Você está na página 1de 14

NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS COMO FONTE DE PESQUISA

PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM MINAS


NEVES, Leonardo dos Santos; PINTO, Helder de Moraes
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerias –
FaE/UFMG-FAPEMIG
leosneves@yahoo.com.br; pintohmp@yahoo.com.br
Resumo

O objetivo desse texto é expor, primeiro, algumas notas sobre uma massa de documentos
autobiográficos (livros e manuscritos) que abordam diversas faces da vida social e
educacional do território de Diamantina-MG, entre o final do século XIX e meados do século
XX. Trata-se, por exemplo, do livro “Minha Vida de Menina”, de Helena Morley (diários
escritos entre 1893-1895 e publicado em 1942). E do “Nosso Diário”, “meio pedagógico”
criado por Helena Antipoff em 1947, e praticado pelas normalistas por ela habilitadas. Por
conseguinte, iremos refletir sobre dados teóricos e metodológicos a propósito da escrita de
diários como fonte de pesquisa social e histórica. Buscar-se-á ressaltar vestígios do uso desse
objeto nas ciências sociais. Lembramos que esse trabalho é a consolidação da primeira etapa
de um projeto que visa apropriar esses registros pessoais como indícios para a reconstrução de
formas de vida engendradas diferentes tempos históricos do nordeste mineiro. Os diários -
parece-nos - são ricas fontes de informações a respeito da realidade que gerou as condições de
possibilidade de seu texto emergir, logo ele seria um espelho das práticas de vida da qual
nascerá. Assim, seus depoimentos são passíveis de prova e verificação uma vez que eles
podem e devem ser cotejados com outros informantes. Isso porque esses artefatos visam à
semelhança com o verdadeiro, ou seja, seus escribas guardam mais paridade com jornalistas
que com ficcionistas. Para isso, que método? Utilizamos dos procedimentos da pesquisa
bibliográfica e documental.
Palavras-chave: Autobiografia; Diários; Fonte histórica.

1 - Introdução

Este conselho que meu pai me deu de deixar de contar às amigas a minha
vida e os meus segredos e escrever no caderno é na verdade bom por um lado
e ruim por outro.
Helena Morley, 25 de novembro de 1894.

Esses escritos, que enchem muitos cadernos e folhas avulsas, andaram anos e
anos guardados, esquecidos.
Helena Morley, 1942.

Sob a forma singela duma narração, [O Diário] reflete o passa-tempo de um


grupo de alunos e professores que ali estudam, pesquisam a natureza e seus
segredos, aprendem coisas úteis ao homem do campo, pelejam e se
divertem, formando hábitos sadios de trabalho e de vida comum.
Helena Antipoff, 11-8-1948.
Este texto pretende apresentar alguns escritos autobiográficos, livros que foram
publicados a partir de diários e outras cadernetas e cadernos escolares, no final do século XIX,
em Diamantina-MG, arquivados pelos seus produtores. Além desses livros, iremos descrever
uma série de diários produzidos coletivamente por alunas duma escola normal rural, na
mesma cidade, em meados do século XX. Portanto, trata-se de duas categorias distintas de
escrita autobiográfica.
A primeira delas - os diários de cadernetas pessoais – forjados por uma escrita mais
livre, talvez, feita na intimidade, no quarto de portas fechadas, no fundo do quintal, às
escondidas, e que atendia a diferentes demandas sociais e afetivas daqueles que as criavam.
Porém, uma vez que eles foram transformados em livros, certamente, revisões e limpezas
foram realizadas, deformando o texto original. Já a segunda categoria de escrita - o “Nosso
Diário” escolar -, seria um ‘jornal diário’ que relataria o dia de funcionamento da escola. Esse
jornal tinha, no mínimo, dois objetivos: informar sobre a rotina da escola para seus gestores e,
desenvolver nos diaristas as habilidades necessárias à prática científica da escrita.
Abordaremos a produção desses materiais como prática de arquivamento das vivências
da intimidade, da vida privada. Assim como registro do cotidiano das experiências sociais e
coletivas de uma população. Por isso, defendemos os diários como testemunhos históricos
positivos, embora marcados por sutis armadilhas discursivas que dificultam sua interpretação.
Isso em parte por se tratar do resultado de gestos voluntários de alguém que quer arquivar
algo para o futuro, ou uma folha de informações a serem lidas coletivamente. Nos dois casos,
os documentos (aqui reunidos) são filtrados, são edições, seleções e cortes da realidade
vivida. O diário seria, entre outras coisas, o saldo por escrito de uma triagem feita de
acontecimentos cotidianos, segundo as convicções do escrivão e as condições postas pela sua
situação sócio-institucional.
O texto será composto de dois momentos. No primeiro, apresentaremos parte do
corpus selecionando, buscando caracterizar as condições históricas que os permitiram
emergir. E, para fechar essa parte, comentaremos algumas hipóteses sobre as potencialidades
dessa massa de textos como fonte para a história da educação.
E, na segunda parte, aventaremos alguns dados teóricos e metodológicos acerca da
exploração de autobiografias como fonte de pesquisa histórica. Apontaremos, então, alguns
campos de conhecimento que estudam a prática da escrita da história individual pelo próprio
indivíduo. Dessas referências analisaremos sugestões, maneiras de abordar os diários como
estojo de informações, testemunho, vestígio, depoimento de um dado período.
Antes de iniciar a descrição das fontes, convém sublinhar que a ocasião de surgimento
desses livros autobiográficos e diários flutua entre os anos de 1940 e 1970, tendo como
nascedouro o território de Diamantina-MG. É preciso ressaltar que esse contexto estava
fortemente marcado pelos fenômenos do êxodo rural e das políticas de urbanização da
sociedade brasileira. Lembraremos esses aspectos por considerar que o corpus em questão
está explicitamente interessado no jogo de forças estabelecido entre os adjetivos arcaico e
moderno, ou melhor: o urbano como atualizado e o rural como obsoleto.

