o capitalismo que a productividade
o capitalista ao lucro, pela possibilidade de aumentá-lo, por- não coincide sempre com a rentabilidade. O ganho não cor-
que revela como êle se dá e como foi alcançado, permitindo, responde à utilidade e o maior ganho não coincide com o
a.-.sim, impulsionar para que procure mais. maior serviço. Basta que atentemos ao aumento de preços
em consequência da retenção de certas mercadorias, que po-
Numa economia fechada, precapitalista, o trabalhador dem oferecer ganhos maiores.
aspira apenas a satisfazer suas necessidades. Satisfeitas es-
tas, não julga que deva trabalhar mais. Por outro lado, as * * *
passagens de uma classe para outra são obstaculizadas.
Na economia capitalista, a possibilidade de enriqueci- Uma anotação torna-se importante aqui. Discutem os
mento é praticamente ilimitada, não havendo, em regra, res- economistas se a utilidade social não é apenas uma soma das
trições a esse aumento do património. O próprio ganho é utilidades individuais. Na verdade, a soma é sempre qua-
estimulante, excitante para conseguir maior ganho. litativamente diferente das suas partes ou do conjunto das
suas partes. Um muro não é apenas um conjunto de cal,
O ganho estabelece o poder, além de ser uma promessa pedra e areia. E se entrarmos no terreno do homem, no
de ganho futuro. Assim o operário que ganha, que tem orgânico, onde predomina a ordem dinâmica da intensidade,
reservas, vê a possibilidade de passar de sua classe para ou- o qualitativo apresenta maior heterogeneidade.
tra. São factos como tais que permitem a confusão entre
os meios e os fins. A moeda, que é um meio, torna-se, por O interesse colectivo e social não é apenas a soma dos
isso, um fim, porque, por meio da moeda, é possível obter interesses individuais.
serviços, bens, satisfações.
_ A colectividade forma uma esljructura diference. O
O capitalismo, por seu espírito de medida, por sua ne- maior ganho possível não é o melhor impulso para o desen-
cessidade de medir, é essencialmente racionalista e raciona- volvimento social. Ainda traremos exemplos que nos mos-
liza, por isso, a vida. A razão é a deusa do capitalista. trarão plenamente o que afirmamos. Esses exemplos nos
Todo seu raciocínio é cálculo, medida. são ministrados pelas experiências cooperacionais e pelas
46 MAMO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 47

criações de comunidades construídas sob base não capitalis-; económica, e inspiram-se no cientismo (sistematização do
ta. O fundamento económico do capitalismo não é tão fir- saber fundada numa visão apenas científica do mundo).
me como julgavam e julgam os defensores desse sistema. O objecto dirige o sujeito, o homem subordina-se às coi-
Há, na Palestina, como em muitas outras partes, expe- sas. (Esta a nota mais importante do capitalismo que se
riências tão eloquentes que anulam completamente as afirma- dirige sempre para as coisas, objectivando, isto é, tornando
tivas fundadas nos grandes argumentos do capitalismo. objectivo até o que é subjectivo.)
No momento actual, quando o capitalismo enfrenta sua O liberal subordina o homem ao determismo do merca-
transformação mais profunda e mais estrepitosa do que uma do, o marxismo ao determinismo da classe e da luta de clas-
observação superficial poderia nos mostrar, muitos econo- ses. Ambos reivindicam para o indivíduo a maior soma de
mistas, na sua maior parte saídos da classe capitalista, pro- bem-estar e suas reivindicações de classe são condicionadas
curam, por todos os meios, justificar esse regime e querer por esse desejo. Joseph Dietzgen proclamava: "Nós pro-
mostrar que suas possibilidades não estão esgotadas. Pro- curamos a liberdade, não na metafísica, não na liberação da
curam ainda mostrar que o móvel do ganho, o espírito de alma da prisão do corpo, mas numa ampla satisfação de to-
competição de que está imbuído não realizou ainda na histó- das as nossas necessidades materiais e morais que, umas e
ria todo o seu papel, mas que ainda tem um papel a realizar. outras, são corporais."
Dá-nos a impressão que o capitalista é um actor que, no fim
do espetáculo, depois de cair o pano, e o público se ter re- Essa afirmativa também poderia ser feita por um ca-
tirado, pensa que tem ainda uma cena a representar. Ab- pitalista.
solutamente não. Nem se julgue tampouco que o socialismo,
como os socialistas o consideram, será um substituto do ca- A ideia de liberdade é relativizada pelo socialismo auto-
pitalismo, porque esse socialismo é o capitalismo da última ritário. Os liberais, como os socialistas autoritários, que-
etapa. rem uma igualdade social e económica, pois os liberais afir-
mam que essa é conseguida progressivamente pelo desenvol-
O que está sendo gerado na sociedade actual, e que subs- vimento económico, enquanto os socialistas autoritários, em
tituirá o capitalismo é outra forma que implica um uso ge- sua maior parte, afirmam que essa só será obtida pela revo-
ral cultural. Este tema será tratado oportunamente. lução violenta. Tanto uns como outros afirmam que essa
liberdade só poderá ser obtida pelos que trabalham e não
Ao estudarmos a formação do sindicalismo, notamos que pelos que são ociosos. Tanto uns como outros reverenciam
o proletariado se forma, aumenta, cresce, desenvolve-se ao a industrialização e aceitam a filosofia do progresso. Todos
lado do capitalismo. Existe, coexiste com este. Ao se dar sonham com a productividade indefinidamente crescente,
a dissolução das comunidades, corporações, acorrem à cida- crêem na ciência, não como ciência mas devotamente como
de onde se tornam proletários. Vê o marxismo, na liquida- socialidade, e anunciam a vinda do bem-estar social. Tanto
ção do capitalismo, na abolição do capitalismo, a redenção uns como outros crêem na vinda de uma raça superior de
do proletariado. Tanto o liberalismo como o marxismo ma- homens novos, crêem na marcha retilínea da humanidade e
nifestam profunda aversão aos elementos sociais interme- não acreditam em retrocessos. A mesma obsessão do eco-
diários. Tanto o liberalismo como o marxismo são natura- nómico e do maior proveito domina a ambos.
listas e excluem toda transcendência, se olharmos do ponto
de vista filosófico. Quanto à prática, o socialismo autoritário nos mostra,
A sociedade humana é regida pelas leis que regem a quanto ao proletariado, a mesma submissão às dependências
natureza. Lembremo-nos da definição de Guesde: "O ho- de que já estudamos ao tratar do trabalho, agravadas ainda
mem é o último termo da série animal" ou as concepções pela presença do Estado todo-poderoso. O assalariado é
materialistas do marxismo. Tanto os liberalistas como os sempre dependente técnica, jurídica, económica e social-
marxistas subordinam a pessoa humana à ordem natural mente.
48 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

Há no capitalismo alguns indícios que revelam certas


modificações do seu espírito. Podemos citar os exemplos de
grandes empresários capitalistas, que tinham mais um de-
sejo de realização do que de ganho, isto é, que eram movidos
mais pelo renome, pelas grandes conquistas, pelas vitórias,
pela realização de obras que beneficiassem os povos em que
viviam do que propriamente o enriquecimento.
Tais exemplos não são tão raros como se pensa, pois é A EMPRESA E O EMPRESÁRIO
fácil ver-se uma grande quantidade de capitalistas que dão
a totalidade de esforços em benefício do trabalho, não dis-
pondo propriamente de horas para seu gozo e prazer. Tal É o tema da empresa um dos mais importantes para o
não implica que a maioria dos empresários capitalistas pro- estudo do capitalismo.
cure apenas o ganho. Precisamos previamente saber o que é uma empresa.
Por outro lado o capitalismo procura explorar, moder- Divergem os tratadistas quanto à definição, e os autores, ora
namente, certos sentimentos nacionalistas, impulsionar os consideram a empresa fora de todo sistema económico, con-
homens à realização de obras em benefício social. siderando como tal a exploração na antiguidade greco-ro-
mana ou a pequena oficina da época artesanal, como os ór-
Dentro do capitalismo, desenvolve-se hoje uma aspira- gãos de producção das tribos semi-civilizadas, enquanto ou-
ção a uma sociedade de homens livres ou às comunidades em tros consideram importante e decisivo a noção do sistema
base de apoio-mútuo, que repelem totalmente as soluções económico.
simplistas de nacionalização e estatização, cujos resultados
são mais desastrosos que benéficos. Marshall, que se filia entre os primeiros, considera como
empresa "todo estabelecimento destinado a atender às ne-
cessidades de outrem, em vista de um pagamento directo
ou indirecto, feito pelos que dele se beneficiam".
A empresa é, pois, uma combinação dos factores da pro-
ducção: trabalho, capital e natureza. Cria-se a empresa
quando se dá a colaboração concreta dos agentes. Um mes-
mo agente pode oferecer diversos factores. O operário pos-
sui seus instrumentos, o empresário pode ser também o for-
necedor do capital, pois o capitalista nem sempre é apenas
quem empresta. Desta forma, o empresário não assume
apenas o risco da producção.
Essa colaboração concreta dos agentes tem um nexo,
uma coerência, porque implica certo ajustamento para a
consecução de um fim. Esse ajustamento pode ser visto
sob o ângulo técnico ou o económico.
O ajustamento técnico é o que mais ressalta em pri-
meiro lugar, embora em certas empresas o comercial ou eco-
nómico seja o mais desenvolvido. A empresa combina os
dois ajustamentos, como combina os ptecos dos factores da.
producção.
TRATADO DE ECONOMIA 51
50 MÁRIO FERREIRA. DOS SANTOS

É exigível um mesmo centro de cálculo e um mesmo pa- Com essa delimitação podemos então distinguir a em-
trimónio, ou seja, um conjunto de valores positivos ou nega- presa da exploração económica ou estabelecimento.
tivos, pertencentes a uma mesma pessoa física ou moral, pa- O estabelecimento é uma unidade técnica, uma reunião
ra que se possa realizar uma combinação de preços. É o permanente de pessoas e de meios materiais, dedicados a
património que nos mostra a unidade da empresa, indepen- uma mesma actividade productiva num mesmo lugar (Per-
dentemente da diversidade dos estabelecimentos. Mas essa roux).
combinação de preços, por si só, não é suficiente para carac- Uma empresa pode compor-se de muitos estabelecimen­
terizar uma empresa. O agricultor, que vem à cidade e ven- tos, como um banco, grandes lojas, etc.
de os seus productos no mercado, pode proceder a uma com-
binação de preços dos factores de producção, sem ser um Distingamos agora a empresa de a exploração.
empresário capitalista. A exploração económica é a organização do producção
que combina os factores de producção, terra, trabalho, capi-
Outra característica de uma empresa capitalista é que tal, com o fim de satisfazer as necessidades, coordenando es-
DS factores da producção sejam trazidos por agentes econó- sas operações a um mesmo centro de cálculos e de activida-
micos diferentes do proprietário. Essa separação deve ser de económica.
jurídica e económica. Essa separação é suscetível de graus,
podendo aumentar ou diminuir, pois, numa pequena empre- Assim uma cooperativa não é uma empresa, mas uma
sa, o empresário fornece grande parte do trabalho. exploração económica.
A exploração económica não tende sempre para o maior
A empresa capitalista funciona com a finalidade de ob- ganho nem se dirige sempre a um mercado anónimo. As-
ter um producto que é escoado para o mercado. É esse as- sim é preferível, em certos casos, chamar-se exploração agrí-
pecto que a distingue da economia fechada. cola e não empresa agrícola (cujas características teremos
Orienta-se a empresa capitalista para a obtenção do ocasião de estudar nos próximos pontos). Neste caso, há
maior ganho monetário pela diferença dos preços e não em fraca separação entre os factores trabalho e capital, os quais,
vista da maior ou da melhor satisfação das necessidades. são fornecidos pelos próprios agentes interessados na ope-
ração productiva. Assim também não se deve usar o termo
Em síntese: A empresa tende para o maior ganho mo- de empresas públicas, quando elas tendem à maior satisfa-
netário durável e não para o maior grau de satisfação das ção de muitas necessidades e sim de exploração pública, por-
necessidades, a não ser (pag. 159) quando essa satisfação que elas não se orientam para o maior ganho monetário.
seja essencial para garantir aquele ganho. Tende para a
maior rentabilidade e não para o máximo de productividade. Essas distinções se tornam necessárias porque, por meio
E finalmente, é ela de carácter neutro, independente da mo- delas, estamos aptos a distinguir as zonas do capitalismo, do
ral, como uma empresa para a fabricação de bebidas não precapitalismo e do extra-capitalismo.
aconselhadas ou interditas, producção de ópio, etc. Examinemos agora o empresário.
Assim a define Perroux, como síntese de tudo quanto Quem é o empresário? A quem, numa empresa, pode-
mos chamar de empresário?
acima expusemos:
No início dos estudos económicos não se distinguia bem
"A empresa é uma forma de producção pela qual, no a figura do empresário do director técnico, nem do capita-
seio de um mesmo património, combinam-se os preços dos lista emprestador. (É o que vemos em A. Smith, Ricardo,
diversos factores da producção trazidos pelos agentes distin- e outros). O crédito ainda não era bem organizado e havia
tos do proprietário da empresa, com a intenção de vender poucos distribuidores de crédito. Dessa forma, os primeiros
no mercado um bem ou serviços e para obter uma renda empresários eram proprietários da terra ou membros das
monetária que decorre da diferença entre duas séries de pre- classes abastadas.
ços (a que compõe o preço de custo e o de venda)."
TRATADO DE ECONOMIA 53
52 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

contribuições de Perroux pode, numa síntese, dar uma boa


Foi Say quem distinguiu o empresário do detentor do visão das características do capitalismo. Para Schumpe-
capital, para defini-lo pelo trabalho de organização. ter, a empresa é o acto de realizar combinações novas de
A passagem do capitalismo individual para o capitalis- factores productivos. O empresário é o agente que realiza
mo societário (sociedades anónimas) mostra essa distinção, essas combinações novas, que são cinco:
sobretudo quanto à separação entre a propriedade e a ges-
tão. Não é o mesmo o que possui e o que gere. Já Pareto 1) A fabricação de um novo bem. Não quer dizer
observa que há um antagonismo subtil entre o capitalismo que o bem seja totalmente novo, mas apenas para o círculo
puro e a pessoa que assume os riscos da producção. da clientela para a qual se dirige o empresário.
Esse antagonismo se manifesta no lucro e no preço. 2) Introducção de um método de producção nova
Quem empresta o dinheiro a terceiro, quer um ganho maior quanto ao ramo da indústria ou do comércio regionalmente
possível, enquanto quem assume os riscos da producção tem considerado.
o desejo de obter o dinheiro ao preço mais baixo.
3) Conquista de um novo escoamento economicamente
Manifesta-se também no solário e no preço. O capita- desconhecido.
lista puro, cuja renda é a que lhe dá o capital, que tem uma
arrecadação fixa de juros, não quer que os preços se ele- 4) Conquista de nova fonte de matérias primas.
vem. Mas quem assume os riscos da producção tem van- 5) Realização de uma nova organização da producção;
tagem na elevação dos preços. Mas os preços não sobem por exemplo, de uma producção dispersa para uma concen-
todos ao mesmo tempo. Ora, uns, ora outros. Por isso o tração, etc.
movimento de salários não se adapta aos preços, e está sem-
pre retardado em relação a eles, o que permite ao capitalista O empresário (como empreendedor) reduz as resistên-
auferir, por isso, maiores lucros durante o período que pre­ cias objectivas e subjectivas, necessita obter companheiros,
cede ao reajustamento. actua para convencer, para tirar da rotina os que a ela se
No capitalismo mais evoluído, crescem os antagonismos aferram.
que se especificam entre capitalista emprestador e capitalis-
ta empresário. Aqui há uma perfeita distinção do capita- Schumpeter vê no empresário um homem que pertence
lismo: um capitalismo estático, amortecido, e um capitalis- a uma classe ou a um grupo, o homem que se caracteriza por
mo activo, mais ligado às verdadeiras origens do capitalis- uma função, e não pela detenção de meios de producção, nem
mo, empreendedor, pioneiro, enquanto aquele é como o re- pelo exercício constante de uma actividade. Todos os ho-
sultado, como o aproveitador do segundo. mens de negócio têm seus momentos de empreendimento
(como empresário no sentido de Schumpeter). Mas o que
Para fundar uma empresa hoje são necessários: o termo quer definir é a capacidade criativa e não o exercí-
a) organizar o plano, fixando de início a necessidade cio de uma profissão.
que se pretende atender;
Schumpeter vê na figura do empreendedor (empresário)
b) dar corpo ao plano pela distribuição das funções, um tipo original na economia moderna, que não é propria-
das relações características da empresa, capital, trabalho, mente um trabalhador, pois possui capacidades excepcionais,
etc.; as quais não podem ser transmitidas por processos ordiná-
c) realização do plano pela execução do mesmo. rios de ensino (talento). Não é um capitalista, pois pode
fazer suas transformações, quer com capital próprio, quer
Observando essa classificação torna-se fácil, desde logo, com capital emprestado. Não é um agente que suporta os
estabelecer o que merece o nome de empresa. riscos, porque põe outros nas novas combinações, que sofre-
Examinemos agora uma tese de Joseph Schumpeter, que, rão também as consequências.
combinada com as opiniões do historiador Pirenne, e com as
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 55
54

Nos Estados Unidos, há um tipo de "promotor"^ (em- As ligações comerciais, que são melhor observadas pelo
preendedor, promotor de iniciativas), que é uma espécie do productor, decorrem das compras e vendas que fazem entre
tipo estudado por Schumpeter. Há indivíduos que são es- si as empresas.
pecializados em lançar novos negócios, recebendo deles uma As ligações financeiras manifestam-se de duas formas:
remuneração fixa, calculada ab initio, para os seus servi- a) quando a empresa fornece todo o seu capital; b) quando
ços. Na maior parte das vezes não têm capital ou têm não o fornece, e neste caso entra em contacto e relações com
pouco. a empresa bancária que distribui o crédito.
Pirenne salienta que o capitalismo é feito de movimen- Quando de um capitalismo societário, essas trocas são
tos sucessivos, que levam constantemente ao poder elemen- feitas através de votos ou acções. Superpõe-se desse mo-
tos diferentes. Homens novos fazem suas fortunas e a de do a uma concentração económica uma concentração finan-
suas famílias e prestam serviços à sociedade. Os filhos ceira, que embora não apareça tão visivelmente tem um pa-
preferem viver das rendas e não são tão animados a criar, pel activo.
o que leva a surgirem novos homens empreendedores.
* * *
Criticando a tese de Schumpeter, Perroux alega que se
deve considerar também o capitalista como empresário, por-
que o empreendedor, sem o capital, não realiza suas inicia- Há outras ligações tais como as que nascem da concor-
tivas, que permaneceriam num terreno meramente ideal. rência das empresas entre si, mais activas e menos activas,
No caso de uma sociedade anónima, o accionista é o em- consequentemente com as condições de depressão ou de ex­
presário. Êle fornece o capital e assume o risco. É uma pansão das empresas. Essa concorrência dá-se no mesmo
figura insubstituível em sua função. No dia em que esta mercado, com a mesma clientela. Há dependência do poder
função desaparecer, então desapareceu a organização econó- de compra da clientela, do consumidor final, cuja depres-
mica do capitalismo, para ser substituída por uma outra fór- são exerce forte influência sobre a empresa.
mula, como a planificação da sociedade nas formas colecti- Com essas noções gerais expostas, podemos agora com-
vistas. preender a diferença na estructuração de um Estado de re-
Cremos que seria melhor deixar-se o nome de empre- gime socialista e de um capitalista. No Estado socialista,
sário capitalista à função realmente capitalista, que já expu- quando socialistamente planificado, há uma grande empresa,
ligada pelas ligações primeiramente estudadas. A ligação é
semos, e a de empreendedor, promotor, ao elemento criador estructuralmente realizada. No regime capitalista, as liga-
da empresa. ções são meramente orgânicas, funcionais apenas.
* * *
Podemos considerar as empresas capitalistas sob dois
aspectos: a) como intensidade e b) como extensidade.
Estudemos agora as ligações que formam entre si as
diversas empresas, dentro de uma economia capitalista. Es- Como extensidade, temos o campo que ela abarca e, co-
sas ligações podem ser de ordem técnica,, de ordem comer­ mo intensidade, temos a sua maior ou menor concentração.
cial e de ordem, financeira. Examinemos como elas se processam.
As ligações de ordem técnica são reveladas pelos seguin- Dividem-se em dois grandes grupos os economistas quan-
tes factos: há empresas que produzem a matéria prima que to ao conteúdo do conceito de empresa. Para alguns, é em-
cedem a outras, que as manufacturam, e estas as que dão o qtrêsa toda unidade de producção (Reboud-Baudry, Lasserre,
producto acabado. Há, assim, uma dependência técnica de e t c ) . Para estes a empresa independe da economia e dá-se
empresa para empresa. Estas ressaltam mais aos olhos do em qualquer sistema económico. É a empresa tomada em
consumidor (são melhor observadas). latu-sensu.
56 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

0 segundo grupo procura definir a empresa dentro dos


quadros do sistema económico (em strictu sensu).
Na passagem da economia fechada e da artesanal para
a capitalista, o artesão independente passa para o domínio
do intermediário, que lhe fornece o capital.
E eis aqui como se justifica a posição do segundo grupo.
EXTENSIDADE DA EMPRESA CAPITALISTA —
Uma das características do sistema capitalista, como
já vimos, consiste em serem os factores de producção cal- O ARTESANATO
culados em capital (orçamento, balanço, deve e haver).
A economia familiar é uma economia de consumo, de Apesar das grandes transformações económicas, o ar-
satisfação directa das necessidades dos indivíduos. Na eco- tesanato não desapareceu. Não é, porém, mais o artesana-
nomia artesanal, a exploração de acquisição é pouco dife- to da época de sua economia, mas um artesanato adulterado
rente da economia de consumo. No sistema capitalista, há pelo capitalismo.
separação da economia de consumo da de acquisição, porque
a moeda permite adquirir os bens. Já temos um conceito nítido de artesão, e vimos que o
artesanato é uma forma de producção, na qual o agente eco-
Nessa economia, os operários não têm economia de nómico (artesão) combina os factores da producção, capital
acquisição. Por isso muitas experiências foram feitas para e trabalho, de modo independente. Êle fornece esses fac-
dar ao operariado as acções da empresa, procurando, assim, tores e dispõe do producto e corre os riscos e perigos do
eliminar a separação entre o trabalho e o capital. Essa mo- mesmo.
dalidade não transforma o operário em capitalista, apenas
melhora um pouco a sua remuneração. Como artesãos, temos o exemplo do sapateiro individual,
do chofer de táxi quando proprietário, o pequeno camponês
Outro exemplo temos nas grandes indústrias america- proprietário da gleba onde trabalha, etc.
nas, que dão aos seus operários parte das acções, para inte-
ressá-los no bom andamento da empresa. Forster mostra, No capitalismo moderno, predominante em quase todo
porém, que a percentagem distribuída é ainda muito fraca, o mundo, o artesão sofre certas degradações que o tornam
o que não liquida a separação entre o trabalho e o capital. muitas vezes irreconhecível. No entanto, apesar do desen-
volvimento do capitalismo, o artesanato é demasiadamente
Estamos agora preparados para estudar a extensidade desenvolvido e não mostra reducções apreciáveis, apesar da
e a intensidade da empresa capitalista. deficiência das estatísticas.
O artesão fornece os factores da producção e a simples
ausência de um deles, fornecidos por outros, degrada-o.
Tampouco é artesão quem não dá por si mesmo prestações
de trabalho.
O artesão é independente de qualquer empresa. Mas
entre o artesão puro e o trabalhador em domicílio, dá-se uma
série de degradações. Pode êle não usar auxiliares salaria-
dos, mas se trabalha para um empresário determinado sob
contracto, tem êle uma dependência, que o transforma em
trabalhador assalariado.
58 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 59

É grande ainda o número de artesãos nos países econo- Tem um papel que cumpre, sabe o que quer, o que pode fa-
micamente mais desenvolvidos. Basta que observemos es- zer. Realiza-se através de sua obra, tem a satisfação do
tes dados: criador, e pode até emprestar-lhe certa emoção estética em
graus ascendentes. Todos os tipos humanos de iniciativa
Na França, em 1918, havia cerca de 2.964.563 assala- sentem uma irreprimível vontade de se independentizar e o
riados em explorações, que não ocupavam mais de 3 operá- artesanato é um campo de libertação.
rios e em 1922 havia cerca de 300.000 artesãos registrados.
Na Alemanha, em 1927, havia cerca de 1.250.000 artesãos. Inegavelmente se observa que entre os artesãos há a
Na Rússia, antes da revolução, cerca de 67% dos trabalha- maior resistência ao capitalismo e ao socialismo autoritá-
dores eram artesãos. Com a revolução, esse número não rio. Os artesãos são, por seu espírito de iniciativa e liber-
diminuiu e ainda hoje há, ali, um número elevadíssimo dade, sempre mais tendentes ao libertarismo, razão pela qual
deles. grande número de libertários de todos matizes (anarquis-
Entre nós, grande é o número de artesãos, e não conhe- tas, anarco-cristãos, anarco-comunistas, anarquistas indivi-
cemos estatísticas seguras sobre o seu número aproximado. duais, libertários sinarquistas, e t c ) , surgem desse campo.
Mantém-se o artesanato por uma série de motivos que Não são os artesãos contrários à organização, como
passaremos a analisar. No século XIX, ao surgir a grande afirmam muitos, pois, nas lutas sociais, vemos surgir den-
indústria, a opinião dos economistas era de que o artesanato tre eles grandes e fortes organizações de defesa, como câ-
era uma forma que aos poucos fenecia. Com o decorrer do maras profissionais, associações profissionais livres, e uma
tempo, como o dizia Marx entre outros, restariam apenas confederação geral do artesanato, como na França, onde a in-
a classe numerosa dos assalariados e empresários, capita- fluência proudhoniana é imensa, em constante conflito com
listas, aqueles cada vez mais pobres e estes cada vez mais a C . G . T . francesa centralista, dirigida hoje pelos socialis-
ricos. Estes últimos, por sua vez, diminuiriam constante- tas autoritários.
mente, para dar lugar ao capitalismo monopolista. O capitalismo não luta directamente contra o artesanato,
Tais profecias tiveram o destino de muitas profecias, e mas cria, sempre que pode, meios de proletarizá-lo. Este,
não se realizaram. por sua vez, defende-se por todos os meios, nem sempre evi-
E os motivos são de ordem técnica e psicológica. Ve- tando a adulteração que sofre em seus quadros, quando de
jamos : seus contactos com o capitalismo.
Há trabalhos estritamente individualizados, que depen- Nalguns países capitalistas tem-se procurado auxiliar
dem de uma clientela, tais como a pequena costureira, o en- o artesanato. Na França, diversas foram as medidas cria-
cadernador de arte, reparadores de electricidade, radio-téc- das pelo Estado em sua defesa. Na Alemanha hitlerista,
nicos, etc. procurou-se auxiliá-lo. O artesão era visto como um ele-
Uma série de novos inventos capitalistas permitem o mento criador de qualidade e evitava a exploração capitalis-
desenvolvimento do artesão, como os motores pequenos, que ta. Mas o hitlerismo assim procedia para submeter o arte-
permitem ampliar a força daquele, de modo que, com uma são aos interesses do Estado hitlerista, ligando-o estreita-
pequena oficina, poderá produzir determinados bens de qua- mente, por suas organizações, às organizações do Estado. O
artesão foi sistematicamente apoiado, dando-se-lhe todos os
lidade para clientelas conhecidas. Certos misteres novos meios capazes de defesa e de conhecimento em sua luta eco-
permitem que o trabalhador hábil se independentize. nómica.
Todos esses elementos contribuem para fortalecer a si- * * *
tuação do artesão, que resiste às investidas do capitalismo.
As obras de arte, de perícia, não deixam de favorecer a O que é ponderável, no entanto, são as adulterações so-
conservação do artesão. Por outro lado, o trabalhador arte- fridas pelo artesanato por influência do capitalismo, embo-
sanal tem consciência maior de si mesmo; é uma pessoa. ra numericamente não tenha diminuído.
60 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 61
Vejamos: tecnicamente, há semelhanças entre a explo- para Marx, os trabalhadores assalariados dependentes e os
ração artesanal e a empresa, quanto ao capital fixo (máqui- capitalistas.
nas, instalações) e também quanto à divisão do trabalho, no
interior da exploração. Os artesãos agrupam-se para com­ O que se observa é que há uma classe nitidamente ca-
prar e para vender. racterizada: a dos trabalhadores dependentes assalariados,
cercado por um grande número de grupos económicos e so-
O artesão sofre a influência do mercado capitalista, quer ciais difusos e interpenetrantes, de impossível classifica-
como comprador, quer como vendedor. ção nítida.
Trabalha para um escoamento maior, não já por enco- O artesanato não é uma classe. Êle agrupa aprendizes,
menda, conhecendo seus riscos e perigos, aproximándo-se, companheiros, mestres, que estão ligados pelo mister e não
assim, do empresário. Outras vezes trabalha por conta de pela função económica, nem pelo papel que representam na
um grande intermediário, o que o transforma em operário técnica da producção.
independente.
Tais factos tornam as fronteiras do artesanato e do Por isso, é o artesanato suscetível de organização cor-
empresário capitalista cada vez mais incertas. porativa, sob o controle do Estado. O artesão luta contra
a dispersão natural do meio capitalista, na verdade, luta
Discutem muito os economistas se o artesanato é uma contra essa separação muito mais que contra a dispersão.
classe social. É êle a perduração de uma forma precapitalista, que
A dificuldade da resposta está em saber-se claramente pervive num regime diferente, como ainda pervive, também
o que seja classe, pois aqui as divergências são imensas. adulteradamente, a economia fechada.
Se aceitarmos que classe seja todo agrupamento de interes­
ses económicos estáveis, como aceitam muitos economistas,
nesse caso o artesanato é uma classe. A EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA
Se damos ao conceito de classe o sentido de "conjunto
de indivíduos caracterizados pelo seu lugar na producção", o O campesinato não é, no sentido marxista, uma classe,
artesanato não poderia ser apresentado como classe. Para mas um estado. Uma exploração agrícola não é uma em-
Marx, os dois postos são ocupados pelo detentor dos meios presa, mas uma exploração económica, que apresenta carac-
de producção, que dirige o seu emprego e sofre os riscos do terísticas peculiares. É a agricultura uma força de resis-
mercado, e pelo executor do trabalho assalariado depen- tência à penetração capitalista. A agricultura é invadida
dente. O artesanato e o artesão ficam numa zona inter- aos poucos, lenta e dificilmente, pelo espírito, pela técnica
mediária, que Marx subestimou, e julgou de fraca resistên- e pela organização do capitalismo. Resiste à penetração do
cia, e que seria absorvido por um ou outro dos pólos no de- maquinismo e à divisão do trabalho. Na agricultura, in-
correr da luta de classes. tervêm factores de ordem extrínseca, aleatórios, que permi-
Há uma opinião sobre o problema da classe e que o vi- tem boas ou más colheitas, o que favorece a manutenção do
sualiza de modo diferente, merecedora de atenção. Não há espírito de religiosidade, tão acentuado no homem do campo.
propriamente luta de classes no capitalismo para essa con- O camponês não tem o desejo do maior ganho como fun-
cepção. Há uma classe social, o proletariado, cercado de damental de sua orientação económica. Mantém suas tra-
um número imenso de grupos económicos e sociais, que não dições, seus costumes, que resistem à racionalização do ca-
são propriamente classes. pitalista.
Para Saint-Simon, há duas classes: a dos productores e Na empresa capitalista, há conjunção funcional dos
a dos ociosos; para Sismondi, os capitalistas e os proletários;
factores de producção, trabalho e capital, os quais estão ju-
62 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

rídica e economicamente separados, por meio do contracto


de trabalho ou pelo emprego (aluguel) de serviços.
Na exploração agrícola, a forma jurídica, exceptuados
os casos em que a propriedade e a exploração coincidem
(proprietário da terra que a explora), as formas usadas
mais comuns para estabelecer essa conjunção são o arren­
damento e a parceria. RISCOS DO PROPRIETÁRIO
Nos países do norte da Europa, incluindo a França, e
nos Estados Unidos, é o arrendamento a forma mais comum.
O arrendamento agrícola é um contracto pelo qual uma Numa convenção a longo prazo, as modificações verifi-
parte obtém de outra o direito de uso da terra e dos meios cadas no mercado, podem tornar inferior a renda do proprie-
de exploração da propriedade ou da posse legítima da se- tário, quer seja estipulada em moeda, quer em bens em es*
gunda, por meio de um pagamento ou entrega de uma renda pécie. Dessa forma, êle depende do mercado capitalista e
das suas flutuações.
fixa, calculada ou em bens naturais ou em moeda.
Analisemos agora as características: Para evitar tais perigos, sobretudo na Europa, em face
das inflações havidas, reservava-3e o proprietário o direito
Um aluguel fixo — Este pode ser em bens naturais ou de receber em moeda ou em bens em espécie, à sua escolha,
em moeda, mas deve ser fixo, esta a característica funda- permitindo, assim, maior defesa quanto às flutuações do
mental do arrendamento. mercado.
O arrendamento oferece vantagens, pois permite que Quanto ao arrendatário, este, por muito prudente que
outros, possuidores de recursos monetários e técnicos, pos- seja, empregará, fatalmente, bens para aumentar a sua ex-
sam explorar terras que permaneceriam abandonadas em ploração, incorporará ao património alheio benfeitorias que
mãos de seus proprietários. Mas, por outro lado, oferece lhe são necessárias para a melhor exploração do bem. As
desvantagens, porque o arrendatário cuida muitas vezes ir- leis dos diversos países estabelecem normas para tais casos;
racionalmente do campo, esgotando-o, não se preocupando isto é, regulando a indemnização a ser recebida pelo arren-
em incorporar à terra elementos que não permitam o seu datário em caso de benfeitorias. Essas modalidades são as
empobrecimento. Não emprega em geral fertilizantes de mais variadas e todas se orientam para alcançar a maior
acção lenta, mas sim os de acção rápida (nitrato de sódio). justiça possível.
O arrendamento não está libertado de riscos e estes ris-
cos recaem sobre ambas as partes. Vejamos agora a parceria.
A parceria é um contracto pelo qual um arrendador,
quer proprietário da terra ou arrendatário, usufrutuário,
concede, num certo tempo, ao parceiro ou colono que for-
nece seu trabalho, o gozo, sob sua direção e controle, de um
capital constituído pelas terras, edifícios e no todo ou em
parte do material necessário para a exploração das mesmas,
com partilha do producto obtido, regulada de comum acordo.
Além da partilha dos direitos, há a partilha do producto. É
comum partilhar-se a metade. Nesse caso, não há propria-
mente uma remuneração, mas uma associação sui-gensris.
TRATADO DE ECONOMIA 65
64 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

A tradição regula este sistema e não é possível descre- Na parceria, há uma repartição também dos riscos eco-
ver as inúmeras modalidades desses acordos feitos segundo nómicos sobre dois patrimónios. Por outro lado, é também
a vontade dos contractantes. Nalguns países, há leis espe- uma verdadeira operação de crédito, porque o proprietário
ciais que regulam tais contractos. Noutros, todas as ten- ou arrendador cede, põe à disposição do parceiro uma fra-
tativas do Estado em regulá-los malograram ante a resis- ção de capital.
tência das partes, que desejam ampla liberdade de contrac- A parceria oferece outros aspectos que são característi-
tar, respeitando apenas as tradições e os costumes vigorantes. cos. Ela é independente da mão de obra e do seu merrvido.
A percentagem na partilha varia de 50%, isto é metade- Em certos casos, o parceiro, sendo insuficiente para as suas
metade, até 1/5-4/5 ou 2/5-3/5 — ao parceiro e ao proprie- funções normais, emprega auxiliares. Mas, já temos aqui
tário. Quando o solo é muito rico, o proprietário costuma adulterações da parceria propriamente dita. A parceria
receber mais que a metade; quando o solo é pobre, recebe permite que em casos de exigência, o trabalho seja aumen-
menos. tado extremadamente, sem haver os protestos naturais que
se dão quando se trata de trabalhadores assalariados. Nos
Desta forma, o arrendador cede a terra e o parceiro dá últimos anos, neste século, na Europa, a parceria demons-
seu trabalho para a sua exploração. Mas, muitas vezes trou sua grande força para enfrentar as inflações e as cri-
também entra com capital. Como já vimos, inúmeras são ses decorrentes dos períodos de guerra, mantendo certa es-
as modalidades verificáveis em todos os países. tabilidade na economia ameaçada pelo desgaste exagerado
A parceria, ante o progresso capitalista, é uma forma <Ia guerra.
de exploração rotineira e oferece certos obstáculos ao de-
senvolvimento da técnica. O proprietário obtendo boa ren- Sob o ponto de vista social, a parceria é fundada em
da, pouco se interessa em desenvolver a exploração. Por condições psicológicas precapitalistas, com o natural espí-
outro lado, o parceiro resiste às inovações que só podem vir rito de colaboração e de partilha leal, e não o de competên-
em seu prejuízo. cia e lucrum in infinitum, que é do espírito do capitalismo.
Neste caso, certo desenvolvimento técnico vem favore- Podemos agora fazer as distinções claras, entre a forma
cer apenas a uma parte, a menor humanamente considerada, jurídica da exploração agrícola e a empresa capitalista:
como pessoa, que é o proprietário. O parceiro, ante o de-
senvolvimento técnico da exploração da terra ou emigra ou a) a conjunção dos factores não é feita sob o mesmo
torna-se um assalariado, o que é mais comum, conhecendo, regime, e segundo as mesmas normas legais.
assim uma dependência muito maior. b) Também não é comparável o modo de gestão e de
Isso tudo não impede que proprietários de terra, inte- •exploração.
ligentes e competentes, tenham realizado grande desenvolvi- c) A distribuição do producto opera-se por processos
mento técnico, mantendo o sistema de parceria e obtendo
progressos extraordinários, como se verificou na França, na concretos dos mais dissemelhantes.
Itália. Nesses casos, a parceria não impediu o progresso; ao Essas diferenças económicas são acompanhadas sime-
contrário, permitiu que êle se fundasse mais solidamente tricamente por diferenças de ordem técnica.
pelo interesse geral que o alicerçava.
Não se pode negar que há, na agricultura, também uma
Dizem muitos que a parceria é um obstáculo à especia- -especialização, embora não atinja as características nítidas
lização das culturas. Tal, entretanto, nem sempre se verifi- •da indústria.
ca e, neste caso, sobretudo, o das parcerias, é difícil ao eco-
nomista estabelecer normas gerais ou querer estabelecer leis, A exploração agrícola exige métodos especiais, cuida-
porque as experiências são as mais variadas e os resultados dos especiais, aproveitamento de tais e tais terras para tais
os mais complexos. ■c tais productos. Não permite, porém, o aproveitamento
66 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

dos sub-productos tão intensamente bem organizado como na


indústria, embora possamos conceber que essa melhoria se
possa dar com o decorrer do tempo e o desenvolvimento
técnico.
A terra necessita ou de repouso ou de fertilizantes, sob
pena de não oferecer a mesma productividade, bem como
exige a alternação de culturas, para que se recomponha com A EMPRESA INDUSTRIAL E COMERCIAL
os elementos que necessita para as culturas posteriores.
* * *
Vimos no exame da zona capitalista, que esta compre-
É fácil notar as diferenças profundas entre uma explo- ende o comércio, a indústria e o banco, terrenos onde o ca-
ração agrícola e uma empresa capitalista. pitalismo se desenvolve em suas fases, com graus diferentes.
As resistências, que o campo oferece ao capitalismo, Varia nas diversas nações do mundo a preponderância
são importantes, e vêm, em parte, negar a velocidade da lei entre as empresas.
marxista. Julgava o marxismo que a economia capitalista
seria totalmente vitoriosa sobre o campo, superestimando,, As empresas individuais são em geral as de maior nú-
assim, a capacidade de acção do capitalismo, não contando mero, seguindo-se as societárias. Dentre estas, as anóni-
com a capacidade de resistência dos elementos precapitalis- mas, em alguns países, como nos Estados Unidos, são as
tas do campo. mais importantes quanto aos capitais invertidos, aos operá-
rios e empregados e aos valores produzidos.
Após termos examinado a zona precapitalista do artesa-
nato e da exploração agrícola, penetraremos, agora, na zona Observa-se facilmente que há uma tendência a desper-
propriamente capitalista, que compreende o comércio, a in­ sonalizar a empresa societária, tendência verificável em to-
dústria e o banco, os terrenos conquistados por aquele suces- dos os. países capitalistas modernos.
sivamente, assim como conquista também o próprio campo,
realizando plenamente o desejo maior dos marxistas; ou Essa despersonalização oferece dois aspectos:
seja, a capitalização total da sociedade, facilitando daí a a) aparição de novas formas de sociedades de pessoas;
substituição do capitalista particular pelo capitalista esta-
tal, permanecendo o trabalhador num estado de dependência b) extensão da sociedade anónima ou sociedade de ca-
pior, devido ao fortalecimento legal e policial do detentor pitais.
do capital, nesse caso não mais um indivíduo ou um grupo,
mas o Estado, com todo o seu poderoso aparelhamento de Assim, ao lado das antigas formas de sociedades de
defesa e de agressão. pessoas, tais como a de comandita simples ou por acções,
apareceram as sociedades de responsabilidade limitada.
Esta espécie de sociedade desenvolveu-se grandemente
e rapidamente, devido sobretudo às suas características: é
uma sociedade em que a responsabilidade de seus membros
não é indefinida, mas relativa às partes de capital. Por
outro lado, seus títulos não são negociáveis, como nas so-
ciedades anónimas, mas títulos submetidos a uma formalida-
de de cessão de crédito toda especial.
68 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 69

