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ANÁLISE LITERÁRIA E PROPOSTA PEDAGÓGICA DO TEXTO “OS DOIS

ANDARES”, DE ARTUR AZEVEDO

José Raimundo dos Santos Filho1


Jorge Costa da Cruz Júnior2
Maria de Fátima Garcia Paiva3

GT7 - Educação, Linguagens e Artes.

RESUMO
Foram três os motivos para a escolha do texto: ser um dos gêneros de leitura que mais nos agradam;
apresentar uma narrativa curta que possibilita a leitura em sala com a turma e por ser um texto escrito por
Artur Azevedo, “Os dois andares”, ao qual consideramos um dos principais representantes do gênero no
século XIX. O objetivo principal deste relatório é analisar e apresentar uma proposta didática para o conto
na sala de aula, visando o desenvolvimento do leitor, ressaltando a importância de aspectos gramaticais na
construção do texto literário, em particular, o uso da palavra ¨SE¨ como pronome reflexivo, partícula
apassivadora e índice de indeterminação do sujeito. A perspectiva de leitura a ser adotada neste trabalho é
a que concebe a leitura como um processo conciliatório, utilizando como base teórica os ensinamentos de
Leffa (1999); Cosson (2009); Compagnon (2012), entre outros. A análise do conto foi realizada de acordo
com sua divisão em nove partes, marcadas pelos asteriscos. O propósito da atividade é conhecer os
procedimentos de análise literária, bem como discutir as relações entre literatura e costumes sociais,
abordando procedimentos de análise literária e o gênero conto. Além de ter sido pensada para estudantes
do 9º ano do Ensino Fundamental, com uma estimativa de ser desenvolvida em 4 aulas com cinco etapas
bem definidas.
Palavras-chave: Gênero textual. Leitura. Conto. Aspectos gramaticais. Palavra ¨se¨.

ABSTRACT
There were three reasons for the choice of the text: be one of the genres read more please us; submit a
short narrative that enables the reading room with the class and be a text written by Arthur Azevedo, "The
two-story", which we consider one of the main representatives of the genre in the nineteenth century. The
main objective of this report is to analyze and present a didactic proposal for the story in the classroom, to
develop the reader, highlighting the importance of grammatical aspects in the construction of the literary
text, in particular the use of the word as a pronoun sé reflective, apassivadora particle and indeterminacy
index of the subject. Reading perspective to be adopted in this work is that conceives reading as a
conciliatory process, using as theoretical basis the teachings of Leffa (1999); Cosson (2009); Compagnon
(2012), among others. The analysis of the tale was performed according to its division into nine parts,
marked by asteriscos. The purpose of the activity is to know the literary analysis procedures, and discuss
the relationship between literature and social customs, approaching literary analysis procedures and
gender conto. Have been designed for students of the 9th grade of elementary school, with an estimate to
be developed in four classes with five well-defined stages.
Keywords: textual Gender. Reading. Tale. grammatical aspects. If word.

1 Mestrando pelo Programa de Mestrado em Letras – PROFLETRAS/UFS e Professor da Educação Básica de Ensino da rede
estadual de Sergipe.
2 Mestrando pelo Programa de Mestrado em Letras – PROFLETRAS/UFS. Professor da Educação Básica da rede estadual de

Sergipe e Coordenador do Núcleo de Formação e Valorização dos Profissionais da Educação. E-mail:


jorgecostaenf@hotmail.com
3 Especialista em Didática do Ensino Superior, pela Faculdade Pio Décimo (1999). Graduou-se em Bacharel em Administração e

Licenciatura em Letras Português em 1990 e 2004, respectivamente, pela Universidade Tiradentes (UNIT). Atuou como docente
na educação básica, no período de 1988 a 2008 em escolas da rede pública de ensino. Atualmente trabalha na Secretaria de Estado
da Educação de Sergipe como técnica pedagógica. E-mail: fatimagpaiva@hotmail.com
INTRODUÇÃO