Sobre Corpus Documental

Ciro Arno, 1942


Iniciaremos pelas Memórias de um estudante (1885-1906), de 1942, do Bacharel Ciro
Arno (pseudônimo de Cícero Arpino Caldeira Brant). Trata-se da organização em narrativa de
dados de seu arquivo pessoal, especialmente de suas experiências escolares, de forma a
retratar aspectos da vida cotidiana em Diamantina, Ouro Preto, Belo Horizonte e São Paulo,
locais onde viveu como estudante. Chama atenção à quantidade de detalhes com que relatou
as escolas, as festas, as amizades, a relação com a literatura, a imprensa, a conjuntura política
nacional, entre outras vivências.
“Num caderno que ainda possuo, escreve Arno, tenho copiados alguns artigos que
publiquei no ‘Ensaio Infantil’” (1942, p. 58). Ao que parece, o seu livro só foi possível porque
ele pode recorrer aos “cadernos” de infância/juventude e folhas avulsas que possuía no seu
arquivo pessoal.
Qual o perfil desses diaristas? São, normalmente, pessoas instruídas e, na maioria das
vezes, moradores da cidade e que adotam a escrita rotineira e espontânea, quase sempre em
primeira pessoa, como um rito particular. Isso pode ser dito para os casos de Helena Morley e
Ciro Arno.
O estilo utilizado por Arno, no livro, como o título diz, são “memórias”. Sua matéria
prima foi retirada dos seus cadernos que, por sua vez, serviram de base para a escrita da obra.
Uma característica do texto, portanto, são os verbos no pretérito. A o exemplo: “A mais antiga
recordação de minha infância foi...”, escreveu ele na primeira linha do primeiro capítulo, na
página 11. Sob essa perspectiva, o esforço de Arno para coletar dados se realiza quando ele
faz vir à memória lembranças provocadas pelo manuseio dos cadernos.