Os que não desejavam empregar numa sociedade uma Por incompetência técnica, por ser disperso e não for-
responsabilidade pessoal integral, encontravam na sociedade mar uma vontade, pela sua fraca capacidade de organização,
de responsabilidade limitada ou por quotas, uma solução. a soberania dos accionistas é meramente nominal.
0 desenvolvimento da sociedade por quotas ou de res- Nas assembleias das sociedades anónimas, a percenta-
ponsabilidade limitada nos revela uma nova tendência ca- gem dos accionistas presentes em pessoa é mínima, alcan-
racterística do capitalismo: a tendência do empresário de çando, nos casos mais favoráveis, pouco mais de 20%.
subtrair-se aos riscos da producção.
A decisão pertence sempre a alguns accionistas, deten-
Vejamos agora a letra b. Importantes motivos inter- tores do maior número de acções. Dessa forma, a vontade
vieram para favorecer a extensão da sociedade anónima. de uma minoria (oligarquia) impõe-se à grande massa dos
Oferece a sociedade anónima um exemplo extraordinário de accionistas. Inúmeros são os processos empregados para
acquisição e colectação de capitais. Na sociedade por quo- obter essa maioria de acções nas mãos de uma minoria.
tas, quem fornece 03 fundos não pode liquidá-los facilmente, Quer pelo domínio do maior número de acções por parte do
enquanto na sociedade anónima, o acionista está na posição grupo, quer pela acquisição delas até atingir a maioria, quer
de um credor, que pode liquidar a todo instante a sua acção. pela colecta de poderes especiais. Um outro processo con-
Tem ainda a possibilidade de ganhos diversos, quer econó- siste em dar à acção um voto plural. Por ex.: uma socie-
micos, como os resultantes da distribuição de dividendos, co- dade considera que as acções de números 1 a 1.000 têm 5
mo ganhos de especulação, decorrentes das variações na votos, enquanto as acima desse número têm apenas 1 voto.
bolsa. Permite, assim, a sociedade anónima que pequenas As primeiras são dos fundadores. Para compensar essa
poupanças possam ser reunidas numa empresa societária. pluralização do voto, concedem aos accionistas de voto in-
ferior maior participação nos dividendos. Também se usa
A maior sociedade por acções do mundo é a U . S . Steel o processo de aceitação de capital sem direito de voto. mas
Corporation, que dispõe nesse tipo 686 milhões de dólares. apenas ao dividendo, as acções preferenciais. Ex.: No
Na Europa, a maior firma é a Lever Brothers, com 130 truste do fumo, nos Estados Unidos, antes da guerra, ha-
milhões de libras de capital autorizado. via 215 milhões de dólares de acções sem direito de voto,
contra 40 milhões de dólares com direito de voto.
Alguns economistas vêem na sociedade anónima uma
verdadeira democracia financeira. Mas mostraremos como Que nos oferece a análise de tais factos?
se enganam.
Que há um capital dirigente e um capital dirigido. O
Na empresa individual, temos, em primeira plana, o primeiro é representado pelo grupo oligárquico dirigente,
factor pessoal, com o favorecimento da competência profis- quer diretamente, quer por seus representantes ou delega-
sional e do espírito de empresa. A pessoa tem uma res- dos (directores, conselho de administração, e t c ) . O segun-
ponsabilidade legal e uma responsabilidade moral. do, a massa dos accionistas.
Diz-se que, na sociedade anónima, temos uma situação Surgem, então, aqui, as características diferenciais en-
completamente oposta. Esta é uma sociedade de capitalis- tre a empresa individual e a empresa societária. Vejamos:
mo impessoal (Liefmann) ou de desumanização da empre- As decisões são geralmente menos rápidas nas grandes
sa (Sombart). sociedades de capitais do que numa empresa individual.
Procuram, assim, mostrar que, nela, a gestão e a pro- Observam frequentemente os economistas que a socie-
priedade são separadas, dando a entender que a direcção dade anónima se burocratiza a exemplo das explorações
tenha aí perdido sua importância, como se o factor pessoal administrativas. Permite muitas vezes o desenvolvimento
tivesse sido eliminado. do espírito de empresa, pela sobreexcitação desse espírito.
70 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 71

Permite ainda uma forte concentração de poderes e uma O comércio subdivide-se em comércio por atacado e co-
ampla descentração ou disseminação da propriedade. mércio por varejo.
Na empresa societária, há separação entre o trabalho O comércio por atacado subdivide-se segundo a natu-
e o capital, como em toda empresa capitalista. De um lado reza dos objectos e dos productos. O comércio por varejo
trabalhadores de direcção e de execução, e de outro os também se especializa.
accionistas. A gestão é comumente confiada a agentes dis- Nas grandes cidades, a especialização oferece graus
tintos. Uns lançam a empresa, outros tomam as decisões dos mais variados e completos.
vitais (administradores, membros do conselho, diretoria),
e a outros cabem a direcção técnica, o controle quotidiano. Por outro lado, observam-se empresas industriais que
assumem funções comerciais, que não vendem aos atacadis-
Há, assim, separações de graus diversos. tas, mas directamente aos consumidores, pela criação de
Há, ainda, a separação entre os proprietários jurídicos agências, filiais.
da maioria do capital e os que exercem o poder de dispor Por outro lado, empresas comerciais assumem funções
efectivamente desse capital. Estamos aqui em face da dis- industriais. São empresas que tendo muitas filiais e agên-
tinção entre o conteúdo económico e o conteúdo jurídico da cias podem produzir para fornecimento das mesmas.
propriedade.
Assim vemos reagruparem-se funções que haviam sido
Apresentam as sociedades anónimas outras particula- cindidas pelo próprio capitalismo.
ridades, tais como as possibilidades de fraude mais acen-
tuadas, bem como meio de manipular os dividendos, de as- * * *
segurar um domínio sobre a massa de capitais, o jogo com
as reservas, as obscuridades contabilísticas e também lan-
çamentos inexactos, embaralhamento dos lançamentos com Um aspecto interessante que os factos actuais vêm de-
o intuito de ocultar, por meio de manobras, a realidade da monstrando é o que se refere aos males do gigantismo na
situação da empresa, as participações da directoria, con- indústria. Já notamos muitas vezes quanto predominou
tractos que facilitam participações extra-societárias. essa concepção na Economia, sobretudo entre os marxistas,
que viram nas empresas megatérias uma manifestação de
Outro aspecto importante é verem-se quase sempre os socialismo (!). E se hoje, na Rússia, se procede à descen-
mesmos elementos na direção das empresas anónimas. As tralização, é esta mais provocada pelas necessidades de de-
empresas, que parecem autónomas, estão ligadas ocultamen- fesa do que propriamente pelas dificuldades administrati-
te através das suas direcções, escapando, assim, a qualquer vas que elas oferecem. Ainda vemos no terreno adminis-
fiscalização oficial, aumentando o poder de alguns à custa trativo social, sobretudo político, que o preconceito da
da grande massa de accionistas, poder que se reflete tam- centralização é predominante em muitos. Ainda se julga
bém na vida oficial e política. que a concentração de poderes é benéfica. A indústria
Os abusos levam os poderes públicos a intervirem por moderna sente os males dessa centralização e há exemplos
meios administrativos e legais. extraordinários nos Estados Unidos, onde grandes empre-
sas procedem a descentralização de suas indústrias.
* * *
A administração suprema de uma indústria gigante,
Observa-se actualmente uma intensificação da especia- por melhor serviço de informações que tenha, é cheia de de-
lização das explorações capitalistas, especializações que se feitos. No campo do capitalismo, verifica-se que as gran-
verificam não só no terreno da indústria como no do comér- des empresas, sob o ângulo contábil, estão mais sujeitas às
cio e até nas operações bancárias. fraudes e aos erros e a maiores erros de cálculo.
72 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 73

Temos exemplos na Creusot, na França, cuja descon- pria rentabilidade, de modo que atenda as suas necessida-
densação tornou-se uma necessidade, a Loewe, na Alema- des. Os marxistas combatem, na sociedade capitalista, o
nha, além de outras muitas nos Estados Unidos. aspecto capitalista, e pretendem impor um anti-capitalismo.
Mas a rentabilidade de uma empresa traz sua marca capi-
No comércio, também. A centralização dos grandes talista. Os marxistas já dão como resolvidos os principais
armazéns (como verificamos agora no Brasil, Mappin Sto- problemas, porque admitem que a ideologia e a superestruc-
res, Sears, Lojas Americanas, e t c ) , nos países mais desen- tura são modeladas e determinadas pela infra-estructura
volvidos é substituída por uma descentralização técnica e económica. No entanto, necessitam estimular a rentabili-
contábil (as grandes organizações no Brasil, acima citadas, dade de suas empresas e exigir benefícios seguros.
já empregam esse sistema em muitos aspectos).
Numa sociedade libertária ou anárquica, as soluções
Não se deve, porém, confundir descentralização técnica para tais problemas são diferentes. A rentabilidade não
ou administração com a descentralização económica. é dominante, porque o sistema de distribuição é fundado na
Uma empresa pode ter uma centralização económica, productividade. Assim uma empresa, que poderia ser de-
quanto aos cálculos, por intermédio de uma contabilidade ficitária, mas necessária para a producção, tem assegurada
central. Há uma empresa com diversas secções e não di- sua participação social na distribuição dos bens, porque é
versas empresas. destruído o mercado e o sistema de preços, pela incorpora-
ção nos direitos sociais iguais de todos à alimentação, à
Esta distinção é importante para compreender as dou- moradia, à educação e ao divertimento, que são igualizados
trinas dos que defendem o socialismo descentralizado (liber- basicamente, embora, em outros aspectos, sejam admissíveis
tários, anarquistas, e t c ) . Reconhecem eles as grandes di- as distinções naturais que se formam.
ficuldades de uma planificação socialista centralizada. Os
interesses colectivos podem ser perfeitamente assegurados
por uma gestão de estabelecimentos múltiplos e distintos no
interior do organismo social.
Pode dar-se uma independência técnica, administrativa
e até económica das explorações socialistas.
Não resta dúvida que se pode descentralizar técnica ou
administrativamente com reais resultados. Quanto à des-
centralização económica, esta se dá apenas pela afirmação
da autonomia das empresas, cuja rentabilidade fica, no en-
tanto, ligada aos interesses colectivos pela organização fe­
derativa das previsões e cálculos económicos, cujo organis-
mo tem apenas um papel orientador, consultivo e não di-
rectivo nem executivo.
É natural que os socialistas libertários admitam, como
fundamental, uma base ética na sociedade, isto é, um reco-
nhecimento dos direitos colectivos, que não podem ser pre-
judicados em benefício de um grupo nem vice-versa.
Uma sociedade socialista planificada centralizada (so-
cialismo autoritário, marxismo, e t c ) , exige cálculos econó-
micos em relação aos interesses próprios quanto à sua pró-
EXPLORAÇÃO E EMPRESA PÚBLICA

Passemos ao exame das empresas que não são propria-


mente capitalistas: as empresas públicas e semi-públicas.
Quanto às empresas cooperativas, teremos ocasião de exa-
miná-las oportunamente, as quais também se incluem entre
as que não são capitalistas.
As unidades de producção da zona pública podem rece-
ber fornecimento de capital a) exclusivamente dos poderes
públicos; b) ou parte pelos poderes públicos, e parte pelos
agrupamentos particulares ou indivíduos isolados (socieda-
des mistas).
Quanto à disposição efectiva e à gestão das empresas
podem a) os poderes pertencerem aos particulares e ao Es-
tado, sob quadros jurídicos estabelecidos previamente; b) ou
podem estar divididos entre o Estado e os particulares, pro-
porcionadamente ao capital aportado.
Quanto ao funcionamento, prestam as explorações pú-
blicas serviços públicos, tendentes a satisfazer necessidades
da comunidade nacional ou de um grupo dessa comunidade.
Algumas explorações estabelecem preços que não são preços
do mercado, e que são corrigidos por considerações políticas
ou sociais, aos quais certos autores americanos chamam de
preços políticos. Outras explorações, integradas no merca-
do, aceitam o preço do mercado tal qual é, praticando pre-
ços de monopólio ou de quase-monopólio.
Assim, há empresas que não têm como fim exclusivo
nem principal o maior ganho possível, outras que tendem
para o maior ganho possível, limitadas por certo interesse
geral, e outras que são verdadeiras empresas de capitalis-
mo de Estado e que procuram, através da troca, alcançar
o maior ganho monetário possível. Estabeleçamos os as-
pectos que as distinguem umas das outras.
TRATADO DE ECONOMIA 77
76 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

Examinemos as explorações públicas, fazendo primei- explorações industriais sem monopólio, como certas indús-
ramente uma distinção fundamental entre a) explorações trias, etc.
públicas e b) empresas de capitalismo de Estado. Podem essas explorações ser superavitárias ou defici-
As explorações públicas são propriedade do Estado, ge- tárias. Neste último caso, o deficit é coberto pela arreca-
ridas sem restrição nem controle por este. Não tendem a dação dos impostos, por restrições de despezas ou por meios
um ganho monetário maior, mas buscam realizar um ganho orçamentários, não devendo nunca o ser pela reducção dos
monetário, dentro de certos limites políticos e sociais. serviços que prestam quando sociais.

As empresas de capitalismo de Estado são órgãos de Quando superavitárias (isto é, quando a despeza é in-
producção, que reproduzem, na forma, a empresa capitalis- ferior à receita) as aplicações do superavit podem destinar-
ta, embora os proprietários sejam o Estado ou uma colec- -se às melhorias, fundos de reserva ou aplicadas em obras
tividade pública. Penetram no mercado e procuram o maior sociais ou para cobrir deficits de outras explorações, etc.
ganho monetário possível. Não são propriamente organis-
mos públicos pelos fins, mas apenas pela estructura e pelo
património. AS EMPRESAS DE CAPITALISMO DE ESTADO
Analisemos agora essas duas espécies de explorações e
empresas públicas.
Em todos os seus aspectos, essas empresas são seme-
lhantes às particulares, tendo por única diferença a distin-
AS EXPLORAÇÕES PÚBLICAS ção entre o capitalismo privado e o capitalismo de Estado.
Nessas empresas, procura o Estado o maior benefício mo-
netário possível, entrando em concorrência com as empresas
Essas instituições têm um fim especial: não tendem à capitalistas do mesmo ramo.
satisfação de todas as necessidades colectivas de uma comu- Podemos considerar como exemplos o capitalismo de
nidade, mas a certas necessidades. Têm, assim, uma utili- Estado da Alemanha hitlerista, do trabalhismo inglês, etc.
dade colectiva. (Estabelecimentos públicos do Estado, tais
como estabelecimentos de instrucção pública, asilos, assis- As explorações do capitalismo do Estado são combati-
tência pública, hospitais, hospícios, e t c ) . das sobretudo pelo burocratismo que elas geram, que surge
na administração das grandes empresas privadas e que se
Essas organizações partem da despeza e não da receita. agrava nas empresas públicas, encarecendo e emperrando
As necessidades colectivas devem ser satisfeitas e o Estado sua actividade. Além disso, a História revela na Europa
deve fazer face a essas despezas. Para isso, dispõe de meios que as experiências de administração pelo Estado têm sido
de acção baseados no constrangimento, (percepção de taxas, prejudiciais, sobretudo pela incapacidade administrativa de
imposto, e t c ) . seus dirigentes, que dependem dos elementos políticos, que
Tendem, assim, à satisfação das necessidades, combi- influem frequentemente na administração. Durante a guer-
nam os factores da produção para trabalhar com o menor ra de 1914-18, o arsenal de Roane, que deveria produzir
custo e obter o resultado máximo. 50.000 obuses por dia, nas mãos da administração do Es-
tado produzia apenas 1.700 obuses, muito aquém da produc-
Há outras explorações de carácter económico, que são ção de outras oficinas administradas por capitalistas.
administradas pelo Estado (Municípios, governos estaduais
ou provinciais, e t c ) . Exploração do fumo, bebidas (como Revelam também as experiências que os abusos na pro-
no Uruguai), telégrafos, telefones, correio, etc. Essas ex- ducção aumentam, desaparecendo a disciplina por parte dos
plorações podem ser monopolizadas, ou não. Há, ainda, trabalhadores.
78 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 79

De tais defeitos não se exime a organização soviética, sos países e comunidades, a concessão, economicamente, é
em que as influências políticas penetram na producção uma exploração mista.
(acção dos elementos do partido), bem como depende do
mercado e dos preços estabelecidos, trabalhando para clien- O poder público beneficia o concessionário com certos
tela anónima, e obrigada a obter o maior ganho possível, processos de expropriação para facilitar-lhe o funcionamen-
a fim de satisfazer as comissões elevadas de que gozam os to (no caso de estradas de ferro, expropriação por utilidade
dirigentes. Dessa forma, verifica-se, na Rússia, uma con- pública de certas faixas de terreno, e t c ) .
fusão entre o económico e o político, porque os dirigentes Concede às vezes ajuda financeira, por meio de subven-
dependem dos comissários políticos, sendo estes uma verda- ções, como pode ainda participar nos riscos da exploração.
deira ameaça. Por outro lado, as estatísticas russas de- O poder público pode participar ou de uma renda determi-
monstram que o custo da producção é exagerado, razão pela nada ou das rendas líquidas verificadas. Neste caso, cabe
qual é tão elevado o custo de vida na Rússia. ao poder público representar-se por meio de fiscais.
Os processos mais modernos usados são os da sociedade
AS EXPLORAÇÕES MISTAS de economia mista, que assume a maior parte das vezes a
forma da sociedade anónima (ou sociedades mistas de res-
ponsabilidade limitada, como na Alemanha). Nessas socie-
São as explorações mistas as mais comuns no capita- dades, os accionistas são particulares e as colectividades
lismo moderno. No sector público, são numerosas e cada públicas.
vez mais numerosas. Essas sociedades, de economia mista, As colectividades públicas adquirem um direito à dis-
são formadas com a aportação de frações de capital de um tribuição do benefício, participam dos riscos da gestão e go-
ou outro lado (Estado e capitalista), nas quais a direcção zam de prerrogativas concernentes à direção, à orientação
cabe ao Estado ou ao capitalista. e à administração do negócio. Salvo especificações deter-
O tipo mais comum dessas organizações são as conces­ minadas, essas prerrogativas são proporcionais ao montan-
sões. te de um ou outro portador (poder público e particulares).
Antigamente, usava-se também o arrendamento de cer- As formas dessas sociedades mistas são as mais diver-
tos domínios públicos, que eram entregues a um particular sas, segundo as condições de cada país. O que se observa,
ou a um grupo de particulares, quando o Estado não podia porém, é sua multiplicação constante, que, para nós, revela
mantê-los devidamente. a marca do capitalismo privado para o capitalismo estatal,
confundido tantas vezes com a socialização. O capitalismo
Examinemos, no entanto, a concessão. de Estado vai substituindo aos poucos o capitalismo priva-
A concessão é uma forma de exploração na qual o Es- do, naturalmente não numa direcção linear. Há marchas
tado ou uma colectividade pública concede a particulares e contra-marchas, mas pode-se estabelecer que a predomi-
isolados ou agrupados (os concessionários) o estabelecimen- nância constante é dada à exploração pública caber ao Es-
to ou a exploração de um serviço público. Neste caso, os tado. Os serviços prestados por organizações particulares
concessionários têm a responsabilidade financeira da explo- tornam-se públicos, assumem o carácter de serviços públicos
ração e a direcção técnica. Suas obrigações e direitos são por interessarem à colectividade. Desta forma, o Estado
estatuídos no contracto de concessão. encontra sempre uma justificativa para atrair para o seu
âmbito todas as explorações de serviços que interessam à
As concessões são dadas para prazos determinados. maioria ou à totalidade da população.
Independentemente dos seus pormenores jurídicos, que Para uma análise concreta das explorações mistas, de-
são estabelecidos geralmente pelas leis vigorantes nos diver- vemos considerar a) a natureza do serviço; b) a capacidade
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 81
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e a competência pessoal dos dirigentes; c) o conjunto das como pensam os socialistas. Os liberais viram nela uma
relações económicas e sociais. libertação da gestão socialista, enquanto os socialistas vi-
ram uma marcha para o socialismo, por haver aí uma co-
No primeiro caso, temos a estructura. Verifica-se se lisão clara dos interesses capitalistas com os interesses so-
há a independência do património e dos interesses do con- ciais. Não há dúvida, porém, que a exploração mista pre-
cessionário e das finanças públicas. No primeiro caso, os para o advento do socialismo como êle é concebido pelos
particulares são naturalmente incitados ao máximo de dili- autoritários. Elas criam condições favoráveis, preparam o
gência para a acquisição dos benefícios maiores. futuro do socialismo, não sendo ainda socialismo. A explo-
ração pública mista permite quebrar as resistências políti-
Tanto os liberais como os socialistas de todos os mati- cas, as psicológicas e as sociais, justificando o Estado pla-
zes têm discutido as vantagens e as desvantagens do siste- nificador. Entretanto, muito pode e sucede aqui que des-
ma de economia mista para as explorações públicas. Os mente as previsões socialistas. E esses factos serão opor-
liberais mostram seus defeitos, enquanto os socialistas (os tunamente por nós estudados.
autoritários) o defendem, contra a opinião dos libertários,
que julgam deve a administração pertencer às organizações
populares livremente constituídas.
No entanto, há, segundo a natureza do serviço, pela
sua amplitude, a conveniência de ser entregue não a orga-
nizações locais, mas nacionais. Quanto à competência, o
Estado não é um organismo capaz de garanti-la, devido as
condições políticas que o constituem e nele actuam.
As concessões oferecem certas dificuldades quanto ao
controle dos concessionários que podem cuidar de seus be-
nefícios particulares em prejuízo dos interesses públicos.
Sabem todos dos defeitos da fiscalização realizada pelo Es-
tado, devido aos elementos políticos e ao desamor natural
ao que é colectivo.
Tendo o concessionário um tempo limitado de explora-
ção, é natural que o aproveite da melhor forma. Tem as-
sim a concessão elementos contraditórios, que se antagoni-
zam. São interesses gerais em choque com interesses par-
ticulares.
A economia mista é uma economia intermediária (para
muitos uma economia de transição), por isso oferece ela
tantos males quantos benefícios.
Refletem elas a crise inerente ao regime capitalista, a
impossibilidade de permanecer este quando os interesses co-
lectivos passam a impor-se na sociedade.
Entretanto, convém estabelecer que não há um capita-
lismo puramente privado sem participação no sector públi-
co. A exploração mista não é um progresso de socialização
CRÍTICA DA EMPRESA E DO EMPRESÁRIO

Tornou-se o tema da empresa, ante as investigações


modernas, de uma importância capital, já que anteriormen-
te estava totalmente confundido com a firma capitalista.
O termo empresa indica, etimologicamente, um acome-
timento, um empreendimento. Em nossa língua, sua ori-
gem foi trazida do francês, que, por sua vez trouxe-a do
italiano. Já a estudamos em suas linhas gerais, anterior-
mente, e queremos agora apenas tecer alguns comentários
que se tornam necessários.

No sentido económico, como dissemos, empresa foi con-


siderada a organização privada capitalista para a realiza-
ção de uma actividade meramente económica, com uma fi-
nalidade determinada. Modernamente, entende-se como em-
presa, na Economia, a organização capaz de efectuar uma
determinada actividade económica, distinguindo-se nitida-
mente da figura do empresário, como gestor, e do titular da
empresa, que na maior parte das vezes é o próprio empre-
sário. Como essa função, pelo dirigismo económico, pode
ser realizada também pelo Estado, é este, em certas circuns-
tâncias, o empresário, pois é o titular da empresa. A em-
presa, considerada em si mesma, pode ser tomada apenas
como a organização económica, como dissemos, cujo empre-
sário, cujo titular, pode ser substituído, permanecendo, no
entanto, aquela sendo a mesma. O titular é, na vida eco-
nómica e jurídica, aquele que representa a firma, que firma
em nome da empresa, quando proprietário dela. Assim, a
distinção entre firma, empresa, empresário em sentido de
gestor, e titular torna-se clara.

Desse modo, pode-se falar em empresas públicas e em-


presas privadas, como já vimos. As primeiras são aquelas
84 MÁRIO F E R R E I R A DOS S A N T O S
T R A T A D O D E ECONOMIA 85
cujo titular é o Estado, as segundas aquelas cujo titular é para a realização de efeitos económicos. Contudo, essas
a pessoa privada, singular ou colectiva. formas são inegavelmente accidentais, episódicas, como di-
zem alguns, na vida social humana. Elas não representam
A empresa surge de uma complexidade na realização necessidades insuperáveis, pois podem ser substituídas por
económica, e somente quando o trabalho individual não é um trabalho livre, cada vez mais livre. Ao estudarmos as
suficiente para alcançar resultados mais amplos, tornando- dependências do trabalho, notamos que a forma cooperacio-
-se mister coordenar esforços, mobilizar diversas activida- nal é a única que oferece o maior grau de independência
des especificamente distintas para obterem-se resultados ao trabalhador, liberdade que pode ser aumentada à pro-
mais amplos. porção que o progresso tecnológico em sentido amplo, in-
O empresário é o coordenador da empresa; o titular é clusive o da gestão empresarial, que também é técnica, al-
o proprietário da empresa, que no regime capitalista, de cança seus estágios mais elevados.
início, reúnem-se nas mesmas pessoas, tendendo, na fase A empresa nasce, assim, de um ímpeto libertário do
ascensional daquele regime a ser executada por mandatá- homem, e o empresário goza, ao construí-la e ao levá-la
rios, que participam ou não do título de proprietários da avante, de certa liberdade, bem como no seu funcionamento,
empresa, como se vê nas grandes sociedades anónimas. apesar das restricções naturais que a circunstância ambien-
tal (político-econômica, jurídica, sociológica, ética, religio-
As empresas tendem, pois, a combinar e a coordenar as sa, histórica, etc.) pode exercer.
actividades económicas com fins preclpuamente determina-
dos, e elas surgem por uma necessidade da divisão do tra- As empresas públicas devem ser consideradas como
balho para a obtenção de maior producção. Não se pode serviços públicos. Mas, seja como fôr, a empresa é sem-
negar que a figura do empresário é a de um agente criador, pre uma reunião de indivíduos, implica uma cooperação de
de um agente organizador, captador de possibilidades de esforços e prova a capacidade criadora da cooperação, pois
entrosamento da producção, segundo normas mais producti- sua unidade surge do entrosamento dos esforços tendentes
vas e hábeis. Como toda acção criadora implica liberdade, à realização de uma meta desejada. A cooperação interna
a acção do empresário necessita ser livre para poder reali- é necessária, bem como cooperação externa, cooperação nas
zar as experiências que se tornam necessárias, a fim de al- funções. E tal cooperação é evidente, apesar do excesso de
cançar os resultados desejados. Como a economia superior individualismo que pode dar-se, e que é próprio do regime
é uma economia empresarial, desde logo se percebe a neces- capitalista, pois se nota que cada vez mais a empresa vai
sidade que nela havia da liberdade, sem a qual a criação pertencendo ao próprio trabalhador, que a sente em muitos
seria impossível, o que aliás comprova a nossa tese de que aspectos como ma (minha oficina, mmha fábrica, minha
a economia é fundamentalmente assentada sobre a liberda- firma, etc.).
de, e que o genuíno acto económico é um acto livre. Con-
tudo, tal não implica que se tenha juntado à economia o As empresas capitalistas tendem naturalmente à reali-
trabalho não livre, como vemos na escravidão e no trabalho zação de bens destinados ao mercado, e sofrem do risco que
forçado nas prisões. Tais trabalhos são económicos apenas é inerente a todo capitalismo, como a concorrência, crises,
em sua função productora e surgem da mobilização feita perda de mercados, prejuízos, etc., que são escalares.
por empresários que, contudo, gozam de liberdade. Em tais
casos, os trabalhadores são jurídica, económica, adminis- As empresas públicas tendem a monopolizar a produc-
trativa e tecnicamente dependentes do empresário, e repre- ção específica, mas algumas, apesar desse monopólio, podem
sentam formas viciosas na acção económica do homem, que sofrer concorrência, como se dá com o serviço de Correios,
nasce de um gesto criador e livre, ao qual se incorporam que pode ser preferido por outros meios de comunicação
formas opressivas, verdadeiramente extraeconômicas quan- mais eficientes do que o serviço prestado pelo Estado, que
to a este aspecto, apesar da canalização de tais esforços nem sempre corresponde às necessidades existentes.
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 87
86

As associações de empresas, a fim de evitar a concor- Alguns Estados procuram marchar pela forma demo-
rência ou reduzir os riscos, formam as diversas figuras que crática para essa sociedade pela aplicação dos impostos so-
já estudamos, como cartéis, trustes, etc, que são preconcei- bre as rendas, ou melhor, sobre os lucros, destinando-os ao
tualmente, por uma propaganda insidiosa, apresentadas Estado para a realização de suas funções. É uma espécie
como prejudiciais aos interesses públicos, o que nem sempre de combinação entre democracia capitalista e democracia
é verdadeiro. libertária, o que se verifica, de modo ascendente, nos países
mais desenvolvidos do mundo e que não estão dominados
Fundando-nos na empresa, poderemos anotar alguns pelo "socialismo", no sentido vicioso que tomou nas mãos
aspectos típicos dos diversos sistemas económicos, moder- dos socialistas. Mais adiante veremos as razões dessas
namente empregados: nossas afirmações, pois o socialismo não tem culpa dos so-
cialistas e se estes malograram não malogrou aquele em
O capitalismo democrático caracteriza-se pela empresa seus mais nobres ideais, nem tampouco tudo quanto se ro-
livre e pela distinção nítida entre a empresa e o titular da tula de alguma coisa é essa coisa tomada especificamente.
mesma, que é propriamente o capitalista, uma pessoa pri-
vada, singular ou múltipla.
O capitalismo de Estado caracteriza-se pela empresa
pública, desde a mista até a exclusivamente estatal. Neste
caso, o Estado é o empresário e titular da empresa, parcial
ou totalmente. O capitalismo de Estado tende à absorção
total, por parte do Estado, de toda empresa económica, e
basta, para caracterizá-lo, o predomínio económico deste.
O chamado socialismo de Estado apresenta economica-
mente a mesma maneira de actuar do capitalismo de Es-
tado, com distinções meramente jurídicas, pois, em muitos
casos, pode ser realizado através da expropriação pura e
simples do titular da empresa e da sua propriedade, nou-
tros pode dar-se pela expropriação com indemnização, como
se dá também no capitalismo de Estado.
Distinguem-se ainda um de outro pela finalidade. No
capitalismo de Estado, os benefícios tendem para todos, in-
dependentemente de sua situação de classe, enquanto no so-
cialismo de Estado diz-se tender para o bem do trabalhador,
o que, na prática, não se evidencia.
Há, ainda, a forma de sociedade libertária, que é de-
mocrática, na qual a empresa é privada, livremente orga-
nizada, mas seus benefícios tendem à aplicação social. A
propriedade, o título da empresa, é privada, mas em vez de
os benefícios da propriedade atenderem apenas os interes-
ses privados, dirigem-se ao bem público, para aplicação em
obras de carácter social e muitas vezes deficitárias.
O COOPERATIVISMO E SUA ZONA

Não é possível estabelecer a devida crítica do que dis-


semos no artigo anterior, sem que estudemos primeiramente
o Cooperativismo e as formas de cooperação e outros temas
afins, para alcançarmos uma visão de conjunto, concreta.
É hoje o cooperativismo um dos temas mais importan-
tes da economia política, sobretudo porque as inúmeras ex-
periências realizadas, os exemplos frutificados, a resistência
de tantas forças reaccionárias ao seu desabrochamento (ca-
pitalismo monopolista, marxismo, socialismo autoritário,
etc.) mostram sua positividade, e permitem que se conclua
que, nas formas de cooperação e no cooperativismo, está-se
realmente construindo alguma coisa de novo e de resultados
que ultrapassarão as expectativas mais otimistas.
Procuram alguns economistas determinar a zona de
acção do cooperativismo, isto é, dar-lhe um limite dentro
dos factos económicos. Reconhecem nele apenas um campo
de acção limitado, embora interpenetrando-se com outros
campos económicos. Todos esses aspectos merecem estudos
especiais, bem como as diversas formas de cooperação, in-
cluídas no título supremo de cooperativismo, como outras
que lhe podem acompanhar. Por outro lado, o cooperativis-
mo não é apenas um sistema económico que se desabrocha,
mas também uma verdadeira concepção do mundo e da so-
ciedade, que permite o desenvolvimento de diversas teorias
que abrangem toda a vida social humana.
Todos esses temas não poderíamos tratar deles com a
necessária eficiência se não precedêssemos esse estudo ana-
lítico de um histórico do movimento cooperativista e de suas
bases sociológicas e filosóficas, tão importantes e necessá-
rias para o bom entendimento de sua significação.
90 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 91

O cooperativismo, em suas primeiras manifestações, foi em países super-civilizados, como a Suécia, Suíça, Dinamar-
um verdadeiro producto da prática humana. Não o ante- ca, etc.
cedeu pròpriamene nenhum estudo filosófico, não nasceu em
gabinetes, nas elocubrações dos filósofos e sociólogos, mas É o cooperativismo uma prática que alcança aspectos
na prática, na luta social. É uma doutrina, portanto, de ori- dos mais amplos no campo social. Afirmam os cooperati-
gens genuinamente práxicas. Só posteriormente compre- vistas que as leis, as greves, o voto podem oferecer mudan-
enderam alguns economistas e sociólogos o alcance dessas ças de ordem económica, mas estas serão apenas passagei-
experiências e puderam, então, justificá-las com o auxílio ras. Uma transformação profunda e permanente da socie-
de factos da Sociologia, da História e das investigações filo- dade só se pode dar através de uma lenta evolução, que se
sóficas, como Kropotkine, sobretudo, o verdadeiro filósofo solidifica por seus benefícios imediatos. E essa transfor-
do cooperativismo, que o justificou, de forma tão grandiosa, mação social só se pode dar através das formas cooperativas,
em seu grande trabalho "O Apoio Mútuo". porque, do contrário, marcharemos para uma catástrofe
social.
Já nos dias de hoje, ante a observação dos factos coope- É o cooperativismo, assim, não só uma prática econó-
rativistas, cujo desenvolvimento em certos países é simples- mica, mas também ética. E aí está sua grande força. É
mente empolgante, a construcção de doutrinas sociais fun- que os cooperativistas vivem, na prática, o que pregam na
dadas no cooperativismo desenvolve-se a ponto de se pregar teoria, enquanto outros vivem em teoria o que não realizam
abertamente, e não mais com receios, de que o cooperativis- na prática. Já dizia Proudhon que os cristãos haviam ven-
mo, como forma social, será a substituta natural do Capi- cido, quando da queda do império Romano, porque viveram
talismo e do Socialismo autoritário, já malogrados em seus cristãmente. Os socialistas autoritários não vivem socia-
intentos e negados e refutados pela prática. listamente, mas autoritariamente. A sua força é apenas a
Enquanto o socialismo autoritário encontra na prática do número e a da brutalidade, como a dos bárbaros ante o
um desmentido categórico ao que formulou em teoria, o co- Império Romano. Se soubermos estudar bem as páginas da
operativismo formula na teoria o que realizou na prática, História, muito poderemos aproveitar em benefício de um
porque, nele, a prática antecede à teoria e não a teoria à futuro humano melhor, que a luta actual entre os desejosos
pratica, como no socialismo autoritário. de mando e de domínio põe em xeque.