Optamos pelo conto, primordialmente, por três motivos: ser um dos gêneros de leitura que
mais nos agradam; apresentar uma narrativa curta que possibilita a leitura em sala com a turma e
por ser um texto escrito por Artur Azevedo, “Os dois andares”, ao qual consideramos um dos
principais representantes do gênero no século XIX.
Por conseguinte, o trabalho com a leitura do gênero escolhido e a produção escrita pelos
alunos poderiam ser mais aprofundados, pois algumas questões relevantes, como a distinção entre
os modos de organização e as características principais do gênero, já teriam sido desenvolvidas
nos anos anteriores.
Um dos propósitos da escolha do autor em questão, além do interesse pessoal, é mostrar
que tal escritor pode e deve ser lido no Ensino Fundamental. O mais importante, contudo, é o
contato com texto de inegável valor literário. É importante lembrar que estamos falando de um
processo: a formação do leitor.
Nesse sentido, Cosson (2009, p. 35) afirma que

A diversidade é fundamental quando se compreende que o leitor não nasce feito


ou que o simples fato de saber ler não transforma o indivíduo em leitor maduro.
Ao contrário, crescemos como leitores quando somos desafiados por leituras
progressivamente mais complexas. Portanto, é papel do professor partir daquilo
que o aluno já conhece para aquilo que ele desconhece, a fim de se proporcionar
o crescimento do leitor por meio da ampliação de seus horizontes de leitura.

Cabe ressaltar ainda que os aspectos gramaticais do texto também podem e devem ser
objeto de estudo, análise e desenvolvimento pelos nossos discentes. Demonstrar aos alunos que o
estudo da gramática precede a análise de textos, inclusive o, literário, é de suma importância para
motivá-los nas atividades de âmbito funcional, mesmo porque os proporciona a percepção da
importância do estudo da gramática. Na maioria das situações, o desinteresse está ligado ao fato
de não perceberem qual seria a utilidade das tarefas solicitadas. Desse modo, temos a necessidade
de associar gramática e texto literário para que os alunos possam estabelecer relações ainda não
construídas.
Nessa perspectiva, o objetivo principal deste relatório é analisar e apresentar uma
proposta didática para o conto “Os dois andares”, de Artur Azevedo na sala de aula, visando o
desenvolvimento do leitor, ressaltando a importância de aspectos gramaticais na construção do
texto literário, em particular, o uso da palavra ¨se¨ como pronome reflexivo, partícula
apassivadora e índice de indeterminação do sujeito.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A perspectiva de leitura a ser adotada neste trabalho é a que concebe a leitura como um
processo conciliatório, que segundo Leffa (1999), pretende não apenas conciliar o texto com o
leitor, mas descrever a leitura como um processo interativo/transacional, com ênfase na relação
com o outro.
Nessa perspectiva, Compagnon (2012), baseado na noção de leitor implícito defende a
ideia que
[...] o ato da leitura consiste em concretizar visão esquemática do texto, isto é, em
linguagem comum, a imaginar os personagens e os acontecimentos, a preencher as
lacunas das narrações e descrições, a construir uma coerência a partir de elementos
dispersos e incompletos (COMPAGNON, 2012, p. 149).

Para Coscarelli e Novais (2010), a leitura envolve a ação dinâmica de vários domínios de
processamento, desde a percepção dos elementos gráficos do texto até a produção de inferências
e a depreensão da ideia global, a integração conceitual, passando pelo processamento lexical,
morfossintático, semântico, considerando fatores pragmáticos e discursivos imprescindíveis à
construção do sentido.
Esses domínios se organizam na mente, de acordo com Scherer e Gabriel (2007), a partir
de dois caminhos de entrada de informações linguísticas no sistema cognitivo: o input auditivo e
o input visual, levando-se em consideração que a leitura é uma habilidade adquirida devido a
circunstâncias culturais, o tempo de exposição, a velocidade e o modo de apresentação do
estímulo, a tarefa escolhida para que conhecimentos novos se somem a conhecimentos prévios e,
a partir daí, haja sinapses nas redes neuronais.
Nesse sentido, Borba, Pereira e Santos (2014) abordam e baseiam seu trabalho no
paradigma conexionista, que concebe a aprendizagem como o estabelecimento de novas
conexões neuronais por meio de processos associativos.