(ARNO, 1942, p 11)


A escrita no estilo de diário, por seu lado, também opera com verbos no pretérito, mas
pretende lembrar-se, normalmente, de um passado recentíssimo, e, além disso, usa o
dispositivo da datação no cabeçalho de cada texto, para marcar a passagem dos dias. Esse
aspecto, porém, não aparece no livro de memórias acima citado, embora várias datas
apareçam salteadas no corpo do texto.
Focaremos igualmente a obra Minha vida de menina (1893, 1895), de 1942, da
normalista Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant). Trata-se de seu
diário de adolescente e outros escritos, nos quais ela narra o dia-a-dia em família, as relações
de vizinhança, as experiências escolares, as atividades econômicas, o fim da escravidão, a
alimentação, a religiosidade, a moda entre outros temas. Por ser filha de garimpeiros, a
menina desenha um significativo quadro da crise da mineração e das expectativas produzidas
por essa circunstância.
Essa obra preservou a datação dia-a-dia, como se quisesse se manter na forma de
diário, porém, o fato de ter sido manipulada para publicação certamente implicou vários
cortes e correções. Apesar disso, diferente de Arno (que escrevia nos anos de 1940, sobre sua
infância e juventude), Morley publicava, na mesma época (1940), os escritos de 1893-1895.
Ela não usou dos cadernos para escrever outro texto, parece ter mantido o mesmo, claro que
com ressalvas.
Para Morley o diário era uma alteridade. Ela reconhecia o diário como alguém
diferente do grupo social que habitava, mas o tratava como um amigo passivo, que apenas
ouvia... íntimo. O diário seria como os vestígios de conversas secretas, datadas, escritos para
serem lidos no futuro, e, ao mesmo tempo, era uma maneira de dizer de forma livre, privada,
o que se quer dizer espontaneamente sem temor.
Não se pode esquecer que as provocações que geram os pensamentos que por sua vez
dão conteúdos aos escritos diários são acontecimentos sociais diversos, que impactam os
sentidos, os valores, as ideias dos diaristas de fora para dentro. O texto seria, portanto, uma
forma de objetivação da reação subjetiva, dos pensamentos e emoções, acarretadas por tais
afetações sociais.
Diferente dos elementos de seu grupo social, o diário seria como que uma pessoa de
outra cultura, capaz de ouvir a moça como um estrangeiro, respeitando seus pontos de vista.
O diário seria diverso, um amigo imediato, democrático.
O diário significava o lugar de arquivar os pensamentos fortes, objetivos e também
involuntários. A forma empregada era “narração simples”, quase rudimentar. Uma narração
da “vida” social e “escolar” (ANTIPOFF, 1948, p. 16). “Escrevo tudo neste caderno que é o
meu confidente e amigo único.” (MORLEY, 25 de novembro). Concretamente, ela parece
conversar com uma pessoa a quem se confiam segredos, ou talvez um interlocutor intelectual
que desempenha o papel de “espaço de análise e questionamento, um laboratório de
introspecção” (LEJEUNE, 2008, p. 262).
Dir-se-ia ainda que o diário realizava a intermediária entre a realidade e a
subjetividade, revelando, as vezes, um pensamento quase imoral, difícil de ser praticado
oralmente, num jantar, na rua da Quitanda, ou noutro situação pública. O diário é a morada da
memória dessas turbulências mentais, é a possibilidade dessas peripécias e intrigas geradas
pelas tensões da vida social, uma vez objetivadas no papel, persistirem ao tempo.
O diário era a maneira deles - os pensamentos menos domésticos - não serem
destruídos pela regras do regime moral vigente, pois estariam arquivados para serem revistos
no futuro. “ O diário é um espaço onde o eu escapa momentaneamente à pressão social, se
refugia numa bolha onde pode abrir sem risco, antes de voltar, mais leve, ao mundo real”
(LEJEUNE, 2008, p. 262). “Hoje vou contar aqui uma coisa que eu não quero escrever para
Seu Sebastião e que só confiarei a este caderno, que me guardará ainda por uns dias o
segredo”, declarou a menina ruiva, Morley, em 25 de novembro, 1894.
Com efeito, o diário, como forma de vida, era um trabalho de composição árduo que
impactava no corpo. Deforma o corpo. Era uma prática social que envovia desabafo,
pensamento, resistência e ação. “Depois deste conselho de meu pai de conversar com o
caderno a minha vida piorou e penso que emagreci ainda mais” (MORLEY, 25 novembro).
Cumpre sublinhar que a produção dos cadernos como instrumrnto de registro e observação de
um período da vida, consumia tempo e energia, significava dedicação.