A administração pública, obstaculizada pela máquina


emperrada do Estado, só pode ser devolvida ao povo atra-
vés das formas de cooperação, e as promessas do socialismo
autoritário tiveram, na prática, uma negação categórica, pro-
cessando-se, em vez do perecimento lento do Estado, a agu-
dização de sua força, de seu monopólio de poder, até atingir
o totalitarismo que hoje conhecemos, sobretudo na Rússia.
Propõe-se ainda o cooperativismo, e a prática o con-
firma, conservar a liberdade pessoal, garantir o respeito à
dignidade humana, valorizar o indivíduo ao mesmo tempo
que coloca seus interesses pessoais em benefício da colec-
tividade.
As funções públicas, hoje em poder do mercantilismo
e do Estado, poderão amanhã ser controladas e administra-
das pelas cooperativas, como já se verifica crescentemente
OS PIONEIROS DE ROCHDALE

Antes de entrarmos num estudo analítico do coopera-


tivismo e examinar as críticas que lhe são apresentadas, a
par das razões oferecidas em sua defesa, torna-se necessá-
rio que lembremos a acção dos pioneiros de Rochdale, pe-
queno núcleo da Inglaterra, onde surgiu, em suas bases mo-
dernas, o cooperativismo. Posteriormente, faremos um rá-
pido estudo das condições gerais do cooperativismo, para, a
seguir, estudarmos economicamente, seguindo nossos méto-
dos, essa doutrina e prática em todos os seus mais impor-
tantes aspectos.
Reproduzamos, porque são eloquentes estas páginas de
Peter Warbasse, em que nos conta o que foi a acção gran-
diosa dos pioneiros de Rochdale:
"A cooperação e a experimentação cooperativistas da-
tam de longo tempo. As páginas da História estão cheias
de relatos de homens que buscaram meios para trabalhar
unido/s, inspirados nos princípios do apoio e do serviço
mútuo.
A Cooperativa dos trabalhadores de Rochdale, Ingla-
terra, foi realmente o começo regular do movimento coope-
rativo. Antes dela não houve uma expansão sustentada,
que tivesse êxito nos esforços cooperativos que se fizeram.
Eles não criaram íntegros os princípios de Rochdale. In-
vestigaram e vieram muitas experiências de organização
productiva. Seleccionaram e combinaram várias modalida-
des práticas; e essa combinação é a sua grande contribui-
ção. Os princípios, que usaram e combinaram, demonstra-
ram ser a essência própria da cooperação. Os pioneiros
formularam logo a técnica da aplicação desses métodos de
acção conjunta. Ao fim de laboriosos desenvolvimentos des-
sas ideias, levaram-nas à prática. Abriram o armazém; le-
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 95
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varam adiante seus planos. E tiveram êxito. Desde aque- largas distâncias para vir buscar no local cooperativo a mer-
le dia não houve retrocessos no movimento que tinham inau- cadoria. Ao terminar o ano 1845, a Cooperativa de Roch-
gurado. dale tinha 74 membros e um capital integrado de 180 li-
bras. Os negócios do ano alcançaram a 710 libras. O povo
Antes que esses homens tivessem organizado sua so- de Rochdale tinha então 25 mil habitantes.
ciedade, a situação dos tecelões de Kochdale era dramática,
como o é em todas as partes sob o regime capitalista. Ao Cada um dos que desejavam associar-se, deviam compa-
fim de uma vida de trabalho e penar, o asilo de pobres era recer à noite e declarar a sua vontade de tomar quatro acções
o seu destino. de uma libra e pagar um depósito não menor que três pe-
niques por participação; pagar também não menos de três
Deram começo a um novo plano. Toda a vida tinham peniques por semana em diante, e ceder todos os interes-
sido explorados pelos comerciantes. Desde aquele momen- ses e economias excedentes que pudessem corresponder ao
to resolveram ter seu próprio armazém... fundo social, até que se acumulasse, no seu crédito, uma soma
Juntaram à sua já pesada carga os deveres de comer- igual ao valor de suas quatro acções. Assim, com o paga-
ciantes, banqueiros e fabricantes. Tomaram posse das fun- mento de um xelin, um membro entrava já na cooperativa
ções de capitão de indústria. Pobres tecelões! Como não com a simples conformidade de reunir 4 libras, fazendo suas
teriam rido deles os fabricantes, se pudessem ter escutado compras no armazém comum.
a ínfima reunião e os ambiciosos propósitos! Planejaram uma reorganização da sociedade e do Es-
Quando 28 deles, ao fim de mais um ano de penosas tado. Declararam que "na medida do possível, esta Socieda-
economias, tinham acumulado 28 libras esterlinas, inicia- de procederá a ordenar as forças da producção, da distri-
ram a experiência. Alugaram o local desocupado de um buição, da educação e do governo; ou, em outras palavras,
velho armazém da rua Toad Lane. Tiveram que inverter a estabelecer uma comunidade autónoma de interesses colec-
perto de 14 libras para fazer um pequeno estoque de fari- tivos, e ajudar a outras sociedades na constituição de outras
nha, manteiga, açúcar e aveia. Abriram o armazém numa comunidades".
noite fria — a mais comprida do ano — 21 de dezembro de Os progressos foram lentos. Em 1847, quando chega-
1844.
ram maus tempos, e os preços subiram, houve uma grande
Acreditavam que fossem uma banda de conspiradores, carestia e miséria. A sociedade cresceu rapidamente. Uma
e o eram na realidade. Estavam conspirando contra a mi- miséria ainda maior no ano seguinte trouxe como conse-
séria e as forças que a provocam e vivem dela; e essas for- quência um novo incremento de capital e de sócios. Duran-
ças eram as mais poderosas do Império Britânico. te aquele "quarenta de fome", demonstrou-se que "a coope-
ração é o inimigo da pobreza". Os "respeitáveis e influ-
Aqueles tecelões actuaram juntos não somente desde o entes" puseram obstáculos no caminho; mas a organiza-
princípio, mas, também, quando a adversidade lhes apare- ção seguiu progredindo. O asilo dos pobres deixou de ser
ceu. Não receberam ajuda estranha à de suas próprias o destino dos tecelões de Rochdale. Puderam vestir me-
forças, e essa é uma das razões que explica o êxito. Acei- lhor e oferecer outro aspecto. Começaram a ter pequenas
tar a ajuda financeira tem sido muitas vezes a causa de satisfações que até então não podiam ter.
fracasso de muitas cooperativas. Sacrificar-se, aguentar e
desenvolver a confiança em si mesmos têm sido sempre po- Chegaram a ser o centro desde onde a cooperação se
derosos factores de prosperidade. irradiou por todo o mundo. Nos primeiros dias da coope-
ração na Inglaterra, as sociedades recém-organizadas não
Os homens se mantiveram firmes. As promessas do contaram com mais luz do que lhes trazia Rochdale.
comércio privado para tirar-lhes a clientela feminina fracas-
saram, e não puderam dissuadi-los do seu ideal. Compre- Os pioneiros aspiravam a realizar e a cumprir estas
enderam que a lealdade era a pedra capital. Caminhavam estranhas regras:
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 95
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varam adiante seus planos. E tiveram êxito. Desde aque- largas distâncias para vir buscar no local cooperativo a mer-
le dia não houve retrocessos no movimento que tinham inau- cadoria. Ao terminar o ano 1845, a Cooperativa de Roch-
gurado. dale tinha 74 membros e um capital integrado de 180 li-
bras. Os negócios do ano alcançaram a 710 libras. O povo
Antes que esses homens tivessem organizado sua so- de Rochdale tinha então 25 mil habitantes.
ciedade, a situação dos tecelões de Rochdale era dramática,
como o é em todas as partes sob o regime capitalista. Ao Cada um dos que desejavam associar-se, deviam compa-
fim de uma vida de trabalho e penar, o asilo de pobres era recer à noite e declarar a sua vontade de tomar quatro acções
o seu destino. de uma libra e pagar um depósito não menor que três pe-
niques por participação; pagar também não menos de três
Deram começo a um novo plano. Toda a vida tinham peniques por semana em diante, e ceder todos os interes-
sido explorados pelos comerciantes. Desde aquele momen- ses e economias excedentes que pudessem corresponder ao
to resolveram ter seu próprio armazém... fundo social, até que se acumulasse, no seu crédito, uma soma
Juntaram à sua já pesada carga os deveres de comer- igual ao valor de suas quatro acções. Assim, com o paga-
ciantes, banqueiros e fabricantes. Tomaram posse das fun- mento de um xelin, um membro entrava já na cooperativa
ções de capitão de indústria. Pobres tecelões! Como não com a simples conformidade de reunir 4 libras, fazendo suas
teriam rido deles os fabricantes, se pudessem ter escutado compras no armazém comum.
a ínfima reunião e os ambiciosos propósitos! Planejaram uma reorganização da sociedade e do Es-
Quando 28 deles, ao fim de mais um ano de penosas tado. Declararam que "na medida do possível, esta Socieda-
economias, tinham acumulado 28 libras esterlinas, inicia- de procederá a ordenar as forças da producção, da distri-
ram a experiência. Alugaram o local desocupado de um buição, da educação e do governo; ou, em outras palavras,
velho armazém da rua Toad Lane. Tiveram que inverter a estabelecer uma comunidade autónoma de interesses colec-
perto de 14 libras para fazer um pequeno estoque de fari- tivos, e ajudar a outras sociedades na constituição de outras
nha, manteiga, açúcar e aveia. Abriram o armazém numa comunidades".
noite fria — a mais comprida do ano — 21 de dezembro de Os progressos foram lentos. Em 1847, quando chega-
1844.
ram maus tempos, e os preços subiram, houve uma grande
Acreditavam que fossem uma banda de conspiradores, carestia e miséria. A sociedade cresceu rapidamente. Uma
e o eram na realidade. Estavam conspirando contra a mi- miséria ainda maior no ano seguinte trouxe como conse-
séria e as forças que a provocam e vivem dela; e essas for- quência um novo incremento de capital e de sócios. Duran-
ças eram as mais poderosas do Império Britânico. te aquele "quarenta de fome", demonstrou-se que "a coope-
ração é o inimigo da pobreza". Os "respeitáveis e influ-
Aqueles tecelões actuaram juntos não somente desde o entes" puseram obstáculos no caminho; mas a organiza-
princípio, mas, também, quando a adversidade lhes apare- ção seguiu progredindo. O asilo dos pobres deixou de ser
ceu. Não receberam ajuda estranha à de suas próprias o destino dos tecelões de Rochdale. Puderam vestir me-
forças, e essa é uma das razões que explica o êxito. Acei- lhor e oferecer outro aspecto. Começaram a ter pequenas
tar a ajuda financeira tem sido muitas vezes a causa de satisfações que até então não podiam ter.
fracasso de muitas cooperativas. Sacrificar-se, aguentar e
desenvolver a confiança em si mesmos têm sido sempre po- Chegaram a ser o centro desde onde a cooperação se
derosos factores de prosperidade. irradiou por todo o mundo. Nos primeiros dias da coope-
ração na Inglaterra, as sociedades recém-organizadas não
Os homens se mantiveram firmes. As promessas do contaram com mais luz do que lhes trazia Rochdale.
comércio privado para tirar-lhes a clientela feminina fracas-
saram, e não puderam dissuadi-los do seu ideal. Compre- Os pioneiros aspiravam a realizar e a cumprir estas
enderam que a lealdade era a pedra capital. Caminhavam estranhas regras:
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Oferecer as provisões de melhor qualidade que se pu- apegaram-se à vida, e ganharam. No povoado de Rochda-
desse conseguir e dar a medida e o peso exatos". Não le iniciou-se uma nova era económica. Um método dife-
pediam nem davam nenhuma espécie de crédito, opondo-se rente de organização industrial tinha sido descoberto. En-
às dívidas da classe trabalhadora. Adotaram o plano de controu-se um meio de confiar na exactidão das medidas e
entregar as economias sobrantes aos que tivessem feito com- no jogo limpo dos pratos da balança.
pras na cooperativa. A história dos fundadores revela que este resultado veio
Anunciaram como propósito o "de chegar ao estabele- a realizar-se por pura casualidade. Seus planos eram cons-
cimento de uma Cidade Industrial, estendendo o comércio e truir uma comunidade de trabalhadores. Desejavam esta-
a manufactura cooperativa, para suprimir a competência e belecer uma associação de productores. Não há evidência
o crime". de que eles estiveram animados por uma filosofia de con-
sumidores. Os propósitos que tinham em vista ao organi-
Todo membro desta sociedade tinha o democrático pri- zar o armazém cooperativo era os de fazer durar mais os
vilégio de um voto por pessoa, setenta e cinco anos antes de salários e reunir, assim, um capital para actuar como pro-
que o Estado aceitara esse princípio. As sócias tinham di- ductores. Seus planos malograram devido a uma circuns-
reito a receber como próprias suas economias excedentes e tância: vender aos preços correntes no mercado, acumular
a possuir acções, muito antes de que o Estado permitisse a um excedente e distribuí-lo em proporção ao comprado. Is-
mulher ter propriedades. Desde o início as mulheres ti- to transformava o movimento cooperativo em uma associa-
veram direito a votar como os homens. A sociedade dedi- ção de consumidores. Muita confusão reinava entretanto,
cava dois e meio por cento de suas economias à educação. prática e filosoficamente, entre consumidores e productores.
Foram aumentando sem cessar a lista de artigos que dis- Os fundadores não se enganaram; e continuaram a cons-
tribuía. Uma sala de leitura e logo uma biblioteca se or- truir melhor que antes."
ganizou. Os velhos salões já eram insuficientes. Recrea-
ção, bancos e seguros apareceram. E vieram de longe tra- Essa descrição de James Peter Warbasse é bastante pa-
balhadores para estudar esse método de organização. ra se ter uma ideia aproximada das possibilidades do coope-
rativismo. Basta que se diga que, hoje, há muitos milhões
Muitas sociedades semelhantes tiveram o mesmo êxito; de cooperadores em todo o mundo. Ainda o cooperativismo
os pioneiros de Rochdale se estenderam com o movimento inicia os seus passos, apesar de tantos milhões de associa-
através do mundo inteiro. dos, ainda experimenta suas forças, ainda encontra a in-
Cinquenta anos depois, em 1894, ao celebrar-se o jubi- compreensão de muitos como uma barreira aos seus desti-
leu daquela pequena sociedade, o número de sócios alcança- nos, mas nem por isso deixa de vencê-las e de trabalhar pe-
va a 12.000, os fundos a 400.000 de libras esterlinas, o la construcção de um mundo realmente melhor.
giro comercial passava das 300.000 libras e os "benefícios" "Uma sociedade cooperativa é uma associação voluntá-
anuais eram de 60.000 libras esterlinas. Em 1934, a Co- ria, na qual o povo se organiza democraticamente para sa-
operativa dos Pioneiros contava com 44.000 sócios, 569.000 tisfazer suas necessidades pelo apoio mútuo, e na qual o mo-
libras esterlinas de capital e havia realizado negócios no va- tivo do trabalho e da distribuição é o serviço e não o bene­
lor de 657.000 libras esterlinas, numa população de 96.000 fício. No movimento cooperativo, a finalidade que se per-
habitantes. Desde 1844 a 1934, o giro comercial subiu a um segue é a criação de uma sociedade capaz de suplantar, por
total de 30.000.000 de libras, e o excedente das economias sua vez, a especulação mercantil e a violência do estado po-
distribuídas totalizava os 4 milhões de libras. lítico obrigatório" (Warbasse).
Esse tem sido o curso da pequena sociedade. Os tra- A sociedade cooperativa começa pelo consumidor, pois
balhadores de Rochdale podiam ter sofrido uma derrota, co- todos são consumidores (este o lado invariante económico).
mo é comum que a sofra o pobre. Podiam ter admitido A cooperação funda -se na família, que é a célula da coope-
essa sorte e ter-se resignado às penúrias da vida. Mas, ração mais natural. O cooperativismo procura organizar a
98 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 99

família como célula de consumo e funda-se no apoio mútuo dem a dirigir seus negócios de acordo com seus próprios
que é biológico (como já o estudou Kropotkine), próprio dos interesses sociais. É uma função constructiva" (War-
animais bissexuados, e que permitiu a sobrevivência das es- basse).
pécies. Após todas épocas de decadência, é a cooperação
que surge para erguer os povos combalidos, é pela coopera- Esses são os principais motivos por que capitalistas e
ção que as maiores obras humanas foram realizadas. socialistas autoritários são tão inimigos do cooperativismo.
É que essa escola ensina ao povo a não precisar mais dos
O Estado pretende solver as necessidades dos consumi- líderes, dos eternos competentes que se julgam os únicos ca-
dores em choque contra os interesses criados pelos domina- pazes de guiar o povo ignorante. E sua posição de domí-
dores. Mas o cooperativismo surge para substituir a acção nio e de poder está assim ameaçada pela avalanche do povo
do Estado, cujas funções declinam, enquanto o cooperativis- capaz de dirigir-se a si mesmo. O cooperativismo é uma
mo permite substituir o Estado pelas organizações coope- escola de administração popular e dispensa os geniais diri­
rativas, que tomam a seu cargo a administração pública, gentes, eternos exploradores das grandes massas humanas
permitindo que todos, sem exceção, contribuam na organi- em todos os tempos da História.
zação da sociedade.
Vejamos agora quais os métodos elaborados como nor-
A cooperativa não visa a lucros, como uma sociedade mas pelos Pioneiros de Rochdale a serem seguidos pelas
capitalista qualquer. Ela visa a prestar serviços. sociedades cooperativistas:
"Um traço distintivo da organização cooperativa é que 1) Controle democrático. Cada membro tem um só
exercita as pessoas a empreenderem iniciativas organizado- voto. Um homem, um voto.
ras, estimula-as a aceitar a responsabilidade da adminis-
tração ou da direcção, e cria aptos em suas próprias fileiras, 2) Interesse limitado para o capital. O capital in-
capazes de assumirem encargos de serviços de mútuo bene- vertido na sociedade, se recebe alguma renda, há de ser fixa
fício. Esta é uma característica de importância fundamen- e nunca superior à percentagem mínima corrente.
tal. Há defeitos inerentes à psicologia social do momento, 3) Devolução de economias excedentes. Se há exce-
que se devem ao espírito do lucro reinante hoje. Possivel- dentes poupados ("dividendos" ou "benefícios"), derivados
mente esse mal irá desaparecendo à medida que a educação da diferença entre o custo e o preço de distribuição (ou se-
e a coparticipação nas cooperativas de consumo progrida e ja "o preço de venda") dos artigos e serviços, depois de pa-
apareçam as novas gerações com novas tendências e estí- gar os gastos gerais, os interesses do capital e de separar
mulos psicológicos. para o fundo de reserva e outros fundos, o saldo líquido do
Um resultado de significação derivado do movimento excedente economizado devia ser devolvido aos sócios ou des-
cooperativo é que ensina ao povo administrar seus próprios tinado a fins sociais ou entregue como retorno na propor-
negócios. Isso demonstra já a sua utilidade. Quando o ção do montante das compras realizadas.
trabalhador compra em um estabelecimento particular, quem A primeira condição contribui para garantir a democra-
recolhe e ganha a experiência é o comerciante. Mas quan- cia. Nenhum indivíduo ou camarilha poderia conseguir pa-
do o operário e seus companheiros põem um armazém de ra si o controle. Nisto se distingue, das práticas do comér-
sua propriedade, para satisfazer essas necessidades, são eles cio privado, em que os indivíduos têm tantos votos como
mesmos que recolhem essas experiências. E quando põem acções. As sociedades cooperativas não admitem o voto pe-
em funcionamento seu próprio banco e suas sociedades de lo poder. Quando são muitos os membros e se acham mui-
seguros, e organizam seus armazéns por atacado, e cons- to separados pelas distâncias, a sociedade se divide em dis-
troem suas fábricas, seus alojamentos, teatros e escolas, e tritos, com assembleias locais, onde se elegem os represen-
seus telefones e seu transporte, aprendem então em sua pró- tantes para as assembleias centrais. O fim desejado é a
pria escola. Chegam a ser os donos da indústria. Apren- democracia.
Bibliotecas Pública»

100 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA ° 3 , a ' ' Tf

A segunda disposição é uma garantia de que a socie- 4) Em cada balanço um tanto por cento de deprecia-
dade cooperativa não poderá ser usada com propósitos de ção deve ser descontado do valor da propriedade coopera-
tipo capitalista. Não se outorgam benefícios especulativos tiva.
ao capital.
5) A federação das sociedades pode evitar a compe-
O terceiro princípio quebra e inutiliza o chamado be- tência e a hostilidade, salvando a superposição de jurisdi-
nefício comercial, devolvendo-o aos consumidores que o cria- ções e fazendo possível o apoio e a assistência mútua entre
ram. Isto significa que a empresa cooperativa funciona pa- as organizações, pois quando uma sociedade seja cooperati-
ra servir e não para ganhar. va, se não está federada não coopera, e não forma parte
realmente do movimento cooperativo nacional e internacio-
4) A associação é ilimitada. Não se pode impedir a nal.
participação a ninguém, salvo se prejudica ou injuria a
sociedade. 6) O objectivo final para o qual tende o cooperativis-
mo é o de satisfazer todas aquelas necessidades que uma or-
5) A sociedade é constituída por pessoas que volun- ganização social pode prestar, e especialmente conseguir o
tariamente se unem. É o princípio da liberdade de asso- controle da producção, estimular a associação, promover a
ciar-se. formação de outras sociedades, criar organizações nacio-
6) As operações devem realizar-se com pagamentos à nais em cada país, e realizar a união das cooperativas do
vista. mundo numa organização internacional que tenham idên-
ticos propósitos.
7) Uma certa percentagem do excedente poupado usa-
-se para fundos educacionais no plano cooperativo. Acrescenta ainda James Peter Warbasse 11 pontos que
devem ser impostos pelo consumidor organizado em coope-
8) Deve existir neutralidade política e religiosa. rativa. São eles os seguintes:
9) Começando com a distribuição e a prestação de 1) Substituir o estímulo do lucro mercantil pelo de
serviços aos sócios, a organização deve aspirar a expandir serviço.
sua actividade, a unir-se com outras sociedades para a pro-
ducção do que necessitam os membros e, finalmente, para 2) Tornar impossível o privilégio das grandes ren-
assegurar-se o abastecimento das matérias primas. das, lucros, altos salários, a especulação e os dividendos.

Vejamos agora certas práticas aconselhadas a serem 3) Criar maior número de trabalhadores.
incorporadas por toda administração cooperativa. 4) Criar maior número de possuidores.
1) Supõe-se que todo membro patrocina a sociedade 5) Promover a sobriedade e o sentido da responsabi-
nos negócios em que actua. lidade inerente a toda posse privada.
2) Todo sócio se obriga a inverter na organização 6) O trabalho em conjunto dos vizinhos em benefício
uma parte de seu capital ou de seus bens, se isso fôr neces- colectivo.
sário.
7) Adestrar o povo na administração de suas indús-
3) As pessoas, que não tenham o capital inicial para trias em seu próprio interesse.
uma acção, podem também formar parte da cooperativa, e
pagá-la com a acumulação de retornos que lhes correspon- 8) Substituir a rivalidade e o antagonismo pelo apoio
dam por compras realizadas. mútuo.
102 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

9) Devolver ao povo o controle, perdido desde tempo


remoto, de suas fontes de alimentos e de todas necessidades.
10) Descentralizar o controle da vida do povo e pôr
esse controle nas mãos do indivíduo, da família e dos grupos
locais.
11) Reduzir a necessidade das funções governamen-
tais e, portanto, promover, assim, a desaparição do Estado A EXPLORAÇÃO COOPERATIVA
político.
Após essas explanações gerais sobre as características
do cooperativismo moderno, mais visualizado do seu ponto Façamos agora uma análise económica da cooperativa,
de vista ético e sociológico, vamos analisá-lo agora, nas pró- para que possamos coordenar as críticas que lhe têm sido
ximas lições, do ponto de vista económico. E ao lado dessa feitas pelos diversos economistas e examinemos as possibi-
análise, verificaremos, também, as críticas que lhe foram lidades que esse sistema possa oferecer, através da análise
feitas, os aspectos que foram acusados, para, finalmente, do presente, naturalmente quanto ao seu futuro.
apresentarmos algumas opiniões que julgamos úteis. A cooperativa reúne interesses privados. Surge em
pleno sector capitalista, mas conserva aspectos do sector
precapitalista (artesanal, exploração agrícola).
É a exploração cooperativa, no entanto, uma explora-
ção original que oferece seus aspectos específicos.
Não é propriamente uma empresa, nem pelo fim que
ela pretende, nem pela estructura que ela admite (Perroux).
Para Gide, a cooperativa era uma empresa entre outras.
Por isso não foi êle capaz de criar uma doutrina de co-
operativismo, embora fosse um dos seus mais entusiastas
propagandistas.
As cooperativas, por suas condições, opõem-se clara-
mente às empresas capitalistas, além de serem extremamen-
te heterogéneas.
Vejamos alguns aspectos:
Quanto ao fim,, apesar de múltiplos, tendem a uma
clientela particular.
Temos, por exemplo, cooperativas de compra de co-
merciantes varejistas, que permitem adquirir em melhores
condições seus estoques.
Há cooperativas de consumo que distribuem o esto-
que ao consumidor final.
Há cooperativas de artesãos, de funcionários, de em-
pregados, etc.
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 105
104
Assim, a cooperativa pode ter como fim atender cer- São os seguintes os traços característicos:
tos interesses de qualquer classe ou todos os interesses das a) Associação de pessoas
mesmas e de grupos mais gerais. Este é um dos aspectos economicamente fundamentais,
2) A estructura da organização corresponde ao fim bem como o é também eticamente. A cooperativa não é
a que tende. uma sociedade de capitais, como a empresa capitalista, mas
Apresentam as cooperativas semelhanças, mas apenas sim uma associação de pessoas (diferença económica), e
exteriores. Uma cooperativa de trabalho, uma de consu- como associação de pessoas, considera essas como pessoas
mo, uma agrícola, apresentam semelhanças exteriores, mas e não como representantes de um capital; isto é, a cooperati-
funcionam diferentemente. va inaugural já a nova fase ética da sociedade, a nosso ver,
em que os homens valem pelo que são e não pelo que têm.
Tais aspectos diversos têm levado a muitos economis- (Diferença ética).
tas a não poderem estabelecer os dados específicos das
cooperativas, preferindo estudá-las segundo suas distin- Na cooperativa, quem tem um vale tanto quanto quem
ções. tem dez, porque o homem vale como pessoa e não como por-
tador de bens. O homem que vota, na cooperativa, "é a tra-
Maurice Bouguin diz: "Na cooperativa, os associados ducção do carácter pessoal do agrupamento".
não se contentam de fornecer capitais, eleger administra-
dores, votar nas assembleias, correr riscos. Eles partici- Em seu aspecto ético, o capitalismo é uma marcha cons-
pam pessoalmente na função empreendida pela sociedade. tante para o objecto e para a despersonalização do homem.
Eles fornecem-lhe seu concurso ou aproveitam os seus ser- Sua objectividade foi e é um abandono ao valor do homem
viços: eles repartem entre si os benefícios, segundo o pro- como pessoa. (Esse aspecto ético do capitalismo intervém
-rata das operações que cada um deles efectua como coope- também nas doutrinas socialistas autoritárias — marxismo,
rador e não segundo o princípio capitalista da extensão da fascismo, nazismo, etc. — que consideram o homem como
propriedade das acções". número, isto é, quantitativamente apenas.
Para Werner Sombart, a cooperativa é "a livre reu- b) É uma "exploração de serviço" e não uma "explo-
nião pessoal de agentes económicos pouco afortunados e ração de ganho". Uma cooperativa não visa a distribuir
pouco poderosos, desejosos de aperfeiçoar a conduta de sua entre seus membros o maior ganho monetário possível. Vi-
economia, alargando-a sob a forma da exploração em gran- sa apenas a assegurar principalmente aos seus membros (e
de escala". eventualmente a elementos exteriores) o melhor serviço, o
mais regular, ao mais baixo preço.
Esta definição merece ser analisada. A palavra livre
diferencia as cooperativas das corporações. As palavras Assim, é movida a cooperativa primacialmente por um
"reunião pessoal" diferenciam as cooperativas das socieda- espírito qualitativo. As cooperativas, como atendem aos
des anónimas ou por acções. As palavras "pouco afortu­ seus membros, quando devidamente organizadas, procuram
nadas ou pouco poderosas" diferenciam-nas das grandes uni- a melhor qualidade, o melhor serviço, a melhor assistência.
dades capitalistas. Como o ganho não a dirige e sim o prestar bons serviços,
é uma escola de valorização, portanto eticamente superior
Depois das análises feitas, é fácil agora estabelecer ao capitalismo, que sacrifica a qualidade ao ganho, porque
quais os traços característicos de toda e qualquer coopera- o capitalismo é sempre quantitativamente orientado.
tiva, realmente cooperativa (dizemos realmente cooperati-
va, porque, sobretudo entre nós, há muitas organizações ca- O qualitativo, que se observava como inerente ao espí-
pitalistas que se acobertam sob o título de cooperativas, a rito artesanal, perdido pelo espírito capitalista, retorna sob
fim de se aproveitarem dos favores da lei para aumentar outra forma na exploração cooperativa.
seus benefícios. Essas pseudo-cooperativas devem e podem Esses dois aspectos, que estudamos acima, são funda-
ser denunciadas). mentais de toda cooperativa realmente tal.
COOPERATIVA DE CONSUMO

A cooperativa de consumo é um agrupamento de con-


sumidores, que adquirem em grande escala bens para serem
revendidos no varejo, e os benefícios verificados são reparti-
dos entre os cooperados, em pro-rata de suas operações e
compras.
É assim a cooperativa de consumo uma "exploração co-
mercial inteiramente desinteressada".
Tem ela como finalidade conseguir vantagens económi-
cas, obter e repartir uma utilidade, não tende porém, ao
maior ganho possível.
A clientela de uma cooperativa de consumo é mais ou
menos extensa. Ela tende para satisfazer as necessidades
de seus associados, e apenas dos seus associados. Quando
a cooperativa se dirige aos indivíduos, sejam quais forem, é
então uma cooperativa aberta, porque se dirige a uma clien-
tela anónima. Neste caso, ela se aproxima da empresa co-
mercial, porque tem relações com o mercado capitalista.
Quanto à venda, obedecem as cooperativas a certos prin-
cípios dados pela prática, que não são propriamente mais
discutidos por eles. (É de salientar-se, como já o dissemos,
que o cooperativismo tem sua doutrina formada a posteriori,
isto é, dependendo da prática. Aqui, mais que em qual-
quer outro sector, a experiência tem servido para construir
a doutrina, e as normas adquiridas são comprovadas pela
prática).
A cooperativa de consumo vende ao preço de revenda,
vende ao preço corrente, isto é, ao preço médio. Julgam
muitos que tal proceder encerra uma hábil manobra das
cooperativas para não prejudicar a empresa comercial, nem
atacá-la de frente, com o intuito de evitar as reacções dos
COOPERATIVA DE CONSUMO

A cooperativa de consumo é um agrupamento de con-


sumidores, que adquirem em grande escala bens para serem
revendidos no varejo, e os benefícios verificados são reparti-
dos entre os cooperados, em pro-rata de suas operações e
compras.
É assim a cooperativa de consumo uma "exploração co-
mercial inteiramente desinteressada".
Tem ela como finalidade conseguir vantagens económi-
cas, obter e repartir uma utilidade, não tende porém, ao
maior ganho possível.
A clientela de uma cooperativa de consumo é mais ou
menos extensa. Ela tende para satisfazer as necessidades
de seus associados, e apenas dos seus associados. Quando
a cooperativa se dirige aos indivíduos, sejam quais forem, é
então uma cooperativa aberta, porque se dirige a uma clien-
tela anónima. Neste caso, ela se aproxima da empresa co-
mercial, porque tem relações com o mercado capitalista.
Quanto à venda, obedecem as cooperativas a certos prin-
cípios dados pela prática, que não são propriamente mais
discutidos por eles. (É de salientar-se, como já o dissemos,
que o cooperativismo tem sua doutrina formada a posteriori,
isto é, dependendo da prática. Aqui, mais que em qual-
quer outro sector, a experiência tem servido para construir
a doutrina, e as normas adquiridas são comprovadas pela
prática).
A cooperativa de consumo vende ao preço de revenda,
vende ao preço corrente, isto é, ao preço médio. Julgam
muitos que tal proceder encerra uma hábil manobra das
cooperativas para não prejudicar a empresa comercial, nem
atacá-la de frente, com o intuito de evitar as reacções dos
108 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 109

sectores economicamente mais fortes. Mas já veremos que te. A cooperativa de consumo redistribui as sobras aos seus
tal não se dá. associados, por meio do retorno ou de obras sociais.
Reconhece a cooperativa que o "preço do mercado ex- Ou ela redistribui em moeda ou no oferecimento de
pressa uma tensão real entre as necessidades e as provisões mercadorias de melhor qualidade, ou dá um crédito ao asso-
de bens". Um preço mais baixo, aumentaria a procura, sem ciado, ou aplica-o a novos investimentos ou em obras de-
benefícios reais, senão aparentes. sinteressadas.
Ora, a cooperativa tende para o serviço (para servir). Charles Gide argumenta que o trabalhador assalariado,
Junta, coordena fins francamente desinteressados. Ela edu- empregado numa cooperativa de consumo, vê modificada a
ca seus membros, ela cria bibliotecas colectivas, ela presta sua situação, deixando propriamente de ser tal.
serviços de ordem social, assistência, etc. Com a venda ao Esta afirmativa é combatida por muitos economistas,
preço corrente é-lhe permitido prestar tais serviços. que negam a libertação do salariato por parte do trabalha-
Por outro lado ela evita os riscos que possa incorrer. dor empregado na cooperativa.
Ela é fraca para resistir aos riscos. Alega, no entanto, Gide que o trabalhador que emprega
seu trabalho numa empresa capitalista reserva o benefício
Tal não impede, no entanto, que a cooperativa venda a que possa dar para particulares, enquanto na cooperativa
preços abaixo do corrente, tornando-se, assim verdadeiras re- êle tende para a comunidade.
guladoras do mercado.
Alegam os economistas contrários que nem técnica nem
Mas também existem outras que vendem acima do pre- filosoficamente tal afirmativa é procedente. Do ponto de
ço (há exemplos na Bélgica), com finalidade de obter maior vista técnico, o trabalhador é um agente ligado a outro por
soma de sobras para aplicá-las em fins sociais. Tal proce- via de contracto de trabalho, e percebe uma remuneração,
der exige desde logo grande espírito cooperativo e, sobretu- não variável, mas definitivamente preestabelecida, fixada
do, uma educação correspondente bastante desenvolvida. Em por convenção. Essa situação persiste na cooperativa como
geral, quem procura as cooperativas, pensa apenas em ad- na empresa capitalista.
quirir a um preço mais baixo, e considera aquela que assim
não procede, desviada de sua finalidade. E não são pou- Do ponto de vista filosófico, o salariato, mesmo no re-
cos os que, ao verem a cooperativa vender ao preço do mer- gime capitalista, implica uma colaboração de trabalhadores
cado, dão preferência às empresas capitalistas. Embora tal dependentes em vista de serviços gerais distribuídos à co-
pareça incrível, essa prática é muito frequente. São tais munidade. Os trabalhadores assalariados produzem bens
razões que levam os verdadeiros cooperativistas a compre- que são vendidos no mercado capitalista. Se oferece um
enderem que a boa marcha do sistema que defendem exige benefício ao empresário, oferece também à colectividade.
uma educação prévia muito desenvolvida. O cooperativismo, Dispensam aqui a discussão se tais serviços recebem seu
para vingar, necessita de uma ampla educação pública, de verdadeiro preço ou não. Quer dizer que, quanto ao modo
uma propaganda inteligente, porque tem de despertar cer- de organização, a situação é a mesma.
tas tendências humanas que estão obstaculizadas pelo es-
pírito do capitalismo e por seus poderosos meios de pro- Os socialistas, adversários do cooperativismo, encon-
paganda e de dissolução. tram aqui bases para seus argumentos, alegando que a si-
tuação do assalariado é sempre a mesma, e tanto é assim
Uma cooperativa, que vende ao preço do mercado ou que até greves têm surgido nas cooperativas. Por outro la-
mais alto, não se pode nem se deve compará-la a uma em- do, há sempre uma luta na cooperativa entre os elementos
presa capitalista. assalariados e os cooperados.
Os benefícios, que nesta se destinam aos capitalistas, Podemos alegar aqui que tais factos realmente se dão.
naquela se destinam para um emprego totalmente diferen- Mas também queremos salientar outra vez; o que já dissemos
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 111
110

várias vezes: o cooperativismo não é uma doutrina construí- priamente lucro, porque este, no capitalismo, é um fim, e no
da a priori, e sim a posteriori. Se tais factos se verificam, cooperativismo não é um fim, é um accidente, que, quando
obrigam eles o estudo de normas que o solucionem. Por realizado, é devolvido a quem de direito.
isso não são poucas as cooperativas que pagam melhores sa- Desta forma, não se deve dizer que há lucro numa
lários (tal ainda não implica a desaparição do salário), cooperativa, porque a diferença encontrada deve ser devol-
mas acrescem uma participação dos trabalhadores, o que o vida em moeda ou em serviços.
torna variável e não fixo, mas variável para mais, não para
menos, do salário básico. Tende a cooperativa a eliminar o intermediário?
A desaparição do salário não se pode dar na coopera- Aqui há necessidade de esclarecer, pois há intermediá-
tiva dentro da zona de influência do capitalismo. Tem o rios necessários e desnecessários. Há os intermediários que
cooperativismo os meios de solucioná-lo, mas somente quan- têm uma função económica e, neste caso, a cooperativa é
do o cooperativismo fôr mais intenso e extensivo, como se uma espécie de intermediário. Os outros, ela tende a elimi-
observa em certos pontos na Suécia. Só então o salariato ná-los, tanto quanto possível.
poderia ser resolvido, e o seria certamente mais rápido do
que o pretendem os socialistas, que reduzem todos a assala-
riados do Estado, não resolvendo, portanto, de forma algu- ANOTAÇÕES GERAIS
ma, o magno problema que êle apresenta.
A venda nas cooperativas de consumo deve ser à vista, Em 1850, as cooperativas de consumo da Inglaterra,
ao contado. Com isso, procuram-se evitar os riscos da ven- reuniram-se numa vasta federação. Desde então o federalis-
da a crédito, e dos abusos que dele decorrem. Em certos mo dominou no cooperativismo inglês.
países, onde o espírito cooperativista está muito desenvol-
vido, há exemplos de concessão de crédito, por meio de uma Por outro lado, compreenderam os cooperativistas que a
caixa de empréstimo, ou por meio de um órgão de distribui- força das unidades capitalistas estava em sua concentração.
ção de crédito, a fim de auxiliar os cooperados mais neces- A concentração tornou-se necessária para a vitória constan-
sitados. te dos cooperativistas, que, desta forma, puderam diminuir
suas unidades de cooperação, aumentando, porém, sua for-
A cooperativa de consumo não tende ao maior ganho ça e extensão. A associação de cooperativas tornou-se ne-
monetário possível, ilimitado do capitalismo. A reparti- cessária, a fim de poder melhor distribuir e escoar os pro-
ção não obedece ao regime do capitalismo. Essa distribui- ductos, o que permitiu um grande desenvolvimento das
ção não é feita segundo a quantidade de capital, nem se- cooperativas de producção.
gundo o montante das acções, mas segundo a quantidade
de compras operadas, segundo os serviços requeridos da
cooperativa.
Elimina a cooperativa o benefício, o lucro?
Se considerarmos como benefício, como lucro a diferen-
ça entre o preço de compra e o de venda, realmente há be-
nefício, na cooperativa, afirmam alguns economistas.
Entretanto, poderíamos dizer: retiradas as despesas de
administração e as despesas gerais de uma cooperativa, o
excedente é devolvido a quem dela se serviu. Isto é, foi co­
brado a Tnais para fazer face às eventualidades. Não é prò-
COOPERATIVAS DE PRODUCÇÃO

Entre as cooperativas de producção, temos as agríco-


las e as de trabalho.
Uma cooperativa de producção é uma associação de tra-
balhadores, que se encarregam livremente de produzir, as-
sumindo os riscos e os perigos de sua função.
Seu desejo é escapar à acção da empresa patronal, tor-
nando-se por si mesmos e de si mesmos os empresários.
Owen, em 1830, pregava a colectividade de trabalhado-
res com um certo capital do qual fossem eles proprietários.
Essas formas de cooperativas malograram.
Elas só obtiveram êxito no género das construcções.
Em 1936, contavam-se na Inglaterra cerca de 127 sociedades
desse tipo.
Tais formas de sociedade encontram dificuldades diver-
sas: 1) um grupo de trabalhadores não obtém crédito, por
não inspirar confiança aos detentores do capital monetá-
rio, sobretudo em países como o nosso, em que o crédito é
ainda mais reduzido em seu âmbito. 2) A clientela, dada
a educação recebida pelo regime capitalista, tem mais con-
fiança numa empresa capitalista do que numa empresa de
trabalhadores.
Outra espécie de cooperativa de producção é a que reúne
trabalhadores sem nenhuma espécie de capital, em que es-
tes se agrupam para cumprir uma tarefa com plena liberda-
de, correndo os riscos e benefícios que dela advenham. Te-
mos exemplos no artel russo de antes da guerra e na affitan-
za collettiva na Itália, antes do fascismo, e que hoje res-
surge em várias regiões daquele país.
Essas cooperativas, em certos casos, atingem a um grau
e a um montante de capital que lhes permite contractar es-
114 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 115

pecialistas (engenheiros, técnicos, etc.) para administrarem 1) Qual a extensidade que pode tomar o cooperati-
a producção. Nesse caso, não há propriamente nenhuma se- vismo?
melhança com a exploração capitalista, porque não se pro-
cessa a divisão entre o trabalho e o capital, que é aportado 2) Qual a intensidade de sua acção?
pelo mesmo agente. Também a distribuição não obedece à 3) É um sistema económico?
forma capitalista.
4) Poderá êle, por si, substituir o sistema capitalista?
Na verdade essas cooperativas não tendem propriamen-
te ao maior serviço, mas ao maior ganho comunitário. Ten- 5) Poderá o cooperativismo, além da forma económica,
de ao máximo de benefício, que é distribuído entre os mem- atingir a forma política?
bros componentes.
É fácil ver o alcance destas perguntas e a complexidade
* * * das respostas, que ultrapassam, em muitos aspectos, o cam-
po propriamente económico. Entram aqui temas de ordem
sociológica e histórica, bem como política e filosófica, além
Pequenos comerciantes e pequenos agrupamentos agrí- dos meramente económicos. No entanto, dentro dos limi-
colas ou artesanais reúnem-se muitas vezes para conseguir tes desta obra, procuraremos, neste, e nos pontos a seguir,
vantagens que beneficiem a todos. dar algumas respostas a essas perguntas, respostas de mui-
Essas vantagens podem ser técnicas, comerciais e fi­ tos economistas, acrescentadas de algumas contribuições
nanceiras. nossas.
As vantagens técnicas são obtidas através das coopera­ Quanto à extensidade que pode tomar o cooperativismo,
tivas de máquinas, que põem à disposição de seus membros basta estudarmos as estatísticas modernas e as comparar-
máquinas e motores. Por meio das cooperativas de ven­ mos com as antigas para que logo ressalte aos nossos olhos
das, temos as vantagens comerciads. Elas se organizam que realmente tem êle tomado um incremento extraordiná-
com a finalidade de dar escoamento da mercadoria para os rio. Embora essas estatísticas não sejam perfeitas e este-
mercados conhecidos ou procuram novos mercados. jam eivadas de muitas falhas, pode calcular-se hoje em uns
400.000.000 de cooperados em todo o mundo com mais de
As vantagens financeiras são obtidas através das co­ 1.500.000 cooperativas de todas as espécies, sendo um terço
operativas de crédito. Essas cooperativas permitem as ex- delas cooperativas de consumo.
plorações artesanais beneficiarem-se das vantagens da em-
presa capitalista, bem como favorecem as pequenas empre- Ante o montante das operações capitalistas, o movi-
sas capitalistas. mento cooperativo não alcança ainda uns 20 a 25%, mas o
crescente movimento promete muito mais, pois há países em
* * * que o cooperativismo representa mais de 80% da producção,
como na Islândia.
Um dos grandes temas, que se colocam hoje em face Quanto à intensidade, os exemplos que se verificam na
do cooperativismo e do seu desenvolvimento, após os estudos Suécia, onde as cooperativas possuem mais de 2.000 estabe-
realizados, as opiniões mais diversas que têm sido apresen- lecimentos fabris, além de controlar quase todo o serviço
tadas em torno de seus problemas, é o da extensidade pos- público de transportes, alimentação e também financeiro,
sível desse sistema e da sua intensidade, bem como se pode nos mostra que o desenvolvimento vertical é poderoso. É
considerar o cooperativismo como um sistema económico, precisamente nos exemplos que nos mostram o desenvolvi-
que se possa considerar ao lado dos outros sistemas ou subs- mento intensivo do cooperativismo, onde se fundamentam os
tituí-los. Dessa forma, poderíamos desdobrar os temas na principais argumentos que levam a estabelecer a convicção
seguinte forma: de que é êle um genuíno sistema económico, capaz de subs-
116 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
TRATADO DE ECONOMIA 117
tituir os outros e de oferecer soluções aproveitáveis aos gran-
des problemas sociais gerados pelo capitalismo. tros recursos para solvê-los. No entanto, graças à experi-
ência adquirida e ao senso administrativo de seus dirigen-
Entramos, assim, na resposta à terceira interrogação. tes, com grande experiência teórica e prática, adquirida
Na realidade, o cooperativismo está em conflito com o através da história do próprio movimento, esses riscos tor-
capitalismo. Se o capitalismo tende para o maior ganho nam-se facilmente superáveis.
possível, o cooperativismo tende para o maior serviço possí- A cooperativa é uma forma comunitária de economia.
vel. Mas, se considerarmos o cooperativismo dentro da zo- Ela não é capitalista nem socialista, no sentido comum des-
na de influência do capitalismo, êle também tende para o te termo. É uma forma descentralizada de exploração,
maior ganho, embora se diferencie na destinação desse ga- que está em contraposição à centralização preconizada pelos
nho que em vez de destinar-se ao particular tende para a socialistas. A cooperativa pode ser empregada num regi-
comunidade. Pode-se dizer que o cooperativismo tende para me socialista para proceder uma descentralização, mas sem-
o maior ganho, mas o maior serviço tende a dominar a pon- pre está condicionada ao Estado, como na Rússia, que, na-
to de reduzir-se aquele em benefício deste. Isto é, o maior turalmente, lhe restringe os meios de acção.
ganho cede em benefício do maior serviço. O ganho impõe-
-se como influência directa do capitalismo, mas tende a re- Oferece a cooperativa um campo de educação moral
duzir-se à proporção que prospera o cooperativismo. Poder- imenso, e ai está a sua grande força social. Cultiva ela o
-se-ia mesmo dizer que a sua linha ascendente encontra um senso da responsabilidade e o da sobriedade.
patamar, para ser substituída, depois, pelo aumento de ser-
viço. É natural que dentro de um regime preponderante- A sociedade capitalista tende para a rentabilidade, co-
mente capitalista, o maior ganho se verifique. Mas, à pro- mo já vimos, enquanto a cooperativista tende para o maior
porção que se cooperativiza mais a sociedade, o serviço cres- serviço possível. De posse destes dados e de mais outros
ce em detrimento daquele. Dessa forma, não há aqui um que advirão a seguir, estaremos habilitados a responder as
antagonismo prejudicial, mas estimulativo. O maior ganho perguntas quarta e quinta.
permite o maior desenvolvimento da zona cooperativa, que
acaba por abarcar o campo do capitalismo, e oferecer, en-
tão, maior serviço. Dependente como é do mercado capita-
lista, sofre, de início, as influências deste. Mas seu desen-
volvimento permite libertar-se do mercado, como já se ve-
rifica na Suécia, onde nas zonas mais extensas e intensa-
mente cooperativizadas, o serviço predomina completamente
FÔbre o ganho.
Há factos importantes que se verificam, por exemplo,
no sector técnico. As relações entre os trabalhadores e seus
dirigentes numa empresa capitalista são diferentes das que
se verificam numa empresa cooperativista. Numa cooperati-
va, o trabalhador se encontra numa sociedade de pessoas, on-
de pode, portanto, invocar os seus direitos. A autoridade
do chefe é mais forte, porque é conscientemente aceita, e os
conflitos reduzem-se extraordinariamente. A ordem é mais
completa e os casos de sabotagem são quase nulos.
Sofre, no entanto, a cooperativa de muitos riscos, mais
perigosos que os de uma empresa capitalista, que tem ou-
O ESTADO E A COOPERAÇÃO

