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A ESCRITA DIVINA

George Steiner
Nas próximas páginas, o ensaísta francês analisa o Guia literário da
Bíblia, obra coordenada pelos renomados críticos Frank Kermode e Robert
Alter, que será lançada no Brasil em setembro pela Editora Unesp

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O Deus dos filósofos e dos leigos iluministas pode ter
morrido no século XIX, mas o Deus da Bíblia, a linguagem
e a visão de mundo geradas por sua presença narrativa
continuam vivas nos escritos de Thomas Hardy,
Thomas Mann, Gide e Proust.

Como poderá ser testemunhado por qualquer professor de segundo ou jogo de Samuel Beckett é uma meditação exata sobre os instrumentos e
terceiro grau, as alusões a textos bíblicos, mesmo os mais celebrados, caem as finalidades da Paixão. Mas uma ruptura trincou o espectro da sensibilidade
hoje no vazio. Podemos nos sentir tentados a definir o modernismo na cultura e da recepção gerais. A câmara de ressonância natural de nossa consciência, de
ocidental em termos do recesso em que o Velho e o Novo Testamento se nossa fala, não inclui mais o “delicado corte de Agag” ou o “peso do gafanhoto”.
encontram quanto a seu reconhecimento pela média das pessoas. Tal No que diz respeito ao vocabulário, à rapidez de se entender as metáforas,
reconhecimento, especialmente no mundo anglo-saxão e no das crenças o empobrecimento tem sido drástico. Em sua essência, porém, a dentada foi
luteranas, tem sido o impulso para o aprendizado da leitura e da escrita, a política e social. Nas comunidades e países de fala inglesa, um certo conheci-
matéria comum ao intelecto e ao sentimento desde o século XVI. A mento da Bíblia – vindo de casa, da escola dominical, dos sermões,
Bíblia do rei James e a de Lutero, com seu alfabeto de do ambiente comum de convivência – era um laço entre as
referencialidade imediata, são responsáveis por grande classes, os grupos étnicos e outros dentro e fora das denomi-
parte de nossa civilização, não apenas na esfera da nações religiosas formais. Este legado compartilhado
devoção pública ou privada, mas também da política, assegurou as formas primárias de justiça, de destino
das instituições sociais, da imaginação estética e comum, de responsabilidade quanto ao pacto que confi-
literária. Este alfabeto enlaça a poesia de Milton à gura a vocação para a democracia. A demão de obscuro
prosa de Abraham Lincoln, aproxima os traços messiâ- historicismo e de esperança que se vislumbrava nos discur-
nicos de Trótski da política do espírito em Carlyle e em sos de Franklin Delano Roosevelt e de Churchill não era
Ruskin, e da gramática da profecia em Emerson. menos guiada pelo pulso da Versão Autorizada [das Escritu-
A universalidade modelizante do código das Escrituras durou ras] do que a da prosa de Gladstone ou dos compiladores da
sensivelmente mais do que a força geral da religião. O Deus dos filósofos Constituição. O desaparecimento do escritural em nosso cotidiano, no que
e dos leigos iluministas pode ter morrido no século XIX, mas o Deus da Bíblia se refere às idéias e aos propósitos, aos conselhos e às promessas no corpus de
e a linguagem e a visão de mundo geradas por sua presença narrativa continuam nossa política ocidental, implica uma verdadeira quebra na solidariedade, no
formidavelmente vivas e operantes nos escritos de Thomas Hardy, Thomas consenso dentro do dissenso. A fragmentação que se nota no discurso é
Mann, Gide, Proust. Nós não teríamos os ritmos da prosa de Hemingway precisamente a de Babel. O Pentecostes já não significa mais a luz do espírito
sem o Eclesiastes, nem as tristezas dinásticas de Faulkner sem as Crônicas e radiante que se distribui por entre línguas diversas, mas um palrar vago,
os Livros dos Reis. O mundo de Schoenberg é bíblico até o âmago e o Fim de estridente e mutuamente hostil.
Mesmo essas duas referências elementares – à torre orgulhosa de Nimrod
Copyright © 1988 by George Steiner
Publicado originalmente pela revista The New Yorker
e à descida de línguas de fogo sobre os transidos apóstolos – não creio que
com o título The good books suscitem uma compreensão e uma resposta espontâneas senão em uma minoria