Um traço metodológico positivo desses dois livros acima citados é que eles se
restringem a ambiência de uma mesma família, permitindo um mergulho profundo nesse
grupo social, porém, o material versa sobre elementos das elites locais, aspecto que reduz as
possibilidades de generalização para a população como um todo, uma vez que se refere ao
estilo de vida de uma minoria instruída.
Doravante, o Nosso Diário (1950-1972), registros das normalistas da Escola Normal
Regional D. Joaquim Silvério de Souza complementam o corpus delimitado para esse
trabalho. É imperativo apontar as finalidades pelas quais essa instituição foi criada. Fundada
na década de 1950, tal escola tinha como objetivo a formação de professoras para o meio
rural. Situava-se em Conselheiro Mata, distrito rural de Diamantina-MG, e assumirá um
método formativo que girava em torno das hipóteses escolanovistas, mas atravessadas por
uma ambiência religiosa. Era marcada ainda por um ensino experimental, defendendo formas
de aprender com a mão e os órgãos do sentido.
A produção de diários como prática de formação e reflexão foi um meio pedagógico
típico dessa escola normal, pois as normalistas descreveriam minuciosamente a realidade por
elas observada (ANTIPOFF, 1948). Os escritos eram produzidos com o intuito de armazenar
dados do cotidiano da escola rural. Desse modo, uma aluna era escalada para esse trabalho
conforme uma lista mensal, logo ela deveria observar e registrar os fatos da maneira mais
objetiva possível.
O “Nosso Diário” deveria funcionar como um “relato de viagem”, a princípio, uma
escrita quase pueril, mas “objetiva”, sistemática, e de cunho científico. Os dados deveriam ser
fonte de conhecimento, de deliberação e ação. Um plano de trabalho, talvez. O diário era uma
“narração simples” da vida, do passar do tempo no espaço rural, capaz de “formar hábitos de
trabalho e vida comum” (ANTIPOFF, 1948).
Desse modo, o “Nosso Diário” funcionava como um registrado do trabalho de
observação num dado ‘sítio’ de informação. Mas era ele também o lugar no qual “cada
narrador começa a revelar seu próprio jeito de dizer as coisas” (ANTIPOFF, 1948). Portanto,
as folhas avulsas e os cadernos, quase íntimas, mas nem sempre, era o local de iniciação a um
estilo de expressão, significava um exercício de formação literária. “Mantém-se um diário
porque se gosta de escrever” (LEJEUNE, 2008, p. 264), ou porque se quer que as normalistas
aprendam a gostar de escrever.
“Amanhã contarei aqui, meu caderno amigo, o que resolver sobre o broche furado sem
brilhante no meio”, escreveu Morley, em 25 de novermbro, 1894.
O linguista francês, Philipe Lejeune, no seu clássico “Pacto autobiográfico”, ele
sustenta um argumento que diz ser o diário um plano de trabalho, uma forma de produzir
deliberações e seguir em frente. “Fazer o balanço de hoje significa se preparar para agir
amanhã.” (2008, p. 263). “Há em mim debate e diálogo: passo a palavra às diferentes vozes
de meu ‘foro íntimo’. Essas discussões podem se repetir, levar a uma decisão, ou ao contrário,
estimular a esitação” (Idem).
Em verdade, “Nosso Diário” são manuscritos relatando às condições climáticas, as
tarefas cotidianas, as atividades pedagógicas, as refeições, entre outras práticas do
funcionamento da realidade escolar. Um importante elemento a ser destacado nos diários são
as observações subjetivas apresentadas, as alegrias e tristezas, as atitudes censuráveis ou os
comportamentos inadequados das colegas, o pensamento do dia, as anedotas e a elaboração de
desenhos sobre as tarefas realizas no dia ou sobre assuntos das aulas.
Os diários deveriam ser “autênticos”, “trazer a tona coisas deveras interessantes” que
uma vez objetivadas, descritas, serviriam de caminho para a elaboração de algum plano de
intervenção social que pudesse fazer progredir a qualidade de vida no “ambiente rural”
(ANTIPOFF, 1948, p. 18). “O diário, advoga o estudioso, também permite acompanhar de
perto uma tomada de decisão” (LEJEUNE, 2008, p. 262). Por certo então, essa elaboração das
observações do ambiente e a preparação por escrito das mesmas era um instrumento mais ou
menos precioso na hora de fazer escolhas e agir.
Não era por acaso que ao final do dia, a diarista deveria ler para as colegas e
professoras o texto, e essas sugeriam e corrigiam alguns trechos. A estratégia dos diários era
exercício da observação e do registro, para que elas, quando professoras, constituíssem uma
quantidade de dados objetivos sobre as escolas de distantes comunidades rurais onde
trabalhariam.