São as duas últimas perguntas, que tivemos ocasião de


formular no artigo anterior, de uma importância extraor-
dinária, pois exigem o exame de muitos pontos importantes
que, como dissemos, ultrapassam o terreno da Economia.
No momento actual, todos sentem, que estamos atraves-
sando uma época de transição e que as condições presentes
serão substituídas por outras. É no volume final desta co-
leção, depois de havermos analisado todos os factos econó-
micos, sociológicos e históricos, que este tema poderia ser
examinado com melhores bases. Tal, porém, não impede
que, por ora, façamos os estudos necessários para uma res-
posta a essas perguntas.
Se estamos numa época de transição, o capitalismo, co-
mo denominador comum, deverá ser substituído por outro
sistema económico. Naturalmente há os que acreditam que
o capitalismo é eterno. Também, quando do feudalismo,
havia quem o acreditasse eterno. Resta saber se o capita-
lismo, assim como não impediu que outras formas económi-
cas precapitalistas permanecessem em sua zona de domínio,
permanecerá também quando perder esse domínio, dentro
da nova zona formada.
Para muitos cooperativistas, o cooperativismo virá subs-
tituir o capitalismo, por uma série de razões, que procura-
remos sintetizar:
Os defeitos do capitalismo, o desejo de lucro desenfrea-
do foi possível até certo momento, trazendo, posteriormente,
mais males do que benefícios. Além disso, o capitalismo
não pôde conservar o Estado separado da economia. As
constantes lutas travadas na sociedade, os choques de inte-
resses exigiram que o Estado interviesse como mediador.
Mas o Estado, quando chamado para intermediador, precisa
120 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 121

de poder para impor sua resolução, exige, portanto, máximo poder, que desviou os maiores proventos para o mais forte,
poder. Consequência: o intuito de transformar apenas o que se tornou o mais aquinhoado.
Estado em juiz, transformou-o, a pouco e pouco, em se-
nhor da situação. Dessa forma, hoje, o Estado separa-se Os primeiros chefes militares transeuntes acabaram
das classes dominantes, tornando-se senhor da situação e tornando-se, com o prosseguimento das guerras, senhores
impondo-se como monopolizador do poder, intervindo, con- absolutos. E os vencidos, tornados escravos, passaram a
sequentemente, na própria vida económica que lhe fica sub- ser apenas força motriz do trabalho, sem direito aos meios
sidiária. de producção nem aos productos, de que só parcialmente per-
cebiam.
Voltar ao liberalismo económico — apesar dos sonhos
dos saudosistas — é impossível, e retirar do Estado a soma Dessa forma — e é esse o nosso pensamento — foi o
crescente de poder, pelos meios normais e conhecidos, é im- poder privador de liberdade que gerou as grandes injustiças
possível. Desta forma, marchamos para um totalitarismo sociais. E esse poder teve nascimento na luta, na guerra
crescente, que já atingiu aspectos bem decisivos nos casos das tribos, na guerra dos povos. Estabeleceram-se os pri-
hitleristas e, sobretudo, no russo. vilégios dos mais poderosos, dos que tinham ao seu lado for-
ças suficientes (morais, religiosas, ou físicas) para impor
O Estado assumiu a direção da administração pública, o reconhecimento desses privilégios. A autoridade de que
que pertencera ao povo e às suas organizações e não as de- foram investidos tornou-se-lhes inerente, e sobre ela cons-
volverá por si mesmo. É preciso que o povo torne a con- truíram o poder que sempre exigiu mais poder. Sim, por-
quistá-la. Se tal é possível ou não, teremos ainda ocasião que assim como o atleta procura superar seu recorde, bus-
de ver. Mas se tal não se der logo, o Estado transformar- ca aumentar sua força, o poderoso está sempre anelante
-se-á num monstro de poder, dominador absoluto de todos, do maior poder que não tem. E para ter mais poder é
patrão e empresário de todas as empresas, como já temos mister submeter os outros, é mister que os outros o reco-
no caso russo.
nheçam, que os outros o sirvam.
Examinemos, portanto, tais problemas e vejamos como Ora, a cooperação existiu sempre na sociedade humana.
são considerados através das diversas opiniões. Mas, os resultados obtidos não cabiam a quem os realizava,
Os homens desejam a liberdade, querem viver livres, mas a quem tinha direito a eles.
mas também, numa flagrante contradição, são anelantes de
poder, e são levados a privar outros semelhantes de sua O cooperativismo, em suas bases filosóficas, funda-se no
liberdade. apoio mútuo, próprio de todos os animais bissexuados, cujo
tema biológico foi tão bem estudado pelo naturalista anar-
Assim deseja ser livre, mas deseja também dominar. quista Pedro Kropotkine, um dos maiores sábios destes úl-
timos cem anos, cujas previsões no terreno da economia tor-
Entre os que dominam e os dominados, entre os que nam-se hoje temas dos mais conspícuos estudiosos, não avas-
abusam do poder para privar outros da liberdade e os que salados pelas interpretações unilaterais e primárias da eco-
desejam recuperar sua liberdade ou conservá-la, travou-se, nomia clássica.
através dos milénios, lutas incessantes, cruentas e azarosas.
Em notável obra, James Peter Warbasse (Democracia
Se examinarmos o aspecto económico, verificamos que Cooperativa) estudou os temas do socialismo libertário de
o indivíduo, senhor dos meios de producção e do producto, Kropotkine, e aproveitou de sua doutrina os pontos funda-
foi, a pouco e pouco, perdendo os mesmos, em benefício de mentais para justificar o papel do cooperativismo como
outros. E tal não se deu propriamente por uma divisão do sistema económico capaz de solver as injustiças sociais e
trabalho, como pensam tantos, mas por uma polarização do não substituir uma injustiça particular (a do capitalismo
122 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 123

individualista) pela injustiça universal (a do socialismo da, ou, pelo meno3, como o merece. Tem defeitos, devidos
estatista, absolutista). mais que tudo à apatia e à indiferença da maioria, que à
malevolência da minoria. Seu defeito fundamental eonsis-
É inegavelmente J. P. Warbasse, nos Estados Unidos, te em que pode ser controlado por uma minoria e utilizado
como W. Poisson, César Chabru, Souchy, os que admitem
que o cooperativismo, como sistema económico, pode tor- em interesse dessa minoria. Mas isso poder-se-ia dizer de
nar-se também numa solução política, naturalmente no qualquer instituição onde as maiorias são indiferentes.
sentido mais eminente do termo, e não no sentido em que Três atitudes existem ante o Estado, que interessam
é comumente tomado. directamente a esta discussão: a do capitalismo e o Estado
estático, a do socialismo e a expansão estatal, e a do coope-
Criticando os métodos revolucionários do socialismo, rativismo e a desaparição paulatina do Estado.
bem como os eleitoralistas, assim se expressa Warbasse:
"Não se transforma um sistema económico votando nas O problema importante é que se temos uma decadência
eleições. Os sistemas económicos se transformam só pelo progressiva do Estado, devemos contar com uma organiza-
curso natural da evolução. A revolução pode aparecer co- ção eficiente do povo para substituí-lo. À medida que a
mo um incidente no curso desse câmbio, como consequência estructura cooperativa avança, o Estado tem menos coisas
do colapso do regime existente, mas um câmbio permanente a fazer. Se a sociedade cooperativa oferece condições mais
não se produz por decretos de ministros, mas por declara- justas, uma vida melhor, e uma cultura superior, as fun-
ção de votantes. Nem as mais fervorosas ideias qualificam ções do Estado devem diminuir, e o ponto em que comecem
ou predispõem aos operários a dirigir os assuntos económi- a desaparecer suas prerrogativas assinalaria a pacífica fi-
cos de um país. Requer-se algo mais do que meras teorias. nalidade para a qual deve dirigir-se a sociedade.
O socialismo, que se impôs na Rússia pela força, consiste Quando a União Cooperativa Suíça de consumidores con-
essencialmente na substituição de uma multidão de peque- seguiu derrotar o truste da carne em seu país, as leis con-
nos capitalistas por um grande capitalista — o Estado —, tra as más carnes, as multas e os processos para perseguir
a favor de um governo autocrático que ainda perdura." carnes estragadas, as inspecções para evitar fraudes, etc,
Crêem esses cooperativistas que se possa organizar a tornaram-se desde esse momento desnecessárias. Os con-
sociedade humana sobre bases cooperativistas, permitindo sumidores não encontram nenhuma vantagem em subminis-
assim que o povo tome outra vez a administração em suas trar a si mesmos alimentos de má qualidade. Sempre são
mãos. As palavras de Warbasse, que reproduzimos, são outras pessoas estranhas as que encontram essa vantagem.
bem expressivas: Em cada função nova que as cooperativas de consumo vão
abarcando, o governo perde uma quantidade de ocupações.
"Na falta de outra organização, o Estado é o que toma Hoje em dia o Estado vive trepado como uma parasita so-
a si o encargo de atender certas necessidades. O povo dei- bre os ombros da sociedade. Mantém-se pela debilidade da
xa ao governo a construcção de pontes, o subministrar luz colectividade, devido à incapacidade das massas em fazer
e energia eléctrica, atender os faróis, dar informes meteo- as coisas por si mesmas. Mas, à medida que o povo é mais
rológicos, prevenir epizootias, regular o tráfego, controlar forte e mais ilustrado, e chega a ser eficiente na organiza-
as quarentenas, e fazer outras mil coisas boas. O povo ção de seus negócios, a garra do parasitismo estatal irá ce-
necessita do Estado e de seu governo pela simples razão de dendo."
que não se acha organizado para fazer as coisas por si mes-
mo. Mas pode muito bem fazer todas essas coisas sem pre- É o cooperativismo uma filosofia de consumidores. To-
cisar do Estado, basta apenas que saiba fazê-las. dos são consumidores e todos os productores são também
consumidores, embora nem todos consumidores sejam pro-
O povo mantém o Estado tal como é; sobrevive com ductores. O Estado — já o via Proudhon — tem como pa-
sua aprovação e lhe serve de tal modo que ao povo lhe agra- pel moral: defender os interesses dos consumidores contra
TRATADO DE ECONOMIA 125
124 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

que resolvem "guardar para si o lucro dado aos intermediá-


a avidez dos productores. Mas se consumidores e produc- rios encarecedores" e com esse lucro conquistarão o mundo,
tores se reúnem, tudo se modifica.
sem necessidade de derramar sangue nem dividir os ho-
O que se vê no mundo? O que nos interessa a nós, o mens. Ao contrário, os unirá.
que nos diz respeito mais directamente, não somos nós que
controlamos. São outros, estranhos a nós e ao nosso con- É compreensível que não podemos aqui externar todos
sumo. Essa a razão por que há tanta fraude, tanta falsi- os pontos de vista dos cooperativistas, porque seria longo,
ficação, porque quem frauda, quem falsifica não vai usar mas cremos que os argumentos já expendidos e alguns outros
o falsificado, nem sofrer em si mesmo as consequências da darão uma plena ideia do que pretendem.
fraude. Por isso o Estado tornou-se necessário para evitar Há razões de ordem moral em favor do cooperativismo.
tais fraudes e tais abusos. Mas se os consumidores são os É que êle é uma escola de apoio-mútuo, uma escola de apro-
productores, se eles consomem o que produzem, é natural ximação, uma escola de solidariedade humana e não de com-
que procurarão o melhor. Não há outro exemplo na acção petição desenfreada, geradora de ódios. Por outro lado o
das cooperativas. Os exemplos da Suécia, da Suíça, da Di- progresso verificado através da influência do capitalismo,
namarca, etc, onde a qualidade é procurada anelantemente, que se considera como decorrência do estímulo do lucro, en-
mostram clara e definitivamente que só dessa forma se pode contra no cooperativismo um desenvolvimento igual, supe-
conter os exploradores e defraudadores do povo. Além rando ainda em qualidade, como os exemplos da Suécia, Di-
disso, o encarecimento torna-se mais difícil, pela simples ra- namarca, etc. Dessa forma, os grandes argumentos dos ca-
zão de que quem consome quer consumir com menos onero- pitalistas encontram uma resposta prática, real, observada
sidade possível e tudo fará para reduzir os gastos, as des- através dos factos pelas experiências cooperativistas.
pezas, procurará realizar em benefício colectivo a máxima
de "menor esforço, maior proveito". Não se julgue, porém, que os doutrinadores do coope-
Ora, essas afirmativas dos cooperativistas não são teó- rativismo não reconheçam também defeitos. Seria negar o
ricas. Não surgiram de deducções, nem de prévios estudos carácter humano de sua obra. Há defeitos, mas solúveis.
a priori, feitos por estudiosos em seus gabinetes. Essas Vamos a exemplos: o pessoal administrativo das empresas
afirmativas estão fundadas na experiência, em factos já re- tem, naturalmente, tendência para o burocratismo e a auto-
gistados através das centenas de milhares de organizações cracia. Dá-se assim, também, nas cooperativas, embora em
cooperativistas do mundo inteiro. grau menor, o que se observa em grau maior na zona ca-
pitalista e na do Estado.
São esses argumentos, fundados em factos verificados,
que dão força aos cooperativistas, que afirmam que é êle um Mas, enquanto nestas tal defeito é inevitável, no coope-
sistema económico que pode tomar uma forma política; isto rativismo tal se dá pela indiferença dos cooperados, os quais
é, que é possível organizar-se cooperativamente a sociedade, não exercem devidamente seus direitos, nem sua acção de
com o crescente deperecimento do Estado, desejado violen- controle. Nas zonas cooperativas, onde há maior consciên-
ta e revolucionariamente pelos socialistas (que nunca o fi- cia e cultura e onde os cooperados sabem que têm direitos,
zeram nem o farão), e que se dá evolucionàriamente, sem mas também deveres, tais factos já não sucedem, ou suce-
sangue, sem ódios, através do cooperativismo democrático. dem em escala menor.
Se hoje o cooperativismo conquistou seus direitos, nem
O campo de actividade dos cooperativistas não é o da sempre foi assim. Muitas vezes o Estado o perseguiu im-
política. Consideram esse campo, sobretudo o eleitoralista, piedosamente e ainda, por meios encobertos e indirectos, o
o pior possível, porque nele o cooperativismo se afasta do faz, apesar de todo apoio que proclama. O cooperativismo
seu verdadeiro fim. A política cooperativista não é a es- tem o grave defeito para os estadistas de ensinar ao povo
tatista, eleitoralista, mas a organizadora da sociedade. Sua a administrar o que é seu. Ora, se isso se dá, que serão
luta está na organização dos consumidores de todo o mundo,
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 127
126

dos parasitas politiqueiros que se julgam indispensáveis para bolchevistas, como o evitou até agora na Finlândia, cuja re-
representarem o povo, os únicos capazes de administrar? sistência aos russos se deve às cooperativas. Por isso são
A luta contra Raiffeisen e Schulze-Delitzsch na Alemanha, os comunistas adversários das cooperativas, porque elas en-
por Bismarck, a acção sabotadora dos partidos socialistas, sinam o povo a governar a si mesmo, e a não precisar dos
como a de Lasalle, com o apoio do governo, que até finan- iluminados líderes.
ciou seus projetos, são exemplos. São essas as razões que * * *
levam os lideres dos partidos políticos a não apoiarem o
cooperativismo (e ainda bem para êle), porque ameaça
substituí-los e torná-los desnecessários, como realmente o A política foi, é e será sempre fatal para o cooperati-
são. Ensinar o povo a governar a si mesmo é evitar o go- vismo. A intromissão de elementos políticos no seu meio
verno de alguns. é o mal mais funesto que pode haver, bem como qualquer
apoio por parte dos políticos ou do Estado. O que podem
No entanto, há exceções. E entre essas, desejaríamos apenas desejar os cooperativistas é que os políticos e o Es-
chamar a atenção para a figura de Roosevelt, nos Estados tado deixem-nos em paz. Cuidem da sua politicagem e não
Unidos, e para as palavras de Schmidt, Ministro da Econo- intervenham onde não são chamados, nem precisos. Todos
mia da Alemanha de Weimar: os cooperativistas conscientes sabem perfeitamente que
quando um político defende o cooperativismo o faz com se-
"O consumidor tem ao seu alcance uma arma que é gundas intenções eleitoralistas. Há exemplos dos males
muito poderosa e que o poria a coberto das exações do co- que podem advir ao cooperativismo quando aliado à políti-
mércio: ela é a organização cooperativa. Deixemo-lo que ca. Basta que olhemos ao que sucede na Inglaterra, onde
a use. Pode estar seguro de que o pouco que ponha na muitos cooperativistas, ligados ao Partido Trabalhista in-
cooperativa não irá para pagar os benefícios da especulação glês, mais actuaram contra o seu movimento que a seu favor.
comercial. Creio que a posição do consumidor pode refor-
çar-se por meio das cooperativas e da rede de suas organi-
zações. Desejo chamar a atenção para as cooperativas que,
ao desenvolverem-se, competiram com vantagem com o co-
mércio privado para reduzir os preços dos artigos. Essas
práticas de ajuda mútua e educação do consumidor são, em
minha opinião, infinitamente superiores a todas as leis e a
todas as multas."
Essa orientação predominou no governo alemão demo-
crático. Que fizeram os nazistas senão combater as coope-
rativas? E no caso russo? Havia ali, antes dos bolche-
vistas, cerca de 40 milhões de cooperados na Rússia. Era
esse país bem desenvolvido cooperativamente. Uma guerra
desastrosa e um governo incompetente levaram o país à re-
volta. Os comunistas, ao apossarem-se do poder, transfor-
maram as cooperativas em órgãos do Estado. Mas a ver-
dade é que os comunistas não se teriam sustentado no poder
se não houvesse uma boa base cooperativista na Rússia, que
salvou Moscou da fome, quando Lenine vacilava no poder.
Se o cooperativismo, na Rússia, tivesse sido levado a
mais longe, teria sido evitada a totalitarização do país pelos
O COOPERATIVISMO E O CAPITALISMO

"Uma função essencial da democracia consiste precisa-


mente em salvar o povo de ser conduzido pelos sábios à
salvação e dos estúpidos à destruição. É a salvação pela
lei do termo médio. Proporciona ao povo a satisfação de
salvar-se a si mesmo e a lição de cometer seus próprios
erros" (Warbasse).
O capitalismo é um sistema de desgaste. Dependendo
da solvabilidade do consumidor, assistimos às grandes cri-
ses, quando o consumidor não a tem. Armazéns abarrota-
dos e miséria geral. Ou então, fábricas paradas porque não
há mercados. A intervenção do Estado, nesses casos, é ape-
nas um paliativo, não uma solução. Alivia a crise de hoje
que rebentará mais forte amanhã. "O actual sistema eco-
nómico, movido pelo interesse do lucro, está desafiando as
leis da natureza; trabalha para a sua própria destruição"
(Warbasse).
"Se um rei das selvas controlasse as árvores de nozes
e de azeitonas, e os peixes do lago, e todos eles fossem pro-
ductos abundantes, e não permitisse ao povo faminto saciar
seu apetite enquanto não reunisse suficiente quantidade de
penas de bei ja-flor, as nozes, as azeitonas e os pescados se-
riam escassos para o povo. A luta pela vida deixaria de
orientar-se à producção das coisas realmente necessárias à
existência, como é a obtenção de nozes, azeitonas ou pesca-
dos, e se aplicaria nada mais do que a buscar penas de bei-
ja-flor. O povo chegaria a fazer guerra para assegurar de
todos os modos as apreciadas penas de colibri, e dessa forma
passaria fome e os alimentos apodreceriam bem como os
frutos do país nos depósitos. E é isso precisamente o que
ocorre quando se busca o dinheiro em lugar daquelas coisas
e serviços que são necessários para a sociedade.
130 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 131

Os economistas académicos sustentam a teoria de que Mas nem tudo são rosas no cooperativismo. Muitas so-
o dinheiro é "riqueza armazenada". Mas é algo mais. É ciedades têm malogrado. Exames cuidadosos no estudo das
uma ordem de embargo, selada e firmada pelo governo e causas desses malogros revelaram que os mesmos procedem
defendida pela polícia, autorizando ao que a tenha, a tomar das seguintes causas: estabelecimento com capitais excessi-
para si os productos do trabalho alheio e também até aque- vamente reduzidos; concessão de créditos; compras a cré-
las coisas que amanhã hão de produzir pessoas que ainda dito; defeituosa revisão das contas e deficiente sistema de
nem sequer vieram ao mundo... Com o dinheiro se tem contabilidade; pagamento de retornos economizados antes
o controle da vida do próximo, e o que tem está colocado de haver desenvolvido reservas; preços demasiadamente
na mesma situação do senhor de escravos" (Warbasse). baixos; sócios não familiarizados com a cooperação; falta
na educação e dos trabalhos sociais; antagonismos entre os
Deseja o cooperativismo ser único, total? Absoluta- associados; negócios mal instalados; sortimento mal selec-
mente não. Os cooperativistas mais conscientes não querem cionado; administração incompetente; indiferença de parte
privilégios para o seu movimento, para que êle não caia na dos sócios; descuido na forma de satisfazer certas necessi-
mediocridade e na dissolução, que é comum a todos os mo- dades; vendas a baixo preço para fazer competência; satis-
nopolizadores do poder. Assim se distingue o cooperativis- fazer-se em vegetar em vez de progredir; violação aos prin-
mo do capitalismo, que é imperialista, além de expansionis- cípios de Rochdale, já citados nos pontos anteriores.
ta. O cooperativismo é expansionista, não é, porém, im-
perialista. Não quer monopólio de poder, como o quer o O movimento cooperativista deve agir com prudência
capitalismo, o fascismo, o socialismo autoritário e todas as e calma, sem pressa. Deve construir tudo com suas pró-
formas de estatismo. prias forças e não querer saltar os estágios. Todo revolu-
cionarismo aqui é prejudicial, enquanto a marcha regular
Enquanto o capitalismo trabalha para ganhar dinheiro, e prudente é benéfica. Exigindo como base a educação dos
o cooperativismo trabalha para satisfazer as necessidades cooperados, não deve querer construir grandes organismos
humanas. As diferenças são imensas. enquanto não tenha elementos suficientes para mantê-los.
Por isso a educação é imprescindível.
O comércio privado usa de recursos para ganhar mais
à custa dos consumidores. Esses recursos não podem ser Examinando a revolução russa, as suas realizações no
usados pela cooperativa, porque ela não tende para o maior terreno social, comenta Warbasse:
lucro, mas para o serviço, porque elas não podem explorar
a si mesmas (as pessoas que compõem uma cooperativa) ; "Na Revolução russa, os líderes não trataram de orga-
só podem tender a diminuir gastos, a reduzir preços. nizar uma sociedade de acordo com os interesses primários
de todo o povo. Quase a metade da população russa per-
São o cooperativista e o capitalista inimigos? tencia em 1918 a cooperativas de consumo. Um grande
movimento cooperativo estava em marcha para a democra-
Como pessoas, não. O cooperativismo não pretende li- cia. Mas os líderes bolchevistas, como marxistas académi-
quidar o capitalista como homem e sim como classe. Mas, cos, e aspirando ao controle, procederam de forma contrária
como classe, pode o capitalista tornar-se um cooperador e à ordem productiva e se esforçaram em organizar um go-
há formas para isso. Muitos comerciantes desejam tornar- verno especialmente em interesse dos operários industriais,
-se cooperativistas e muitos deles entram nas cooperativas que representavam uma pequena quantidade da população de
com todos os seus meios, sobretudo nos países onde o coope- um país fundamentalmente agrário. Rússia, em lugar de
rativismo é desenvolvido. Também não impede tal facto edificar sobre as bases cooperativas, resolveu impor uma
que muitos capitalistas combatam tenazmente o cooperati- civilização, fundada na producção e na indústria e não sobre
vismo. o consumo e a independência pessoal e familiar. Exaltou-
-se o trabalho, lado servil da natureza humana, e foi des-
* * * cuidado o consumo, condição superior do homem. É difícil
132 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

de imaginar as consequências de uma permanente mutação


económica a favor desses métodos. Os resultados foram a
incerteza, a autocracia, a coerção e o compromisso com o
capitalismo mercantil e financeiro...
Permita-se aos operários de cada indústria obterem
tudo o que pedem; conceda-se-lhes o controle e a proprieda-
de da indústria; ponha-se-lhes em condições de conseguir O CRÉDITO E O CAPITALISMO
"o valor íntegro das riquezas que produzem"; autorizem-se-
-lhes a ser amos absolutos da situação, e chegarão a estabe-
lecer um monopólio e a exploração do resto da sociedade.
Um grupo de dirigentes distintos de posse da producção não Extraordinária é a importância que tem no capitalismo
é uma revolução." o crédito. É êle formado e distribuído por empresas capi-
talistas: os bancos, e também por explorações públicas ou
As relações entre o movimento proletário e o coopera- quase-públicas, os bancos de emissão, e outras instituições
tivismo são muito bem estudadas na obra citada de War- controladas pelo Estado.
basse e não nos é possível examiná-las aqui. Mas, o que se O crédito processa-se não apenas no capitalismo, mas
depreende de sua crítica é que o movimento operário, dadas em todos os sistemas económicos. Assim o tivemos tam-
as suas características de classe, é unilateral e em muitos bém na economia fechada, na artesanal, como o temos na
aspectos prejudiciais à sociedade, enquanto o cooperativis- capitalista, que o desenvolveu extraordinariamente.
mo, por estar ligado ao consumidor, que são todos, pode evi-
tar tais males e produzir efeitos mais benéficos.
CARACTERÍSTICAS DO CRÉDITO

Quando um bem passa de um agente para outro agente,


na circulação, entregando este outro bem em compensação,
há troca, como já vimos. Mas essa troca pode ser imediata
ou mediata e, neste caso, pode medear entre a operação en-
trega e a de recebimento em troca algum tempo, maior ou
menor. Desta forma há uma entrega actual de uma parte
e uma entrega futura da outra. Há um prazo de entrega.
Desta forma, o prazo é combinado e aceito pelas partes,
o que marca o seu aspecto psicológico, ao lado do aspecto
cronológico.
Essa operação em que há uma concessão de prazo é
uma operação de crédito.
Portanto, temos:
a) o tempo que medeia;
b) a confiança de que o adquirente, dentro do prazo
estipulado, dê em troca o que está combinado. É necessário,
portanto, que o primeiro creia, confie, acredite no outro;
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 135
134

c) o acordo estabelecido entre as partes. te a um imposto. O Estado compromete-se a pagar (quan-


do paga) isto é, a reembolsar mais tarde a soma pedida.
Estamos agora aptos a definir o crédito, já em lingua- Não há aqui uma troca livre, mas imposição de uma decisão
gem económica e podemos aceitar a de Perroux: "O crédito do emprestador.
é a troca livre e intencional da disposição efectiva e ime-
diata de um bem económico em vista de uma contra-presta- Falamos acima na confiança que se verifica numa ope-
ção, que tem lugar após um intervalo de tempo e consistindo ração de crédito. Mas a confiança é um acto psicológico,
em um bem análogo ao bem trocado." portanto intensivo, e consequentemente oferece graus. Há
confiança quando o crédito é pessoal; isto é, quando o alie-
Então temos: nante tem confiança na pessoa do adquirente, quando esta
inspira confiança àquela. Quando, porém, a confiança se
1) O crédito é uma troca onerosa, pois do contrário apoia no bem ou bens que o adquirente oferece em garantia
não seria um facto económico. Exige uma contra-presta-
ção, uma restituição. da operação (garantias imobiliárias, hipotecas, e t c ) , a con-
fiança não está mais colocada na pessoa, mas nos bens em-
2) O intervalo de tempo já acentuado é um aspecto penhados.
característico da operação de crédito, pois, do contrário, se-
ria apenas uma operação de troca à vista. Observado o crédito como o fizemos até agora, vemos
facilmente que expusemos apenas os caracteres que se dão
Mas, pode dar-se aqui uma variante, quando tanto a em qualquer sistema económico (fechado, artesanal ou capi-
prestação como a contra-prestação são contemporâneas no talista). Mas estudemos agora o
futuro. Neste caso, temos uma operação a termo, a prazo.
Só há operação de crédito, propriamente, quando medeia um
tempo entre a prestação e a contra-prestação. CRÉDITO NO CAPITALISMO
É essa a característica diferencial do crédito e que le-
vou Knies a defini-lo assim: O crédito no capitalismo apresenta aspectos caracterís-
"Crédito é uma troca dividida no tempo". ticos que podemos classificar entre a forma e os órgãos, que
passamos a estudar.
No entanto, há economistas que não perceberam tão
bem essa característica essencial e procuram definir o cré- As formas do crédito modificam-se constante e radical-
dito de outra forma. mente na economia capitalista.
3) É necessário que se dê a transferência da disponi- No início do capitalismo, as empresas funcionavam fi-
bilidade efectiva do bem; isto é, que o alienante transfira nanciadas por si mesmas; forneciam a si mesmas (autofi-
a disponibilidade efectiva, que tem do bem ao adquirente. nanciavam-se), com seus próprios capitais.
Se um empresário, por exemplo, confia máquinas, instru- Quando uma firma recorria a, emprestadores, tal facto
mentos a um trabalhador assalariado não há crédito, porque actuava contra o prestigio da firma, era uma demonstração
não há a transferência da disponibilidade efectiva, da pro- de falta de solidez.
priedade no sentido económico do termo.
Mas essa prática e a mentalidade que contemporanea-
4) O prazo, o tempo intercalado, deve ser aceito pelas mente a acompanhava, com o desenvolvimento do capitalis-
partes, isto é, deve ser intencionalmente estipulado e ex- mo, teve de ser posta de lado. E tal se compreende facil-
pressamente querido pelas partes. mente pela necessidade de inversão de maiores somas de
Quando o Estado faz um empréstimo forçado, não há moeda, que obrigavam os capitalistas a recorrerem a em-
propriamente uma operação de crédito. É semelhantemen- prestadores.
136 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 137

0 desenvolvimento da técnica, a necessidade de máqui- em linguagem escrita, a operação de crédito combinada. É


nas, instalações, estabelecimentos apropriados e a impossi- uma carta (letra) na qual se declara a troca feita (câmbio).
bilidade de obter o retorno imediato do capital empregado, Esse documento, representativo da operação, é a letra de
em moeda, implicavam e exigiam fundos especiais, obrigan- câmbio. O alienante dirige-se ao banco e deste recebe ime­
do o capitalista a recorrer aos emprestadores. diatamente uma soma vizinha da que é representada no do-
cumento e que deve ser recebida mais tarde. Êle então
Já vimos que, no capitalismo, a técnica é móvel, em desconta o documento. E dessa forma o crédito permite
constante transformação. O ritmo dessa transformação é que se dê a circulação dos bens e da moeda.
acelerado, em contraposição ao ritmo que se observa nos
outros sistemas, tais como o artesanal e o de economia fe- A criação desse crédito, crédito à producção e à circula-
chada. ção, permitiu o desenvolvimento extraordinário da economia
capitalista.
Toda transformação na técnica obrigava a transforma-
ções capitais na indústria, sob pena de emperrar a produc- E isso se deu, porque permitiu o equipamento das em-
ção, encarecê-la. Tais acontecimentos obrigavam a procura presas, a construcção de meios de comunicação, de trans-
de capitais novos para enfrentar essas transformações. porte que, embora não dando rendimento imediato, permi-
Daí a necessidade de apelar ao crédito. Não eram apenas tiam o desenvolvimento da circulação e, portanto, de rendi-
tais factos, mas também a necessidade constante de cresci- mentos maiores futuros.
mento da empresa, o que obrigava a novos investimentos, Essas operações permitiam que "o futuro se colocasse
que nem sempre eram passíveis de ser atendidos com os re- já no presente", aumentando a producção.
cursos próprios do empresário. O desenvolvimento do capitalismo na Europa, sobretu-
Havia necessidade de colectar capitais monetários, para, do a partir do século XVI em diante, com a formação dos
serem acumulados. grandes estados nacionais, condicionou uma segurança maior
nas transações económicas que, por isso, cresceram de pro-
Mas, para tal, eram necessários órgãos de colectação. porção. Tais condições permitiram a despersonalização do
Dava-se a procura de capitais e, consequentemente, crédito, bem como sua desconcretização, pois a operação
ofertas correspondentes. deixou propriamente de ser feita sobre determinado bem
em concreto, para expressar apenas um valor.
Desta forma, surgem as empresas de colectação e de fi-
nanciamento, os bancos, em suas diversas modalidades, cujas Já vimos que o título então usado era a letra de câmbio,
características iremos estudar. documento pelo qual um credor ou emitente, prescreve ao
seu devedor pagar em determinada data certa soma a uma
O crédito destinava-se, assim, quer à producção, quer pessoa designada, que toma o nome de beneficiária.
à circulação. A base da letra de câmbio é uma operação comercial.
No primeiro caso, temos uma operação a longo prazo, O beneficiário, comumente chamado tomador, pode conser-
porque aqui há uma inversão productiva, um investimento var a letra de câmbio em seu poder ou descontá-la num ban-
de capitais para favorecer a producção. No segundo, os co ou endossá-la a um dos seus credores.
prazos são naturalmente menores. É a letra de câmbio um instrumento de pagamento, um
Vejamos como se processavam e se processam em seus instrumento de crédito a prazo curto. Entre nós, contudo,
aspectos essenciais, portanto gerais. a duplicata, que é um efeito comercial, e a nota promissória
são as mais usadas, sobretudo as primeiras.
O alienante não sendo imediatamente pago, tendo de
conceder um crédito, concede automaticamente um prazo. Quando um credor quer mobilizar os depósitos que têm
Documentado da operação que faz, esse documento declara em sua conta, isto é, o seu crédito disponível, usa um do-
138 MÁRIO BARREIRA DOS SANTOS

cumento em forma de mandato de pagamento, quer em seu


favor, quer em favor de um terceiro, que ordena a retirada
do todo ou parte dos fundos que dispõe. Temos, então, o
cheque, que é a base fundamental do crédito no capitalismo.
A complexidade da vida comercial levou a realização
de diversos documentos que facilitassem as diversas opera-
ções. Temos entre eles certos documentos representativos
de direitos reais, como o warrant. A FUNÇÃO BANCÁRIA
A complexidade da vida económica, levou a realização
e organização de armazéns gerais, que são estabelecimentos
colocados sob a vigilância do Estado nos quais os comercian- Podem os bancos modernos serem considerados sob dois
tes podem depositar suas mercadorias. O warrant, sobre aspectos:
o qual é anotado o preço da mercadoria, é um título de pe- a) como órgãos de pagamento, e neste caso temos os
nhor, o qual permite um empréstimo sobre a mercadoria. bancos de depósito e bancos de emissão, cabendo a estes po-
Vê-se como se processa constantemente, no capitalismo, rem em circulação bilhetes de banco. Hoje, em quase todo
e de modo crescente, a despersonalização do crédito. o mundo, essa função passou ao Estado, permanecendo co-
mo órgãos de pagamento, os bancos de depósito, que facili-
Com essa despersonalização do crédito dá-se, conse- tam e tornam mais rápidos os pagamentos e as transferên-
quentemente, uma maior extensão ao crédito. No início cias de numerário, descontam letras e outros títulos e
desse sistema, os capitalistas aprovisionaram-se de capitais colectam a poupança dos clientes.
junto aos amigos e parentes. Mas, com a despersonaliza-
ção do crédito, que passa a ser objectivado pela mercadoria, b) Como órgão de crédito, pode considerar-se serem
o mercado de crédito aumenta, amplia-se, já não abrangen- quase todos os bancos órgãos que distribuem crédito.
do o círculo das relações do capitalista, mas toma âmbito
nacional e até internacional. Para analisar-se a função bancária, é mister observar
o que nela há de essencial e a que necessidade serve.
Vejamos agora os órgãos de colectação e de distribui-
ção de que falamos no início do ponto. Examinemos primeiramente o depósito.
Esses órgãos são institutos especializados, e essa espe- É o depósito um instrumento de pagamento, porque é
cialização é o fruto de um trabalho secular. mobilizável por cheque, além de ser exigível à vista. Há
Surgem então os bancos, que tem por objecto fornecer depósitos a prazo fixo, como depósitos com aviso prévio.
às empresas capitais de que necessitam para a sua consti- O depósito mais comum é o que é mobilizável a qualquer
tuição. São institutos de investimentos. Outros, porém, momento pelo depositante.
distribuem capitais a prazo curto. Temos, no primeiro ca-
so, os bancos de investimentos e, nos segundos, os bancos de A evolução histórica do banco não poderia ser estuda-
depósitos. da aqui em seus mínimos pormenores. Os bancos não são
de nossos dias nem de nossa civilização, porque já em outras
Essa diferenciação não é única, porque, segundo as fun- civilizações desaparecidas existiram formas bancárias bem
ções elas se processam, e as diferenciações tornam-se mais desenvolvidas. Na Idade Média e posteriormente ainda,
complexas e mais diferenciadas. certos indivíduos, política e financeiramente poderosos, re-
cebiam para guardar moedas e jóias de outros, que recea-
vam delas serem privados. Eram em muitos casos, no Oci-
138 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

cumento em forma de mandato de pagamento, quer em seu


favor, quer em favor de um terceiro, que ordena a retirada
do todo ou parte dos fundos que dispõe. Temos, então, o
cheque, que é a base fundamental do crédito no capitalismo.
A complexidade da vida comercial levou a realização
de diversos documentos que facilitassem as diversas opera-
ções. Temos entre eles certos documentos representativos
de direitos reais, como o warrwit. A FUNÇÃO BANCÁRIA