Não teríamos os ritmos da prosa de Hemingway


sem o Eclesiastes, nem as tristezas dinásticas
de Faulkner sem as Crônicas e os Livros dos Reis.
O mundo de Schoenberg é bíblico até o âmago e o
Fim de jogo de Samuel Beckett é uma meditação
sobre os instrumentos e as finalidades da Paixão.
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A Bíblia deixou de ser uma presença ativa
na escolaridade cotidiana, para sê-lo na teologia, na
antropologia comparada e, mais recentemente, nos
estudos de semântica e literatura.

de leitores. Como conseqüência disso (e esta é uma situação que, reconhecida- iriam substituir as da doutrina religiosa. Mais precisamente, Arnold reconhe-
mente ou não, o Catolicismo Romano tem favorecido ao longo dos tempos), a ceu que o legado religioso no Ocidente, tanto para as artes quanto para as
Bíblia hoje deixou de ser uma presença ativa na escolaridade cotidiana, para letras, sobreviveria melhor na medida em que se tornasse objeto de apreciação
sê-lo na teologia, na antropologia comparada e, mais recentemente, nos estudos estética: os Salmos resistiriam como poesia e Chartres como suprema
de semântica e literatura. Como um Stradivarius intocado, o ex-texto-sagrado arquitetura. Onde a fé reflui a beleza permanece. Nessa inversão há, inclusive,
mora na caixa de vidro com ar condicionado do olhar desapaixonado. uma simetria muito justa: a leitura que se faz hoje da Bíblia em termos de crítica
Nossa práticas modernas de análise e crítica literária e as artes do crítico literária está levando de volta para sua origem os métodos e as energias da
e do resenhista sério, bem como as do explicador acadêmico e do imaginação que dela inicialmente se tinham desprendido.
editor derivam diretamente da exegese bíblica. As técnicas e É justamente este movimento rumo às origens que caracte-
as convenções das glosas e comentários, das recensões de riza a intenção e a prática do Guia literário da Bíblia [que
textos (a comparação das diferentes versões de um dado será lançado pela Editora Unesp no final de setembro, com
escrito), da marginália, desenvolvidas pelos escoliastas tradução de Gilson César Cardoso de Souza], editado por
da Antigüidade, foram adotadas pelos Pais da Igreja, de Robert Alter e Frank Kermode. O professor Alter é um
um lado, e pelos Talmudistas, do outro. Eles, por sua dos principais leitores leigos e expositores do gênio
vez, assimilaram as disciplinas da leitura analítica e da narrativo e poético da Bíblia. Para os comentários, ele
elucidação sistemática praticadas pelos sábios da Idade conta com o conhecimento do hebraico e do judaísmo,
Média e pelos tradutores e comentadores das Escrituras da ligado a uma bagagem literária excepcionalmente vasta, tão
Renascença. A história deste tipo de leitura é fundamental na vasta como a autoridade de seu juízo. O professor Kermode tem
tradição ocidental. Nossas universidades seculares originaram-se daí. E sido desde há muito uma figura eminente entre os professores e os críticos
o mundo de nossos livros é, obviamente, seu descendente mundano. das literaturas inglesa e européia, da Renascença ao Romantismo e à Idade
É estimulante, no entanto, verificar agora que o movimento do espírito Moderna. Ultimamente, tem se voltado cada vez mais para a análise dos
está sendo objeto de uma reversão. Os métodos dos estudos literários, a crítica meios narrativos e para os usos dramáticos e simbólicos dos Evangelhos.
literária em seu sentido mais leigo, estão começando a ser aplicados à Bíblia. Alter e Kermode, que contribuem com ensaios introdutórios e comentários
Despojada, para as sensibilidades mais agnósticas e educadas, de sua aura específicos, procuraram a colaboração de renomados estudiosos da Bíblia
numinosa de inspiração divina e de sua função de revelar a verdade, a Sagrada e de especialistas no Novo e no Antigo Testamento. O elenco dos
Escritura está sendo agora resgatada pelo crítico literário do olvido ou das colaboradores, entretanto, conta também com a presença de Edmund
meras mastigações domingueiras. Essa reversão, por sinal, foi prevista há uns Leach, um dos antropólogos estruturalistas mais em vista, e de Gabriel
cem anos por Matthew Arnold. Ele profetizou que as verdades da poesia Josipovici, romancista e teórico da vanguarda literária.

Nossa práticas modernas de análise e crítica literária


derivam diretamente da exegese bíblica. A história deste
tipo de leitura é fundamental na tradição ocidental.
Nossas universidades seculares originaram-se daí e o
mundo de nossos livros é seu descendente mundano.
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Os métodos dos estudos literários, a crítica literária
em seu sentido mais leigo estão começando a ser
aplicados à Bíblia. Despojada de sua aura numinosa de
inspiração divina e de sua função de revelar a verdade,
a Sagrada Escritura está sendo resgatada do olvido
pelo crítico literário.