Nosso Diário, escrito por Cléa Gomes Godinho, 1958.


2 - Sobre a escrita autobiográfica
Os historiadores ainda não mediram satisfatoriamente a difusão social de
uma prática [os diários] cuja análise permanece como monopólio dos
especialistas em literatura.
Alain Corbin, 1991

Esse tópico acima do historiador Francês dos “prazeres” e “desprazeres” dos sentidos
olfativos e visuais tem no fundo uma chamada de atenção, uma denúncia da distração por
parte dos historiadores quanto valorização dos diários pessoais como fonte de pesquisa. Ele
parece perplexo em relação a essa atitude passiva da historiografia no trato com tal artefato
cultural. E ao mesmo tempo parece convocar seus colegas a entrarem na disputa e no debate
acerca desse objeto ao lado dos Estudos Literários.
A escrita de diários, cartas, memórias pode estar entrelaçada pela necessidade de
invenção da identidade pessoal e social. Assim, a narrativa visa responder a uma
autoindagação: quem sou eu?
A escrita autobiográfica é um elemento de interesse na produção da cultura ocidental
há séculos, ou pelo menos desde que Santo Agostinho deu a ver suas Confissões. Mas é
preciso ressaltar que esse interesse flutua segundo época e lugares. Conforme Viñao (2000, p.
9), a preocupação recente da historiografia com esse documento pode estar relacionada a
mudanças na cultura historiográfica que “durante uma longa temporada se dedicou a “aspetos
estruturales o a la génesis y evolución em el tiempo de procesos de larga duración em los que
los sujetos, como tales, desparecían.”.
Já o problema para o campo da história da educação era outro, precisava-se combater
uma historiografia de ideias sem contexto e sem sujeitos. Para Viñao (Idem, p. 9) “y en el
caso de la história de la educación, por último, porque lo habitual, hasta fechar no muy
lejanas, era tanto o predomínio de los discursos especialistas y normativistas, como el de uma
história abstrata e irreal de unas ideas o, como se decía, pensamiento pedagógico”. Mais uma
vez se nota uma renovação de método para resistir a uma história desencarnada e atemporal.
A escalada para uma história que também descreve vida de pessoas comuns, não
representativas das elites políticas, religiosas e militares reforçou os investimentos em fontes
autobiográficas. Nesta fecunda perspectiva, Viñao (Idem, p. 10) sublinha que “em el campo
de la historia social, por la historia de los de abajo y de las llamadas classes subalternas al
intentar sacar a luz y revalorizar la biografia personal de determinados protagosniostas de los
movimentos obreros y populares, o de personagens anónimos, y aparentemente irrelevantes”.
Essa demanda revela , portanto, uma falha da historiografia, qual seja, a de pensar que a vida
social é feita apenas pelos grandes vultos.
Se por um lado os documentos pessoais se tornaram um rico caminho para outras
histórias da educação, por outro, eles colocam alguns problemas de classificação, uma vez
que são bastante diversificados. Partindo dessa premissa, Viñao (Idem, p. 12) ressalta que “lá
diversidad y variedad de este tipo de textos por debajo de su aparente uniformidad”. Estudar
tal aparência exige, “primero, establecer uma tipologia de los mismos cuya construcción,
cuando se há intentado con motivo de algún catálogo, inventário o estúdio, há mostrado su
evolución temporal e las dificultades que conllevan el establecimiento y la caracterización de
los diversos tipos e modalidades”. Vale ressaltar aqui que tais formas de escrita são variáveis
conforme a época e autor, o que também resulta em problemas de identificação, descrição,
categorização e seriação dos mesmos.
Quando se escreve sobre si, de forma a arquitetar uma unidade lógica e linear da vida,
também se produz uma invenção literária a partir de experiências reais, objetivas e subjetivas.
Porém, isso não quer dizer que se fabrica ficção pura, mas sim, um entrelaçamento entre o que
foi e o que memória e a narrativa permitem dizer desse passado. O resultado dessa produção,
como nota Viñao (Idem, p. 15), pode ser paradoxal e sedutor. “Cuando lo público se privatiza,
lo privado se hace público y deviene objeto de interés geral. Ocupa el espacio de lo público,
transformando los refúgios del yo em refúgios, al menos potencialmente, de todos”. Uma vez
que a invenção do eu ganhou publicidade, ela pode desnaturalizar o binômio privado/público
e assim servir de norte para outras pessoas organizarem suas vivências a partir da comparação
e do exemplo.
Assim, a escrita autobiográfica funciona como espelho para outras pessoas, uma vez
que a intimidade é publicada, ela serve de parâmetros para outros indivíduos ordenarem o
caldo e o caos de suas vivências. Ora, se a ideia de espelho se sustentar, pode-se dizer,
portanto, que tal escrita se faz a partir da apropriação de elementos do contexto social comuns
ao tipo de sociabilidade da qual se comunga.
Ana Galvão, professointeressada na questão da cultura escrita, entende que o “gênero
(auto)biográfico tem sido objeto de estudos por historiadores - “micro-historiadores”-, na
medida em que coloca no centro da atividade de pesquisa dois problemas nucleares e pouco
resolvidos para a História: a memória e a relação entre indivíduo e meio social.” Desse
argumento vale comentar o termo “pouco resolvidos”, pois indica que a fonte autobiográfica
poderia ser uma das chaves para avançar sobre o problema: como o social se revela no
indivíduo, assim como este espelha aquele.
Parece-nos que a narrativa de si só pode ganhar sentido se costurada a uma narrativa
do entorno de si, ou seja, o ‘meio social’. Desse modo, o personagem ao contar sua vida
pessoal, elaboraria um vaivém entre o eu e o contexto e, logo, ao se construir, também