A complexidade da vida económica, levou a realização


e organização de armazéns gerais, que são estabelecimentos
colocados sob a vigilância do Estado nos quais os comercian- podem os bancos modernos serem considerados sob dois
tes podem depositar suas mercadorias. O warrant, sobre aspectos:
o qual é anotado o preço da mercadoria, é um título de pe- a) como órgãos de pagamento, e neste caso temos os
nhor, o qual permite um empréstimo sobre a mercadoria. bancos de depósito e bancos de emissão, cabendo a estes po-
Vê-se como se processa constantemente, no capitalismo, rem em circulação bilhetes de banco. Hoje, em quase todo
e de modo crescente, a despersonalização do crédito. o mundo, essa função passou ao Estado, permanecendo co-
mo órgãos de pagamento, os bancos de depósito, que facili-
Com essa despersonalização do crédito dá-se, conse- tam e tornam mais rápidos os pagamentos e as transferên-
quentemente, uma maior extensão ao crédito. No início cias de numerário, descontam letras e outros títulos e
desse sistema, os capitalistas aprovisionaram-se de capitais colectam a poupança dos clientes.
junto aos amigos e parentes. Mas, com a despersonaliza-
ção do crédito, que passa a ser objectivado pela mercadoria, b) Como órgão de crédito, pode considerar-se serem
o mercado de crédito aumenta, amplia-se, já não abrangen- quase todos os bancos órgãos que distribuem crédito.
do o círculo das relações do capitalista, mas toma âmbito
nacional e até internacional. Para analisar-se a função bancária, é mister observar
o que nela há de essencial e a que necessidade serve.
Vejamos agora os órgãos de colectação e de distribui-
ção de que falamos no início do ponto. Examinemos primeiramente o depósito.
Esses órgãos são institutos especializados, e essa espe- É o depósito um instrumento de pagamento, porque é
cialização é o fruto de um trabalho secular. mobilizável por cheque, além de ser exigível à vista. Há
Surgem então os bancos, que tem por objecto fornecer depósitos a prazo fixo, como depósitos com aviso prévio.
às empresas capitais de que necessitam para a sua consti- O depósito mais comum é o que é mobilizável a qualquer
tuição. São institutos de investimentos. Outros, porém, momento pelo depositante.
distribuem capitais a prazo curto. Temos, no primeiro ca- A evolução histórica do banco não poderia ser estuda-
so, os bancos de investimentos e, nos segundos, os bancos de da aqui em seus mínimos pormenores. Os bancos não são
depósitos. de nossos dias nem de nossa civilização, porque já em outras
Essa diferenciação não é única, porque, segundo as fun- civilizações desaparecidas existiram formas bancárias bem
ções elas se processam, e as diferenciações tornam-se mais desenvolvidas. Na Idade Média e posteriormente ainda,
complexas e mais diferenciadas. certos indivíduos, política e financeiramente poderosos, re-
cebiam para guardar moedas e jóias de outros, que recea-
vam delas serem privados. Eram em muitos casos, no Oci-
140 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 141

dente, ourives, joalheiros, etc. Tinham eles a obrigação de de banco do Banco de Amsterdam, que era definido por
devolver, quando lhe fossem pedidas, as quantias, os depó- um peso de prata, sem liga. O florim era a moeda, mas
sitos efectuados. Para comprovar o depósito, declaravam o seu valor em prata era o dinheiro, o seu valor. (Aqui já
por escrito o mesmo. Por terem bancas, onde atendiam as transparece a importância de se não confundir moeda com
pessoas, onde pesavam e avaliavam jóias e metais preciosos, dinheiro, como o é comumente. Voltaremos a este tema.
foram chamados de banqueiros. oportunamente).
Com o decorrer do tempo, verificaram muitos desses No início, quando o banqueiro apenas guardava o de-
banqueiros que não havia necessidade de devolver tais e tais pósito, recebia êle uma remuneração. Posteriormente, quan-
peças depositadas, mas o que lhes era equivalente. Enquan- do tendo investido o depósito em negócios seus, pagou ao
to não era reclamado o depósito, este podia perfeitamente depositante um juros.
ser investido em operações de crédito, dando-lhe assim uma
margem de benefícios. Deveria o banqueiro restituir o depósito quando exigi-
do pelo cliente. Mas muitas vezes se dava que o banqueiro
Não demorou que, com o tempo, o Estado interviesse não estava em condições de fazer essa devolução. Havia,
nessas operações sob a alegação de moralizá-las em face de assim, como ressalta Perroux, um antagonismo entre a fun-
alguns abusos (para criar outros piores), criando um con- ção do banco como órgão de investimento e a função como
trole que permitia penetrar nos estabelecimentos dos ban- recebedor de depósitos.
queiros.
Muitos abusos se observaram no decorrer do tempo, o
Não demorou muito que o Estado criasse seus bancos, que levou a muitos a protestarem contra o emprego, por
sob o pretexto de salvaguardar os interesses dos depositan- parte dos banqueiros, dos depósitos que lhe haviam sido con-
tes, mas, na realidade, para poder utilizar os recursos em fiados, que deviam permanecer intangíveis.
seu benefício. Já veremos, quando estudemos a moeda, Com o decorrer do tempo, bancos houve que em vez de
quais as desvantagens para a desvalorização da moeda que serem órgãos de investimento, tornaram-se apenas órgãos
trouxe essa acção do Estado, como também quais benefícios de pagamento. Essa é a orientação dos bancos modernos,
relativos que dela decorreram. nos quais os depósitos são exigíveis à vista, mas podem fa-
Mas quer os bancos públicos, quer os particulares têm zer emprego dos depósitos, desde que ofereçam suficiente
eles funções semelhantes. Oferecem os bancos vantagens liquidez quando da exigência de devolução dos mesmos.
aos particulares, porque asseguram melhor as operações. Como órgão de pagamento, o banco oferece muitas van-
Não seria possível transferir constantemente fundos de um tagens pelas compensações que pode fazer. Digamos que
lugar para outro, com riscos de furto, ou em certos casos alguém A, tem de pagar a B uma determinada soma, mas
de deterioração. Os bancos permitem que tais operações se- B tem de pagar a C e C tem de pagar a A. Esses paga-
jam feitas contàbilmente, evitando as remessas. mentos, se feitos individualmente, exigiriam um transporte
constante de numerário, quando, por intermédio do banco,
Durante a Idade Média, as moedas não eram sempre tais operações são feitas contàbilmente; isto é, por meio da
iguais umas às outras. Muitas eram modificadas, quer pelo contabilidade, lançando a crédito e a débito correspondente
uso, quer pela intervenção de quem as cunhava, que não a cada um, sem que o numerário empregado, como moeda,
punha nelas a quantidade exacta de metal fino que devera seja tão avultado.
ter, para, com isso, auferir um benefício. A necessidade
de criar-se uma moeda de conta, uma moeda abstracta, tor- Olhado o banco como órgão de crédito, e não simples-
nou-se uma necessidade. Assim foi, por exemplo, o florim mente como órgão de pagamento, vemos que êle emprega os
142 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 143

depósitos que lhe são confiados, operando, dessa forma, uma Para fazer face às eventualidades deve o banco dispor de
economia de moeda suplementar. reservas de moeda.
Aqui surge uma figura económica importante: Essa reserva varia segundo as operações do banco. Se
é um banco de depósito que não emprega os mesmos, ne-
cessita de uma certa quantidade de moeda para fazer face
O DESCONTO às eventualidades. No caso de empregar os depósitos, de-
verá dispor de uma reserva diferente.
Para fazer face às eventualidades, a reserva monetária
É o desconto uma operação de crédito a curto prazo, do banco deve ser calculada de acordo com o montante dos
pela qual um banqueiro paga um crédito antes do vencimen- depósitos. Diversos estudos feitos abstractamente, foram
to, depois de deduzidos os seus serviços (Perroux). posteriormente derrogados pela prática, que ensinou aos
Essa deducção corresponde às taxas, ao juro, às despe- banqueiros como procederem em tais casos.
zas de cobrança, etc.
Em certa época bastava apenas 30% em disponibilida-
No desconto, há uma troca de dois créditos. Quem de dos valores depositados, podendo, assim, os bancos em-
quer descontar oferece um crédito comercial ou uma letra pregar 70% dos depósitos, pois aquela percentagem era su-
contra um crédito bancário cedido pelo banco. Essa troca ficiente para atender as necessidades dos depositantes. Nos
é onerosa, porque é pago um certo preço, representado pela séculos XIX e XX, tal montante foi reduzido a 15% e até
taxa de desconto. a 10%, dependendo, naturalmente, da estructura do siste-
ma bancário e das circunstâncias económicas gerais. Não
Por intermédio das Câmaras de Compensação, os ban- é possível determinar previamente qual a norma a seguir,
cos compensam entre si as operações activas e passivas, tor- a qual depende das diversas circunstâncias, como acima já
nando mais rápidas e fáceis as operações. dissemos. Uma série de complexos factores intervêm aqui,
Por meio dessas câmaras, os bancos tornam-se credo- e pertencem eles mais à ciência das finanças que propria-
res ou devedores apenas do saldo, depois de feita a compen- mente à economia pura. No entanto, entre esses factores,
sação entre seus valores activos e passivos. devem citar-se o montante dos depósitos, o crescimento dos
mesmos, as espécies de operações de crédito, qual o empre-
Oferecem essas câmaras também uma vantagem, por- go dado aos valores depositados, as condições económicas
que permitem que sejam controlados os bancos quanto às ambientais, etc.
suas operações, e verificado se predominam as passivas ou
as activas. Nos casos de débito, pode o banco de emissão
cobrir o saldo devedor do banco, naturalmente para cobri-lo
quando o mesmo se torne credor, nas liquidações posterio- Embora as operações dos bancos de emissão sejam as
res. Dessa forma, a Câmara de Compensação e o Banco mesmas de um banco comum de depósito, são elas, porém,
Central de Emissão completam as funções do crédito a pra- efectuadas em condições diferentes.
zo curto.
Um banco de emissão, recebe os depósitos dos clientes,
Uma mesma quantidade de moeda é suficiente para re- abre suas contas e procede pagamentos, remessas, etc. Des-
solver uma série de operações. conta títulos, adianta sob caução de títulos ou sob outras
Os depósitos feitos à vista representam um passivo garantias. Dessa forma, um banco de emissão não se dis-
imediatamente exigível num banco. O activo é compreen- tingue propriamente de um banco de depósito comum, quan-
dido pelo montante rapidamente realizável, constituído pe- to à natureza de suas operações. Mas, o que o diferencia
los títulos e operações de crédito concedidas a curto prazo. é que pode emitir bilhetes de banco. Esses bilhetes (no
144 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 145

sistema de padrão ouro) permite acumular em sua caixa 3) Pluralidades de bancos privilegiados.
grandes estoques de moeda; b) aumentar e desenvolver suas
operações, permitindo muitas operações sem a necessidade 4) Liberdade de emissão, desde que as mesmas sejam
de circulação da moeda; c) obter a maior segurança nessas garantidas de acordo com as prescrições legais res-
operações, beneficiando os outros bancos. pectivas.
No primeiro caso, temos o exemplo da França, com o
Para se compreender bem o mecanismo desses bancos, Banco de França, e do Brasil, com o Banco do Brasil; no
vamos examinar sua génese. segundo, temos os exemplos da Suécia; no terceiro, temos a
Quando o cliente fazia seu depósito em moeda metálica, Inglaterra e no quarto tivemos os Estados Unidos até 1913.
recebia um bilhete em que era declarado o valor depositado, Essas classificações nem sempre correspondem à realidade,
com direito de ser reembolsado à vista do documento, isto pois há preferências a certos bancos em alguns países em
é, imediatamente. Esses bilhetes permitiam o mais fácil que se dá um verdadeiro monopólio.
transporte da moeda, representada por eles. Eram os bi- As diversas legislações asseguram as condições em que
lhetes, naturalmente, mais cómodos. Quando, porém, fazia essas emissões podem ser feitas e elas consideram as rela-
novo depósito, o cliente, não levava os bilhetes, mas sim nova ções entre a emissão e o encaixe, o máximo de descoberto
moeda metálica. Enquanto isso, os bilhetes circulavam por que pode ser feito e a forma de depósito dos títulos de ga-
mais tempo, por muito tempo, antes de retornar ao estabe- rantia.
lecimento emissor. Essa circulação, portanto, tornava-se
cada vez maior e superava, na saída, a entrada. Dessa for- Assim, por exemplo, na França, a emissão pode alcan-
ma, essa circulação fiduciária (de fides, fé, que merece fé) çar o triplo do encaixe, noutros países até 40%.
tendia a aumentar pelo funcionamento normal da emissão,
enquanto o encaixe metálico elevava-se correlativamente. Como já vimos, esse bilhete de banco torna-se a pouco
e pouco verdadeira moeda, mas é uma moeda interior. Ela
A pouco e pouco, esse bilhete de banco deixou de ser é conversível em ouro. Hoje, porém, há modificações pro-
para o público uma simples "promessa de pagamento em es- fundas nessa prática, sobretudo entre nós, onde a moeda
pécie" para tornar-se verdadeira moeda. Deixava, assim, tem curso forçado e não é propriamente conversível em
ouro.
na prática, de ser reembolsável para tornar-se simplesmente
conversível. Com o decorrer do tempo, o sentido do "reem-
bolso" foi totalmente perdido, como o vemos hoje, para per-
manecer apenas como moeda.
Já vimos que o banco de emissão permite ao banco de
depósito e de negócios em geral redescontar as letras que
tenha em sua carteira, permitindo, assim, aumentar suas
operações e não necessitar ter em caixa disponibilidades em
moeda muito grandes.
Quanto ao número e natureza dos bancos de emissão
podemos distinguir quatro sistemas principais:
1) O monopólio privado, em que um único banco tem
o privilégio de emitir.
2) O monopólio do Estado.
OS INSTITUTOS PÚBLICOS

Grande e constante é a especialização que se observa


nos órgãos dos bancos atualmente, em face da complexida-
de da vida moderna. Têm essas especializações um grau
dos mais variados e uma descrição dos mesmos fugiria aos
limites desta obra e da sua finalidade.
Uma profunda transformação verificada logo após a
l. a Grande Guerra foi o desenvolvimento da centralização
bancária, realizada pelos grandes Estados nacionais. A es-
tructuração económica dos Estados nacionais que se proces-
sou, como já vimos, no decorrer dos séculos XVI e XVII,
trouxe, como consequência, inúmeras perturbações nas fi-
nanças públicas. O Estado, por ter o poder de autorizar o
comércio bancário, aproveitou-se desse poder para exigir,
em seu favor, parte dos fundos depositados. Foi no século
XVIII que surgiu o Banco de Inglaterra. Esses bancos do
Estado, ou dominados pelo Estado, trabalham em regime
de monopólio, com o controle rigoroso do Estado.
Com o desenvolvimento da indústria e do comércio in-
ternacional tornou-se necessária uma descentralização do
crédito. A emissão dos bilhetes de banco foi também des-
centralizada, multiplicando-se os bancos de emissão, a fim
de fazer face às necessidades crescentes da complexidade
económica. Em diversas regiões de uma nação, surgiram
bancos emissores, formando-se, em torno deles, bancos dis-
tribuidores de crédito.
Com a unificação do mercado, o que se processou pos-
teriormente, os bancos também foram nacionalizando-se, e
a descentralização da emissão passou para outra fase de
centralização, cabendo a um banco público o privilégio de
emissão de bilhetes.
TRATADO DE ECONOMIA 149
148 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

Na Europa, tal centralização desenvolveu-se, sobretu- Essas intervenções variam em intensidade e extensida-
de, segundo os diversos países, e são mais ou menos dura-
do, depois da l. a Grande Guerra. douras.
A criação de novos estados, tais como os que sucederam # * #
ao Império Austro-húngaro, como a Hungria, Tchecoslová-
quia, Iugoslávia, Áustria, Albânia, obrigaram a executar Interessa-nos tratar agora dos Institutos públicos.
uma adaptação dos seus respectivos sistemas bancários. A
falta de capital e a necessidade de uma organização centra- Na zona pública, há instituições de várias espécies.
lizada na economia, exigiam a centralização bancária, sobre- Elas não podem ser consideradas iguais às outras empresas,
tudo no referente à emissão de papel moeda. porque oferecem características diferentes. E esses carac-
teres são: a) precisamente não estarem subordinados total-
As crises prolongadas, tanto de conjuntura como de es- mente ao máximo de rentabilidade, como no caso das em-
tructura, verificadas logo após a guerra, sobretudo nos presas particulares; b) o estarem subordinados em certa
anos de 1929 a 1931, levou os Estados à política de investi- medida ao interesse geral. Oferecem ainda outras diversi-
mentos e de financiamento, não só quanto às obras públi- dades, peculiares aos fins a que se destinam. Muitos des-
cas, como também a tudo quanto pudesse vivificar a Eco- ses institutos servem a explorações de carácter particular
nomia, seguindo, deste modo, os teorias de Maynard Key- na forma, mas são públicas no fundo.
nes. A intervenção do poder público tem diversas formas
intensivas.
Não eram somente esses factores que coincidiam para
exigir tais modificações. O capitalismo também, após a Desde a subvenção até o controle propriamente dito,
guerra, havia sofrido profundas modificações na Europa. dependendo, naturalmente, das condições históricas e con-
Aquele capitalismo das pequenas unidades foi aos poucos junturais de cada país.
sendo substituído por um capitalismo de grandes unidades, Essas intervenções tendem a proteger a poupança da
exigindo, por isso, um sistema bancário mais complexo e tam- nação e a fortalecer o crédito.
bém maior. Antes da guerra, a poupança dirigia-se para
as unidades bancárias de pequenas dimensões. Após a Umas dirigem-se ao comércio interno, outras ao comér-
guerra, bancos de grandes dimensões tendiam a inverter cio de exportação, e outras ainda ao crédito fundiário, ao
menos que a poupança real, criando, assim, obstáculos ao crédito agrícola e ao crédito marítimo.
desenvolvimento económico. E quando tentava inverter As variações das providências dessas intervenções apre-
mais do que a poupança real eram levados à situação de in- sentam-se também por meio de diversos institutos, segundo
solvabilidade e de falência. Tais factos, sobretudo verifi- as condições de cada país. No tocante aos institutos de
cados durante o período da craque de 1929-1930, levou os crédito, podemos distinguir os de crédito real e os de cré­
Estados a intervirem directamente no sistema bancário. dito pessoal, sobretudo no sector agrícola.
Os modos de intervenção do Estado no sistema bancá- Entre as primeiras, são inúmeras as formas sobretudo
rio processaram-se de várias maneiras: a) agindo como bancárias, como institutos hipotecários, de penhor agrícola,
cliente; b) agindo como concorrente, distribuindo crédito etc, em muitos casos funcionando como carteiras especiais
aos organismos especializados, como procedeu, por exemplo, dos bancos controlados pelo Estado.
Roosevelt, nos Estados Unidos, durante a experiência; c) Quanto aos da segunda espécie, podemos salientar:
pelo controle, regulando o funcionamento do banco, fixan-
do as" relações e o funcionamento, como a que assistimos no As caixas Dumnd, que são instituições de tendência re-
Brasil. ligiosa, que repousam sobre o princípio da solidariedade de
TRATADO DE ECONOMIA 151
150 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

seus membros, que independem do Estado e tratam da de- Os serviços dos administradores eram gratuitos.
fesa dos seus próprios interesses, como se observa, sobre- A exemplo dessas caixas, estabeleceram-se, na Itália,
tudo, na França. os bancos populares Luzzatti, que aplicavam também os prin-
Há ainda as caixas oficiais, como as Caixas Económi- cípios práticos das caixas cooperativas, modificadas, depois,
cas, controladas pelo Estado ou não, que oferecem aos pe- quando do advento do fascismo.
quenos depósitos um juros mais elevado, e aplicam ou de-
vem aplicar seus depósitos em obras que digam interesse Além dessas caixas, instalam-se também nos diver-
directo aos seus depositantes, operando quer a curto, quer sos países os Monte de Socorro, que são estabelecimentos
a longo prazo. de empréstimo sobre bens (penhor), que variam segundo os
diversos países e as modalidades desses institutos, que são
Os institutos de crédito popular oferecem nos países ci- organizadas segundo as normas determinadas pelo Estado.
vilizados formas das mais variadas. Tendem quase sempre
a dar crédito àqueles que não o encontram por suas modes- * * *
tas posses, nas empresas capitalistas. São organizações
para dar crédito às pequenas producções, aos artesãos, às Também vamos encontrar institutos de crédito não só
explorações de pequenas dimensões. na zona capitalista, como já estudamos, mas também na zo-
Na Alemanha, por exemplo, surgiram as caixas Raiffei- na cooperativista, que também apresenta diversos organis-
sen, as Schulze-Oelich, as Haas. Foram as caixas Raiffei- mos para a distribuição do crédito.
sen criadas por um filantropo em 1847, de nome Raiffeisen, Temos as cooperativas de crédito. Um grupo de agen-
que desejava dar crédito aos pobres. Sofreram elas os maio- tes financeiramente fracos, que necessitam de crédito, quer
res dissabores, terminando, porém, por tornarem-se vitorio- para o consumo, quer para a producção, reúnem-se numa
sas. São sociedades de carácter extra-capitalista, pois não organização cooperativa, reunindo também suas disponibi-
se propõem ao maior ganho possível, mas sim a distribuir lidades de capital, para constituir um organismo de crédito,
o máximo de serviços no mercado de crédito. que operará apenas dentro do círculo limitado de seus mem-
São elas fundadas em princípios da doutrina mutualis- bros, em regra geral não concedendo dividendos proporcio-
ta e cooperativa, e repousam sobre o princípio da responsa- nais ao capital, mas apenas um retorno, proporcionadamen-
bilidade solidária e integral de todos os seus membros. Or- te ao uso do crédito de cada um.
ganizam-se, sobretudo, nas regiões onde os emprestadores
e tomadores podem controlar-se mutuamente; isto é, nas pe- Essas formas de cooperativas de crédito são as mais
quenas comunidades, nas regiões do campo. Remuneram variadas. Entretanto, são em geral fracas essas tentativas
baixamente os seus dirigentes e muitas vezes estes não re- já feitas e já veremos por quê.
cebem nenhuma remuneração. Na Alemanha foi muito desenvolvido esse sistema de
As caixas Schulze-Delitzsch foram fundadas por Fer- crédito, sobretudo através das caixas Schulze-Delitzsch, e
nando Schulze em 1850. Eram no início animadas do es- tendo como campo de acção a agricultura e o artesanato.
pírito cooperativo, mas tendo, finalmente, reunido grandes Quanto às cooperativas propriamente ditas, elas preci-
somas e estabelecido uma administração complexa, termi- sam de crédito. Não tendo capitais suficientes, necessitan-
naram por transformarem-se em verdadeiros bancos. do de meios para seu desenvolvimento, precisam oferecer aos
As caixas Haas, não se atinham rigorosamente ao prin- seus membros interesses elevados. E para atender essas ne-
cípio das caixas Raiffeisen de exigir a responsabilidade so- cessidades, são obrigadas, por sua vez, a colocá-los em opera-
lidária e ilimitada de seus membros. Atribuía parte dos ções que ofereçam boa renda. Nessas condições, conhecem
dividendos aos acionistas, e parte servia para constituir um elas riscos económicos, o que traz ameaças de insolvabili-
fundo de reserva. dade.
152 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

Se não encontram em seus meios o financiamento ne-


cessário, vêem-se obrigadas a dirigirem-se aos bancos, que
são empresas capitalistas, arriscando, consequentemente, a
sua independência. Essas possibilidades de crédito são, po-
rém, diminutas, porque as firmas capitalistas não confiam
nas cooperativas, nem desejam apoiá-las.
Quanto ao auto-financiamento das cooperativas tam-
bém é difícil, porque os próprios cooperados têm mais con- A MOEDA
fiança nos organismos capitalistas que naqueles que são
constituídos por eles mesmos. Tais factos são os culpados
de não ter o cooperativismo ainda atingido o nível que po- Hoje, todos manipulam tão quotidianamente a moeda,
deria ter alcançado, permitindo, dessa forma, a solução dos. que ela, por si só, é conhecida de todos. Mas se dela temos
grandes problemas sociais, como já atingiu em países como um conhecimento prático, não é este suficiente para nosso
a Suécia, Dinamarca, etc. A ignorância geral, a pouca fé, estudo. E isso por que o conceito de moeda é um dos mais
o espírito imediatista, que é inerente ao capitalismo, contri- difíceis, dos mais complexos, dos mais controvertidos que
buem para criar grandes entraves ao desenvolvimento do surgem na Economia Política.
cooperativismo.
Sempre se lê nos manuais que a moeda é uma "merca-
Não é fácil a administração de um organismo de cré- doria", que serve de "intermediário nas trocas" e de "me-
dito cooperativo, porque o evitar os riscos é difícil e exige dida comum dos valores". Que nos leva a pensar tudo isso?
um conhecimento das condições peculiares ao âmbito onde a Realmente foi uma mercadoria na origem. O ho-
cooperativa exerce a sua actividade. mem não a inventou. O facto constante de receber uma
Grandes organizações de crédito cooperativo têm fe- ■mesma mercadoria de uso corrente e de fácil conservação
chado suas portas por motivos que podemos dividir em três como pagamento nas trocas, transformou essa mercadoria
ordens: em moeda, mercadoria-moeda.
a) por grande difusão do crédito, sem as necessárias Posteriormente, ela foi recebida, não por si mesma, mas
garantias; pela nova troca que ela permitia, tornando-se intermediária
das trocas.
b) por falta de confiança de depósitos da parte dos
cooperados; Essa mercadoria trocava-se com todas ou quase todas
as outras. Ela, por isso, servia de medida comum de valores.
c) crescimento exagerado que leva a grandes despesas Assim tivemos, nas comunidades mais primitivas, o sal,
de administração. as conchas, o couro, o gado, e mais próximo a nós, os metais
Essas são as três causas principais dos malogros das preciosos.
organizações de crédito cooperativista. Há, estudos, espe- No entanto, nós vemos hoje, instrumentos monetários
cializados trabalhos sobre os temas de crédito no cooperati- que não têm carácter de mercadoria, como os bilhetes in-
vismo, havendo, em nosso idioma, alguns de ótima qualidade. convertiveis em metal, que chamamos moeda fiduciária, moe-
da de confiança (fidutia, em latim significa confiança).
Temos ainda hoje exemplos de moeda abstracta, como a cha-
mam alguns economistas, que é a moeda escriturai, a que é
registrada nos lançamentos de uma conta para outra, de
um crédito para um débito, sem necessidade do transporte
154 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

de notas de uma caixa para outra, como se observa entre


os bancos, entre as empresas ligadas entre si, etc.
A existência de uma moeda fiduciária e de uma moeda
escriturai, já em nossos dias, nos mostra desde logo que
não podemos considerar como essencial (e nesse caso como ANÁLISE
invariante) do conceito de moeda o ser uma mercadoria.
Que conclusão tiramos daí? Que a moeda, como todos
os conceitos da Economia, tem um sentido, um significado Empreguemos agora, para o melhor estudo de tema
peculiar a cada lanço do progresso dos estudos económicos. tão importante, as noções filosóficas já por nós expostas.
Se no princípio foi ela essencialmente uma mercadoria, ho- Não se pode compreender nem estudar a moeda sem consi-
je já não o é, porque conhece variações no seu conceito. derá-la sob seu aspecto intensista e extensista; sem observar
seus aspectos qualitativos e heterogéneos e os quantitativos
Que seja ela um instrumento de troca e medida comum e homogéneos. A moeda é um conceito da Economia e a
dos valores não resta dúvida. Economia dá-se na vida, tem suas raízes no que constitui a
matéria de outras disciplinas. Estudá-la, por exemplo, ape-
Entretanto, além de um instrumento de troca e de me- nas sob um dos seus muitos aspectos, autonomamente, é to-
dida comum de valores, quem a recebe aceita como meio de má-la abstractamente. Se fixarmos aspectos separados
pagamento, a título definitivo. (abstractos, portanto) não devemos, contudo, deixar de co-
Pode a moeda ser conservada por muito tempo em po- nexioná-los entre si, procurando a maior concrecção possí-
der de quem a tem e, dessa forma, pode transformar-se num vel, a fim de podermos construir uma visão geral, ampla
instrumento de poupança. A conservação dessa moeda por e segura, do conceito de moeda.
muito tempo traz consigo grandes problemas. Iniciemos, portanto, essa análise:
Há, também, os casos em que fica estipulado pagar um Concluímos, depois dos estudos já feitos genericamente,
devedor em certo tempo a um credor uma soma de moeda. que há três espécies de moeda:
Essa soma é para o credor uma soma futura. Essa a razão a) moeda-mercadoria (metais preciosos, por exemplo) ;
por que alguns economistas consideram que também tem
ela um papel de acumulador de valor. Dessa forma, pode-se b) moeda fiduciária;
apontar e enumerar as funções da moeda, tais como: c) moeda escriturai.
1) instrumento de troca ou intermediário de troca; Analisando essas três espécies, podemos ver que estas
cumprem sua função como intermediárias de trocas, como
2) medida comum de valores; também servem como instrumento de pagamento, como
3) instrumento de pagamento; acumulador de valor, ainda como medida comum de valores,
como sinal de todos os valores económicos. Contudo, há di-
4) instrumento de poupança ou acumulador de valor; ferenças no funcionamento dessas três espécies. Uma moe-
da metálica pode ser preferida como meio de pagamento a
5) sinal de crédito, de capital, de dinheiro, etc. uma moeda papel. O papel moeda foi considerado durante
Em suma: sinal de todo o valor económico. muito tempo como uma mera promessa de pagamento; isto
é, o portador tinha direito a receber seu valor correspon-
Tudo quando dissemos singelamente acima, vamos ana- dente em espécies metálicas. Por outro lado. uma moeda
lisar agora para uma melhor compreensão de tema tão im- fiduciária pode ter um poder de compra variável, enquanto
portante como é este. a moeda metálica tem um poder mais estável. Além disso,
156 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 157

a moeda metálica pode ser preferida para a poupança (te- Não resta dúvida, e já o frisamos bem, que a moeda,
sourização, que já estudamos). no início, era uma mercadoria. Só depois se tornou um ele-
mento intermediário habitual nas trocas.
Não são poucos os economistas que consideram que só
a moeda metálica pode corretamente corresponder a uma Mas essas moedas, com o tempo, tomaram um nome.
comum medida de valores. Chamaram-se dracmas, denários, sóis, escudos, etc. E es­
ses títidos não significaram apenas um nome. Adquiriram
Nessa função é que se usa a expressão padrão monetário. um significado e um conteúdo diferentes. Tais nomes dei-
xaram de indicar um peso de metal, para expressar uma
Admitamos uma mercadoria que hoje é trocada por unidade monetária. O peso do metal mudou, mas o nome
uma determinada quantidade de unidades monetárias. Essa permaneceu o mesmo.
mesma mercadoria, num futuro dado, é trocada mas por
uma quantidade dupla de unidade monetária (o que se troca Esse aspecto subjectivo não deve ser desprezado por
hoje por 5, troca-se amanhã por 10). Como instrumento quem deseja estudar Finanças, porque a moeda não é ape-
de medida, a moeda cumpriu sua função. Mas, nesse pe- nas em si, mas para nós.
ríodo de tempo, seu poder de compra variou. Dessa forma,
torna-se ela, que foi tão bom instrumento de medida, num Há autores que afirmam constantemente que a moeda
mau instrumento de poupança e num mau instrumento de apenas não foi uma mercadoria e que é, ainda, mercadoria.
pagamento para contractos a longo prazo; ou seja, num Quer dizer: é ela sempre mercadoria. As mercadorias des-
mau acumulador de valor. tinam-se ao consumo, já vimos, e a moeda destina-se à cir­
culação.
Por isso é que muitos dizem que a moeda é um padrão Ora, a mercadoria destina-se à satisfação de uma ne-
"valiável". cessidade e, nessa função, alegam os economistas contrários,
ela desaparece, não podendo, pois, funcionar de novo. _ A
Vejamos ainda outros a£pect<is ãntetfessantes: d'izem moeda destina-se a extinguir obrigações, a realizar acquisi-
os economistas em geral que o poder de compra da moeda va-
ria segundo é ela mais ou menos abundante. ções, estando, portanto, sempre apta a reentrar no fenóme-
no económico. Tem uma função dupla: a de reserva e a de
Aceita essa premissa, concluem que a moeda é causa- medida. Se A deve a B a quantia X, e B deve a C a mesma
dora das mudanças nos preços, por ela fielmente registra- quantia X, dando A a B em pagamento X, e B dando a C a
dos. Se tal se dá, não é ela um mau instrumento de me- mesma quantia X, vemos que a mesma moeda passou por
dida? várias mãos. Já com as mercadorias não se dá o mesmo. E
alegam que é sofisma dizer que qualquer mercadoria, uma
Tais raciocínios é que levam a afirmar que a moeda fi- peça de fazenda, por exemplo, tenha o mesmo efeito. E o
duciária e a escriturai valem na base da sua conversibilidade sofisma consiste em que essa peça de fazenda, ao passar por
em moeda metálica, em ouro propriamente, e é em relação diversas mãos, perdeu sua função de mercadoria para trans-
ao metal que se fixariam os preços. Dessa forma, concluem, formar-se propriamente em moeda com força liberatória,
embora se dê uma moeda fiduciária e uma escriturai, a moe- que é um característico da moeda.
da é essencialmente uma "mercadoria".
* * *
Oferece essa doutrina tradicional diversos fundamentos.
Nós comparamos uma mercadoria a outra mercadoria. As As moedas reais, metálicas ou fiduciárias, podem ser
moedas desprovidas de uma base metálica mostraram-se in- classificadas em moedas principais e moedas secundárias.
capazes de conservar uma relação de troca estável com as As principais são as que têm curso legal ilimitado; isto é,
outras. as que o devedor, de acordo e conforme com a lei, pode im-
158 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 159

por em pagamento ao seu credor, qualquer que seja a im- quantidade de cobre, que dão maior dureza que o ouro ou a
portância da soma devida. Por ex.: entre nós, o cruzeiro. prata puros. A relação entre o ouro e o metal a êle ligado
As moedas secundárias têm curso legal limitado, não podem chama-se título ou teor da moeda, sendo expressa geralmente
ser impostas em pagamento senão numa soma determinada, em milésimos. Assim, para 1.000 partes temos 900 de ouro
e têm nas trocas um papel acessório, anexo ao que é desem- puro, e expressa-se pela fórmula 900/1000.
penhado pelas moedas principais.
* * *
Se as moedas principais são curo ou bilhetes conver-
tíveis em ouro, a moeda secundária, também chamada de A cunhagem da moeda cabe hoje ao Estado e este, de-
moeda padrão, será o ouro. Se forem as principais em pra- vido às suas costumeiras dificuldades financeiras, tem abu-
ta, a moeda secundária será prata. Quando as moedas prin- sado de seu direito, e no intuito de obter recursos, modifi-
cipais são constituídas por bilhetes de banco não convertí- cado a relação entre o ouro e a liga. Toda vez que tais
veis (caso do Brasil), o país estará em regime de papel- abusos se processaram, isto é, quando em um país circulam
-moeda. Para que uma moeda padrão (secundária) perma- peças do mesmo valor nominal, mas de valores intrínsecos
neça em circulação é imprescindível que seu valor intrín- diferentes, as peças que têm maior valor intrínseco desapa-
seco, o valor do metal que a compõe, seja igual ao valor no- recem da circulação. São elas tesourizadas, enquanto as
minal que lhe é atribuído por lei. Se o valor intrínseco é moedas mais fracas permanecem em circulação. Essa cons-
inferior, será ela uma mercadoria depreciada, de que todos tatação é conhecida pelo nome de lei de Gresham, e ela se
procurarão desfazer-se, transformando-a em outras merca- enuncia frequentemente pela frase: a moeda ruim expulsa
dorias. O mesmo se dá quando a moeda padrão é um bi- a boa. A boa moeda é, por isso, guardada preferentemente,
lhete inconvertível. enquanto a má continua em circulação.
Quanto às moedas secundárias não têm qualquer impor-
tância que tenham elas um valor intrínseco inferior ao va-
lor nominal, pois seu papel, como instrumento monetário, é Como já dissemos, o tema da moeda é mais adequado às
reduzido, tirando elas o seu valor do facto de serem trocá- Finanças. No entanto, são tais as influências e as relações
veis por moedas padrões. São elas também fabricadas com que ela mantém com a Economia, que não bastam os aspec-
metais comuns, o cobre, o bronze, o níquel e ligas, e rara- tos que acima estudamos. Os dias de hoje, após a segunda
mente prata. grande guerra, são ricos em novos ensinamentos e grandes
experiências têm sido feitas que merecem um estudo con-
creto com outros factos.
Os bilhetes de banco, emitidos por bancos privados, po- Queremos frisar, contudo, alguns pontos. Impõe-se que
dem circular entre as partes sem que o Estado torne sua consideremos a moeda em sua relação estreita com a pro-
aceitação obrigatória. Diz-se, então, que elas têm curso ducção, sobretudo nos países em que a moeda tem curso
livre. Quando o bilhete de banco não é mais convertível por forçado e não é convertível, bem como sua relação com as
decisão governamental, mas deve ser aceita nos pagamen- experiências modernas.
tos, tem, então, curso forçado. A moeda deve facilitar as trocas, e falha quando não o
* * # faz. Ela se deprecia quando ultrapassa a quantidade ne-
cessária à troca. Mas, também, ela se deprecia por facto-
res de ordem qualitativa, quando a moeda não merece a
O ouro e a prata — metais preciosos — com os quais confiança.
se costumavam confeccionar as moedas, têm pouca dureza,
e o atrito entre elas condiciona um gasto elevado (usura). Tais temas, sobretudo no tocante à nossa economia, são
Para evitar esse gasto, é que se fazem as ligas com certa importantíssimos, porque entre nós se realizam as mais pre-
160 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

cipitadas experiências, esquecendo nossos homens públicos


de tomarem em consideração factores subjectivos. A distri-
buição da moeda, através naturalmente do crédito, é um dos
problemas mais sérios do Brasil, porque, entre nós, é o cré-
dito mal orientado. Não se trata de valorizar ou desvalori-
zar a moeda, trata-se de fazer que ela cumpra sua função
económica, que é facilitar a troca. Se ela realiza essa fun-
ção, ela vale. Todas as outras tentativas artificiais redun- A FORMAÇÃO DOS PREÇOS
dam em grandes prejuízos. Ora, precisamente não é isso o
que a nossa moeda apenas faz. É verdade que não podemos
também examinar melhor este ponto sem que primeiro estu-
demos o mecanismo dos preços que, no Brasil, talvez seja o É este um dos temas mais importantes da Economia,
seu maior problema económico e que é menos atacado de sobretudo por ser o mais controverso e onde a maioria dos
frente, devido aos poderosos interesses criados, que impedem economistas se deixam arrastar por certas interpretações e a
qualquer acção benéfica em bem do país, sacrificado sempre estabelecer regras gerais, partindo apenas de alguns casos
em benefício de grupos reduzidos. Tais temas não podem particulares. Somos daqueles que julgam que a Economia
ser desprezados, porque atravessamos um momento grave da Política é tanto uma arte como uma ciência. Como ciência,
nossa história, ao qual teremos um papel a desempenhar, a formação de um método especial para o estudo dos factos
grande ou pequeno, elevado ou ridículo, dependendo apenas económicos permitirá obter tais ou quais elementos, capa-
de sabermos e querermos de uma vez para sempre enfrentar zes de permitir uma bem feita aplicação aos factos singu-
aqueles que tudo fazem para destruir um melhor futuro de lares (arte). Há muito de arte na economia, porque sendo
nossa terra, ávidos de lucros imediatos e esquecidos dos ela uma ciência inductiva, suas generalizações são sempre
interesses do país, e mais ainda, inimigos até desse futuro. perigosas.