Em todo caso, as normas e os valores do leitor são modificados pela experiência


da leitura. Quando lemos, nossa expectativa é função do que nós já lemos – não
somente no texto que lemos, mas em outros textos –, e os acontecimentos
imprevistos que encontramos no decorrer de nossa leitura obrigam-nos a
reformular nossas expectativas e a reinterpretar o que já lemos, tudo que já
lemos até aqui neste texto e em outros (COMPAGNON, 2012, p. 146).

Por isso, todas as informações precisam ter alguma utilidade no desenvolvimento da


história (GOTLIB, 2002). O conto caracteriza-se por ser uma história curta, com poucos
personagens, unidade de ação e espaço, assim, Cortázar (2008) retoma Poe ao dizer que o conto
deve ser breve e econômico com a linguagem.
Cosson (2009) chama a atenção para o fato de que o professor é o responsável pela
ampliação do repertório de leitura dos alunos, enquanto Michèle Petit (2009) trata do vínculo
adquirido entre os leitores, pois

[...] se sentem vinculados aos outros – aos personagens, ao autor, aos que leram
o livro, que leem juntos ou o farão um dia – , descobrindo que dividem as
mesmas emoções, as mesmas confusões; por outro lado, eles se veem separados,
diferentes daquilo que os cerca, capazes de pensar independentemente (PETIT,
2009, p. 83).

Uma das tarefas será tornar a sala de aula um local de leitura e discussão não só coletiva
como permanente, pois como discorre Barbosa (1996), destacado abaixo:

[...] situado entre a leitura e a crítica, o ensino de literatura é proposto, por um


lado como decorrência (da leitura) e, por outro, como encontrando o seu
prolongamento na crítica. Desse modo, a qualificação, quer de leitura, quer de
crítica, é instrumento essencial para que possa pensar o ensino de literatura
(BARBOSA, 1996, p. 59).

Assim, nada melhor do que proporcionar a esses jovens leitores uma dose de contos para
que eles tenham a oportunidade de usufruir e conhecer a produção literária brasileira e ainda
possam perceber a funcionalidade da gramática na construção do texto, em especial, a palavra
¨se¨ como recurso linguístico.
Para atender a um dos nossos objetivos: uma descrição do SE reflexivo, apassivador e
indeterminador do sujeito, faz-se mister, preliminarmente, apresentar conceitos que contemplem
vozes verbais, pois é dentro desta flexão que se situam a reflexividade, a passividade e a
atividade, senão vejamos o que diz Pereira:

A acção expressa pelo verbo é normalmente attribuída na phrase a um sujeito,


que póde, em relação aella, assumir trezattitudes: a de agente, a de paciente
(recipiente) e a de agente e paciente ao mesmo tempo. Esta tríplice relação do
sujeito para com o predicado dá origem ao que se chama em grammatica vozes
do verbo, que são fundamentalmente trez:
1. vozactiva: quando o sujeito é agente da ação verbal;
2. voz passiva: quando o sujeito é paciente ou recipiente da ação verbal;
3. voz reflexiva, média ou medio-passiva: quando o sujeito é agente e
simultaneamente paciente da acção verbal (PEREIRA, 1916, p.473-474)

Já Bechara (1999) traz à baila a diferença entre voz passiva e passividade:

Voz é a forma especial em que se apresenta o verbo para indicar que a pessoa
recebe a ação:
Ele foi visitado pelos amigos.
Alugam-se bicicletas.
Passividade é o fato de a pessoa receber ação verbal. A passividade pode
traduzir-se, além da voz passiva, pela ativa, se o verbo tiver sentido passivo:
Os criminosos recebem o castigo.
Portanto, nem sempre a passividade corresponde à voz Passiva. (BECHARA,
1999, p. 222)

Pelo raciocínio da morfologia, a passiva pronominal e as vozes média e reflexiva se


organizam, estruturalmente, uma só voz – todas determinadas pela composição verbo + SE. Por
exemplo:
a – Não se viu a garota naquela noite.
b – A garota não foi vista naquela noite.