construiria uma escrita testemunhal de sua época. Portanto, a escrita de si pode ser vista como
história espontânea, amadora, se quiser. E mais que isso, ela pode significar um invólucro de
indícios históricos, tricotando uma gama vasta de temas que dizem respeito à esfera da vida
social e privada. Ela demonstra, provavelmente, a coletividade que circunda e condiciona o
ator social, que o força a dizer umas coisas e a calar-se sobre outras.
Outra preocupação metodológica é considerar que a centralidade do indivíduo reserva
armadilhas interpretativas entre o que foi e o que poderia ter sido sua experiência, visto que o
autor produz um movimento contínuo e entrelaçado entre a exposição do real e a criação
literária. Segundo Verena Alberti (1991, p. 66) “o ancoramento ao indivíduo - que em
princípio se destaca ainda mais no caso da autobiografia - não implica uma posição
‘monolítica’ e ‘linear’ do sujeito da criação, uma vez que o escritor, no processo de produção
da narrativa, se move continuamente entre o que é e o que poderia ser”. Aqui, portanto, o
problema para o historiador é o de como separar o que foi da criação.
Para Alberti a autobiografia reúne, organiza e completa as lacunas da memória. “Isso
ocorre porque a literatura constitui uma das modalidades de expressão e operação da
totalidade do indivíduo”. Logo, deve-se forjar um sujeito não despedaçado. Por isso, “no
processo de criação, o escritor procura, em seu foro íntimo, na completude de sua solidão,
uma lógica cósmica que reúne ao mesmo tempo sua experiência de vida, a experiência do
mundo e o incomensurável”. Criação como concatenação coerente dos estilhaços de memória,
às vezes, inconciliáveis: “dando-lhes sentido e conferindo uma totalidade própria àquilo que
antes parecia fragmentado” (Idem, p. 72). Ao historiador compete desmontar esses arranjos e
diagnosticar as contradições.
Cabe sublinhar que a escrita de si é o lugar da incongruência, do entrelaçamento
inovador entre o arcaico e o moderno, entre a informação e a ficção. “Paradoxalmente”,
escreve Albert (Idem, p. 73), a autobiografia, “nascida e legitimada no contexto da
modernidade, atualiza uma modalidade discursiva, que, segundo Benjamin, estaria
retrocedendo para o arcaico”. Ela era, no mundo pré-moderno, um dos discursos pedagógicos
de harmonização social, de manutenção da tradição.
Com efeito, essa afirmação do indivíduo via construção narrativa, movendo-se em
direção à ficção, defronta-se com os limites postos pelas barreiras do real condicionando o
acordo autobiográfico. Alberti (Idem, p. 74) observou que para o “escritor, a tensão entre o
imaginário e o real sofre um rebatimento para o plano do ‘eu’”. Desse modo, o imaginário
tem relação direta com o “ângulo de refração” das experiências pessoais do escritor. “Assim,
ao mesmo tempo em que o imaginário permite a transformação do escritor em personagem
que nada tem a ver com ele, tal transformação é alimentada pela refração de sua experiência
pessoal”. Isso matiza a qualidade ficcional do personagem, recolocando-o no seu contexto
social.
Podemos supor que a tensão entre o imaginário e o real, de que se ocupa a escrita de
si, acaba por efetivar um resultado que, se não observado, entrega ao pesquisador ideias
distorcidas da realidade como sendo o fato ocorrido, já que também na autobiografia se
pratica uma linguagem simbólica.
Alberti (Idem, p. 77) coloca essa questão da seguinte maneira: “tomando-se o próprio
texto autobiográfico, é possível supor que, como texto, também se aproxima do relato
mítico”. Em outras palavras, uma fabulação edificante. Assim se criaria “uma história
narrada, na qual se justapõem contradições, que caminha em direção a uma solução final,
espécie de alívio para a contradição antes experimentada entre o que ‘fui’ e o que ‘sou’”.
Logo, o personagem construído como um projeto sonega as contradições para se chegar num
ápice. Contudo, mesmo mítica, tal ficção estará suturada de realidade.
Raymond Williams (1984, p. 13) adverte que a escrita autobiográfica esconde
intenções subjetivas. “Ainda que necessariamente adote procedimentos impessoais de
exposição e análise, há sempre, por trás de tudo, um ímpeto, um engajamento pessoal”. Isto é,
não há relato livre de desejo, de imaginação.
Williams (1984, p. 25) assim se indaga: “será apenas o velho hábito de usar o passado,
os bons tempos de antigamente, como desculpa para criticar o presente? Sem dúvida algo do
gênero está em jogo, mais isso não resolve todas as questões”. Seria preciso descrever como
cada autor formula sua crítica. Assim, “teremos que realizar uma análise precisa de cada tipo
de retrospecção à medida que forem surgindo. Veremos as sucessivas etapas de crítica
fundamentada na retrospecção: a religiosa, a humanista, a política, a cultural. Cada uma
dessas etapas em si merece uma análise”. Tal pensamento sugere formas de escrita pelo jogo
de memória que realiza maneiras distintas e estetizadas de fuga temporal do presente.
A linguística disponibiliza metodologias importantes para a análise das autobiografias.
Nesse sentido, Lejeune (2008, p. 14) apresenta sua definição de autobiografia em quatro
categorias:
DEFINIÇÃO: narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de
sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular
a história de sua personalidade. Nessa definição entram em jogo elementos
pertencentes a quatro categorias diferentes:
1. Forma da linguagem:
a) Narrativa;
b) Em prosa.
2. Assunto tratado: vida individual, história de uma personalidade.
3. Situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma
pessoa real) e do narrador
4. Posição do narrador:
a) Identidade do narrador e do personagem principal;
b) Perspectiva retrospectiva da narrativa.