* * * Assim, no referente ao preço, há inúmeras soluções


oferecidas pelos economistas, que trazem consigo esse cunho
da precipitação. Fórmulas mais ou menos simples, com
Apresentamos nesta obra uma visão geral da Economia, aparência matemática, podem causar impressão ao leitor de-
sem nos preocuparmos mais demoradamente em criticar os savisado, mas os factos que decorrem dos diversos e inespe-
conceitos e categorias correspondentes, com uma análise filo- rados sucessos, terminam por mostrar que ainda temos mui-
soficamente fundada nas normas da filosofia concreta, por- to que analisar na Economia, muito que coordenar para que,
que desejamos dar, por enquanto, a visão geral, para, nos finalmente possamos estabelecer uma solução aos magnos
trabalhos mais específicos, fazermos o exame que se impõe, problemas que ela examina e suscita! Somos, e reiterada-
a fim de oferecermos a nossa contribuição para solução do mente o temos afirmado, contrários a toda e qualquer inter-
que é solucionável, mesmo em nossa terra, onde já se apre- pretação ou explicação do facto económico dentro de quadros
senta quase como delinquência desejar realizar alguma coi- puramente quantitativos. Para nós, tz'°, interpretações são
sa de bem. meramente abstractas, porque deixam de reconhecer e de
O tema da moeda, por exemplo, é de uma importância considerar os aspectos qualitativos e heterogéneos, que dão
capital entre nós, não só porque a nossa economia é mone- a individualidade e a singularidade de cada facto económi-
tária, como girando em torno da moeda gira toda a Eco- co, enquanto o aspecto quantitativo mostra apenas a parte
nomia moderna, mas, também, porque é neste sector onde de sua generalidade, a qual não esgota, isoladamente, co-
os erros maiores têm sido cometidos por grandes economis- mo aquela também isoladamente, uma possibilidade maior
tas, com graves prejuízos para a própria humanidade. de conhecimento, que só pode ser atingida com a concreção
dos dois aspectos. Por outro lado, os campos, as esferas de
162 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 163

acção de muitos outros factos, tais como os biológicos, psico- Aqui, como um quilo de feijão não é um todo indivisível,
lógicos, sociológicos, históricos, etc, interferem também no pode ser tomada como parte por exemplo % quilo, ou 500 gr.
campo da Economia, impedindo que se construa com esta Mas se a unidade de mercadoria é um todo indivisível, co-
uma ciência abstracta. mo um chapéu, o transporte de uma carga, a unidade é
definida pela mercadoria ou pela própria prestação. As-
sim não prestaria um serviço de transporte quem o fizesse
até meio do caminho, porque não teria realizado o serviço
porque êle é indivisível em sua unidade, nem poderia ser
Para alguém obter os bens que necessita para satisfa- avaliado em suas partes.
ção de suas necessidades, é mister sacrificar, ceder algum
ou alguns que possui. É o preço uma relação de troca qualquer, entre as inu-
meráveis relações de trocas iguais que podemos conceber
Em seu aspecto invariante, essa porção de bens que al- entre as mesmas unidades. O preço refere-se a uma quan-
guém cede em troca do que precisa (acto económico, por- tidade invariável, tradicionalmente fixada, de mercadoria
tanto oneroso) é o preço.
ou de serviço.
E esse preço, neste caso, sendo bens, pode ser formula­ Assim o preço do pão refere-se sempre ao quilo. O
do por qualquer espécie de utilidade. preço do pão é, pois, uma relação de troca entre um número
Mas essa operação não se processa mecanicamente, nu- de unidades monetárias, que varia mais ou menos e a unida-
ma simples troca. Nela se processam também factos psi- de, sempre tomada por base, que constitui um quilo de pão.
cológicos, sociológicos, etc. Nela intervêm inúmeros facto- São tais factos que nos permitem comparar os preços das
res co-variantes, que a tornam diferente, que lhe empres- mercadorias tomadas de várias épocas diferentes.
tam novos matizes, novas qualidades, que a diferenciam uma São tais factos que permitem estabeleçamos registros
das outras. estatísticos sobre as variações proporcionais entre os pre-
ços. Estabelecem-se índices, que determinam suas varia-
Um estudo no preço, que se detivesse apenas dentro da
esfera do quantitativo, não hauriria muitos aspectos que são ções em porcentagem, a partir de um ano de base.
importantíssimos, sobretudo nos dias que correm, e que ser- Digamos, por exemplo, que, no ano tal, o preço foi 30
vem para uma melhor compreensão dos factos económicos e no ano seguinte 40, no outro 50. Tomando o primeiro ano
actuais. por base, dá-se um valor de
Em nossa linguagem quotidiana, diz-se que o preço de 100 — no 2.° ano 133% — no terceiro 166%
uma mercadoria ou de um serviço é a quantidade de moeaa que representam os aumentos verificados. Nos casos
que é preciso dar para obtê-la. Poderíamos considerar não
só uma quantidade de moeda, ou uma mercadoria dada em de diminuição, então a percentagem desce à do ano base.
pagamento, mas um serviço, avaliável em moeda. Ora, já * * *
vimos que a moeda serve para medir, para avaliar econo-
micamente os bens.
Tem o preço um importante papel regulador, não só
A moeda permite uma divisibilidade, porque ela é to- da producção como do consumo.
mada quantitativamente.
Quem realiza (digamos, uma empresa) certos artigos,
Há uma relação matemática entre o preço e a merca- despende, para confeccioná-los, de uma determinada quan-
doria. Se o preço de um quilo de feijão é X, podemos con- tia, e temos o custo. Como o homem em geral só obtém van-
siderar uma relação entre 1.000 gr. com X. tagens e bens necessários a si mesmo através da actividade
TRATADO DE ECONOMIA 165
164 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

em seus aspectos gerais, no que interessa logo directamente


económica, sucede que se êle trocasse essa mercadoria pro- ao estudo da Economia em suas linhas mestras.
duzida pelo que lhe custou, permaneceria no mesmo, sem
nenhuma vantagem ou proveito. Para obtê-la, êle exige, Antes, porém, de analisarmos as condições económicas
na troca, não só o montante do custo, mas um excesso, que e os factores diversos, que influem na formação dos preços,
é seu proveito ou lucro. É por meio do preço que o pro- factores determináveis uns, indetermináveis outros, pode-
ductor consegue essa vantagem. É por meio do preço que mos, de antemão, estabelecer um campo de acção, onde se
consegue do consumidor, que lhe dá mais, o que êle deseja processam os preços que apresentam dois aspectos antagó-
para si. nicos. De um lado está quem vende e de outro lado quem
compra.
* * * Se quem vende cede um bem em troca de outros, e quem
compra também cede, dentro das condições económicas em
Já vimos que há, no preço, uma relação de troca. Ve- que vivemos, quem quer em troca mais do que cede, e quem
jamos como se processa essa relação: compra deseja dar o menos possível em troca.
Processa-se: Quem vende tem o custo do que vende e o custo é o seu
limite máximo de concessão. Poderá ir até êle, sem perda,
1) o preço, resultante de trocas juridicamente livres; ser dar mais do que recebe. Logo, quem vende tem como
2) o preço fixado pela autoridade pública. ponto de referência o custo, que é o limite mínimo. Quem
compra (consumidor ou não) tem um limite também de-
No primeiro caso, pode dar-se o preço entre dois agen- terminado por seu potencial de compra (poder acquisitivo),
tes económicos isolados, que trocam entre si, ou uma plura- isto pela porção de bens que pode ou quer normalmente
lidade ilimitada de vendedores e uma pluralidade ilimitada abrir mão.
de compradores (e temos aqui o que se chama uma concor-
rência bilateral perfeita), ou um vendedor e uma pluralida- Vejamos agora algumas hipóteses:
de ilimitada de compradores (eis-nos em face de um mono- a) Se o comprador ou compradores estão na pressão
pólio de venda) ou uma pluralidade ilimitada de vendedo- de adquirir.
res e um comprador único (e estamos em face de um mo- b) Se o comprador ou compradores não estão nessa
nopólio de compra ou monopsônio, como chamam alguns
economistas modernos). pressão.
c) Se o vendedor ou vendedores estão na pressão de
As combinações podem ainda variar para um número vender.
ilimitado, porque elas se diferenciam, segundo a variedade
d) Se não estão nessa pressão.
imensa dos bens que se trocam.
Combinemos essas quatro hipóteses com variações tais
Estamos aqui no que se pode chamar o mecanismo dos como: nos casos a e b, há em relação a eles um ou mais
preços, porque precisamente é nessas relações entre com- vendedores. E estes variam de grau de pressão.
pradores e vendedores que os preços se formam, variam, au-
mentam ou descem, segundo as diversas e múltiplas varia- Vê-se logo que se podem construir inúmeros casos.
ções dessas relações em função de muitos factores de ordem Acrescente ainda outros factores como políticos, sociais, eco-
social. nómicos, históricos, e verá que o mecanismo do preço, isto
é, o mecanismo que forma os preços, é o mais complexo pos-
É fácil logo perceber que o mecanismo dos preços é sível.
complexo e merece, como tem merecido, estudos especializa- É fácil também depreender-se que ficará sempre à mer-
dos. É um campo da Economia, que está sendo estudado cê do outro o mais necessitado, aquele para quem a opera-
com o máximo carinho e merece até especializações. Com- ção de troca é inadiável. Os graus dessa pressão variam
preende-se desde logo que não poderemos tratar dele senão
166 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

segundo os inúmeros casos, que se podem formar nessa re-


lação entre quem vende e quem compra. Junte-se a isso a
qualidade do bem: a sua conservabilidade. Um bem de
deterioração fácil ou rápida, já é por si um factor de ina-
diabilidade de sua colocação. Actua como pressão e au-
menta o grau de pressão. É, portanto, um factor de pres-
são, que deve ser considerado.
ASPECTOS DA CONCORRÊNCIA
Tomemos agora em consideração um outro aspecto im-
portante para o estudo do nosso ponto. Vendedores e com-
pradores de uma mercadoria ou de um serviço bem defini-
dos, entrando em contato, formulam publicamente sua ofer- Pode dar-se o nome de preço de concorrência à unidade
ta e sua procura. Determinam, assim, um lugar onde as de preço que surge no mercado, ao concorrerem os diversos
transações são ligadas umas às outras. Consideram a exis- preços desejados. O mecanismo é demasiadamente comple-
tência de um mercado. Todos sabemos o que é um mer- xo, embora não o pareça para muitos. Mas, como teremos
cado, onde vendedores e compradores se encontram, com- que permanecer forçosamente dentro das generalidades, po-
param as mercadorias, verificam preços, preferem estas dem dar-se diversas condições nesse mercado.
àquelas. Vejamos: a) o número dos que desejam vender e as
Que se dá nesse mercado? Dá-se uma concorrência. ofertas que fazem podem ser superiores à procura dos que
Isto é, a eles con-correm compradores e vendedores. Com- compram; b) a procura dos que compram pode ser superior
pradores e vendedores podem correr de um para outro. Tal à oferta dos que vendem; c) pode dar-se um equilíbrio mais
campo de acção e tal qualidade que oferece o mercado cha- ou menos estável entre ambas.
ma-se, em Economia, fluidez do mercado e diz-se que um
mercado tem mais ou menos fluidez quanto mais ou menos Temos, então, duas novas figuras, compendiadas nos
permitir essa corrida. termos oferta e procura, cuja relação é variável. Ora Ofer-
ta Procura, ora Procura Oferta; ora Oferta = Procura.
Podem os preços serem diversos e vários e a complexi-
dade dos graus e factores logo nos mostraria que se tal se Em outros termos: ora a oferta é maior que a procura,
desse não seria nada de admirar. No entanto, a concor- ora a procura é maior que a oferta, ora estão num equilí-
rência, a comparação de uns preços com outros, tende a for- brio mais ou menos estável.
çar uma unificação de preços, tende a uma unidade de pre- Todo vendedor, como todo comprador, tem um preço
ços. Pode dizer-se que o mercado tende a uma unidade de limitado desejado, como já vimos.
preços. (Note-se que tal se dá, primacialmente, no mer-
cado ocidental. Já na índia tal não se dá nos mercados po- Tais factos são facilmente observáveis, como se verifi-
pulares, onde os preços variam, e não se busca homogenei- cou também que, em princípio, a oferta é tanto maior e a
dade neles. É que aí interferem factores de ordem pathi- procura tanto menor, quanto mais elevado é o preço, e reci-
ca (afectiva), de influência quase religiosa, porque a mer- procamente. Dizemos em princípio, porque há variações.
cadoria não é apenas o que ela é em si, mas traz também va- E já chegaremos até lá. Não podemos deixar de estudar an-
lores de ordem diferente da ordem económica, tais como tes o que se chama de lei da oferta e da procura, tão cara a
religiosos, místicos, etc, que ultrapassam o campo de nosso tantos economistas, que a consideram uma invariante nos
trabalho. factos económicos.
Se admitirmos que numa determinado estado do mer-
cado, existe um preço único e necessário, toda variação no
168 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 169

mesmo se manifesta por uma variação correspondente do O custo de uma mercadoria, já o vimos, varia segundo
preço. Se a oferta diminui, sem que varie a -procura dos a quantidade produzida.
compradores na mesma proporção, mostra-nos a experiên- Podemos nos encontrar em face de duas situações: a)
cia que o preço do mercado se orienta para a alta. Se a se o rendimento da producção é proporcionadamente menor
procura dos compradores aumenta, sem que a oferta proce- que o normal, temos, então, um crescimento do custo,
da de igual modo, haverá também alta. Então se conclui
que toda modificação na relação entre a oferta e a procura e, no caso inverso, uma diminuição do custo, ou nos casos
provoca uma mudança no preço, no sentido da alta ou da normais um custo constante.
baixa, segundo é a quantidade procurada superior à quan- Se o preço do mercado depender do custo, pode êle ele-
tidade oferecida ou a quantidade oferecida é superior à quan- var-se ou abaixar-se em função das quantidades produzidas
tidade procurada. e oferecidas.
Essa é, em suas linhas gerais, o que se denomina a lei Há, aqui, portanto, um aspecto novo, que pode contra-
da oferta e da procura (1). riar a lei da oferta e da procura. Admitamos que a pro-
cura de um producto aumenta. Ante essa procura, o produc-
Verifica-se ainda que a alta dos preços estimula a oferta tor desenvolve tecnicamente sua producção e pode baixar o
e modera a procura, e reciprocamente. Pode-se notar nessa custo das unidades, podendo oferecê-las ao mercado em maior
interdependência da quantidade e do preço, o princípio que, número e a menor preço. Tais factos têm sucedido com os
através das oscilações sucessivas, assegura o equilíbrio do
mercado, e que as modificações surgidas nos dados iniciais automóveis. Mas, aqui, embora não o julguem certos eco.
do mercado, já considerado estático, tendem a realizar novo nomistas, há combinações de vários factores, entre os quais
equilíbrio, e assim sucessivamente. permanece em pé a lei da oferta e da procura.
O preço elevado do automóvel faz desinteressarem-se
Tal sintetização é, porém, generalizante, pois inúmeros muitos compradores que o procurariam em condições dife-
factores intervêm para modificar o grau de intensidade de rentes e favoráveis. A procura de uma parte permite ao
tais modificações. E a complexidade desses factos é de tal
monta, que se torna impossível, aqui, uma análise de tod productor melhorar a producção, aumentando-a e diminuin-
os casos, nem dos mais numerosos, mas apenas de uma ex- do o custo. Neste caso, êle não o faz apenas para atender
planação teórica (geral, portanto), que permita dar uma aos que procuravam, mas aos procuradores potenciais que
visão panorâmica da influência variável dos covariantes, surgirão com a redução do preço. Dessa forma, diminuindo
que intervêm no mecanismo dos preços, como já estamos fa- o preço da oferta pode aumentar a procura. A procura per-
zendo e pretendemos continuar. mitiu aumentar a producção, mas a baixa do preço permite
aumentar a compra (procura). Neste caso, a lei da oferta
O que nos mostram também os factos é que uma elasti­ e da procura não foi negada, mas apenas estimulou uma
cidade da oferta e da procura, é também uma interactuação. transformação qualitativa e quantitativa do mercado.
Pois se a relação entre oferta e a procura funcionam sobre o
preço, este, depois de formado, actua, funcionando sobre a Não é fácil definir-se o custo com precisão, pela sim-
própria oferta e a procura. Há, assim, uma reciprocidade de ples razão de intervirem nele factores dos mais diversos.
actuação. Quem executa um serviço, digamos um indivíduo que
trabalha, isoladamente, sem capital, mede o seu custo pelo
A elasticidade da oferta e da procura tem seus graus. esforço, pelo trabalho, mas põe este em relação com as suas
Pode ser maior ou menor, isto é, mais intensa ou menos in-
tensa, como mais extensa ou menos extensa. necessidades, que devem ser atendidas. Quem, no entanto,
emprega instrumentos e materiais de trabalho de outrem
(1) O desdobramento dessa lei e sua análise, faremos em outra pode melhor medir seu preço de custo, pelo que êle deve dar
obra desta coleção, «Análise de Temas Sociais». em troca, que, numa economia de moeda, pode ser medido
170 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

pela totalização das somas despendidas. Mas, quando é o


productor proprietário dos meios de producção, deve calcular
o desgaste de suas máquinas, a amortização necessária, que
é muitas vezes calculada arbitrariamente, por encontrar di-
ficuldade numa precisão.
Por isso se diz que o custo é uma realidade flua, com
graus, naturalmente, de fluidez, sem que isso implique qual- OS MONOPÓLIOS
quer reducção de sua realidade, mas apenas à sua precisa de-
limitação. Assim o custo dos productos agrícolas é menos
preciso que o da producção industrial e do comércio. Por
isso se dão variações maiores quando se trata do mercado Quando o Estado arroga-se a si ou confere a um conces-
de géneros agrícolas do que do de géneros manufacturados. sionário o direito de fornecer certas mercadorias como ven-
dedor único, temos, então, um monopólio. Dá-se, também,
Geralmente os géneros agrícolas não têm um preço de um monopólio quando um productor se beneficia com um
oferta preciso. Esperam muitas vezes a procura, a aber­ invento ou em certas condições que o tornam vendedor úni-
tura do mercado. Depende o seu preço da quantidade, da co. Há, ainda, o caso de eliminação de todos seus concor-
abundância e das fluctuações naturais do mercado. Já o rentes; neste caso o vendedor torna-se único ante o mer-
mesmo não se dá no mercado dos bens manufacturados, cujo cado; tem então um monopólio ocasional. Buscam, natu-
custo preciso, permite que quem vende dê seu preço ao ofer- ralmente, os monopólios o maior benefício. E por não so-
tar. Aqui, se a producção aumenta, temos os casos citados frerem concorrência, podem determinar os preços, natural-
anteriormente, que podemos exemplificar com os automó- mente dentro de certos limites.
veis, que o aumento da producção permitindo uma diminui-
ção no custo permite uma oferta mais baixa. Podem aqui dar-se muitos aspectos que merecem ser es-
Conclusão: enquanto são mais variáveis os preços dos tudados : a) com o aumento de preço de um producto, dimi-
géneros agrícolas, são menos variáveis os preços dos géneros nui a venda em unidades, mas o benefício pode ser maior
manufacturados. dada a diferença entre os preços; b) diminuído o preço, po-
de aumentar a venda de unidades até tal ponto que o benefí-
cio seja maior.
Há casos excepcionais, como aumento da venda em
unidades de certos productos, quando aumentados de preço,
que passam a ser por isso mais "valiosos". Nesses casos,
os productos são aqueles que se destinam especialmente aos
novos ricos e não aos trabalhadores. Aqueles acham que
gastar é uma prova de superioridade, e não lutam contra os
preços, porque aqui penetra um factor de outra ordem, um
factor subjectivo.
Um novo rico não gosta de regatear, nem quer fugir
à compra por ser o producto de preço elevado. Quer mos-
trar sua solvabilidade; por isso compra. Há, por exemplo,
entre nós um grande comércio organizado nos grandes cen-
tros urbanos, que vive da ridícula vaidade dos novos ricos,
que compram preços e não mercadorias, que compram eti-
172 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

quêtas e não productos. Em grande parte, como veremos,


a inflação de preços que se observa no Brasil se deve a esses
novos ricos, e a certos círculos de operários especializados
que, com a última guerra, ganharam elevados salários, em
tudo procedendo como novos-ricos, favorecendo, assam, o
encarecimento da vida, como factores subjectivos daquele.
Quanto aos dois outros casos acima citados, procura o
monopólio uma combinação ótima, que lhe renda o máximo FIXAÇÃO DOS PREÇOS PELA AUTORIDADE
de benefício unitário multiplicado pela quantidade. PÚBLICA
Procedem também os monopólios preços diferenciais
segundo as categorias de compradores. Vejamos o exemplo
de uma estrada de ferro, que tenha monopólio numa linha As relações de troca, determinadas, sobretudo, por con-
— ela cobrará mais pelas mercadorias de mais valor e me- tractos livres, como já estudamos até aqui, podem ser tam-
nos pela de menor valor. As distâncias podem servir para bém estabelecidas pela autoridade pública.
a formação de preços diferenciais, evitando, por exemplo, o
encarecimento dos productos que sejam transportados de O Estado também intervém nos preços e fixa-os, no in-
maior distância. tuito de evitar abusos. Numa economia dirigida, o Estado
Há, por exemplo, estradas de ferro que estabelecem intervém não só quanto aos preços, mas também quanto à
tarifas únicas para certos produtos, em geral de primeira distribuição dos productos. Essas intervenções em econo-
necessidade, independentemente do percurso. Assim um sa- mia liberal se dão com o intuito de estabilizar os preços e
co de batatas pagaria o mesmo frete, vindo de Mato Grosso evitar o lucro exagerado.
para São Paulo, que de uma povoação próxima à capital
paulista. Dessa forma se favoreceria a busca de novas ter- Vários são os processos empregados pelo Estado para
ras e se estimularia a producção em lugares distantes. Po- atingir esse objectivo: a) taxação simples; b) criação de
der-se-ia também estabelecer um preço diferente, conside- um monopólio do Estado; c) organização do mercado.
rando o custo de producção. Esses cálculos são, no entan-
to, difíceis, devido à complexidade que há. Um monopólio Procede ainda o Estado medidas contra a baixa e con-
também pode ser de compra. Podemos dar, como exemplo, tra a alta, segundo os casos.
uma organização que compra para todos os empresários que Temos o exemplo entre nós do café. Houve uma polí-
se dedicam a um género. Sendo o único a comprar, evita
a concorrência. Em regra geral, os monopólios de venda tica de valorização em diversos momentos, procurando ele-
são completados por monopólios de compra. var o seu preço, evitando a baixa. Como o café é um pro-
ducto mais de exportação que de consumo interno, essa alta
depende do mercado internacional. Pode a alta ser conse-
guida pela menor oferta em face da maior procura, mas
medidas desse género, realizadas já em outros países, ter-
minam por ser inoperantes.
Pode-se ainda evitar a baixa pelo desenvolvimento da
procura. Neste caso, o Estado pode adquirir parte da pro-
ducção com o intuito de aumentar a procura no interior ou
facilitar a exportação, concedendo vantagens de toda es-
pécie aos productores ou aos consumidores.
174 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 175

A alta pode ser evitada pelo Estado, lançando no mer- do a troca. A presença da moeda para a troca facilitou-a
cado estoques em seu poder ou abrindo as portas à importa- e deve, portanto, continuar um dos seus papéis,, que é de
ção. Temos o exemplo durante a primeira grande guerra facilitar a troca.
na França, em que o Estado instalou barracas para vender
géneros alimentícios a preços baixos, a fim de evitar a alta Com a moeda, o mercado pode ser organizado, pois nele
que se processava. iremos procurar o que desejamos, tendo apenas a moeda pa-
ra trocar o que quer que seja.
Há interdependência entre os mercados. E os exem-
plos são simples. Certos productos, quando na alta, podem A moeda permite assim que os preços se equilibrem,
aumentar o preço de outros. O aumento do milho pode le- bem como o próprio equilíbrio do mercado. Escreve Noga-
var ao aumento da carne. Há um laço estreito ligando o ro: " . . . num mercado de concorrência, quando a procura
mercado de gado com o de cereais. aumenta, a oferta permanecendo constante, o preço do mer-
cado tem a tendência a subir, e, . . . quando ela diminui, há
Pelas estatísticas, notam-se que há grandes movimen- tendência a baixar. Ora, numa economia em que a moeda
tos de preços. Podemos verificar facilmente ao examinar- está em uso, um aumento da procura se traduz por um au-
mos o século passado. mento da moeda, que se apresenta no mercado, e reciproca-
mente. Podemos então dizer que, . . . quando a quantidade
De 1820 até 1850, tivemos um período de baixa na Eu- de moeda aumenta, os preços sobem (em outras palavras
ropa; de 1851 a 1873, um período de alta, para sobrevir, de
1874 a 1896, um novo período de baixa. De 1897 em diante, o valor da moeda baixa) e que a inversa se produz em caso
tivemos outro período de alta, que prosseguiu até 1914 e, daí, contrário."
até 1920, de 1922 até 1933 houve um período de baixa, so- Assim uma variação na quantidade da matéria provo-
brevindo, depois, outro período de alta. ca uma variação, da mesma forma, do nível dos preços; is-
to é, em sentido contrário, uma variação do valor da própria
moeda, que pode trocar-se mais ou menos. Esse é o enun-
A ACÇÃO DA MOEDA NA FORMAÇÃO DOS PREÇOS ciado da teoria quantitativa.
Muitos autores afirmam que as variações de preço são
proporcionadas à quantidade de moeda.
No artigo anterior, tivemos ocasião de falar sobre a
moeda. Vimos que o seu papel é facilitar a troca, e signifi- As teorias formuladas baseiam-se em factos, atendem
car todos os factos económicos, e deixa ela de ter seu verda- aos factos, mas, como neste terreno penetram inúmeros fac-
deiro valor quando a troca não é por ela facilitada. Se a tores, todos os estudos feitos pecam por unilateralidade, sem
moeda facilitar a troca, também facilita a formação do mer- que isso desmereça totalmente os grandes e notáveis esfor-
cado e a formação do preço. A intervenção da moeda per- ços despendidos.
mite que o mercado se forme, porque ela serve de denomi- Este tema penetra no de finanças, e exigiria estudo es-
nador comum. Do contrário, as trocas seriam dificultadas, pecializado, que fugiria aos limites generalistas que damos
pois quem tivesse trigo e desejasse batatas, teria que pro- a esta obra. Para finalizar, desejamos apenas dizer que
curar quem tivesse batatas e que desejasse trigo ou pro- todos os governos, que controlam a moeda, procuram, por
curar um terceiro que desejasse trigo, mas que tivesse cen- todos os meios, que ela corresponda perfeitamente às neces-
teio e que esse centeio fosse desejado por quem tivesse ba- sidades da troca, evitando, dessa forma, os exageros da in-
tatas para trocar pelo centeio, e o centeio desejado por quem flação ou da deflação, isto é, quando há presença excessiva
desejasse batatas e aceitasse trocá-lo por trigo. Se entre os de moeda ou falta excessiva da mesma. No primeiro caso,
três tais combinações não fossem possíveis, teria de inter- temos a alta de preços como decorrente da desvalorização
vir um quarto ou quinto e assim sucessivamente, complican- da moeda; na segunda, temos a aparente baixa de preços,
176 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

mas reducção da solvabilidade, que traz, como consequência,


um mal tão grande como o primeiro ou pior.
Entretanto, pode dizer-se que o destino ou a direção
tomada pela moeda através do crédito pode trazer benefí-
cios ou malefícios. Um crédito exagerado a favor do con-
sumidor pode levar à inflação e à alta de preços. Se o con-
sumidor tiver mais moeda do que a producção, os preços su- OS SISTEMAS MONETÁRIOS
birão, porque a procura será maior que a oferta. Se o pro-
ductor receber, pelo crédito, mais moeda e a empregar na
producção, esta aumentará em quantidade e melhorará em A moeda pode ser considerada como moeda-mercadoria,
qualidade, retornando parte ao consumidor (salários, e t c ) ,
aumentando proporcionalmente, o consumo. Qual, então, a como fiduciária e como escriturai.
solução? No volume final, daremos o que impediria que Os sistemas de moeda metálica caracterizam-se pelo
essas medidas malograssem, ponto esse esquecido, virtuali- emprego simultâneo de diversos metais. A moeda de ban-
zado, mas que é decisivo para uma boa economia, que co caracteriza-se, então, pela sua convertibilidade em um
é aquela em que há equilíbrio de preços simultaneamente ao menos desses metais.
com a abundância.
A maior parte da moeda, hoje, é feita de papel, e ape-
nas a moeda divisionária, para trocos, é feita de metal ou
de ligas metálicas, de carácter acessório.
O uso do metal como moeda vem de um longo passado.
Usou-se o cobre, o chumbo, a prata, que circulavam em for-
ma de lingotes, avaliados segundo o seu peso.
Finalmente, as moedas foram cunhadas, isto é, mar-
cadas com um sinal de valor, não necessitando, natural-
mente, ser mais pesadas para a sua avaliação, ou pelo menos
permitindo que a sua aceitação fosse mais fácil, cumprindo,
assim, sua finalidade, que é facilitar trocas.
Hoje não se usa como moeda corrente o ouro nem mes-
mo a prata, substituídos pelo papel moeda, que facilita mais
o transporte. Desnecessário se torna dizer dos motivos da
escolha dos metais como moeda, pois já o explicamos ante-
riormente.

SISTEMAS MONETÁRIOS

Os antigos sistemas monetários são essencialmente sis-


temas de moeda metálica. O Estado comprava metais,
amoedava-os, e tarifava as espécies. Posteriormente, como
178 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 179

já vimos, admitia-se a cunhagem livre. Recebia o Estado Mas sucede que a emissão geralmente é superior ao en-
os lingotes dos particulares e os restituía sob a forma de caixe de moeda e se todos os portadores reclamassem, si-
moeda cunhada. Devolvia-se peso por peso, cabendo ao Es- multaneamente, a conversão de seus bilhetes em espécie,
tado uma pequena parcela para cobrir as despezas da cunha- não seria possível atendê-los. Há, assim, uma diferença en-
gem, dando-lhe o título ou teor da moeda, expressa, geral- tre a emissão e o encaixe.
mente, em milésimos, pois se toma como referência o quilo-
grama. Assim, quando se diz ouro de 900 milésimos ou Neste caso, diz-se que há bilhetes em descoberto.
900/1000, quer significar que em 1.000 partes da liga mone- 3) Os bilhetes inconvertíveis em moeda metálica. Es-
tária há 900 partes de ouro. tes merecem a denominação de papel-moeda propriamente.
O metal escolhido como a base de um sistema monetá- É já uma forma degradada das anteriores, usada e abusada
rio se chama metal-padrão. pelo Estado, que lhes dá curso-f orçado. Dá-se o nome de
inflação (de inflar, inchar) quando a emissão desse papel
Onde é apenas um metal que serve de padrão, temos o inconvertível está além das necessidades normais da troca
monometalismo. Em regra geral é o ouro. Quando há dois (e realmente só aí).
metais (ouro e prata, por exemplo), temos o bimetalismo
ou sistema de duplo padrão. O monometalismo temos na Essa moeda inconvertível é moeda apenas dentro do
Inglaterra, e o bimetalismo, tivemos na França, na Suíça, território do Estado, onde tem curso forçado, sem o mesmo
no México, etc. Na índia tivemos o monometalismo, mas valor fora desse território, razão pela qual sofre o risco de
apenas da prata. flutuar o seu valor sem limites em relação às moedas es-
trangeiras. Na realidade, essa flutuação depende da capa-
cidade de troca dessa moeda. Ela vale pelo qual ela pode
dar em troca, quando oferecida para uma troca. Por isso,
PAPEL MOEDA esses regimes de papel moeda se caracterizam pela instabi­
lidade.
Após a guerra de 1914-18, verificou-se que a maioria
Pode-se distinguir três espécies de papel moeda: dos países não tinham reservas suficientes para garantir
1) Certificados, como os gold and silver certificates e estabilizar a moeda circulante. Procurou-se, então, aber­
dos Estados Unidos. São declarações impressas em papel, turas de crédito, isto é, obter de outras moedas, aceitar uma
que não são moeda papel, senão na forma exterior, pois re- paridade e, portanto, uma troca, a fim de garantir a moeda
presentam, estritamente, o ouro ou a prata que se encontra sem lastra suficiente.
nas barras depositadas no Tesouro. Os portadores do cer- Tal processo, no entanto, não pode levar à disposição
tificado têm a faculdade de fazer devolver contra a entrega de créditos ilimitados, por isso tal funcionamento supõe um
do mesmo a quantidade de moeda neles declarada, sa- equilíbrio aproximativo das trocas internacionais.
bendo o portador que tem direito a ser reembolsado em seus
bilhetes. * * *

2) Bilhetes garantidos, como os bilhetes de banco e os


de Estado, quando trazem uma garantia especial. No iní- O funcionamento de um sistema monetário é caracteri-
cio, o bilhete de banco era apenas uma promessa de pagar zado, sobretudo, pelas condições nas quais se estabelecem
e não uma moeda. Permanecia convertível, isto é, o porta- as relações com outros sistemas monetários.
dor estava autorizado a pedir o reembolso em metal nos Hoje as regulações internacionais se operam, tanto
guichês dos bancos. Dessa forma, o bilhete aproximava-se quanto possível, pela compensação, graças à negociação de
ao certificado americano. letras de câmbio (trocas comerciais), assegurando, assim,
180 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

a estabilidade da moeda, como procedeu a Alemanha hitle-


rista, mantendo o valor do marco por uma troca organiza-
da, pelo equilíbrio cuidadoso da importação e da exportação.
Para isso alcançar, exercem os Estados modernos um
grande controle nessas trocas, tendendo sempre ao maior
equilíbrio ou a um saldo favorável sempre que possível.
Tais temas, porém, ultrapassam o campo propriamente PREVISÕES ECONÓMICAS
da Economia Política, cabendo seu estudo às "Finanças" e
à "Administração Pública", por serem matérias que dizem
mais respeito ao objecto dessas disciplinas. A previsão económica não é nem deve pretender ser
uma profecia. Não se quer com essa afirmação negar-se
qualquer valor à profecia. Mas o exame desta pertence
ao âmbito filosófico, e escapa ao económico. Consequente-
mente, não cabe discuti-la no âmbito desta ciência.
O que jamais deve esquecer o economista é que os fac-
tos e os actos económicos se dão contemporaneamente e en-
trosados a factos éticos, sociológicos, psicológicos, históri-
cos, jurídicos, técnicos dos mais variados e que toda e qual-
quer previsão que considere apenas o campo económico, sem
considerar o campo extra-econômico, pode estar fadada ao
erro.
Os dados económicos considerados são o ponto de par-
tida para que se estabeleça um diagnóstico e um prognós-
tico, de modo a exigir, então, a aplicação de uma decisão
de política económica que lhe corresponda. Mas, estamos
apenas palmilhando o terreno económico se procedemos as-
sim. É mister considerar os elementos que compõem a con-
creção em que o mesmo se dá. Em primeiro lugar, é mis-
ter considerar a teoria económica, segundo a qual estamos
avaliando tais factos e, posteriormente, o âmbito circuns-
tancial extra-econômico em que o mesmo se dá e se dará;
ou seja, é mister, ademais, considerar as possibilidades
desse âmbito, no qual se incluem os aspectos formalmente
considerados segundo outras disciplinas, como a sociológi-
ca, a jurídica, a técnica, a ética, a psicológica, a caractero-
lógica, a histórica, etc.
Deve-se, pois, buscar a coerência global da concreção,
e esta deve ser visualizada dialècticamente como estática,
dinâmica e cinemática.
182 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 183

Todos sabemos que os economistas têm sido maus pro- económicas, já que o economista dispõe de dados imperfei-
fetas e se algumas vezes acertaram, o número dos acertos tos e sobretudo extemporâneos demais para poder empreen-
tem sido menor que o das frustrações. der o seu trabalho. Numa organização como a nossa, a
previsão económica é muito difícil, e aqui o economista tem
Sem dúvida, sabem todos, que no terreno social as pre- de ser mesmo profeta, quer queira quer não.
visões são mais difíceis pela interpenetração de inúmeros
factores imprevisíveis ou não previstos, que modificam os A previsão de termo médio é mais difícil, muito mais
acontecimentos. Contudo, não é isso um obstáculo que leve que a de termo curto e a de termo longo. Pelo menos é
os economistas ao abandono das previsões. Ao contrário, o que se tem verificado na experiência. As previsões para
tomaram mais como um desafio e muitos e conspícuos eco- dentro de seis meses a um ano têm encontrado mais dificul-
nomistas se têm dedicado ao estudo de um método de pre- dades que as indicadas para mais de um a dois anos.
visões capaz de dar os meios de estabelecer com determinado Usa-se muito na linguagem económica o termo baróme­
rigor os eventos económicos futuros. tro, empregado, analogicamente, aos factos económicos. De-
As previsões são divididas em previsões de termo curto, terminados factos são considerados por muitos como baró-
termo médio e de termo longo. Embora parecesse à pri- metros, que permitem medir ou calcular os resultados pró-
meira vista o contrário, tem sido mais difícil estabelecer ximos ou remotos. Os estudos sobre certas curvas econó-
previsões de prazo médio ou de termo médio, que as previ- micas permitem alcançar algumas previsões. Contudo, os
sões de termo curto e tempo longo. inúmeros malogros registrados provocaram a dúvida sobre
esse método.
A previsão a termo curto é a previsão do presente.
Embora paradoxal a expressão, ela revela uma realidade, Na verdade, a econometria, que é a parte da Economia
porque o economista, constantemente, está tentando prever que se dedica à medida e cálculo dos acontecimentos econó-
o presente imediato. Assim o exame dos dados estatísticos micos, ainda não ofereceu elementos suficientemente capa-
em um determinado momento, e os dados posteriores têm zes de garantir o rigor das previsões, sempre sujeitas a se-
oferecido elementos capazes de estabelecer certas conse- rem admitidas com uma margem bem regular de erros pro-
quências, nem sempre muito rigorosas, mas que já apresen- váveis.
tam uma promessa de futuros resultados melhores. Na verdade, neste sector, pode-se dizer que os métodos
até hoje apresentados não satisfizeram, e ainda estamos num
As estatísticas financeiras têm dado étimos elementos campo em que muito terão que realizar os economistas para
para tais previsões. É verdade que o atraso na publicação alcançarem uma base mais segura para diagnósticos e prog-
das mesmas tem impedido que muitas previsões tenham sido nósticos económicos.
oferecidas, neles fundadas, mas, sem dúvida, têm permitido
extrair determinadas regras provisórias, que são como hi- Já o mesmo não se dá no campo da História e no da So-
póteses de trabalho, de modo que o financista, fundado ne- ciologia. Como a Economia se entrosa com aquelas disci-
las, pode, posteriormente, experimentar métodos de previ- plinas, somos de opinião que muito se pode conseguir a fa-
são. Através da história económica, vemos fundarem-se os vor desta se forem considerados os dados que oferecem
economistas em determinados elementos económicos, como aquelas disciplinas, que se interessam pelo estudo de elemen-
fontes para previsões determinadas. Assim da producção tos que são propriamente extra-econômicos, mas exercem
e da utilização de vagões, muitos podiam concluir sobre pre- uma acção sobre os mesmos. Um estudo sobre tais possi-
visões económicas; outros, fundaram-se no gasto de energia bilidades e até a proposta de um método dialéctico concreto,
eléctrica. Métodos, empregando aspectos mais particulares, que considere todos esses aspectos, não nos cabe fazer aqui,
podem estabelecer previsões em determinados sectores. onde tratamos apenas da matéria económica, mas o fazemos
em nosso "Filosofia e História da Cultura", para onde reme-
Na verdade, a falta de um sistema estatístico perfeito temos o leitor.
tem sido a causa fundamental da deficiência das previsões
INFLACÇÃO E DEFLACÇÃO

Afirmam alguns autores que a origem do termo inflac­


ção é de criação nacional. Dizem que, no Rio Grande do
Sul, os tropeiros, quando iam entregar suas tropas aos com-
pradores, aproveitavam-se da longa caminhada do gado, não
lhes permitindo que satisfizesse a sede, senão quando bem
próximo ao local onde seria pesado. Desse modo, o gado se-
dento, bebia em demasia e se tornava mais pesado, obtendo,
desse modo, melhor preço. Para combater essa prática, cos-
tuma-se, no Rio Grande do Sul, deixar os animais nos po-
treiros por vinte e quatro horas, após a caminhada, sendo
pesados depois, quando já se libertaram do peso da água, o
que trouxe, como consequência, o abandono dessa prática. Se
non é vero, é bene trovatto... E também pode servir até
de orgulho, para certos nacionalistas.
Mas, seja como fôr, na Economia, entende-se por in-
flacção o desequilíbrio havido entre a procura solvável e a
oferta, manifestada por uma alta de preços, num determi-
nado período.
Há, assim, inflacções abertas ou declaradas, como as há
contidas ou inibidas. Há hiperinflacção, quando exagera-
da, e sobretudo, quando a alta dos preços antecede ao aumen-
to do meio circulante, os meios de pagamento e compra.
Contudo, em torno desta matéria não palmilhamos ter-
reno pacífico, pois o fluxo inflaccionário apresenta modali-
dades que não nos mostram uma decorrência tão nítida dos
chamados factores inflaccionários. Alguns economistas afir-
mam que a constante presença do aumento dos meios de pa-
gamento ao lado da inflacção nos preços, indica que seja
aquela a causa real da segunda, o que é discutível. Outros
afirmam que as verdadeiras causas da inflacção são real-
mente os d&ficits orçamentários, o aumento dos salários sem
186 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 187

o correspondente aumento de producção, a especulação eco- sobem à proporção que há maior procura do que oferta, e
nómica, o prefinanciamento de investimentos, etc. descem quando a proporção se inverte. Quando há inflac-
ção, dá-se a mesma coisa e, na deflacção, o contrário. Nes-
Para combatê-la, aplicam-se várias providências econó- te caso, poder-se-ia dizer que a inflacção se caracteriza por
micas e financeiras, que são chamadas de deflaccionárias, um aumento da procura em relação à oferta, e a deflacção
tais como o aumento da taxa de desconto, a compressão de por um aumento desta em relação à primeira. Portanto,
despezas públicas, majoração das taxas de imposto, deflac-
ção do crédito, para forçar a venda dos estoques, sempre poder-se-ia afirmar que o aumento de meios de pagamento
com o intuito de equilibrar a procura e a oferta. Contudo, em relação aos bens, considerados estáveis, é um factor in-
tais práticas não têm sido também proveitosas e as expe- flaccionário quando aumentar o grau da procura sem o con-
riências feitas têm demonstrado que esse não é o melhor comitante aumento da oferta, e a diminuição daqueles, será
caminho para assegurar o equilíbrio. deflaccionária se aumentar o grau da oferta sem aumento
da procura.
Se considerarmos a crise, que se estabelece entre a ofer-
ta e a procura, a inflacção ou a deflacção decorrem da falta Assim sendo, também poder-se-ia dar, como se dá, au-
de equilíbrio entre a producção e o consumo, considerando mento de preços pelo aumento da oferta, sem que haj-a in-
estes dois extremos segundo seus meios de acção: o primei- flacção de numerário; e diminuição, sem que haja deflacção.
ro, quando obstaculizado em seu desenvolvimento; e o se- Para que uma teoria possa reunir numa concreção só: pre-
gundo, quando possuidor de meios de compra, não encon- ços, oferta, procura, meios de pagamento, inflacção e de-
trando, então, a suficiente quantidade de mercadorias pro- flacção, será mister mostrar primeiramente o nexo rigoro-
curadas. so que os liga e o grau de influência que uns exercem sobre
Inegavelmente, há uma lei da oferta e uma lei da pro- outros.
cura, duas leis e não uma só, porque a oferta actua segundo Não é possível, porém, realizar tal cometimento sem
um invariante, e a procura segundo outro, cuja conjunção que se proceda o exame de cada uma dessas categorias eco-
cria a invariância, que tomou o nome geral de lei da oferta nómicas e se busquem os elementos reais que possuem e os
e da procura. vínculos que os ligam estreitamente aos outros.
Para haver equilíbrio entre ambos, é mister que os
meios de compra sejam iguais à mercadoria ofertada. Toda Ora, a procura era considerada na economia política
e qualquer variação nesses termos gera variações inflaccio- clássica, no início, como estável, mas desde logo os econo-
nárias ou deflaccionárias nos preços. mistas notaram suas relações directas com a utilidade, sua
dependência, o que foi feito, sobretudo, por Menger, Jevons
Examinemos primeiramente a procura, fenómeno eco- e Walras, por volta de 1870, estabelecendo-se, assim, seu
nómico importantíssimo e comum, cuja estructura é mais carácter funcional e, consequentemente, variável. Para a
simples que a da oferta, que a ela está correlacionada. No- maioria dos economistas de hoje, a procura é considerada
te-se bem: há uma correlação maior entre a oferta à pro- como uma função do preço. Seria longo tentar-se fazer
cura do que da procura à oferta. Se há tal distinção, há um apanhado geral das doutrinas sobre essa matéria, que
ainda outras, entre essas duas categorias económicas, cujo
exame muito nos auxiliarão a compreender o fenómeno — apresentam distinções várias.
inflacção-deflacção —, tão importante em nossos dias, so- Auber-Krier, em face das diversas opiniões, conclui por
bretudo entre nós, por preocupar de modo intenso a mente dar esta definição à procura: "A procura de um bem qual-
de nossos economistas. quer é a quantidade desse bem que pode ser escoada a cada
É lugar comum na Economia que os preços dependam preço possível, durante uma unidade de tempo determinada
da oferta e da procura. Por sua vez, diz-se que os preços sobre um dado mercado."
188 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 189