O termo “literário” do título é a palavra-chave. Trata-se de um guia das O apelo recorrente a conceitos como “estrutura” e “codificação” gera e
Escrituras book-by-book (que remete de um livro a outro) para os leitores justifica a tese essencial deste guia. Lá onde a “crítica mais erudita” e a
da crítica e análise literária modernas. É um convite constante a responder análise textual do século XIX e do começo deste desmembraram a Bíblia,
aos códigos “de duas vozes” da narrativa, à função orgânica de “orientar as tentando identificar diferentes níveis de autoria, de cronologia, de origem
metáforas” nos episódios do Antigo e Novo Testamento. Ele detecta certa idiomática e cultural, muitas vezes intrinsecamente contraditórios – certos
“fúria para a ordem estética” por baixo da superfície áspera e rebarbativa exegetas alemães chegaram ao ponto de levantar meia dúzia de camadas de
das anedotas e dos elencos arcaicos. Não há menos “inversões e subversões” invenção e de composição numa única narrativa bíblica ou numa parábola do
em Jó do que em, digamos, Kafka ou Joyce. A obra de Proust é Evangelho – Alter, Kermode e seus pares clamam veementemente
invocada quando se trata do obscuro sentido do passado em pela unidade. Lidas ou ouvidas à luz da herança de Henry
Amós. As “complexidades temporais proustianas” surgem James ou de Joyce, as bruscas mudanças de entonação, de
igualmente no Evangelho de Marcos. Um koan zen ilumina foco narrativo, de forma estilística no Gênese e em certas
as concisões enigmáticas e a dialética subliminar do partes do Êxodo ou de Mateus não sugerem nem autoria
Eclesiastes. Para captarmos a força cumulativa da múltipla nem corrupção textual, mas tão somente as
reiteração nas convenções hebraicas de relato de histórias, habilidades literárias sutis e as intenções complexas dos
nós temos que aprender a responder à “dinâmica da antigos mestres retratistas e contadores de histórias. Para
repetição progressiva”, tal como se dá em certos romances citar um símile decisivo quanto a este compêndio, não
modernos e, eventualmente, na poética de Walt Whitman. estamos diante de ovos quebrados, mas de omeletes
Os patronos intelectuais desse empreendimento são densamente e muitas vezes enganadoramente mexidas. O resultado
introduzidos sem delongas: eles vão de Erich Auerbach, cujo famoso é um paradoxo fascinante: por motivos de ordem inteiramente secular, os
livro Mimesis deu início às correntes da leitura comparativa de hoje e ao editores e os produtores do Guia literário chegam muito mais perto dos postulados
estudo da “narratologia” (a investigação sistemática dos diferentes códigos fundamentalistas de unidade e de coerência interna da Bíblia do que faziam as
e contextos da narrativa), até Mikhail Bakhtin, cuja doutrina da “polifonia” prévias gerações de estudiosos de textos, possivelmente crentes.
do discurso e cujos pontos de vista sobre as construções literárias exerceram Assim, J.P. Fokkelman, da Universidade de Leiden, descobre que a
grande influência na estética contemporânea. A antropologia cultural de textura aparentemente pluriestratificada do Gênese contém a definição
Claude Lévi-Strauss e de Edmund Leach, com suas anatomias lingüístico- unificadora do significado de espaço e tempo que será a seiva básica da Torá
sociológicas dos mitos, é fundamental. A presença de Northrop Frye faz- como um todo. Numa leitura verdadeiramente brilhante de Josué e dos
se notar (embora aqui a aliança possa não ser de todo lícita, uma vez que Juízes, David Gunn, do Seminário Teológico de Columbia, argumenta que
se trata de um crente). “o hiato entre a retórica do preenchimento e a retórica da incompletude”

As verdades da poesia substituíram a doutrina religiosa.