Nos exemplos acima, a gramática tradicional certifica que o verbo está na voz passiva,
adequando-se a uma estrutura morfológica.
Já pelo raciocínio da semântica, precisamos estabelecer uma distinção entre as vozes
média e reflexiva: o agente e paciente não se diferenciam de maneira clara (1º caso), ou são
idênticos, isto é, a mesma pessoa (2º caso). Como de exemplifica:

 Maria aborreceu-se com a irmã. (voz média)


 João cortou-se com a faca. (voz reflexiva)

Fundamentando-se no raciocínio semântico, podemos descrever a voz passiva como a que


o paciente representa o sujeito gramatical da sentença, entretanto não corresponde ao agente da
ação verbal. Como no exemplo: Acidade foi destruída pelo temporal. Nessa sentença, ¨a cidade¨ é
o sujeito gramatical, mas o agente verbal é ¨o temporal¨. Tal problemática precisa ser esclarecida,
porque nem sempre a GT é clara quando se fala em vozes verbais, a qual ora utiliza o raciocínio
morfológico ora o semântico.
Passemos agora a analisar as funções da palavra ¨se¨, Bechara (1999), ao abordar o
pronome SE como índice de indeterminação do sujeito, alarga esta classificação. Para ele, o SE,
mesmo combinando com verbos transitivos diretos, pode ser classificado como índice de
indeterminação do sujeito, acolhendo ao processo evolutivo da língua:

[...] o se como índice de indeterminação de sujeito – primitivamente exclusivo


em combinação com verbos não acompanhados de objeto direto –, estendeu seu
papel aos transitivos diretos (onde a interpretação passiva passa a ter uma
interpretação impessoal: Vendem-se casas = “Alguém tem casas para vender”) e
de ligação (É-se feliz). A passagem deste emprego da passiva à indeterminação
levou o falante a não mais fazer concordância, pois o que era sujeito passou a ser
entendido como objeto direto, função que não leva a exigir o acordo do verbo.
(BECHARA, 1999, p.178),

Já quando o assunto é a voz passiva com o pronome SE, Bechara dá a seguinte sentença:
“O banco só se abre às dez horas” – e discorre: No presente exemplo, banco é um sujeito
constituído por substantivo que, por inanimado, não pode ser o agente da ação verbal; e, por isso,
a construção é interpretada como “passiva”: é o que a gramática chama voz “média” ou “passiva
com se”.
O autor, ainda constata que a passividade, é fato sintático, é, igualmente, semântica, que
depende do significado lexical do verbo da oração. E, ainda Bechara, ratifica que:

A reflexividade consiste, na essência, na “inversão (ou negação) da


transitividade da ação verbal”. Em outras palavras, significa que a ação denotada
pelo verbo não passa a outra pessoa, mas reverte-se à pessoa do próprio sujeito
(ele é, ao mesmo tempo, agente e paciente) (BECHARA, 1999, p.176)

Em relação à reflexiva recíproca, o estudioso nos informa que não é um valor próprio da
língua, entretanto depende dos contextos, como podemos observar a seguir:

”João e Maria se miram” e “João e Maria se miram no espelho”. Qualquer


falante da língua reconhecerá, na primeira sentença, uma reciprocidade de ação:
já na segunda, não há esta reciprocidade, mas reflexividade: João mira a si
mesmo e Maria, a si mesma. No entanto, a língua não dispõe, neste caso
particular, de uma construção linguística diferente. Para os dois casos, temos:
sujeito + pronome reflexivo + verbo (GOMES, 2007, p. 38)