São, assim, elementos da estructura da procura: Ademais, se a disponibilidade de meios de pagamento é


1) o bem apetecido; fundamental na procura, não é por tê-los apenas que o agen-
te económico realiza a operação.
2) sua quantidade existente (extensidade na procura) ;
Na verdade, quem procura um bem, cuja utilidade é
3) sua quantidade desejada (intensidade da procura) ; apetecida, dá-lhe um preço virtual, e ante a oferta feita, jul-
gará conveniente ou não adquiri-lo. Portanto, no acto da
4) a relação da intensidade e da extensidade condicio- procura, sempre intervêm vários factores psicológicos e so-
nada pelo preço; máticos, desde o interesse, apetência, pela utilidade do bem,
5) unidade de tempo; até o grau de intensidade dessa apetência em face das dis-
ponibilidades dos meios de pagamento, o que exige uma es-
6) mercado determinado. colha.
Num mercado determinado, numa determinada unidade Assim, num mercado determinado, numa determinada
de tempo, um bem apetecido em determinadas quantidades unidade de tempo, um bem apetecido, em determinadas
é procurado proporcionadamente ao preço, e à quantidade quantidades, é procurado proporcionadamente ao preço, em
existente. relação à quantidade existente, aos meios de pagamento e
Ora, a apetência do bem é proporcionada à utilidade à intensidade da apetência.
que o mesmo oferece ao agente que o procura. Mas, esse
agente dispõe de determinados meios de pagamento que êle o agente
compara com o preço do bem; ou seja, da onerosidade que o bem apetecido
lhe custa. Êle adquirirá o bem segundo a proporção da ape- decisão da vontade (através de um juízo).
tência, da utilidade, do preço e da disponibilidade de paga- quantidade existente
mento. Vê-se logo que a procura encerra uma estructura Na procura há quantidade desejada
própria e funciona por leis próprias, imanentes à sua natu- unidade de tempo
reza. Há, assim, uma lei da procura. mercado determinado
intensidade da apetência
É o que passaremos a examinar. meios de pagamento
Contudo, ainda na economia moderna, é mantida a teo-
ria de que a procura é função do preço de um bem parti- A decisão se processa através do aguilhão da apetência
cular, possível ou eventual, e que, de acordo com a oferta (sua intensidade) pelos meios de pagamento em relação ao
(conjuntamente com esta), determina o preço do mercado. preço da oferta. Desse modo, pode-se tomar a procura
também como terminus a quo (ponto de partida) : o agente
Mas para o estudo da procura é mister o exame da busca o bem apetecido;
quantidade apetecida, procurada, num determinado tempo,
num dado mercado. É, portanto, desde já essencial a con- como via: no mercado, num determinado tempo, apura
sideração do tempo determinado e do mercado dado, porque o preço da oferta;
os preços variam no tempo.
(ponto de chegada) : realiza-se a operação pela conve-
Qual será essa unidade de tempo? É a mesma que cor- niência do preço ao agente ou não se realiza a operação.
responde à oferta, conjugada à procura. Mas há variações
na procura, segundo a utilidade relativa, sem que haja mo- É evidente que a procura só se realiza plenamente ao
dificações na oferta, como acontece em relação a certos bens atingir o ponto de chegada.
procurados em determinada época (como casas de veraneio, Em face desses elementos, podem os econometristas es-
refrigerantes, alguns medicamentos, etc.). tabelecer as diversas curvas da procura e da heterogeneida-
190 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 191

de da intensidade da apetência, segundo a proporcionalida- Isto se dá onde há mercados organizados. Em face da pro-
de dos factores que intervêm em antagonismo, assim como cura, há a avaliação correspondente do preço.
o interesse em face do preço da oferta. Desse modo, as va- A quantidade ofertada e o seu preço corresponde ao
riações da oferta poderão estimular mais a procura ou não. escoamento previsto, sem o qual o preço deverá ser modi-
É compreensível que o estudo desta exige o da oferta, por- ficado e a producção diminuída.
que são termos opostos, que têm o papel principal em rela-
ção um ao outro. A propaganda, por exemplo, é um processo da oferta
para estimular a procura, a fim de fazer escoar maior soma
Organizaram os econometristas diversas fórmulas para de bens, cujo escoamento ou manterá a producção ou a es-
matematizar a procura. É verdade que não conseguem elas timulará ao aumento. É fácil daí concluir sobre todas as
acompanhar com o rigor desejado o que na realidade se pro- combinações possíveis e todos os resultados que decorrem
cessa, mas já representam um esforço em dar à Economia dos graus de intensidade e da interactuação dos factores da
uma precisão que será saudável. Contudo, o que impede a oferta e dos factores da procura, quando ambas se encon-
precisão matemática desejada, deve-se desde logo dizer é a tram no mercado.
influência do psico-somático na procura, quando nos referi-
mos às pessoas humanas, no que se refere ao consumo pes- É daí que decorre a lei da oferta e da procura, impor-
soal. No entanto, ao tratar-se de empresas, a sua procura tante lei da Economia.
de bens (matérias primas, bens reproductivos, etc.) já obe-
dece a um rigor que é passível da matematização suficiente Devemos considerar que o termo lei na Economia, não
para dar à Economia a solidez desejada. tem o rigor que lhe dá a Filosofia, pois naquela significa
apenas a fórmula geral estabelecida a posteriori, após as
Assim como há uma lei da procura, há também uma lei observações realizadas pelos economistas. É verdade que
da oferta. muitos economistas desejam dar às leis dessa disciplina a
mesma força das leis da Física ou da Matemática. A escola
A oferta é muito mais complexa que a procura. histórica alemã investiu contra este rigor das leis económi-
Oferecem-se bens para adquirir outros, julgados mais cas, afirmando a sua relatividade. Todos sabemos que as
úteis ou para obter uma renda, ou um poder de compra. leis da Física são também relativas. Tal não se dá, porém,
com a Matemática, cujas leis são eternas, embora alguns
Como não dispõe o agente, que oferece, bens ilimitados, julguem que as conclusões das geometrias não euclidianas
necessita produzi-los para ofertá-los em troca de outros, e neguem este rigor. Mas isso é fruto de ignorância, porque
como tal terá que considerar custo de producção e lucro. E a validez possível das geometrias não euclidianas não impli-
à proporção que se ofereça maior lucro, aumentará a oferta, ca a negação da validez da euclidiana. Esta, quanto aos
como a procura tende a aumentar em relação à diminuição factos corpóreos tri-dimensionais, é absolutamente válida, e
dos preços. Se os preços sobem, estimulam eles a oferta e nem por isso nega a validez possível da geometria não eu-
esta estimula a producção. clidiana.
Portanto, a oferta consiste na disposição que faz o A economia política tem adquirido modernamente um
agente económico de determinados bens, num determinado grau de certeza muito maior do que o verificado anterior-
tempo, em um mercado dado, com o intuito de trocá-los por mente, mas nem por isso as leis que os homens captam dos
outros de que necessita, ou com o intuito de obter um lucro. factos económicos têm o rigor das leis ontológicas, das leis
Esta é a lei da oferta. A procura associa-se à oferta matemáticas, e das leis lógicas. Não quer isso dizer que
e dessa relação surge o preço. Quem oferta determina um afirmemos um relativismo perigoso para a Economia, mas
preço ante o mercado, ou seja oferta com o preço fundado apenas que estando esta ciência em formação é natural que
no mercado até então, o qual era proporcionado à procura. os actuais enunciados possam ser substituídos por outros
192 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 193

que ofereçam maior rigor sem que os anteriores sejam total- povo, a empresários em grande parte ignorantes da Econo-
mente falsos, mas apenas parcialmente, ou melhor impre- mia, e cúpidos de lucros exagerados. O velho ditado de que
cisos. o apetite vem ao comer é uma verdade insofismável entre
nós. Os negócios próprios de países que já viveram de
Deste modo, após examinarmos a lei da oferta e a lei certo modo sob um sistema económico de base colonial, co-
da procura, pode-se dizer que a terceira lei, a lei da oferta mo viveu o nosso, dá ensanchas ao lucro fácil e desmesu-
e da procura é aquela classicamente já enunciada, desde que rado. Consequentemente, desperta o apetite de mais lucro.
se considere uma certa margem de imprevisto, que decorre Ademais, o mecanismo dos preços, no Brasil, favorece ex-
dos factores psico-somáticos, que tivemos ocasião de exa- traordinariamente o intermediário encarecedor, que é o dis-
minar, os quais são extra-econômicos sob certo aspecto, mas tribuidor da riqueza nacional.
que actuam no agente e no facto económico.
A lei da oferta e da procura, aqui, é manejada pelas
Volvendo ao tema da inflacção, conclui-se que o aumen- práticas dardanistas (as quais consistem em diminuir in-
to dos meios de pagamento, provocados por aquela, favore- tencionalmente a oferta, ocultando estoques), criminosa-
cem o aumento da procura e, consequentemente, o aumento mente usadas por grupos que dominam os transportes e a
de preço na oferta, pois esta reage por meio do preço às producção agrícola, sempre endividada e dependente dos
variações da procura. pretensos defensores da nossa producção. Desse modo, é
No caso brasileiro, a inflacção exige que se determine fácil controlar o mercado e fazer variar o factor quantidade
os seus aspectos e figuras económicas: de bens na oferta, obrigando a um sempre crescente au-
mento dos preços.
Há uma inflacção de preços, consequente ao natural
desenvolvimento de um país, onde tudo falta, que de tudo Um aspecto de que jamais deveriam esquecer os nossos
carece (meios de producção, crédito, capitais, etc.). Há economistas é o da nossa fundamental ligação à economia
carência de tudo e, consequentemente, a inflacção dos pre- portuguesa. Portugal foi o país clássico da inflacção en-
ços é uma inevitabilidade, enquanto perdurar o processo de démica, e esse país registou uma continuidade regular no
desenvolvimento. Ora, um país com quase nove milhões de aumento sempre crescente dos preços. Ora, nossa economia
quilómetros quadrados e com uma população rarefeita, mas fundou-se na esquemática da economia portuguesa. Sabe-
em impressionante crescimento, que atira no mercado, mos que, há oitocentos anos, Portugal embrenhou-se no ca-
anualmente, mais de dois milhões de novos consumidores, minho da inflacção, e jamais saiu dele, senão sob a acção
não pode, de modo algum, deixar de sofrer as consequências de Salazar, que, neste ponto, é dever reconhecer, realizou
de tais factos. É uma ingenuidade pretender regular a eco- um verdadeiro milagre. Portugal foi durante o domínio
nomia brasileira segundo os padrões de povos de conjuntu- dos reis conquistadores um país totalitário, em que o co-
ras completamente distintas. mércio exterior era dominado pela casa Real. Esta se in-
teressava, sobretudo, por soldados, marinheiros, grandes
A lei (logos) da procura no Brasil, baseia-se, como em conquistas e bens vindos de outros países colonizados. Era
toda a parte, nos mesmos elementos que são seus factores. tal a preocupação pelas especiarias, que Portugal importava
Contudo, oferece um grau de intensidade muito diverso de até galinhas, alimentos comuns, porque não lhe interessava
o de outros povos. Ademais, a lei da oferta também é cons- propriamente a producção, mas sim os meios de pagamento,
tituída aqui dos mesmos factores que em outros países, como pois, com estes, podia obter tudo o que quisesse. Desse
os da Europa, mas os factores extra-econômicos, os psico- modo, Portugal, extraindo riquezas das colónias, enriqueceu
-somáticos, têm aqui uma agudeza muito maior pelas faci- os outros povos ao adquirir os bens mais elementares que
lidades que encontra na obtenção de lucros mais amplos, poderia produzir em sua própria terra. Enriqueceu outros
que não se verificam em outros países. E a que se deve países, enquanto corria os riscos da conquista e da obten-
tudo isso? Deve-se à pouca cultura económica do nosso ção de especiarias, e das riquezas em ouro, prata e pe-
196 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 197

teirada de aumento de salário. Por outro lado, a ignorân- Ao fazermos alguma coisa, procuramos o gigantesco
cia do nosso trabalhador sobre os assuntos económicos, le- (forma já viciosa do quantitativismo, que já é viciosa: é ví-
va-o a uma série de práticas contrárias aos seus próprios cio de vício). Se fazemos uma exposição industrial, quere-
interesses. Quando êle gasta mais para produzir uma mos que seja a maior do mundo, senão em qualidade pelo
coisa, esquece que irá adquiri-la por preço mais alto, não a menos em quantidade, senão em quantidade, pelo menos em
que produz, mas outra que outro trabalhador produziu, e área, que ocupe a maior área do mundo, como a Exposição
que procedeu do mesmo modo que êle. do Ibirapuera, em que eram preciso pernas de atleta para
percorrer os pavilhões colocados a grande distância uns dos
13) A prática do dardanismo, que é endémica no país. outros, a fim de ser ocupada a (maior área, do mundo, para
Impede-se, por todos os meios, que escoe para o mercado "orgulho nacional". Constituiu-se uma capital em menor
uma soma muito elevada de utilidades, o que provocaria a tempo que em qualquer outro país. Não importa que seja
baixa nos preços. Para garantir os proventos actuais sa- uma cidade monstruosa, a questão é que seja imensa em
bota-se a producção, deixam-se apodrecer quantidades imen- área. É a magnificência de reis que exibem mantos de pe-
sas de cereais, realiza-se uma acção, que leve ao desânimo dras preciosas, mas tomam banho duas vezes por ano. É
os productores agrícolas. Esta obedece a vários processos: mister um parêntese: desculpe o leitor o intempestivo dos
a) preço baixo pela producção agrícola; b) a parte do leão nossos termos, mas há certas coisas tão ridículas que não
é dada aos intermediários; c) falta de assistência, de cré- merecem expressões eufêmicas.
dito ao productor agrícola (as carteiras agrícolas funcio-
nam quase exclusivamente para dar créditos que não serão 17) A Economia é apenas ensinada para os que dese-
aplicados propriamente na agricultura, mas servem para jam especializar-se na matéria. O resto da população con-
coonestar inúmeras negociatas) ; d) é mister favorecer o tinua ignorante do que consiste ela. É também uma razão,
êxodo do campo para manter o mercado de trabalho estável um motivo, mas que denuncia outra. Há interesse em man-
nos centros industriais. (Aqui se verificam as práticas ter a ignorância do povo neste sector, pois, do contrário,
mais hediondas e nunca suficientemente denunciadas). como se poderia fazer o que se faz?
14) Influência da esquemática colonialista passiva, 18) A propaganda da corrupção. Os heróis nacionais
que leva a julgar o valor de uma coisa pelo seu preço são: o amigo da onça, desprezível manifestação de humoris-
(Quanto mais caro, mais vale). Nossa gente compra pre- mo barato, mas que serve para corromper; Zé Carioca, uma
ço! O novo-rico, o que é inevitável nos países em forma- expressão ofensiva ao carioca de brio; o moleque, o ma­
ção, compra preço. Vale para êle o que custa mais caro. landro, cuja esquemática é aceita gostosamente até nafe
O preço elevado dá valor à mercadoria, e permite dar-lhe altas rodas, onde se imita a sua gíria, seus modos; o elo-
um motivo de "prestígio social". gio cultural da favela, embora se deplore o seu aspecto eco-
15) As obras sumptuárias. Herdamos dos antigos nómico; a divinização dos "malandros encasacados", dos po-
portugueses o gosto pela exterioridade. É a exibição da sala líticos manhosos, do golpe, sonho de tantas mentes juvenis;
de visitas régia, com o resto miserável. É o reinol, que do mentiroso, do homem do campo vencido pela desgraça, o
vestia veludo (em pleno verão, com todo o calor), mas que caipira, o jagunço, o marginal. Como nunca fomos can-
tinha roupa íntima remendada. Na linhagem popular o re- didatos a cargos públicos nem nunca o seremos, não estamos
frão verdadeiro: comer feijão e arrotar carne de porco. forçados a incensar as multidões, nem a elogiar desmedi-
Nossos políticos são por vocação verdadeiros "maneis fogue- damente todo mundo (1).
teiros".
16) Os gastos de magnificência exterior. Somos ca-
pazes de gastar o que não podemos, apenas para dar a im- (1) Somos obrigados a cair numa linguagem de polémica, por-
pressão de magnificência que não possuímos, que é tam- que é tâo ignominioso ao que assistimos que, só para profligar tais
bém de origem colonialista. erros, somos obrigados a usar expressões cáusticas.
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 197
196

teirada de aumento de salário. Por outro lado, a ignorân- Ao fazermos alguma coisa, procuramos o gigantesco
cia do nosso trabalhador sobre os assuntos económicos, le- (forma já viciosa do quantitativismo, que já é viciosa: é ví-
va-o a uma série de práticas contrárias aos seus próprios cio de vício). Se fazemos uma exposição industrial, quere-
interesses. Quando êle gasta mais para produzir uma mos que seja a maior do mundo, senão em qualidade pelo
coisa, esquece que irá adquiri-la por preço mais alto, não a menos em quantidade, senão em quantidade, pelo menos em
que produz, mas outra que outro trabalhador produziu, e área, que ocupe a maior área do mundo, como a Exposição
que procedeu do mesmo modo que êle. do Ibirapuera, em que eram preciso pernas de atleta para
percorrer os pavilhões colocados a grande distância uns dos
13) A prática do dardanismo, que é endémica no país. outros, a fim de ser ocupada a maior área, do mundo, para
Impede-se, por todos os meios, que escoe para o mercado "orgulho nacional". Constituiu-se uma capital em menor
uma soma muito elevada de utilidades, o que provocaria a tempo que em qualquer outro país. Não importa que seja
baixa nos preços. Para garantir os proventos actuais sa- uma cidade monstruosa, a questão é que seja imensa em
bota-se a produeção, deixam-se apodrecer quantidades imen- área. É a magnificência de reis que exibem mantos de pe-
sas de cereais, realiza-se uma acção, que leve ao desânimo dras preciosas, mas tomam banho duas vezes por ano. É
os produetores agrícolas. Esta obedece a vários processos: mister um parêntese: desculpe o leitor o intempestivo dos
a) preço baixo pela produeção agrícola; b) a parte do leão nossos termos, mas há certas coisas tão ridículas que não
é dada aos intermediários; c) falta de assistência, de cré- merecem expressões eufêmicas.
dito ao produetor agrícola (as carteiras agrícolas funcio-
nam quase exclusivamente para dar créditos que não serão 17) A Economia é apenas ensinada para os que dese-
aplicados propriamente na agricultura, mas servem para jam especializar-se na matéria. O resto da população con-
coonestar inúmeras negociatas) ; d) é mister favorecer o tinua ignorante do que consiste ela. É também uma razão,
êxodo do campo para manter o mercado de trabalho estável um motivo, mas que denuncia outra. Há interesse em man-
nos centros industriais. (Aqui se verificam as práticas ter a ignorância do povo neste sector, pois, do contrário,
mais hediondas e nunca suficientemente denunciadas). como se poderia fazer o que se faz?
14) Influência da esquemática colonialista passiva, 18) A propaganda da corrupção. Os heróis nacionais
que leva a julgar o valor de uma coisa pelo seu preço são: o amigo da, onça, desprezível manifestação de humoris-
(Quanto mais caro, mais vale). Nossa gente compra pre- mo barato, mas que serve para corromper; Zé Carioca, uma
ço! O novo-rico, o que é inevitável nos países em forma- expressão ofensiva ao carioca de brio; o moleque, o ma­
ção, compra preço. Vale para êle o que custa mais caro. landro, cuja esquemática é aceita gostosamente até na!s
O preço elevado dá valor à mercadoria, e permite dar-lhe altas rodas, onde se imita a sua gíria, seus modos; o elo-
um motivo de "prestígio social". gio cultural da favela, embora se deplore o seu aspecto eco-
15) As obras sumptuárias. Herdamos dos antigos nómico; a divinização dos "malandros encasacados", dos po-
portugueses o gosto pela exterioridade. É a exibição da sala líticos manhosos, do golpe, sonho de tantas mentes juvenis;
de visitas régia, com o resto miserável. É o reinol, que do mentiroso, do homem do campo vencido pela desgraça, o
vestia veludo (em pleno verão, com todo o calor), mas que caipira, o jagunço, o marginal. Como nunca fomos can-
tinha roupa íntima remendada. Na linhagem popular o re- didatos a cargos públicos nem nunca o seremos, não estamos
frão verdadeiro: comer feijão e arrotar carne de porco. forçados a incensar as multidões, nem a elogiar desmedi-
Nossos políticos são por vocação verdadeiros "maneis fogue- damente todo mundo (1).
teiros".
16) Os gastos de magnificência exterior. Somos ca-
pazes de gastar o que não podemos, apenas para dar a im- (1) Somos obrigados a cair numa linguagem de polémica, por-
pressão de magnificência que não possuímos, que é tam- que é tão ignominioso ao que assistimos que, só para profligar tais
bém de origem colonialista. erros, somos obrigados a usar expressões cáusticas.
198 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
TRATADO DE ECONOMIA 199
19) A descrença nas nossas verdadeiras possibilida-
des e a desvalorização do que fazemos ou podemos fazer. productivas da população. A propaganda da preguiça é
De vez em quando há um desmentido à descrença geral; maior que qualquer outra propaganda constructiva, Valo-
superamos outros povos em diversas modalidades do espor- riza-se o "sombra e água fresca", erguem-se ditirambos à
te, na arquitetura, em certos pontos da técnica, etc. Como rede, ao decúbito dorsal, ao dolce far niente. Uma música
é isso possível? Mas se dá. E por que não poderia dar-se sem inspiração, de letras dissolventes, é propagada como
em outros sectores? Será que tais factos não são suficien- o supra-sumo da criação nacional. O samba, a mais dissol-
tes para gerar a dúvida sobre a nossa incapacidade? Não vente das músicas, verdadeira excrescência, documento de
é a valorização do que é apenas europeu uma manifestação incapacidade criadora, é exaltado, em detrimento da músi-
colonialista ? ca verdadeiramente folclórica, legítima e constructiva. A
arte da favela é o supra-sumo da criação estética popular,
20) A ascensão dos medíocres aos postos de mando. alimentada por uma propaganda que seria ridícula se fos-
Há uma selecção pelo pior. Quando surge alguém que po- se ingénua, mas que leva atrás de si uma inteligência ma-
deria realizar alguma coisa em nosso benefício, todos acor- lévola, o que a torna ignominiosa.
rem para destruí-lo. Nega-se o valor de quem tem, para
afirmar o de quem não tem. Como impedir os desmandos, 24) A herança da esquemática do escravagismo. O
se quem manda não sabe mandar nem tem competência pa- trabalho escravo era odioso e é. Daí a odiar-se o trabalho
ra tal? como uma queda, como uma precipitação ao inferior, foi um
passo. O carácter de desagradabilidade que se empresta ao
21) Precipitação nas medidas financeiras. O que se trabalho é próprio dos países que passaram pelo escrava-
fêz com bom êxito num país desenvolvido, pode ser aplicado gismo. Os povos que viveram livres desse sistema odioso
com êxito bom entre nós? Talvez sim, talvez não. Basta encontram "prazer no trabalho", e podem falar da "alegria
o êxito verificado para convencer que, também aqui será de trabalhar", o que nos soa, geralmente, como estranho e
exitoso. E o malogro inevitável sobrevêm. Imitamos prá- impossível.
ticas e não aprendemos a lição que a nossa prática nos dá.
Procura-se aplicar uma medida financeira ou económica, 24) Outro factor de inflacção é o custo elevado da
considerando-se apenas o aspecto financeiro e económico, moeda, os altos juros que são pagos e a dificuldade em ob-
sem considerar o que é extra-scientiaon. As previsões são tê-la;
desmentidas. Volta-se atrás, copiam-se novas medidas,
aplicam-se outras já experimentadas em outros países. Os 25) A má organização dos transportes, seu alto custo,
malogros somam-se aos malogros. E ninguém pode enten- a má organização das companhias estatais, com fretes ele-
der por que tal se dá. O estarrecimento é geral. De vez vados e toda a soma de obstáculos que oferece.
em quando ao se aplicar uma "medida errada" em relação Vemos assim quantos factores extra-econômicos, como
ao que já se fêz em outros povos mais desenvolvidos, acer- jurídicos (leis precipitadas e mal adequadas), éticos (cor-
ta-se inesperadamente. A confusão cresce. E cada vez os ruptibilidade fácil), sociológicos (primarismo de certos es-
que pensavam que sabiam mais, começam a ter a pálida dú- tamentos sociais), pedagógicos (ignorância das leis econó-
vida que sabem menos. micas), técnicos (incipiência de métodos), políticos (incom-
22) O desejo do enriquecimento rápido leva à práti- petência geral dos administradores), históricos (esquemáti-
ca de negócios absurdos, ao desejo de lucros imensos, o que cas incorporadas de outros povos e dos que fundamentaram
é próprio do período paleotécnico que ainda domina a nossa a população maior do país), em suma, factores das mais
«conomia. várias origens, que actuam quase livremente, sem encon-
trar óbices ao seu desenfreio.
23) A pouca agudeza da vida, pois neste país é pos-
sível viver-se com muito pouco, não estimula as forças Alegam alguns economistas que o aumento da produc-
ção não pode resolver a inflacção. Naturalmente é mister
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 201
200

saber qual inflacção, não tomada em sua generalidade, mas correspondente à moeda. Desde já queremos salientar que
em sua especificidade. não nos dedicamos neste trabalho sobre a inflacção e a de-
flacção, e nos outros, apenas ao âmbito da Economia e das
Se a inflacção num determinado país é agravada sobre- Finanças, pois consideramos que tais problemas não podem
tudo pelas exageradas emissões do Estado, para cobertura ser resolvidos apenas seguindo-se a linha especialista, mas
de deficits orçamentários, realmente não há producção capaz sim a generalista, que a concepção concreta nos pode ofere-
de resolvê-los. Mas se tais emissões são relativamente pe- cer, porque tal problema não é apenas económico, mas invade
quenas e aplicadas em obras reproductivas, ou se se dão o sector de matérias extra-econômicas (éticos, sociológicos,
num nível que não ultrapasse em muito o de aumento da psicológicos, e t c ) , que por sua vez actuam para agravá-lo.
producção, este poderá dinamicamente compensar a inflac-
ção, e evitar a alta exagerada dos preços, com todo o seu É o que já demonstramos, e ainda o faremos com maior
cortejo de perturbações económicas e sociais. cópia de argumentos.
Se, no Brasil, nossa producção apresenta apenas um ín-
dice de aumento de 2 a 3%, que é inegavelmente baixo, e
o Estado prossegue com deficits orçamentários cada vez
maiores, não há solução nenhuma para os efeitos catastró-
ficos da inflacção, que alcançará as mesmas consequências
que teve nos países que não puderam contê-la, chegando aos
seu últimos limites.
A preocupação maior não é a de considerar apenas o
aumento da producção, pois se nossa população aumenta de
2V2% a 3% por ano, um aumento nesse nível é irrisório,
pois a população aumenta nessa base. É mister ainda que
se dê o aumento de productividade, que é intensista; ou se-
ja, que o índice de custo do producto se reduza cada vez
mais.
Sem tais providências paralelas à diminuição do deficit
orçamentário, sem lançamento do recurso do aumento de
impostos, é impossível evitar os resultados pavorosos que
terá a nossa inflacção.
São em suma tais os factores, que no Brasil actuam
para realizar a inflacção dos preços. Não basta que pro-
curemos soluções financeiras, se não procuramos outras so-
luções, como: mudança da nossa esquemática em face da
productividade; b) aumento desta pelo financiamento racio-
nal à indústria de toda espécie; c) educação económica,
através da mobilização de todos os meios de propaganda em
vista de organizar uma nova esquemática que nos incorpo-
re, de vez, na sociedade industrial na qual penetramos.
Contudo, no referente à inflacção, motivada pelas emis-
sões e pela desvalorização da moeda, trataremos no tópico
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 201
200

saber qual inflacção, não tomada em sua generalidade, mas correspondente à moeda. Desde já queremos salientar que
em sua especificidade. não nos dedicamos neste trabalho sobre a inflacção e a de-
flacção, e nos outros, apenas ao âmbito da Economia e das
Se a inflacção num determinado país é agravada sobre- Finanças, pois consideramos que tais problemas não podem
tudo pelas exageradas emissões do Estado, para cobertura ser resolvidos apenas seguindo-se a linha especialista, mas
de deficits orçamentários, realmente não há producção capaz sim a generalista, que a concepção concreta nos pode ofere-
de resolvê-los. Mas se tais emissões são relativamente pe- cer, porque tal problema não é apenas económico, mas invade
quenas e aplicadas em obras reproductivas, ou se se dão o sector^ de matérias extra-econômicas (éticos, sociológicos,
num nível que não ultrapasse em muito o de aumento da psicológicos, e t c ) , que por sua vez actuam para agravá-lo.
producção, este poderá dinamicamente compensar a inflac-
ção, e evitar a alta exagerada dos preços, com todo o seu É o que já demonstramos, e ainda o faremos com maior
cortejo de perturbações económicas e sociais. cópia de argumentos.
Se, no Brasil, nossa producção apresenta apenas um ín-
dice de aumento de 2 a 3%, que é inegavelmente baixo, e
o Estado prossegue com deficits orçamentários cada vez
maiores, não há solução nenhuma para os efeitos catastró-
ficos da inflacção, que alcançará as mesmas consequências
que teve nos países que não puderam contê-la, chegando aos
seu últimos limites.
A preocupação maior não é a de considerar apenas o
aumento da producção, pois se nossa população aumenta de
2 ] /2% a 3% por ano, um aumento nesse nível é irrisório,
pois a população aumenta nessa base. É mister ainda que
se dê o aumento de productividade, que é intensista; ou se-
ja, que o índice de custo do producto se reduza cada vez
mais.
Sem tais providências paralelas à diminuição do deficit
orçamentário, sem lançamento do recurso do aumento de
impostos, é impossível evitar os resultados pavorosos que
terá a nossa inflacção.
São em suma tais os factores, que no Brasil actuam
para realizar a inflacção dos preços. Não basta que pro-
curemos soluções financeiras, se não procuramos outras so-
luções, como: mudança da nossa esquemática em face da
productividade; b) aumento desta pelo financiamento racio-
nal à indústria de toda espécie; c) educação económica,
através da mobilização de todos os meios de propaganda em
vista de organizar uma nova esquemática que nos incorpo-
re, de vez, na sociedade industrial na qual penetramos.
Contudo, no referente à inflacção, motivada pelas emis-
sões e pela desvalorização da moeda, trataremos no tópico
1

A MOEDA E A ACTUALIDADE BRASILEIRA

Relembrando o que escrevemos sobre a moeda, de-


sejamos agora frisar outros aspectos que não foram exami-
nados naquele artigo, e que nos dizem respeito mais directa-
mente.
Realmente, há, neste sector, uma grande divergência de
opiniões e as teorias têm sido as mais antagónicas, a ponto
de qualquer economista que queira tomar uma posição e
defender uma tese encontrar a seu favor conspícuos au-
tores, de cujas obras poderá extrair os elementos argumen-
tativos que desejar para a defesa da sua posição. Então,
se quiser ter o apoio de autoridades as terá na quantidade
desejada, porque, neste ponto, a Economia como às Fi-
nanças estão povoadas das teses mais desencontradas, defen-
didas por homens de renome e de prestígio na matéria.
Vamos alinhar as diversas maneiras que se têm propos-
to para considerar o que é moeda, que compendiamos dos
diversos tratados que tivemos oportunidade de compulsar.
Assim a moeda é:
1) riqueza;
2) um producto;
3) um direito que confere um poder de compra;
4) um intermediário de trocas (Aristóteles, Say) ;
5) um facilitador de trocas;
6) um símbolo (proteico);
7) um instrumento de actividade económica;
8) intermediário de trocas ou apenas intermediário de
avaliações (Cólon, Gonard) ;
9) instrumento de liquidação de dívidas recíprocas (Cas^
sei) ;
204 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA
205

10) meio de arbitragem entre os preços das mercadorias, 32) valor constituído, ou seja: síntese do valor de uso e
tomadas duas a duas (Walras) ; do valor de troca (Proudhon);
11) um crédito garantido sobre o "estoque" de metal pre- 33) expressão do trabalho;
cioso, que serve de cobertura à emissão dos bilhetes de 34) capital;
banco;
35) instrumento de conta;
12) um instrumento de consumo e não de poupança;
36) direito (Gaél Fain, Lansburg) ;
13) um instrumento apenas de poupança;
37) representante do valor;
14) reservatório de valor (Rist) ;
38) sinal de valor;
15) soma do poder de acquisição;
39) fracção da renda global de um país determinado, efec-
16) crédito sobre a producção; tivamente consumida durante a unidade de tempo
17) direito abstracto de comprar; (Mattrien).
18) unidade de conta; 40) um instrumento de circulação (Cauwès) ;
19) instrumento de transporte de reservas; 41) o instrumento marcado pelo poder soberano (Jeoves) ;
20) medida comum de valores e dos serviços (Trudrys, 42) apenas um crédito (Baudin, Aftalion);
Perreaux) ; 43) valor juridicamente instituído (Knapp).
21) instrumento de pagamento (Stigl, Permotte) ;
22) dinheiro (É mister distinguir moeda e dinheiro. A Poderíamos ainda alinhar outras, mas, propriamente,
moeda, como numerário, é representativa do dinheiro. já estão contidas nesses enunciados. Algumas parecem
Este tem um valor estável, e aquela não. É verdade iguais, mas apresentam, contudo, certas nímias distinções
que são poucos os economistas que fazem distinção que não deixam, contudo, de carecer de importância. Até
entre moeda e dinheiro, e estes mesmos fazem-na ape- agora foram estas as conceituações que nos foi possível co-
nas relativamente. Gostaríamos de mostrar aqui as ligir da matéria, mas estamos certos de que deve haver ain-
diferenças mais profundas que há entre ambas, mas da muitas outras, que não nos ocorrem ou que nos passa-
já estaríamos no terreno propriamente das Finanças ram despercebidas, como ainda outras que desconhecemos.
e não no da Economia. Contudo, oportunamente, as Vê desde logo o leitor que não é possível discutir Eco-
distinções que se tornarem necessárias, teremos oca- nomia, fundando-nos em autoridades. Assim como na Filo-
sião de chamar a atenção para elas) ; sofia a única autoridade é a demonstração e a demonstra­
23) um instrumento de troca (Guignabaudet, Nogaro, No- ção rigorosa, também deveríamos exigir o mesmo para a
gelle) ; Economia. É verdade que há os literatos do filosofismo,
que fazem filosofia, expressando as suas vivências pessoais,
24) um instrumento de troca e de crédito; e não saem do campo do assertórico. E alguns até se pro-
25) mercadoria (Marx, Withers) ; jectaram como grandes filósofos e fizeram e fazem escola.
O não se ter compreendido que em Filosofia a única auto­
26) meio de compor a troca (Honnbertel) ; ridade é a demonstração rigorosa, como o é também na Ma-
27) mercadoria-standard (Chappey); temática e na Lógica, e que na Ciência experimental é a
28) poder de compra (Pose) ; experiência, segundo regras e providências rigorosas, é cau-
29) valor abstracto (Triers) ; sa de tanto trabalho filosofista, de tanta literatice famosa,
de tanta confusão. É natural que, para conhecer isso tudo,
30) matéria, além de medida e poder de compra (Rivain) ; nem uma vida, nem um milhão de vidas é bastante para
31) convenção; tal. Mas, para saber-se demonstrar uma a uma as teses
TRATADO DE ECONOMIA 207
206 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

fundamentais da Filosofia, uma vida é mais que suficiente. Mathieu: "Até para os que estão animados da mais ir-
Quando os pitagóricos, indevidamente apontados como cul- reductível hostilidade em relação à deducção e à especula-
tores da autoridade, diziam autos ephas, (êle mesmo falou), ção puras, é difícil negar que apenas a observação não po-
que se traduziu pelo Magister dixit latino, e pelo o mestre de conduzir ao menor resultado prático se ela não é prece-
disse, no vernáculo, não se referiam à pessoa de Pitágoras. dida de uma certa intuição, e se não é ela acompanhada, ao
O mestre é a verdade, é a demonstração. Assim como nós menos vagamente, de uma ideia preconcebida: a hipótese."
dizíamos ao demonstrar um teorema de geometria Q. E. D., Examinando-se as concepções da moeda, pode-se desde
quod est demonstrandum, o que cabia demonstrar, como logo verificar que a todas cabe alguma positividade, porque
fecho da demonstração, os pitagóricos diziam autos ephas, realmente a moeda, de certo modo, é tudo quanto nas di-
o mestre disse, o mestre-verdade, a demonstração falou versas concepções foi definida. Contudo, o que não res-
verdade; ou seja, é ela a autora da demonstração, pois a salta com a mesma evidência é a afirmação pura e simples
demonstração é criada pela verdade. Era essa a autori- de ser apenas o que afirmam, ao negarem o que outros pro-
dade e não um homem, mesmo que esse homem fosse Pitá- põem. Há, assim, verdade no que afirmam, e falsidade no
goras, o menos conhecido dos filósofos, o mais falsificado, que negam.
o mais incompreendido, mas o que realmente iniciou a Filo- De início, sem dúvida, a moeda foi uma mercadoria,
sofia e não o filosofismo, e o que presidiu com seu espírito contudo não é apenas uma mercadoria, já que esta, de qual-
todas as grandes criações filosóficas posteriores, mesmo a quer modo que seja, poderia ser tomada como moeda, pois
daqueles que julgavam não segui-lo. Estes apenas faziam podemos considerar o valor de todas as coisas económicas
uma caricatura das suas ideias, e defendiam outras que segundo uma determinada, por exemplo, dizer quanto é em
nada mais eram que as verdadeiras ideias do mestre de trigo um sapato, um chapéu, um terno de roupa, etc. En-
Samos. É o que demonstramos em nosso "Pitágoras e o quanto mercadoria, a moeda é riqueza, um producto, um
Tema do Número". intermediário de compras, um intermediário de trocas, um
direito sem dúvida, um instrumento de actividade económi-
Vamos, primeiramente, ver o que a moeda não é, para ca, um facilitador de trocas e de operações económicas des-
depois vermos o que ela poderia ser, e, finalmente, se pos- sa espécie, um crédito, um instrumento de consumo e tam-
sível, o que ela, realmente é. bém de poupança, um reservatório de valor, uma soma de
poder acquisitivo, um crédito sobre o que possa produzir, um
Como nesta obra desejamos apenas trazer as contri- direito de comprar, uma unidade de compra, um instru-
buições mais importantes da Economia para o estudo dos mento de transportes, de reservas, uma medida de valores t
temas sociais, não nos será possível realizar a crítica dia- de serviços, uma unidade de conta, um instrumento de pa-
léctica que desejaríamos fazer em torno dos temas princi- gamento, um poder de compra, expressão do trabalho, capi-
pais desta matéria senão na medida e na exigência da ma- tal, um instrumento de circulação, etc. A moeda é tudo
téria em exame. Talvez um dia se tivermos força para tan- isso. Mas, quando se procura saber o que uma coisa é não
to, e tempo suficiente, tentaremos realizar esse trabalho tão se indica, quando a estudamos filosoficamente, apenas as
necessário, que consistirá em tratar a Economia pelo mé- suas funções, a utilização que pode ter, o papel que pode
todo dialéctico concreto. Será então uma Filosofia Con- desempenhar, o significado que tem, mas, sim, o que é, o
creta da Economia, seria tratar esta a modo philosophico, que é em sua essência. Ora, tudo quanto é accidental numa
não porém ao modo do filosofismo, mas ao modo da filoso- coisa é proporcionado à sua essência. Neste caso, a essên-
fia positiva, da filosofia concreta, aquela que demonstra o cia da moeda tem de estar em proporção com tudo quanto
que afirma e não apenas se funda em asserções. Contudo, €la pode representar, pode actualizar, pode ser, pode sig-
isso não impede que, por ora, possamos fazer alguma coisa, nificar. Precisamente, na caracterização nítida da sua es-
dentro da orientação desta obra e nos limites de nossas sência, é que os economistas encontraram a maior dificul-
forças. dade, pois é aí que as divergências surgem, é aí que os cami-
208 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 209