Onde a fé reflui, a beleza permanece. Nessa inversão há
uma simetria muito justa: a leitura que se faz hoje da
Bíblia em termos de crítica literária está levando de volta
para sua origem os métodos e as energias da imaginação
que dela inicialmente se tinham desprendido.
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Lidas ou ouvidas à luz de Henry James ou de Joyce, as
bruscas mudanças de entonação, de foco narrativo, de
forma estilística no Gênese e em certas partes do Êxodo
ou de Mateus não sugerem nem autoria múltipla nem
corrupção textual, mas somente as habilidades literárias e
as intenções complexas dos antigos mestres retratistas e
contadores de histórias.

produz construções profundas de lógica narrativa e estrutural, a partir dos semântico que mostra como Deus deseja tornar-se conhecido através de
diversos segmentos e das diferentes vozes do original. Esta interpretação, por seu próprio envolvimento particular na história e na fala humanas.
sua vez, está de acordo com a decodificação que Robert Alter faz do enigmático No Sermão da Montanha, tal como Mateus o descreve,quase todas as
conto da filha de Jefté. Para entender a promessa fatal do afortunado guerreiro Beatitudes são paradoxos. E, por meio do Evangelho, Frank Kermode mostra
[ele prometeu sacrificar a filha], nós temos que voltar-nos à “instável coreografia como as articulações do paradoxo se modulam numa “demanda explícita de
de palavras, em que certas formulações são incisivamente reiteradas e excesso”. O “caráter dessa autoridade nova e trascendente é desvelado em
deslocadas internamente à medida em que são repetidas”. Esses desvios devem vários episódios”, cuja construção narrativa e cujos extremos retóricos devem
ser observados, paralelamente, nas esferas concêntricas das estruturas ser notados nos detalhes. Somente assim nós poderemos perceber
temáticas mais amplas, que relatam o enigmático episódio não os deslocamentos da expectativa lógica e lingüística entre o
apenas ao resto dos Juízes, mas aos restantes Livros de Crônicas narrador, o ouvinte ou o leitor – deslocamentos esses que
da Bíblia. Para usar a famosa imagem de Henry James, há exprimem e simbolizam a imensa “ruptura” que é o advento
em todo lado uma “figure in the carpet” que gera os desígnios de Cristo. O que preocupa Kermode aqui “é a maneira,
e os propósitos da retórica. Os sentidos de um texto do e não a mensagem a ser interpretada pelo fiel; os
Antigo Testamento podem dificilmente ser captados se Evangelhos são escrituras antes de mais nada, qualquer
ignorarmos certos traços estilísticos e estruturais dos que seja o uso subseqüente que se faça deles”. Na Epístola
elementos literários. É justamente “suas articulações sutis aos Hebreus, tal como em outros momentos do Novo
enquanto literatura” que esse Guia literário apresenta. Testamento, Josipovici argumenta que não devemos nos
De que forma, pergunta George Savran, temos nós que esforçar para resolver as contradições, para impor respostas unívocas
registrar as “suspeitas” e o senso de ambigüidade que nos desafia às questões colocadas pelo simbolismo, pela deliberada “sobriedade” da
quando lemos a descrição da vitória de Jeú sobre o mau Acab, no segundo visão de Jesus que o autor quis expressar. Esta “sobriedade” não é uma
Livro dos Reis? Somente o saberemos se penetrarmos na “estratégia do rubrica teológica: Josipovici a faz derivar – assim ele nos informa – dos
narrador”, com suas duplicidades de atitude, oblíquas e codificadas, e escritos da antropóloga cultural Mary Douglas. Aqui a unidade é a “ausência”,
reconhecermos de que maneira episódios intrigantes “se sucedem” de para utilizar uma terminologia familiar aos leitores da poesia e da ficção deste
modo a celebrar o feito de Jeú, mas ao mesmo tempo subverter sua motivação. século. Encontramo-nos na ambiência não de Cotton Mather ou mesmo de
O castigo do terremoto, profetizado por Isaías, é literalmente “uma exibição Freud, com seus hábeis vieses para encontrar soluções, mas antes de Borges.
onomatopéica”, que deve ser ouvida em hebraico (L.A. Schökel – Pontifício Os modos literários dos Atos são helenísticos. Tanto as saudações das
Instituto Bíblico). Do ponto de vista estrutural, o Êxodo é um coerente Epístolas, quanto os flashbacks, as inserções em discurso indireto de digressões
“Livro do Nome”, como ele é chamado na tradição judaica – um todo e exemplos históricos são retirados por Lucas dos historiadores e retóricos

Por motivos de ordem inteiramente secular,


os autores do Guia literário da Bíblia chegam
muito mais perto dos postulados fundamentalistas
de unidade e de coerência interna da Bíblia do que
faziam os crentes que estudavam as Escrituras.
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Nada nesse admirável vade mecum faz com que o ser
humano seja confrontado com a selvageria do Livro de
Josué – o massacre e a escravidão que assolam o vencido
através da obscura poesia desse saber arcaico. Apenas
considerações estilísticas superficiais são arroladas para
dar conta do antropomorfismo impetuoso que dá origem
ao embate de Jacó com Deus.