Passaremos a analisar o texto proposto, bem como a apresentação da proposta de


atividade pedagógica.
ANÁLISE DO TEXTO LITERÁRIO

O conto “Os dois andares”, de Artur Azevedo está dividido em nove partes, separado por
oito asteriscos.
Na primeira parte é apresentado o espaço onde se passa a história, a cidade do Rio de
Janeiro, a capital da província. O que nos remete à época em que se passa. A apresentação segue
com a descrição do local, um prédio de dois andares: no térreo funciona um estabelecimento
comercial, a casa importadora Cerqueira & Santos; já no primeiro andar funciona uma espécie de
hospedaria.
A segunda parte trata da descrição dos personagens da história. É nos apresentado Novais
e Helena, personagens em torno dos quais se desenrolará toda a pequena trama. Nessa parte,
Novais e Helena trocam os primeiros contatos visuais através das janelas que os limitam.
É na terceira parte que os dois personagens enamorados trocam as primeiras palavras.
Nessa passagem do conto, percebemos que o autor dedica-se a fazer sátiras ao espírito sonhador e
sentimental da literatura romântica, quando expõe a maneira que Helena encontrou para chamar a
atenção de Novais: “... cuspiu-lhe na manga do paletó”, seguido pelo comentário: “Não era um
meio limpo nem romântico; original, isso era”.
A quarta parte é muito curta, ficando a cargo de uma onisciência narrativa, mostrando e
fazendo-nos acreditar que o namoro havia sido firmado, com trocas de sorrisos e beijos atirados
com as mãos.
É na quinta parte que começa o conflito da história. Novais adoece e fica um tempo sem
aparecer na janela para namorar Helena e nesse introito de tempo, Novais encontra um rival que o
desbanca na disputa amorosa por Helena que é movida a fazer um casamento por interesse: “–
Que feliz engano! Apanhei um marido rico! O Novais é um simples caixeiro... o Cerqueira é o
chefe de uma firma importante... Aquele namora para divertir-se... este casa-se...”, pensou
Helena, já que esta era pobre e ambiciosa, ou seja, desnuda-se mais uma vez a falta de
sentimentalismo romântico e expõe de forma crua a figura feminina desprovida de qualquer
escrúpulo, capaz de qualquer coisa para realizar seus desejos: “E o seu coração passou com
armas e bagagens do primeiro para o segundo andar”.
É nesse sentido que, segundo Candido (2004),
[...] os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão
presentes nas diversas manifestações da ficção [...]. A literatura confirma e nega,
propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos
dialeticamente os problemas (CANDIDO, 2004, p. 175).