nhos divergem e se entrecruzam, é onde as controvérsias e, formal/mente, era um instrumento económico, que signi-
brotam e as dificuldades aumentam a ponto de situar a ficava em sua unidade a unidade de valor económico de
Economia numa situação, como aquela de que falava Mon- qualquer operação em sua especificidade.
tesquieu: não é que os economistas sejam pequenos, é que Ora, sabemos que a moeda cunhada tinha um valor per-
a sua ciência é demasiadamente grande para ser alcançada manente no início, o valor da matéria que possuía, ou seja
por eles. relativamente à permanência de valor desta. Mas os go-
Inúmeras têm sido as obras que se escreveram sobre vernos, que sempre têm grandes dificuldades monetárias,
a moeda, e não haveria tempo a ninguém que quisesse dispõem menos de moeda do que gastam, usaram o recurso,
acompanhá-las, nem memória possível para reter tantas a princípio bem desonesto, de mudar o título da moeda, ou
ideias e opiniões. Só nos resta procurar outros caminhos seja de diminuir a matéria valiosa, por meio de combina-
e esses são os que nos oferece a filosofia concreta. É mis- ções ou por diminuição da mesma, embora mantendo o mes-
ter dispor o tema da moeda seguindo as providências dia- mo valor que expressava, segundo o nome que possuía. Vê-
lécticas daquela filosofia, porque se não fôr ela capaz de -se que era distinguível um valor real e um valor nominal.
nos dar um sentido claro do que realmente ela é, teremos O valor real é o que a moeda cunhada tem segundo a maté-
de esperar que outros mais poderosos o façam, já que até ria que possui, e nominal, o valor do nome que recebe. As-
aqui nada se conseguiu trazer que pudesse ser julgado como sim, se a moeda é escudo, e é de ouro, o valor real do escudo
definitivo. é o valor do ouro em sua proporção com outro metal, ou seja,
o seu título, e o nominal é o valor do estudo tomado como
Em primeiro lugar, é mister que se compreenda que significado económico. Ora, como o valor nominal não mais
podemos entender a economia em sua actividade sem a moe- corresponde ao anterior valor real, mas ao actual, esse es-
da. Há povos que tiveram e têm organização da vida eco- cudo se desvaloriza. Consequentemente, a moeda valoriza
nómica sem usá-la, nem conhecê-la. Desse modo, não é ou se desvaloriza consoante o grau de significabilidade que
imprescindível para que haja uma vida económica que a tem ela em relação ao valor real. Esta é uma verdade sim-
moeda exista. A sua ausência não ausenta a possibilidade ples, mas segura, e que teria de perdurar, naturalmente, na
da actividade económica. Portanto, a producção e o con- consciência dos economistas, como perdurou, e como tal é
sumo, como extremos da vida económica, não a implicam insofismável.
necessariamente.
Se não é algo essencial à Economia é, portanto, acci- Mas, então, por que há tanta celeuma em torno da
dental, algo que acontece àquela. Se pensarmos em sua moeda em nossos dias?
génese, notamos que nasceu ela com uma finalidade; ou Pela simples razão de que a moeda hoje usada não é
melhor, impõe-se ao homem como um meio de facilitar a mais, ou apenas não é, a moeda de valor intrínseco, mas a
própria actividade económica, primeiramente facilitando as moeda de valor extrínseco, o papel-moeda. Esta aponta a
trocas fundamentais entre o productor e o consumidor e, a um valor e seu valor é valor de significabilidade, e não pro-
seguir, representando uma poupança, tanto de um como de priamente a matéria que a compõe. Não vale por esta, mas
outro, servindo, depois, de crédito, tanto para um como pelo valor que ela indica. Ora, se o valor que ela indica
para outro e, finalmente, recebendo um valor constituído, permanece o mesmo e o papel-moeda também permanece
com uma chancela jurídica de seu valor. Quando merca- na mesma quantidade, ela vale o que ela vale. Mas acon-
doria, valia ela o que era em sua ensidade económica; como tece que o Estado, com as suas proverbiais dificuldades fi-
papel moeda, o valor que ela significava. nanceiras, necessita pagar o que gasta e o que deve e tem
Como mercadoria, valia o que valia, com as alterações de fazê-lo por meio de papel-moeda e como o seu débito é
de valor da própria matéria económica que era. Desse mo- escriturado em unidades desse papel-moeda, a solução mais
do, a moeda, como mercadoria, com valor intrínseco, era, simples é emitir mais papel-moeda e assim pagar o débito
materialmente, o que sua matéria económica era e valia, que tem. Essa emissão, sendo um aumento de papel-moeda,
210 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 211

redunda numa diminuição da significabilidade real do mes- Teria um valor análogo a qualquer outro valor económico.
mo, embora sua significabilidade nominal permaneça a mes- Quando se trata do papel-moeda, temos de distinguir o con­
ma. Diz-se, então, que a moeda se desvalorizou. Vimos o vertível e o não-convertível. O convertível tem uma analo-
modo de desvalorizar-se a moeda cunhada e, agora, o modo gia com o valor económico, porque significa uma matéria
de desvalorizar-se a moeda-papel. de valor económico e o não convertível tem um valor não
real, mas abstracto, como o diriam alguns economistas, e
A proporção é, portanto, simplíssima: nós diríamos então um valor de significação quanto a um
significado de valor económico. Enquanto se trata da moe-
aumento de papel-moeda sem aumento do significado da convertível, as dificuldades não são tão grandes, mas
real: desvalorização da moeda; quando se trata de moeda não-convertível é mister precisar
qual o valor económico ao qual ela se refere ao significá-lo.
aumento do papel-moeda com proporcionado aumento Como não é um valor determinado especificamente, pois
do significado real: paridade da moeda; não significa café, cacau, algodão, trigo especificamente,
significa genericamente tudo isso, segundo a sua unidade
permanência da quantidade de papel-moeda, com au- de valor, podemos traçar o seguinte esquema:
mento do significado real: valorização da moeda;
a) a moeda papel convertível significa, segundo sua
aumento do papel-moeda, com aumento maior do sig- unidade, o valor económico, tomado também unitariamen-
nificado real: valorização proporcional da moeda. te, da matéria que significa:
Vê-se, portanto, que falta descobrir oual o significado ^ b) a moeda-papel inconvertível significa o valor uni-
real da moeda ou seja: que valor o papel-moeda significa. tário tomado abstractamente do valor económico.
Colocado o problema assim já não consideramos mais; Neste último caso, a moeda-papel inconvertível vale o
ou melhor, deixamos para trás, todos os aspectos acciden- que êle vale. Assim o cruzeiro só vale o que o cruzeiro sig-
tais da moeda, para nos preocuparmos agora pelo que é da nifica em valor económico tomado abstractamente.
sua essência. E qual é esse valor económico, então? Como não é
uma moeda lastreada por um determinado bem económico
Sendo o papel-moeda um significante de valor econó- de valor, como era o ouro, ou a prata, como vimos ao exa-
mico, vejamos o que se exige de essencial para um signifi- minar os sistemas metalistas, só pode significar o que o país
cante. O termo genérico que se dá é sinal. Mas os sinais produz economicamente. O valor do cruzeiro, portanto, é
podem ser arbitrários ou naturais, ou seja: os primeiros são proporcionado à producção, o que pode produzir ou o que
aqueles que significam convencionalmente, os segundos são com êle se pode comprar.
aqueles que têm uma analogia com o significado, como o
demonstramos em nosso "Tratado de Simbólica, e são os Neste caso, quem lastreia o cruzeiro é a producção na-
símbolos. Há muitos filósofos que confundem símbolos com cional. E como essa producção se destina ao mercado in-
sinais. Realmente, o símbolo é genericamente um Sinal, terno e ao mercado externo, seu valor é dado pelo valor do
mas especificamente se caracteriza pela analogia que tem por que produz, segundo o mercado interno e o externo.
participação com o significado. Essa participação, como
vimos naquela obra, é formal ou pode ser real. No caso Não é de admirar, portanto, que exerçam acção valo-
da moeda-mercadoria esta tem um valor económico em si rativa ou desvalorativa no cruzeiro as variações que suce-
mesma, e a sua participação com a economia seria real. Te- dam no mercado interno como no externo.
ria um valor análogo a qualquer outro valor económico em Ora, o que se dá com o cruzeiro dá-se com qualquer ou-
si mesma, e a sua participação com a economia seria real. tra moeda da mesma espécie, ou seja moeda-papel não con-
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 213
212

vertível. Que vale o dólar? O que com o dólar se produz Volvendo ao tema da moeda inconvertível, verifica-se
em relação ao mercado ao qual se destina a producção. Se que o valor dela é proporcionado ao montante do valor da
com dólar se pode adquirir tudo, vale tudo, na sua propor- actividade económica. Precisemos, porém, o que desejamos
ção; se com cruzeiros só se pode adquirir pouco, na sua dizer. É comum falar-se na retida nacional, considerando-
proporção, vale esse pouco. -se incluso nesse conceito tudo quanto é produzido num país,
num determinado período de tempo. À primeira vista, o
Tome-se por exemplo o valor do cruzeiro numa deter- conceito é claro. Mas desde o momento que se procura
minada época; ou seja, considere-se o cruzeiro em circula- precisá-lo, transparecem-se grandes dificuldades, e neste sec-
ção e se compare com a producção nacional. tor há tremendas controvérsias entre os economistas, bem
como reconhecem a grande dificuldade em determinar esta-
Nesse caso, a producção se é X e os cruzeiros em cir- tisticamente essa renda nacional, global, que inclui toda a
culação são 1.000, o valor do cruzeiro seria X/l.000. To- actividade económica de um país.
ma-se aqui uma unidade determinada de tempo e a produc-
ção considerada nesse lapso de tempo, digamos um ano. Sem dúvida é assim. Mas é mister reconhecer que de-
vemos entender como actividade económica tudo quanto se
Se no ano seguinte, emitiram-se mais cruzeiros e a refere à producção de bens e de serviços e o consumo cor-
producção permaneceu a mesma, o cruzeiro se desvaloriza, respondente. Nesse caso, verificar-se-ia que a significabi-
pois teríamos, no caso de 2.000, X/2.000, e a desvaloriza- lidade da moeda inconvertível é bifronte, pois tanto aponta
ção seria de 50%; ou seja, o cruzeiro, como meio de compra, à producção como ao consumo. Assim, o cruzeiro vale o
comprará apenas a metade, porque os preços subiriam na que com um cruzeiro se pode produzir e o que com um cru-
zeiro se pode consumir e com o que com um cruzeiro se
proporção da desvalorização. Longe de nós querermos aqui, pode prestar em serviços.
com tais exemplos, dar a entender que consideramos a Eco-
nomia capaz de ser matematizada de modo tão rigoroso. É desde logo patente que a precisão nítida, matemática,
Queremos apenas indicar uma proporcionalidade, salvante precisa do seu valor, torna-se praticamente impossível, ante
as diferenças, que se observam nos factos sociais, que não a variância imensa dos factos económicos e a heterogeneida-
permitem a matematização, que é aplicável aos factos físi- de das operações e da accidentalidade correspondente às
cos. Nestes, ainda, essa matematização não tem também mesmas.
uma precisão absoluta. E as razões são várias, e entre elas podemos salientar
O que dissemos aqui com tanta simplicidade é, contu- as seguintes: se a emissão da moeda inconvertível destina-
do, a verdade económica e financeira, e tanto o é que todas -se directamente ao consumidor, este poderá poupá-la e po-
as tentativas de valorizações artificiais, ou por meio de ar- derá empregá-la para adquirir bens de que necessita. Neste
tifícios jurídicos ou por providências despóticas do poder caso, a procura aumenta na proporção dessa destinação.
estatal, não conseguiram modificar esse panorama. Consequentemente, os preços são estimulados a subir. (No-
te-se que falamos em estímulo, porque, como salientamos
Note-se que nem com o brutal e omnímodo poder so- ao estudar o mecanismo dos preços, o factor psico-somático
viético, conseguiu o governo russo impor um valor artifi- e outros factores com raízes psicológicas actuam no aprovei­
cial ao rublo. Com todo o aparelhamento policial, com tamento do interesse do comprador e a visão de lucros maio-
campos de concentração, pelotões de fusilamento, não pôde res leva ao aumento dos preços, já que estes não sobem ape-
impedir a desvalorização do rublo e o mercado negro. E nas pelo mecanismo entre oferta e procura, como demons-
não pôde, porque a Economia pode ser entravada, obsta- tramos ao tratar de tais temas). Essa moeda das mãos dos
culizada, prejudicada pela Política, mas os valores econó- intermediários tende a dirigir-se para o productor e estimu-
micos criam-se economicamente e não por providências me- la, por sua vez, a producção, enquanto os preços permanecem
ramente políticas. na posição que alcançaram. Aumentando-se a oferta, dá-se
214 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 215

o inverso, não numa proporção rigorosa, mas relativamente Economia e nas ideias sociais que mais de uma centena de
à capacidade de compra do consumidor, tendendo os preços milhões de homens já perderam a vida devido a ideias tão
a descerem. Dentro desses fluxos e refluxos, actua a eco- estúpidas, que levaram a chacinas das mais cruéis que re-
nomia chamada liberal, dizem todos economistas. Mas, se gistra a História. É o que mostraremos no futuro em
se observarem os factos, tal não se dá sempre nem precisa- outras obras nossas.
mente assim, porque há muitos recursos que procuram bur-
lar a lei da oferta e da procura, que, como toda lei econó- Também há economistas que aconselham ao consumidor
mica, não tem a rigidez mecânica e matemática em sentido diminuir o consumo para forçar a baixa de preços. Mas tais
quantitativo que os economistas costumam emprestar-lhe. soluções não são económicas, são políticas. E não se deve
Ademais, o Estado pretende também intervir na modifica- confundir Economia com Política. Podem elas trazer resul-
ção dessa lei, como a história de nossos tempos está cheia tados provisórios, não, porém, definitivos. Se o consumi-
de exemplos, tabelando preços (sempre inutilmente), ven- dor consome menos, priva-se de valores de que necessita,
dendo productos a preços baixos (solução que é apenas pro- os estoques se abarrotam, os pedidos dos productores de-
visória e não soluciona nada), oferecendo subsídios, primas, cresce, a producção diminui, o desemprego aumenta, e ter-
etc, que também não solucionam, porque são retirados de mina o consumidor por não dispor de meios de pagamento
disponibilidades que faltarão em outro lado e que, de qual- nem para comprar o que já lhe custa menos. Essa solu-
quer forma, são pagos indirectamente pelo povo. ção gera outro ciclo vicioso com suas consequências críti-
cas, perigosíssimas, além de criar clima para agitações so-
Ao examinarmos a inflacção e a deflacção, mostramos ciais e para estimular ainda mais a demagogia, cujos cul-
que a solução deflaccionária também não soluciona. Ao tores espreitam em todas as esquinas qualquer pretexto pa-
contrário, cria problemas maiores, porque precipita a in- ra logo entrarem em cena como salvadores da situação.
suficiência de meios de pagamento em relação aos bens eco-
nómicos oferecidos, resultando daí uma perturbação no equi- No entanto, a estimulação da producção é mais bené-
líbrio entre a producção e o consumo. Há economistas que fica, porque ela fará aumentar a oferta, ao mesmo tempo
aconselham a retração de crédito. Para esses senhores, a que aumentará os meios de pagamento dos consumidores,
reducção radical do crédito levaria a muitos industriais e e trará, como consequência, a reducção de preços, a valori-
comerciantes a liquidar seus estoques, forçados a obterem zação da moeda, se não houver emissões, ou mesmo quando
numerário suficiente para atender seus compromissos, o que as haja, sejam apenas destinadas a aumentar a producção
os levaria a baixar os preços, e o consumidor levaria então e a tudo quanto actua em consonância com esta, como trans-
uma vantagem. Mas tal medida revela desde logo que belo portes, aumento de energia elétrica, construcção de silos,
espírito de economistas há em tais senhores. Se o produc- entrepostos, higiene, etc. O financiamento correcto da pro-
tor é obrigado a vender sua mercadoria com lucro mínimo, ducção é um financiamento indirecto do consumo, e só há
ou nenhum, ou até com prejuízo, não é só êle que perde. equilíbrio económico onde há equilíbrio entre producção e
Ou será que tais senhores ainda não compreenderam que consumo.
há uma solidariedade na Economia que não permite sepa-
rar-se real-realmente um aspecto da vida económica de ou- Naturalmente, para que os preços não baixem de modo
tra? Se tal acontece, desde logo há um "resfriamento" no a prejudicar a producção, como poderia acontecer num ex-
ímpeto productivo. Crescem as perspectivas de riscos e os cessivo financiamento da mesma, deverá este ser dosado nas
capitais tornam-se mais dificilmente mobilizáveis para a proporções requeridas, ou, então, num desejo amplo de de-
producção. Por outro lado, há o "mirramento" de certas senvolvimento do país, deverá ser acompanhado de um ime-
actividades económicas, e ademais o lucro não deve ser ja- diato financiamento do consumo, como se pode realizar atra-
mais compreendido como a perda de um lado a favor do ou- vés do sistema de crediário, do financiamento das empresas
tro. O não se ter tido uma noção clara do que êle é real- crediaristas, e também pela realização de obras (não sump-
mente, e do que deve ser o lucro, levou a tanta confusão na tuárias) por parte do Estado, que se destinem a melhorar
216 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 217

as condições da producção. Desse modo essas emissões não Não encerramos ainda o exame da matéria, e convém
seriam inflacionárias, porque estariam perfeitamente, com- nos demoremos em outros aspectos que são importantíssimos.
pensadas pelo aumento da producção e das condições que lhe
são necessárias. * * *
Além disso, e aqui está o mais importante, é mister Há um facto importante na valorização ou desvaloriza-
cuidar da productividade, do índice de intensidade da pro- ção da moeda: o salário.
ducção. Esta deve ser uma das maiores preocupações dos
organismos interessados na mesma. E quais são esses or- Há salários solváveis e salários insolváveis. São sol-
ganismos? O Estado com seus políticos e seus burocratas? váveis aqueles que são pagos para a producção de bens de
Não; mas, sim, as chamadas classes productoras. Estas é certo modo reproductivos, e insolváveis os que se referem
que devem cooperar para a solução deste problema de mag- aos que não o são. Não é fácil estabelecer o grau de re-
na importância. Sem o aumento de productividade, a pro- productividade. O que se paga ao soldado é um salário in-
ducção, por si só, não realizará o equilíbrio desejado. Um solvável, pois o exército é um consumidor quase puro e rea-
aumento de producção sem aumento de productividade im- liza pequena producção. O salário, que se paga a um ven-
plicaria um aumento de mão de obra, consequentemente al- dedor de seguros de vida, é insolvável, como o é o que se
ta desorientada de salários, e consequente aumento do custo paga ao funcionário público não reproductivo.
de producção, e todo o plano cairia em frangalhos.
Contudo, o salário de um vendedor, de um pracista, é de
Poderíamos ainda construir muitos outros comentários, certo modo insolvável mas também não o é de outro, por-
fundados no que acabamos de expor, mas nada mais faría- que êle presta serviços ao consumidor e ao productor, apro-
mos que deduzir o que já está contido em nossas exposições, ximando-os e estimulando as relações económicas, e favore-
e seria até desmerecer a capacidade crítica e a de investi- cendo o estímulo à producção e ao consumo.
gação do próprio leitor.
O volume dos salários insolváveis e a sua percentagem
Eesta-nos, assim, volver ao tema, mas atingindo outros sobre a producção é um dos factores mais terríveis de en-
aspectos: a moeda é, pois, o significante do valor económi- carecimento dos preços e de desvalorização da moeda. Foi
co proporcionado ao montante global da actividade econó- do que tratamos ao estudar a inflacção e a deflacção, pois
mica de um país num determinado período de tempo. estes temas podem ser estudados separadamente do da moe-
Não dissemos tudo. Um povo, que tem uma moeda, da, mas devem ser concrecionados com este, se desejamos
pode tê-la convertível ou não. Pode ainda gozar de crédi- ter uma visão mais nítida da realidade económica. Ali apon-
tos maiores ou menores ou não. Pode dispor de reservas tamos, no caso brasileiro, alguns factores maiores e menores,
que actuam para agravar o processo inflacionário, e que
de valor económico ou não. Neste caso, sua moeda depen- são inflaccionários aqui e em qualquer outro país do mundo
derá ainda das reservas de valor que possua, e incluiríamos onde se dêem.
nesse conceito o crédito que dispõe. Então daríamos este
enunciado final: a moeda é o significante do valor económi­ Ao examinarmos, há pouco, a moeda inconvertível, pode-
co, proporcionado ao montante global da actividade econó­ ria parecer à primeira vista, como aliás parece para muitos
mica de um país num determinado período de tempo e às economistas e financistas, que só a moeda convertível ofe-
reservas de valores económicos que o mesmo possua. rece a garantia desejada, o equilíbrio que se pretende para
Esses valores económicos, que constituem sua reserva, a vida económica de um país. Ora, o Estado está sempre
dependerão de factores não só económicos, mas também po- faminto de numerário, e desejará obtê-lo à custa de emprés-
líticos, históricos, sociológicos, éticos, etc, porque a sua mo- timos, e quando não os consegue por este meio, procurará
bilização dependerá de tais factores, que poderão favorecer a emissão, mesmo que essa seja controlada por um insti-
ou obstaculizar a sua actualização. tuto independente, porque há sempre o recurso do Estado
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 219
218

decretar a inconvertibilidade, ou pelo menos a suspensão Muitos economistas julgam que a única solução é a bai-
da convertibilidade dos bilhetes, como o faz constantemente, xa dos preços, que seria obtida pela acção combinada do Es-
quando se encontra em tais apuros. Sem dúvida, recorrer tado e das organizações privadas, ou, para alguns liberalis-
à mflacção é sempre prejudicial. Mas o Estado recorre à tas, deixar que as coisas sigam o seu caminho (laissez faire,
inflacção para aumentar os meios de pagamento. É real- laissez passer), de modo que a crise se resolva por si mesma
mente um mal, mas mal maior é haver carência de meios de pela baixa dos preços e pelo desaparecimento das empresas
pagamento em relação aos bens económicos ofertados, o que menos aparelhadas para resistir a concorrência. Mas essa
decorre do desequilíbrio entre a producção e o consumo. Na solução é brutal, e traz prejuízos vários que precisamos sa-
verdade, a inflação não é o melhor remédio, mas é o que ber se são ou não evitáveis. Se são, por que iremos prefe-
surge logo aos olhos do governante inexperto. É fácil con- rir uma solução dessa espécie? Não haverá outros métodos
siderá-lo um mal, pois sem dúvida é. Mas basta acaso ape- capazes de alcançar os mesmos resultados, sem necessidade
nas condená-lo? Não é mister encontrar outro recurso que de tantas consequências desastrosas? Mas procuraram es-
faça frente à dificuldade? Qualquer economista pode dizer sa solução? Não julgaram que a única era a que propu-
que a inflacção é um erro. Mas quem não sabe disso? O nham? Ou então o recurso da inflacção, que por sua vez
que se quer é o remédio que cure. E qual é o que o nosso também deixa um caminho semeado de injustiças e prejuí-
economista oferece? O maior problema de toda organiza- zos? Não revela tudo isso que ainda estamos numa fase
empirista da Economia Política?
ção económica é a falta de correspondência entre o cresci-
mento do volume dos meios de pagamentos e o crescimen- Quando funcionava o sistema do padrão-ouro, o estoque
to do volume dos bens económicos disponíveis. O verdadei- monetário real sofria um aumento relativamente pequeno de
ro problema a resolver é o desequilíbrio observado, e não ano para ano. Mas, ao mesmo tempo, o estoque das merca-
a preocupação de maior ou menor emissão de moeda. O que dorias disponíveis crescia numa proporção muito maior, de-
_, é mister é que os meios de pagamento possam absorver vido ao progresso técnico. Estava-se, então, no caso em que
todos os bens económicos disponíveis, e que haja bens eco- o volume de moeda crescia menos que o volume da produc-
nómicos proporcionais, do contrário a crise é maior e mais ção. Os meios de pagamento não eram então suficientes
perigosa. para dar vasão à producção, e as crises provenientes dos
estoques abarrotados eram inevitáveis, pois os productores
Os que mais atacam a inflacção são frequentemente não conseguiam colocar tudo quanto produziam. Processa-
aqueles que oferecem soluções muito piores. Se a inflação vam-se, então, as crises cíclicas da producção. Disso não se
é um mal, o remédio que propõem mata mais depressa. É precatavam devidamente os economistas, e as crises se suce-
dever do economista estudar os meios de evitar a inflacção, diam de tal modo que já se estabelecia serem elas inerentes
e consequentemente seus males, mas o dever maior é pro- ao regime capitalista, como o proclamavam os socialistas,
curar o melhor remédio. Não basta apenas querer evitar a como Marx, e muitos capitalistas. Há uma literatura imen-
inflacção, que não nasce por geração espontânea, mas por im- sa em torno do assunto e tudo decorria de não verem os eco-
posições de desequilíbrio económico. O que é mister é des- nomistas a realidade do que se dava. E por quê? Por que
cobrir o remédio para tais desequilíbrios. jamais esclareceram devidamente os termos económicos, e
quando os termos não são claros, não são claras as ideias
Não se trata de banir para sempre a inflacção, mas sim que tais termos desejam referir-se. É o que temos mostrado
de impedir o desequilíbrio entre os meios de pagamento e a e ainda mostraremos.
producção. Enquanto o remédio real, específico, não fôr
achado, o resto é literatura, é promoção de teorias e argu- Não se tinha uma teoria lúcida, clara, precisa das crises
mentação sofismática, quando não se propõe, como muitos e, consequentemente, também não se tinha possibilidade de
fazem, a morte do doente para acabar desde logo com a mo- alcançar meios técnicos capazes de resolver tais crises. E
léstia. o que se fazia? As práticas mais rudimentares e primárias
220 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 221

foram usadas: emissão de moeda além do lastro, da cober- se podem regular as transações sem tal espécie de moeda,
tura, o que foi feito já abusivamente, a organização de um quer internamente, quer externamente. Ainda mais: não
crédito sobre os estoques abarrotados, ao qual faltava a rea- impede a emissão abusiva, não evita a inflacção.
lidade e a base verdadeira. Desse modo, é verdade, au-
mentaram-se os meios de pagamento, mas esse aumento foi Não podemos nos excluir de duas realidades:
feito de modo abusivo e prejudicial, e deslocou-se a crise A Producção que gera a Oferta.
de um lado para outro, continuando a permanecer a mesma
que surge do desequilíbrio entre os meios de pagamento e a O Consumo, que gera a Procura.
producção. Ante as grandes dificuldades que oferece a vida econó-
Os remédios não curavam, mas apenas retardavam os mica, não é de admirar-se que se pergunte por que meio se
instantes catastróficos, e a crise irrompia, posteriormente, poderá regularizá-la. Qual o organismo que poderá realizar
mais intensa ainda. essa função? Na verdade, não há tal organismo, porque o
Estado não é capaz de fazê-lo. Ao contrário, perturba ain-
E qual a solução? Encontraram-na os economistas? da mais e agrava muito mais os problemas que surgem.
A resposta é uma só: não. O remédio não foi encontrado. Há economistas que acreditam que basta apenas o au-
Então sobreleva-se a dúvida: não será essa crise inerente mento da producção para que logo surjam, como por mila-
ao regime de producção e de distribuição em que vivemos? gre, os meios de pagamento, como Lansburgh.
Ou então resta, a outra pergunta: poderão os economistas
encontrar um remédio realmente eficaz ? Se podem, por que É verdade que o aumento de producção cria aumento de
demoram tanto em encontrá-lo? salários e outras rendas, mas por si só não tem sido capaz
de realizar esse desejo. E por quê? Porque nem tudo são
Pois bem, em face de tais acontecimentos, a teoria dos rosas. As injustiças sociais continuam, o enriquecimento
que julgam que o padrão ouro resolveria as crises esquecem- exagerado de uns se realiza em detrimento de outros; ade-
-se que o padrão ouro não as evitou, e foram elas que fize- mais a producção é irregular, muitas empresas perecem, há
ram abandoná-lo de vez. Há não poucos decénios atrás, era desemprego, perturbações políticas não cessam e, sobretu-
verdadeiro tabu o padrão ouro. Nem de leve suspeitavam do, ninguém está satisfeito, há uma ânsia universal de mais,
muitos que pudesse ser êle posto à margem. Se à moeda agudizam-se os desesperos. Em suma, uma série de facto-
subitamente se lhe tirasse o lastro, a cobertura que a garan- res extra-econômicos actuam na Economia. A crise, que se
tia, passaria a ser um mero papel pintado, sem valor algum. instala no mundo inteiro, tem raízes que vão além do campo
Contudo, os factos negaram as previsões. Moeda papel sem da Economia, porque não é só de Economia que vive o ho-
cobertura continuou valendo, embora menos é verdade, mas mem.
continuou valendo. E por quê? Porque com elas pagavam-
-se dívidas e impostos e porque pagavam-se dívidas e impos- Mas qual é o valor da moeda? O valor subjectivo?
tos foram aceitas como meios de pagamento para os produc- Não. O que pode interessar à Economia é o valor objectivo,
tores e salariados. o valor de compra, de acquisição. E esse valor é dado pela
. Afirmamos que se o padrão ouro oferece algumas vanta- renda, como vimos, e não pela moeda em circulação, que
gens, oferece inúmeras desvantagens, e não resolve por sua é apenas o numerário e que não se deveria confundir com
vez o problema. aquela.
Desaparecida a cobertura metálica, como vimos, não Afirma-se que a alta dos preços é uma decorrência do
desaparece o valor da moeda. Por outro lado, não são sufi- aumento das emissões, da circulação monetária. No entan-
cientemente convincentes as razões que apresentam os defen- to, nem sempre se verifica isso, mas o contrário, o aumento
sores do padrão-ouro, ademais dos factos demonstrarem que dos preços antecede as emissões, como se viu na França em
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 223
222

1919 e 1920, e também naquele país de 1926 a 1929: um au- culação, de um numerário superabundante. Por si só o nu-
mento na circulação sem a correspondente alta dos preços. merário não aumenta os preços. O que aumenta é a des-
Dando-se a alta dos preços, é natural que as despesas do Es- proporcionalidade da renda em relação à producção.
tado aumentem e, consequentemente, o deficit orçamentário, Se observamos o caso brasileiro, notar-se-á que há um
o qual, não tendo cobertura por meio de empréstimos ou aumento da casa de 3% ao ano na população, e que a produc-
por aumento de arrecadação, é coberto por meio de emis- tividade deveria ter um aumento muito superior a esse ín-
sões. No período de 1936 a 1937, houve outra alta de pre- dice para que a renda nacional se mantivesse estável. Mas
ços na França, tendo havido apenas dois anos depois um au- os aumentos que se verificam são nas cifras, e não realmen-
mento na emissão. Alguns economistas concluem que o au- te na productividade. A inflacção realizada pelo Estado na-
mento dos preços é que provoca o aumento das emissões, e da mais é do que um empréstimo indirecto e violento, por-
não o contrário. Outros exemplos semelhantes a estes ve- que é unilateral, não sendo consultada a sua vítima, o povo,
rifícaram-se na Inglaterra, onde de 1919 a 1920 os preços e ainda emite moeda falsa por boa. A distinção, que se de-
elevaram-se a 44%, enquanto a circulação teve um acréscimo ve fazer entre o numerário e a renda, está em que o nume-
de apenas 9%. O mesmo se deu na Suécia, na Noruega e rário poderá ser suficiente para todas as transações na
na Itália. Na Alemanha, nesse mesmo período, houve uma quantidade que forem, mas a renda pode ser insuficiente
alta de 111% nos preços com um acréscimo apenas de 18% para absorver toda a producção disponível.
na circulação. Depois de 1920, observou-se uma baixa con-
siderável dos preços sem qualquer redução correspondente Também pode acontecer que os meios de pagamento (a
da circulação. renda global) seja suficiente para absorver a producção, co-
mo se dá nos Estados Unidos, mas isso é evitado. Por essa
Na Alemanha de 1920 a 1921, os preços baixaram de razão, há ali tantas promoções de venda, tanta propaganda
23%, enquanto a circulação aumentou de 38%. No período para forçar o consumo. E por que se impede? E por que
negro de 921 a 23, na Alemanha, os preços subiram 430 ve- meio se impede? Impede-se por meio da preocupação cons-
zes mais, enquanto a circulação aumentou apenas 44 vezes. tante do problema internacional, porque, do contrário, a po-
pulação americana, se não tivesse que pagar tantos esforços
Monsieur Pleven, no discurso que fêz na Assembleia de auxílio à defesa nacional (onde se dá um consumo puro,
francesa em março de 1945, disse estas palavras: "Uma sem reproductividade), bem como auxílios aos diversos paí-
política financeira eficaz deve interessar-se menos pelo sin- ses mais necessitados, a procura nos Estados cresceria de
toma, que é a circulação monetária, do que pela causa pro- tal modo que os preços fatalmente subiriam e com eles as
funda, que é a separação entre as rendas monetárias e a reivindicações salariais, o desequilíbrio maior do orçamento,
producção. Na verdade seria mais fácil fazer uma opera- a necessidade de inflacção e toda a série de desequilíbrios
ção de aritmética elementar, aplicar a ideia simplicíssima sociais e políticos que tudo isso acarreta. A guerra-fria, de
de que a deflacção é de algum modo o contrário da inflac- certo modo, mantém mais equilibrada a Economia america-
ção, e que depois de haver emitido tanta moeda, bastaria re- na, embora pareça que não.
tirá-la da circulação para retornar-se à situação anterior...
em toda parte onde se intentou utilizar a deflacção como Não há uma equivalência entre os meios de pagamento
meio directo de provocar uma baixa dos preços, sem se agir e a producção, embora muitos economistas pensem o con-
de antemão sobre o equilíbrio fundamental do orçamento e trário. E tal se dá porque há a poupança e nem todos com-
da economia, em toda parte e sempre, a tentativa malogrou." pram tudo quanto podem comprar, nem pagam tudo quanto
devem.
Alguns economistas anotam que realmente se observa
que em certos países, e em certas circunstâncias, a emissão Em face das inúmeras teorias sobre a moeda, depois de
de papel moeda produz uma alta de preço, mas assinalam se haver posto de lado aquelas concepções que apenas se
que esta alta se deve a causas estranhas à injecção, na cir- fundavam nos aspectos accidentais e não captavam as suas
/
224 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 225

verdadeiras propriedades, que são as fundadas na sua es- mente o que significa ideal. Ideal é a perfeição não reali-
sência; depois de se considerar tudo quanto se disse e se zada fàcticamente, e que nunca o será por nenhum ser fini-
escreveu sobre o assunto, o que se pode concluir é que a ver- to, contingente, limitado. Assim, a sabedoria ideal é a sabe-
dadeira garantia de uma moeda é constituída pela massa doria perfeita, o saber sem deficiências de mínima espécie,
de bens económicos disponíveis que, por meio dela, se po- o saber imediato, capaz de penetrar o último mistério de
dem adquirir. Referimo-nos à moeda e não ao numerário. todas as coisas. Esse saber é para nós um ideal. Jamais o
Quanto a este seu valor é proporcionado à moeda (ou melhor homem o alcançará na sua plenitude, mas dele pode apro-
dinheiro), que êle representa. ximar-se a pouco e pouco, através do seu esforço constante
e da sua constante devotação ao trabalho intelectual. Tam-
Se as emissões de papel moeda tendem a financiar o bém é assim a saúde ideal, a vida ideal e todas perfeições
consumo é mister financiar a producção para evitar que os que somos capazes de captar. O que é capaz de ser alcan-
preços subam. çado realmente por nós, por nossos meios, por nossas pró-
Quanto ao aumento dos preços, é mister não esquecer prias deficiências não é o ideal, mas apenas uma aproxima-
que estes surgem apenas das emissões, pois sem elas podem ção dele, um estado que dele participa.
eles subir, como elas podem ser a consequência da alta dos Realmente, toda ciência tem um ideal, e a Economia
preços. Há muitos factores que provocam a alta dos pre- tem um: a sociedade economicamente perfeita. Mas, essa
ços, como já estudamos, e muitos podem ser desviados. sociedade jamais existirá. Já se foi a época das utopias
renascentistas e das quimeras socialistas. Estamos agora na
Se a inflacção é um mal, a deflacção é um mal ainda era da realidade social. O progresso humano pode seguir
maior. O que jamais se deve fazer é privar a nação de subindo mais degraus, mas jamais alcançará a meta final
meios de pagamento, sem os quais não é possível nenhuma dessa escada que escala a infinitude.
economia mais ou menos estável.
E que poderá levar o homem a essa revolução perma­
Pensar-se que se é capaz de construir neste lanço da nente, essa revolução que não violenta os degraus, porque
história do homem uma economia totalmente estável, é uma os degraus se vingam, propiciando as quedas espetacula-
ingenuidade. As crises são inerentes ao homem e conse- res, essa revolução que se processa aos poucos, com passos
quentemente à economia do homem. O que se pode fazer é de pomba, avançando hoje aqui, amanhã ali, sem os saltos
atenuar seus males, suas consequências perniciosas, e isso acrobáticos que geram retornos inesperados, essa genuína
não é apenas conseguido através de medidas estatais, mas revolução permanente é aquela que o ideal alimenta, inspira
com o apoio de todos num grande acto de cooperação. e guia.
Contudo, se o que se tem chamado socialismo não tem Tudo isso nos vem à mente em face de financistas e eco-
sido também capaz de resolver as crises económicas, há um nomistas, que julgam a Economia capaz de encontrar a fór-
regime que pode conseguir aminorá-las: é o cooperacional. mula mágica que resolverá por fim o problema da moeda, e
que fará o equilíbrio perfeito entre os meios de pagamento
Mas sobre isso falaremos em outra oportunidade, e não e a producção. Tal é um ideal, mas fàcticamente jamais
agora. será alcançado, embora possa o homem aproximar-se desse
equilíbrio perfeito. Para tal é mister que saiba êle reali-
* * * zar esse equilíbrio, que exige um organismo capaz de reali-
zá-lo, que só pode ser constituído pelos interessados num
grande organismo social, e jamais o Estado, que é o menos
Um dos preconceitos mais comuns de nossa época, que competente para tais coisas, embora seja todo-poderoso.
só tem servido para prejuízo do homem, é julgar que deve-
mos de uma vez para todas desterrar de nossos olhos os Jamais se encontrará a forma perfeita, porque ante o
ideais. Mas tudo surge de não se ter claramente ante a dinamismo e o cinematismo da vida social e económica, e a
226 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

quase impossibilidade de manter estatísticas perfeitas, o


equilíbrio estável, estático, é impossível, e só um equilíbrio
dinâmico é possível.
Nenhuma ciência afirma que é possível alcançar o tipo
ideal em plena facticidade. A Medicina sabe que é impos-
sível a saúde absoluta; sabe a Psicologia que são impossí-
veis os tipos psicológicos perfeitos; sabe a História que ja-
mais desvendará a verdade dos factos. Só economistas e
financistas crêem em fórmulas mágicas, só eles sabem, como
farão a plenitude humana, e o malogro acompanha quase
sempre seus actos, suas experiências, suas realizações.
O problema da moeda tem a sua fórmula dinâmica de
equilíbrio, sem magia, e que consiste apenas no que pode
realizar entre os meios de pagamento e a producção. E es-
se equilíbrio será dinâmico e nunca estático. Também é
outra ilusão julgar que poderemos alcançar uma sociedade
humana sem crises. Já demonstramos em "Filosofia da Bste livro foi composto e impresso para
Crise" que aquela é inerente ao ser humano, que é um ser a Livraria e Editora LOGOS Ltda., na
de crise, e que dela jamais se separará. Nunca chegare- Gráfica e Editora MINOX Ltda., a rua
mos a essa sociedade ideal. Ela apenas nos está a exigir Mazzini, n.o 167, em fevereiro de 1962
a aproximação constante. É uma promessa que ultrapassa São Paulo
as nossas forças, mas suficientemente forte para desafiar o
nosso brio.

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