pagãos. Nós estaríamos comprometendo a força de persuasão de Lucas se não assoberbantes provocações da Bíblia (singularidade e provocações essas, diga-
soubéssemos identificar a “sofisticação” de sua sintaxe, de seu ritmo e do uso se de passagem, independentes do alcance das modas correntes da crítica
de ornamentos. A distorção à qual Festo submete a fala de Paulo revela as literária)? Será que nos ajuda a compreender de que maneiras a Bíblia e a
ironias exortativas de um mestre da dialética. necessidade de respostas que ela exige são diferentes de qualquer outra coisa?
Toda essa abordagem pode ocasionar iluminações e mesmo revelações Desse livro – e eu insisto em que ele contém muito de iluminador,
de leitura. John Drury, do King College de Cambridge, contribui com convincente e sutil – desprende-se uma terrível brandura. A Sagrada Escritura
uma introdução a Lucas que é exemplar em sua erudição e finesse inter- é aconchegada no equilíbrio e na urbanidade acadêmica desses comentários
pretativa. Esse é, possivelmente, o melhor capítulo da obra. e – exaltada por sua “pungente mundanidade,” por seus prenúncios
Josipovici, por sua vez, é agudo e estimulante em seus da grande poesia secular e do romance moderno – ultrapassa
comentários às Epístolas, ao passo que Kermode exibe muito um grande número de outros livros importantes de
seus grandes dons de expositor e de analista temático e alta antigüidade e diversificação estilística. Ouvimos
comparatista na sua abordagem de João. Robert Alter mencionar “omeletes” e “panelas de pressão”, mas não o
comunica, com sua autoridade natural, a maravilha terror, o mysterium tremendum que habita as tentativas
pura da música, formal e consubstancial, e da presença humanas de falar com Deus e de falar sobre Deus.
poética dos usos pessoais e sociais nos Salmos. A visão Nada, nesse tantas vezes admirável vade mecum, faz com
de Shemaryahu Talmon da história de Daniel como que o ser humano seja confrontado com a selvageria irrom-
“romance da Diáspora” é convincente, da mesma forma pente do Livro de Josué – o massacre e a escravidão que
que o é a glosa de Joel Rosenberg da “visão panorâmica” e das assolam o vencido através da obscura poesia desse saber arcaico.
“brilhantes inversões de disposição e de tom” na eloqüência confessional Apenas considerações estilísticas bastante superficiais são arroladas para
e no alarme de Jeremias. As outras contribuições nada ficam a dever. A dar conta do antropomorfismo impetuoso que dá origem ao embate de Jacó com
seção sobre a Revelação, onde o leitor moderno precisaria tanto de ajuda, Deus, ou da passagem das “partes posteriores” de Deus diante da compostura
não tem, entretanto, nenhuma ligação visível com os princípios e os métodos de Moisés. Chego a me ver pensando que é como se um homem de mais ou
de que se valem as outras partes do guia. Não passa de recepção de textos menos minha composição biológica e social tivesse escrito o Hamlet ou o
do gênero mais antiquado. O adendo referente às “Traduções inglesas da Lear e tivesse ido para casa almoçar e encontrado uma resposta normal para a
Bíblia” chega a ser inútil de tão pouco perspicaz e superficial. pergunta “Como foi seu dia hoje?”.
Na verdade, porém, nem os acertos específicos nem as falhas eventuais Não consigo conceber o autor do Discurso do Furacão em Jó escrevendo
estão realmente em questão. A pergunta é esta: Será que este Guia ou ditando este texto e mantendo-se dentro das molduras da existência e da
literário nos ajudará a entender convenientemente a singularidade e as fala comuns. O mesmo parece ocorrer em algumas passagens do Eclesiastes

A separação racionalista e agnóstica entre a recepção


teológico-religiosa e a literária dos textos bíblicos é
radicalmente facciosa. O autor de Jó não estava
produzindo “literatura”. Nem o estavam os que
presenciaram “as trevas sobre a terra” na tarde da
Sexta-feira Santa. A elucidação literária dos textos só é
legítima se reconhecer que omite o essencial.
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Para aqueles capazes de escutar o terror em Marcos,
para aqueles capazes de ler o vazio do túmulo em sentido
pleno, Cristo está - como disse Pascal - “em agonia até o
final dos tempos”. Este abismo de desespero é
completamente indivisível de seu modo de expressão.