Entretanto, ele aponta para outros gêneros que circundam essa definição como a
memória, a biografia, o romance pessoal, o poema autobiográfico, o diário e o autorretrato ou
ensaio. Segundo Lejeune (2008, p. 15), o texto deve ser principalmente uma narrativa, afinal
ela é estruturante nessa escritura. Além disso, destaca-se o caráter retrospectivo desse gênero:
“isso não exclui nem seções de autorretrato, nem diário da obra ou do presente
contemporâneo da redação, nem construções temporais muito complexas”. E por fim,
participam dessa composição a vida individual, a formação da personalidade e a história
sociopolítica.
A identidade narrador-personagem principal constitui o componente de análise que
nos auxilia na compreensão do “eu” das escritas autobiográficas. A colocação na primeira
pessoa é utilizada na maior parte das vezes, entretanto pode ocorrer narrativa em primeira
pessoa sem que o narrador seja a mesma pessoa que o personagem principal. Nesse universo,
é completamente possível que haja identidade entre narrador e o personagem principal sem o
emprego da primeira pessoa.
A essa indecisão pode ser acrescida o fato de o uso da identidade do narrador ser
colocado, em alguns casos, em terceira pessoa. Esse artifício foi utilizado em diversas
circunstâncias e causa diversos efeitos. Afinal, sublinha Lejeune (2008, p. 16-17): “falar de si
na terceira pessoa pode implicar tanto um orgulho imenso (...), quanto uma certa forma de
humildade”. Nas duas formas, o narrador assume um distanciamento do personagem que
proporciona resultados de contingência, de desdobramento ou de distanciamento irônico.
Outra apreciação oferecida por Lejeune é o sentido de Pacto autobiográfico, como a
afirmação no texto da identidade do autor. Isso ocorre através de diversas manifestações no
escrito e tem o desígnio de garantir sua assinatura. Nesse contorno, o leitor pode alçar
questões sobre a similaridade, mas não sobre a identidade do autor.
A autobiografia são textos referenciais que da mesma forma que discursos científicos,
históricos ou políticos tem como objetivo fornecer informações a respeito de uma “realidade”
ou uma semelhança sobre o verdadeiro, localizado fora do texto. Essa imagem do real é
denominada por Lejeune como “pacto referencial”.

