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3553
Ruy Barbosa e a queima dos arquivos:
as lutas pela memória da escravidão e os
discursos dos juristas*
Abstract
This article explores the incident known as “The Burning of the Slavery
Archives by Ruy Barbosa.” However, establishing the truth about who is the au-
*
Recebido em: 31/08/2015. thor of the decision which led to the burning of slaves enrollment documents is
Aprovado em: 15/09/2015.
1
Doutor em Direito, Estado e Consti-
not intended. Instead, from the debate that emerged in the Habeas Corpus deci-
tuição pela Universidade de Brasília sion n ° 82.424/RS of the brazilian Supreme Court about the imprescriptibility of
(UnB). Professor Adjunto de Direito the crime of racism and the recent creation of the Truth Commission for the Black
Penal, Processo Penal e Criminologia
Slavery in Brazil by the Brazilian Bar Association (2015), it tries to understand
da Universidade de Brasília (UnB).
Autor de Criminologia e Racismo. how the discourses about slavery fall into the rhetoric of lawyers on the demands
Juruá, 2002. E-mail: evandropiza@ for recognition of black people (of African descent). The importance of this deba-
gmail.com. te stems from the fact that demands for recognition propose, roughly, the recons-
2
Doutor em Direito, Estado e Consti-
tuição pela Universidade de Brasília truction of present (use of empirical presentation and sociological interpretation)
(UnB). Professor Adjunto de Teoria e and past (use of historiography and interpretations of the constitution of race
Filosofia do Direito da Universidade relations ) facts. Firstly, the “episode” signals a structural problem of the demands
de Brasília (UnB). E-mail: gscotti@
of black people: the ways official historiography on the construction of nationali-
unb.br.
3
Doutor em Direito pela Universida- ty inserted their presence and their struggles for recognition. And, secondly, the
de Federal de Minas Gerais (UFMG). reasons why the notion of “memory erasure” was established as a key element of
Professor Associado de Direito the patterns of disrespect toward this group.
Constitucional da Universidade de
Brasília (UnB). E-mail: menelickc- Keywords: Racism. Constitution. Slavery. Ruy Barbosa. File burning. History.
netto@unb.br. Memory. Constitutional right.
Evandro Piza Duarte, Guilherme Scotti, Menelick de Carvalho Netto
forçada) foi o auge de uma expectativa de “destino” da nefícios secundários com sua escravidão (os filhos eleitos
raça negra; d) ela lhes garantiu sua incorporação à pátria de Maria, segundo Padre Antônio Vieira, sofredores na
ou à nação; e) de fato, quem efetivamente sofreu com a terra, mas purificados para o céu); b) os negros seriam as
escravidão foram os brasileiros (brancos em geral), obri- vítimas de si mesmos, de suas incapacidades e, portan-
gados a conviverem com a marca do atraso em suas rela- to, a ideia de guerra justa não necessitava se apoiar numa
ções econômicas e não conseguiram desenvolver todo o reação concreta defensiva, bastando a condição de ser
potencial; f) enfim, a escravidão foi um mal para o Brasil negro para justificá-la11; desse modo, a existência de uma
e para os próprios senhores de escravos, mas não foi um “culpa originária” e a necessidade de “emancipação de seu
mal tão grande para os “bárbaros negros”. ser pela violência” compuseram o cerne das representa-
A fonte mais remota dessa tradição negreira de ções negreiras sobre os “negros”. Não por acaso, Frantz
representação dos negros na história “nacional” encon- Fanon12, em os “Condenados da Terra”, ao descrever as
tra-se no que Henrique Dussel denunciou como o “Mito dimensões subjetivas da violência empreendida pelos
da Modernidade”. Se, por um lado, a Modernidade em europeus no colonialismo na África, escolheu apropria-
seu conteúdo positivo seria a “emancipação racional” da damente o termo “Les Dammés de La Terre”, termo que
humanidade, por outro, em seu conteúdo secundário e significa condenação, maldição e expiação (purgação) da
negativo mítico, ela foi a justificação de uma práxis irra- culpa, e, ao mesmo tempo, identifica aqueles que foram
cional de violência que atribui uma “culpa” ao outro que objeto de uma decisão judicial e estão cumprindo pena,
não se submete ao domínio europeu9.10 unindo conceito supostamente laico e outro religioso,
A ideia de “negro” e a práxis social dominante que e, nessa união, demonstrando como, para os negros, se
busca circunscrevê-la está marcada por essa violência construiu uma sobreposição entre responsabilidade do
constitutiva. Assim, por exemplo, para os Letrados que sujeito (responsável por ser negro) e responsabilidade
justificaram a escravidão antes do século XIX: a) os ne- por uma “ação” praticada (responsabilidade por ter pra-
gros não foram propriamente “vítimas”, pois tinham be- ticado um ato). Desse modo, eram bárbaros, não porque
empreendessem “guerra justa”, mas por estarem excluídos
9
DUSSEL, Enrique D. 1492, o encobrimento do outro: a ori- do logos13.