Na sexta parte, dá-se o casamento entre Helena e o patrão de Novais, o Cerqueira, dono
da casa importadora e aqui nota-se a ironia e o humor da linguagem de Artur Azevedo:“...não se
atrevia Helena a encarar o ex-namorado, mas pouco a pouco foi se desenvergonhando, e por fim
já lhe dizia: - Bom-dia, seu Novais! – Boa-tarde, seu Novais!”
Na sétima parte, acontece algo que fez Novais relembrar momentos do seu namoro com
Helena; a moça deixou cair na manga do paletó do rapaz um pequeno círculo de saliva, refazendo
todo o jogo enamorado que o havia envolvido, mas o Novais foi firme e nada mais aconteceu.
Na oitava e decisiva parte, Artur Azevedo nos deixa claro a opinião dele sobre a maioria
dos homens: “... era feito da mesma lama que a maioria dos homens...”, descortinando
novamente todo o sentimentalismo romântico e nos dando a ideia de um determinismo
naturalista, pois Novais até tentou evitar a fortuna do patrão falecido, mas “cedeu às seduções e
às lágrimas de Helena, e passou do primeiro para o segundo andar”.
E na nona parte, fecha-se o conto com a mudança do nome do estabelecimento, coroando
assim o relacionamento entre Novais e Helena e a casa passa de Cerqueira & Santos para Santos
& Novais.
Sobre o conto, podemos perceber que é uma história rápida, movimentada, em que se faz
a caricatura dos hábitos e comportamentos de uma parcela da sociedade da segunda metade do
século XIX. Os personagens são tipos que, em busca de realização amorosa e/ou ascensão social,
participam do enredo leve, com um desfecho que busca surpreender e fazer rir, utilizando-se de
uma linguagem coloquial.
No que tanque ao conteúdo gramatical, escolhemos a palavra ¨Se¨ para identificar sua
utilização no texto, do primeiro ao décimo segundo parágrafo, nas funções de partícula
apassivadora, índice de indeterminação do sujeito e pronome reflexivo. Se não vejamos os
fragmentos logo em seguida:
Um dos mais importantes estabelecimentos da capital de província onde se passa este
conto, era, há vinte anos, a casa importadora Cerqueira & Santos, na qual se sortiam numerosos
lojistas da cidade e do interior.
O ¨se ¨ destacado nas duas situações representam a partícula apassivadora, seguindo a
definição de Bechara quando traz a seguinte sentença: “O banco só se abre às dez horas” (grifo
nosso). Para o primeiro exemplo, temos ¨este conto¨como sujeito gramatical, já para o segundo,
temos ¨numerosos lojistas da cidade e do interior¨como o sujeito da sentença. Em ambas
situações, o sujeito gramatical não opera como agente verbal, caracterizando a voz passiva e o
pronome apassivador.
No primeiro andar, que era menos arejado, moravam os caixeiros, e se hospedavam, de
vez em quando, alguns fregueses do interior, que vinham à cidade “fazer sortimento”, e bem caro
pagavam essa hospedagem.
Nesse parágrafo, temos a palavra ¨se¨ exerce a função de pronome reflexivo, mas não há a
reciprocidade na ação atribuído ao sujeito gramatical. Bechara (1999), nos seguintes exemplos:
”João e Maria se miram” e “João e Maria se miram no espelho”, traz a reciprocidade no primeiro
e a reflexividade sem reciprocidade no segundo, mas, em ambas as situações, traz o ¨se¨como
pronome reflexivo.
Helena (ela chamava-se Helena) costumava ir para os fundos da casa paterna e postar-se,
todas as tardes, a uma janela da cozinha, precisamente à hora em que, fechado o armazém,
terminado o jantar e saboreado o café, o Novais por seu turno se debruçava à janela do primeiro
andar.
Uma tarde lembrou-se de assestar contra ela um binóculo de teatro, e teve a satisfação de
distinguir claramente um sorriso que o estonteou.
Ficou radiante o Novais, e lembrou-se então de que certo domingo, passando pela casa do
Capitão Linhares, a filha, que se achava à janela, cuspiu-lhe na manga do paletó. Ele olhou para
cima, e ela, sorrindo, disse-lhe: - Desculpe.
Nos três parágrafos acima, temos o ¨se¨ (negritado) funcionando como pronome reflexivo
sem reciprocidade, seguindo a linha de raciocínio de Bechara (1999) supra citada.

PROPOSTA PEDAGÓGICA DE TRABALHO COM O TEXTO LITERÁRIO

O objetivo da atividade é conhecer os procedimentos de análise literária, bem como


discutir as relações entre literatura e costumes sociais, abordando procedimentos de análise
literária e o gênero conto, além de abordar os aspectos gramaticais, em particular, a palavra
¨se¨como: partícula apassivadora, índice de indeterminação do sujeito e pronome reflexivo.
A atividade foi pensada para estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental, com uma
estimativa de ser desenvolvida em 4 aulas.
O material necessário para a aula: cópia do conto "Os dois andares", de Artur Azevedo (o
conto está disponível para download gratuito no site Domínio Público).

Desenvolvimento

1ª etapa
Conduzir a leitura do conto "Os dois andares", de Artur Azevedo com a turma. Ficar
atento às observações dos alunos e esclarecer eventuais dúvidas sobre palavras que eles
desconhecem. Se necessário retomar alguns pontos para assegurar que todos compreenderam o
enredo.
Neste momento o mais importante é responder a pergunta: sobre o que fala o texto? Fazer
um resumo e contar "a história com as próprias palavras". Por conta disso, ser curto e objetivo e
ficar atento apenas ao essencial.