Em oposição a todas as formas de ficção, a biografia e a autobiografia são


textos referenciais: exatamente como o discurso científico ou histórico, eles
se propõem a fornecer informações a respeito de uma “realidade” externa ao
texto e a se submeter, portanto a uma prova de verificação. Seu objetivo não
é a simples verossimilhança, mas a semelhança com o verdadeiro. Não o
“efeito de real”, mas a imagem do real. (LEJEUNE, 2008, p. 36).

Considerações finais

Pode-se perceber, então, a existência de um pacto de probidade entre o autobiógrafo e


o leitor, traduzido na premissa segundo a qual o narrador se compromete em descrever a
verdade, ser fidedigno aos fatos. Logo, o narrador comporta-se como um fotógrafo que
registra a realidade: mirando, selecionado e retratando episódios conforme suas necessidades
éticas e estéticas, mas limitado pelo alcance do seu zoom-retrospectivo.
Todavia, devemos relacionar a “verdade” ao “possível”, levando-se em consideração
os inevitáveis esquecimentos, erros, deformações involuntárias e voluntárias, além dos
deslizes no percurso da escrita de si.

Referências

ALBERTI, V. Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa.


Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 4, n. 7, 1991, p. 66-81.

ANTIPOFF, Helena. Coletânea das obras escritas de Helena Antipoff. CDPHA (org). Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1992.

ARAÚJO, Maria da Conceição Ferreira. O diamante que não foi lapidado. Belo Horizonte:
Editora Autor, 1982.

ARNO, C. Memórias de um estudante. Belo Horizonte, 1942.

CORBIN, Alan. Bastidores. In: PERROT, M. (dir.). História da vida privada: da


Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 413-
610.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. A escrita autobiográfica na (re)construção de um percurso


de inserção na cultura escrita. In: VI CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA
DA EDUCAÇÃO, 2006, Uberlândia. Anais do VI Congresso Luso-Brasileiro de História
da Educação. Uberlândia - MG: Universidade Federal de Uberlândia, 2006. p. 2.735-2.747.
LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2008.

MORLEY, H. Minha vida de mocidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Escola Rural:


Boletim dos cursos de aperfeiçoamento para professores rurais. Belo Horizonte, Ano [I]
1948, n 2, out. / dez 1948.

VIÑAO. A. A modo de prólogo, refúgio del yo, refúgios de otros. In: MOGNOT, Ana
Chrystina Venâncio et all (org.). Refúgio do eu: educação, história e escrita
autobiográfica. Florianópolis: Mulheres, 2000.

WILLIAMS, R. O Campo e a Cidade, na história e na literatura. São Paulo: Companhia


das Letras, 1989.

Você também pode gostar