gem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993. p.
Entretanto, para além desse contexto mais geral,
185-186.
10
Dessa forma: “a) a civilização moderna se autocompreende a história da nação brasileira, e do lugar do negro nes-
como mais desenvolvida, superior (o que significará susten- sa história, estão associados à formação do que Marilena
tar, sem a consciência, uma posição ideologicamente euro-
cêntrica); b) a superioridade obriga, como exigência moral, a Chauí chamou de “Mito Fundador”, ou seja, narrativa de
desenvolver os mais primitivos, rudes, bárbaros; c) o caminho feitos lendários da comunidade, referida às suas origens,
do referido processo educativo de desenvolvimento será o se- e que representa solução imaginária de conflitos, não re-
guido pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento unilinear
e à europeia, o que determina, novamente sem consciência solvidos no plano real. Tal mito, compartilhado por am-
alguma, a ‘falácia desenvolvimentista’); d) como o bárbaro se plos setores da sociedade brasileira, estaria composto de
opõe ao processo civilizador, a práxis moderna deve exercer,
em último caso, a violência, se for necessário, para destruir
três elementos (a visão do paraíso, a história teológica
os obstáculos de tal modernização (a guerra justa colonial); providencial e a teoria da soberania fundada na vonta-
e) esta dominação produz vítimas (de muitas variadas ma- de divina) que “aparecem, nos séculos XVl e XVll, sob a
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a palavra de Deus, isto é, a história, e a vontade de Deus, duas tradições de pensamento, capazes de construir um
isto é, o Estado.”14 lugar para os naturalizados como desiguais, negando-lhes
O primeiro componente, a visão do paraíso, não a condição de sujeitos. De igual modo, são as supostas
excluía a justificação da escravidão que era mediada por fontes “autorizadas” às quais se recorre para construir re-
uma referência à teoria da obediência em que a liberda- trato das relações raciais no país.
de conduzia ao respeito da ordem. Esse mito fundador A ideia política de uma história oficial para o Bra-
propõe a concepção de que os naturais, os dispostos na sil e para os diferentes grupos “raciais” tem sua origem em
natureza, não possuem direitos. Eles integram uma his- 1838, quando o referido instituto foi criado com o intuito
tória que se realiza pela vontade dos governantes que en- de oferecer ao “país independente um passado glorioso
carna uma força transcendente, enquanto os governados, e um futuro promissor, com o que legitimaria o poder
ao contrário, estão despidos de vontade. Não há espaço do Imperador”. Em um de seus concursos, o naturalista
para a ação política, pois, nesse mito, ela é entendida ape- alemão Von Martius apresentou a monografia vencedo-
nas como a distribuição de favores, das dádivas dos go- ra sobre “Como se deve escrever a história do Brasil”17
vernantes. Tampouco, a partir dele se pode pensar numa e definiu qual seria o paradigma de construção de nossa
cidadania universalizada, pois: há aqueles que estão na história: “cabia ao historiador brasileiro redigir uma his-
condição de “naturais”, sem direitos; há os homens despi- tória que incorporasse as três raças, dando predominân-
dos de seus direitos por Deus, mas que podem receber as cia ao português, conquistador e senhor que assegurou
dádivas dos governantes; estes que, por seu turno, as re- o território e imprimiu suas marcas morais ao Brasil.”1819
ceberam de Deus e encarnam a história, mas devem res- A proposta oficial de uma história do Brasil como inte-
peitar a propriedade absoluta e partilhar de seu domínio gração subordinada nasce, portanto, no Império, num
com os escolhidos, mediante a troca de favores15. regime escravagista que foi o último a abolir a escravi-
Desse modo, as demandas por liberdade e por igual- dão. Todavia, foi com o surgimento da obra de Gilberto
dade dos negros e indígenas não encontram lugar nessa Freyre20, Casa Grande e Senzala, na década de 1930, por
história contada pelo Mito Fundador, pois eles não parti- fixar a falsa ideia da existência de dois modelos explicati-
cipam do mundo na qualidade de sujeitos. Ao invés disso, vos ideais quanto à questão racial (um baseado no confli-
suas demandas são percebidas como desvios na natureza ou to, o norte-americano, e outro na integração, o brasileiro)
como traços de sua condição natural de viventes. Esse lu- que ela adquiriu ares definitivos de cientificidade21. Como
gar (a “natureza”) é outra constante nas formas de tratar o demonstrou Kabengele Munanga:
“comportamento” dos negros e indígenas, tendo sido exten-
samente difundido em diferentes narrativas (antropológicas: ciedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
relativistas, evolucionistas, biologicistas; culturalistas socio- 2000. p. 49.