e em alguns trechos da Paixão de Cristo. Nenhum leitor do Guia, Sexta-feira Santa. A elucidação literária de tais textos é legítima e pode ser de
porém, chegará rapidamente à conclusão que não há nada na literatura mundial e, ajuda, mas somente se reconhecer seus próprios princípios de exclusão –
quem sabe, no pensamento humano, da estatura de Jó ( O que poderá levá-lo a isso somente se nos disser que aquilo que omite é o essencial.
é a tradução empolgante de Stephen Mitchell publicada pela North Point Press). Cada comentário é acompanhado por uma bibliografia de ulteriores e
As questões rudes, espinhosas, são evitadas na medida do possível. A relevantes leituras sobre cada dado Livro da Bíblia. Em nenhum lugar do
mais do que precisa prefiguração do papel de Cristo e de sua agonia, nos guia é feita uma referência sequer tanto a Karl Barth sobre os Romanos,
Salmos e no Deutero-Isaías, é referida apenas de passagem. Isso, ao contrário, quanto a Rudolf Bultmann sobre o Quarto Evangelho. Esta omissão vale por
é o que tornaria possível ao leitor moderno ter consciência do ódio inteiros volumes. Ocorre que quer Barth, quer Bultmann são leitores
plenamente conseqüente, na Epístola aos Romanos, em relação atentíssimos, de penetração inigualável, e expositores cuja
ao judeus – ódio este incomparavelmente transformado em intensidade é plenamente compatível com as palavras que
frases e metáforas por Paulo. Do jeito que é apresentado, têm diante de si. Eles também dedicam uma agudíssima
só se pode sentir o peso de seu fruto morto em nosso atenção aos elementos lingüísticos, retóricos e contextuais
século. É justamente porque os Salmos e a literatura das Escrituras. Assim fazem também os mestres da exe-
dos Profetas, no Antigo Testamento, prenunciaram tão gese rabínica. Para esses escritores não há divórcio entre
graficamente Jesus, que a rejeição de Jesus por parte a compreensão literária da palavra e a insondável questão
dos judeus daqueles dias choca Paulo como uma blasfêmia do Logos – daquilo cuja formulação é sem dúvida deste
propriamente suicida, um ato de autonegação que põe a mundo (embora possivelmente de um mundo decididamente
humanidade no castigo eterno de ser aprisionada pela história. diferente do nosso), mas cuja origem e cujos níveis de
A separação, feita em nome do racionalismo e do agnosticismo cor- significado, de exigência a ser-nos feita, são outros. Para aqueles capazes
rentes, entre a recepção teológico-religiosa e a literária dos textos bíblicos, é de escutar o terror em Marcos 16, para os capazes de ler o vazio do túmulo
radicalmente facciosa. Não pode dar certo. Isso equivale a dizer que a questão no sentido pleno dessa leitura, para eles Cristo está, conforme disse Pascal,
direta e simples da inspiração divina – de ordens de imaginação e composição “em agonia, até o final dos tempos”. Este abismo de percepção herética e
signicamente diferentes de qualquer outra coisa conhecida até então – deve desespero é completamente indivisível de seu modo de expressão. Isso
ser colocada, deve ser encarada sem rodeios e resolutamente, mesmo que isso significa que nessas questões bravas e urgentes a voz e o que é dito não
signifique uma forma polida de desmerecimento para os colaboradores deste podem nunca ser considerados separados. Não é no Guia literário da Bíblia
Guia. O autor de Jó – e lá está presente a voz de um poeta e o seu gênio que o leitor encontrará a provocação permanente e enigmática dessa
transcendente em quase toda linha – não estava produzindo “literatura”. indivisibilidade. O que é uma pena.
Nem o estavam os que presenciaram “as trevas sobre a terra” na tarde da Tradução de Aurora FF.. Bernardini

O crítico George Steiner nasceu em Paris, em 1929.


Radicado nos EUA, lecionou nas Universidades de Genebra,
Cambridge, Princeton, Stanford, Harvard e Yale. É autor
de inúmeros livros, como No castelo do Barba Azul,
Extraterritorial e Linguagem e silêncio (pela Companhia
das Letras), além de Depois de Babel. Recentemente,
publicou nos EUA a coletânea No passion spent, com
ensaios escritos entre 1978 e 1996.
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