2ª etapa
Ao analisar um conto, buscamos elementos para interpretá-lo e atingir o seu sentido mais
profundo. Desde o início temos em mente uma ideia do que o conto significa, isto é, uma
hipótese interpretativa ou um elemento que nos deixou intrigados. Em obras literárias de
qualidade, há sempre algo a ser respondido pelo leitor. A interpretação se constrói por um
trabalho de leitura do qual participam ativamente tanto o escritor quanto o leitor. O autor deixa
"fios soltos" que devem ser resolvidos por quem lê a obra. Para responder essas questões menos
evidentes na leitura do conto (chamadas aqui de "questões norteadoras"), precisamos criar as
nossas hipóteses interpretativas.
Formular, junto dos alunos, questões norteadoras e ver quais hipóteses interpretativas eles
criarão.
3ª etapa

Prosseguir a análise com os estudantes. Ter em mente que cada obra literária tem
inúmeros elementos que a constituem e, de fato, é impossível investigar todos. Para esta etapa,
escolher analisar os elementos que respondam as questões norteadoras formuladas pelos
estudantes.
Ressaltar com os estudantes a contribuição de alguns aspectos formais na economia do
conto. Os elementos que se referem mais a como algo está sendo dito do que ao que está sendo
dito. Exemplos: tipo de narrador, a caracterização de algum personagem, o tempo, o espaço e o
tipo de discurso.
4ª etapa
Fazer uma exposição do contexto histórico da obra e dos costumes da sociedade da
segunda metade do século XIX. A literatura faz parte do tecido social em que está inserida. Como
diz o especialista Antonio Cândido, também determinam a obra as

[...] circunstâncias de sua composição, o momento histórico, a vida do autor, o


gênero literário, as tendências estéticas de seu tempo, etc. Só encarando-a assim
teremos elementos para avaliar o significado da maneira mais completa possível
(que é sempre incompleta, apesar de tudo) (CANDIDO, 1989, p. 33).

5ª etapa
Após tudo o que foi conversado, peça que os estudantes resgatem o que pensavam antes
da análise. A interpretação é a mesma? Antes da análise, eles haviam pensando na relação entre a
narração e o contexto da obra? Comente a distância entre a compreensão inicial do conto e a
consciência de sua complexidade após o trabalho interpretativo.

Aproveitar para discutir também as relações entre literatura e sociedade e a importância de


se encarar a literatura como um objeto de conhecimento.

6ª etapa

Nessa última etapa, a palavra ¨se¨ será apresentada aos alunos com as suas três funções:
partícula apassivadora; índice de indeterminação do sujeito; pronome reflexivo, mostrando a
força semântica de cada um na construção dos diversos tipos de texto.
Sugere-se uma atividade preliminar com frases que contemplem as três funções do
¨se¨, para distinguir em cada contexto específico.

Em seguida, mostra-se que o texto em análise faz uso da palavra ¨se¨ em vários
parágrafos, sendo a tarefa dos discentes identificar a presença dela do primeiro ao décimo
segundo parágrafo, indicando qual a função e por que foi utilizado esse recurso nas situações
específicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A forma como a literatura é apresentada aos estudantes na educação básica, em especial


nos anos finais do ensino fundamental, é uma preocupação de grande parte dos professores de
língua portuguesa que têm como objetivo maior o trabalho efetivo dos textos literários na
construção de uma leitura crítica e de mundo.
Cabe ressaltar também que a conciliação do texto com o leitor na perspectiva de um
processo interativo abordado por Leffa (1999), bem como a ideia de uma visão esquemática do
texto pelo leitor defendido por Compagnon (2012), foram alguns dos princípios norteadores do
nosso trabalho, a fim de que possamos transformar a sala de aula em um espaço de discussão
coletiva e permanente, como preconiza Barbosa (2001).
Sem falar da conciliação do texto com o ensino de gramática, em especial, as
funcionalidades da palavra ¨se¨, levando em consideração os ensinamentos de Bechara (1999).
Por conseguinte, esperamos contribuir com a presente proposta, para a melhoria da prática
pedagógica dos professores de língua portuguesa não só com o gênero conto, mas para os demais
gêneros, tornando a leitura de textos literários e a aplicabilidade dos conteúdos gramaticais uma
prática prazerosa e permanente no ensino fundamental, em especial no 9º ano, o qual anuncia a
próxima etapa: o ensino médio.

REFERÊNCIAS

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CANDIDO, Antonio. Na sala de aula. Caderno de análise literária. 8ª ed. São Paulo: Ática,
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