17
VON MARTIUS, Carlos Frederico. Como se deve escrever
lógicas: marxistas e funcionalistas; e historiográficas). a historia do Brasil. Jornal do Instituto Histórico e Geográfi-
Entretanto, somente no século XIX, o Mito Fun- co Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 24, p. 401-402, jan. 1845.
18
CHAUÍ, Marilena de Sousa. Brasil: mito fundador e so-
dador do Brasil foi desenvolvido como tradição historio- ciedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
gráfica. Nesse caso, o modelo que explica a formação da 2000. p. 49-50.
ideia de nação brasileira nasceu de uma combinação con-
19
Na obra de Afonso Celso é apresentado outro dos elemen-
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o mito de democracia racial, baseado na dupla obra dos “senhores patriarcais” que haviam constituído a
mestiçagem biológica e cultural entre as três ra-
sociedade (Gilberto Freyre):
ças originárias, tem uma penetração muito pro-
funda na sociedade brasileira: exalta a ideia de as oligarquias de Oliveira Vianna têm muita
convivência harmoniosa entre os indivíduos de semelhança com os senhores de engenho idea-
todas as camadas sociais e grupos étnicos, per- lizados por Gilberto Freyre, pois são as formas
mitindo às elites dominantes dissimular as desi- diversificadas de um mesmo fenômeno. Ambos
gualdades e impedindo os membros das comu- criaram e mantiveram os suportes justificató-
nidades não brancas de terem consciência dos rios de uma sociedade de privilegiados, no Im-
sutis mecanismos de exclusão da qual são víti- pério e na República. Entre os dois pensamen-
mas na sociedade. Ou seja, encobre os conflitos tos há uma constante, a inferiorização social e
raciais, possibilitando a todos se reconhecerem racial do negro, segmentos mestiços e índios e
como brasileiros e afastando das comunidades a exaltação cultural e racial dos dominadores
subalternas a tomada de consciência de suas brancos25.
características culturais que teriam contribuído De modo mais direto, há continuidade entre a
para a construção e expressão de uma identida-
de própria. Essas características são “expropria- “constatação” freyriana do suposto “masoquismo do ne-
das”, “dominadas” e “convertidas” em símbolos gro”26 e a “necessidade científica” de Oliveira Vianna27 de
nacionais pelas elites dirigentes22.
que tenhamos Estado forte para plasmar com sua força a
Instaura-se uma ideia de “pluralismo” que pres-
sociedade28. Em ambos, os conflitos entre grupos sociais
supõe e aceita a aniquilação das diferenças e, ao mesmo
são transformados em processos anônimos de forças so-
tempo, encerra a diferença no plano social (natural e
ciais, culturais, raciais etc., e, ao fim, terminam por natu-
privado), afastando-a do plano político e jurídico. No-
ralizar a violência empreendida por determinados grupos
vamente, negros e indígenas são remetidos ao plano da
como redentora, pois são capazes de produzir “criativa-
“natureza”, alheio ao espaço da política. Essa ideologia
mente” as marcas de uma Nação. Nada resta da perspec-
representa, não uma ruptura, mas uma dupla continua-
tiva dos vencidos e suas lutas cotidianas, sociais, culturais
ção: com a historiografia criada para justificar o poder do
etc. De fato, a expressão “democracia racial”, cegamente
Imperador e a manutenção de uma sociedade escravista e
utilizada, esconde absurdo intrínseco: num país com
com as ideologias racistas formuladas pelo cientificismo,
constantes lapsos de democracia, seja em longos perío-
em especial as teses sobre o branqueamento da população
dos de autoritarismo politico ou em práticas autoritárias
brasileira23.
cotidianas ainda presentes, a única democracia comemo-
Por sua vez, a convivência, ao longo da história re-
rada publicamente é a racial, mesmo que essa democracia
publicana, entre a ideologia da “democracia racial”, com
nada diga a propósito dos direitos dos negros.
sua máscara de uma ideologia aparentemente integrado-
Enfim, o suposto discurso autorizado para expli-
ra, e o autoritarismo político, uma ideologia que privile-
car o Brasil e suas relações raciais é o encontro da ex-
gia a desmobilização política e nega o pluralismo politico,
clusão promovida pelo escravismo (a historiografia do
indica o caráter antidemocrático, antiliberal, desmobili-
Império) e para promover a não cidadania dos negros
zador e de modernização conservadora do mito da inte-
no período de abolição e na construção da República (o
gração racial. Como sintetizou Octávio Ianni24, enquanto
a ideologia da democracia racial serviu para “explicar a
sociedade”, o autoritarismo político serviu para “explicar
Universitas JUS, v. 26, n. 2, p. 23-39, 2015
25
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo:
o Estado”. Isso porque, como demonstrou Clóvis Mou- Ática, 1988. p. 24.
ra, a defesa das oligarquias que iria constituir e organizar 26
FREYRE, Gilberto. Nordeste: aspectos da influência da
o Estado “modernizado” (Oliveira Vianna) continuou a cana sobre a vida e a paisagem do nordeste do Brasil. Rio
de Janeiro: Record, 1989.
27
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Evolução do povo
brasileiro. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956; VIANNA,
22
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras.
Brasil. Belo Horizonte: Autentica, 2004. p. 89. Belo Horizonte: Atalaia, 1987. v. 1; VIANNA, Francisco
23
CHIAVENATO, Júlio J. O negro no Brasil: da senzala à José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Belo Hori-
Guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 167- zonte: Atalaia, 1987. v. 2.
189; MOURA, Clóvis. Dialética radical do negro no Brasil. 28
CARVALHO, José Murilo de. A utopia de Oliveira Vian-
São Paulo: Anita, 1994. p. 79-86; SKIDMORE, Thomas. na. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p.
Preto no branco. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. 81-89, 1991. Disponível em: <http://virtualbib.fgv.br/ojs/
24
IANNI, Octávio. A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Bra- index.php/reh/article/viewArticle/2310>. Acesso em: 20
27
siliense, 1994. p. 85. out. 2015.
Evandro Piza Duarte, Guilherme Scotti, Menelick de Carvalho Netto
cientificismo racista)29. O processo de individualização memória. Paradoxalmente, essa negação também criou
de uma memória da presença negra na formação do Im- seus mitos sobre a possibilidade de uma memória dos
pério oculta a presença ativa do negro, em nome de sua negros no Brasil ou do porque os negros não podem ter
incapacidade natural-histórica e da falsa representação mais uma memória. Talvez, o principal seja a “Queima
da escravidão benigna criada para justificar a perpetua- dos Arquivos da Escravidão” que explicaria a impossi-
ção da escravidão no Brasil e para manter as hierarquias bilidade de uma memória porque um “governante” teria
sociorraciais, atribuindo à “raça negra” os males da es- determinado a queima dos arquivos da história da escra-
cravidão. Essa problemática do negro como integrante da vidão.
sociedade brasileira será revisitada constantemente quer
pela tradição cientificista quer pelos herdeiros da tradi- 3 Como apagamos e evocamos o passado: as
ção romântica e ora defender-se-á a miscigenação como contradições da memória e do esquecimen-
modo de extermínio gradual da presença negra (Olivei- to dos Juristas
ra Vianna), ora como forma de integração subordinada Enfim, chega-se ao segundo ponto deste texto: de
(Gilberto Freyre). que modo a tradição negreira se articula com os argu-
Em síntese, o lugar do negro na história brasileira mentos jurídicos e como produz como efeito principal a
insere-se numa “estrutura de verdade”30 que propõe uma desconstrução dos direitos para os negros. Nesse ponto,
forma de narrar31 e de impedir outras narrativas. Para convém revisitar esse “Mito do Apagamento da Memó-
essa tradição negreira, não haverá espaço para pensar o ria” com base nos argumentos de Juristas.
negro como sujeito de sua história, porque ele está situa- Embora o STF tenha na ADPF 186 relacionado
do na natureza, no plano dos fenômenos, mas não das o tema das ações afirmativas para negros à história bra-
subjetividades. As lutas pela liberdade dos negros não po- sileira34, por meio no Habeas Corpus n° 82.424/RS35 que
derão tampouco ser retratadas em sua dimensão política essa questão surgiu. Depois de 50 anos de leis antirracis-
cotidiana e institucional para a constituição de direitos. tas propostas pelos movimentos sociais negros36, o pri-
A demarcação desse espaço de negação do negro meiro caso a suscitar uma manifestação da Corte sobre a
na sociedade brasileira somente é possível com uma ação abrangência do dispositivo da Constituição de 1988 que
contínua sobre as memórias coletivas, cotidianas e popu- determinava a imprescritibilidade do crime de racismo
lares. Mas como impedir a memória? Como demonstrou tinha por vítima os judeus. Nesse julgamento, denegou-se
Paolo Rossi, a evocação e o apagamento não podem ser o habeas corpus contra acórdão do STJ que havia confir-
tratados como fenômenos da natureza. A memória social mado a condenação de um escritor e editor de publica-
não se constrói apenas com base nos comportamentos ções antissemitas. Na ocasião, os ministros debateram a
psicofisiológicos32. A negação do negro dependeu da ins- abrangência do direito à liberdade de expressão para sa-
titucionalização, da memória (da tradição negreira) nos ber se ela compreendia o direito de editar livros antisse-
aparelhos ideológicos de Estado33, nos museus, nas uni- mitas e o significado do termo “crime de racismo” e, se os
versidades, nos institutos de pesquisa, no sistema educa- judeus constituiriam uma raça, estando, portanto, prote-
cional e nos livros da estante de nossas casas. Ela implica gidos pela norma que determinava, desde 1988, a exceção
ação contínua e cotidiana para produzir o apagamento da constitucional ao direito de prescrição37. Nesse contexto,
Universitas JUS, v. 26, n. 2, p. 23-39, 2015
29
DUARTE, Evandro C. Piza. Criminologia e racismo: intro- 34
DUARTE, Evandro C. Piza; SCOTTI, Guilherme. História
dução à criminologia brasileira. Curitiba: Juruá, 2002. e memória nacional no discurso jurídico: o julgamento da
30
ROSSI, Paolo. O passado, a memória e o esquecimento. São ADPF 186. Universitas Jus, Brasília, v. 24, n. 3, p. 33-45,
Paulo: Unesp, 2010. p. 21. 2013. doi: 10.5102/unijus.v24i3.2611.
31
AGUIAR, Thaís. A história como recurso da mimese po- 35
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Crime de Racismo e
lítica brasileira. Sociedade e Cultura, Goiania, v. 10, n. 2, Antissemitismo: um julgamento histórico no STF, habeas
p. 227-239, 2007. Disponível em: <http://revistas.ufg.br/ corpus n.º 82.424/RS. Brasília: STF, 2004.
index.php/fchf/article/viewArticle/3143>. Acesso em: 20 36
SILVA JÚNIOR, Paulo Melgaço. Mercedes Baptista: a cria-
out. 2015. ção da identidade negra na dança. 2007. Disponível em:
32
ROSSI, Paolo. O passado, a memória e o esquecimento. São <http://ambiente.educacao.ba.gov.br/conteudos/downlo-
Paulo: Unesp, 2010. p. 31-38. ad/167.pdf>. Acesso em: 20 out. 2015.
33
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado: nota 37
Para uma crítica aos fundamentos axiológicos da decisão:
sobre os aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: CARVALHO NETTO, Menelick; SCOTTI, Guilherme. Os
28
Graal, 1985. direitos fundamentais e a (in)certeza do direito: a produtivi-
Ruy Barbosa e a queima dos arquivos: as lutas pela memória da escravidão e os discursos dos juristas
a ideia de imprescritibilidade foi central, pois remetia ine- nou, por meio do Decreto de 14 de dezembro de
1890, que se destruíssem todos os documentos
xoravelmente à temporalidade. História, Memória e Es-
referentes à escravidão/Intentava com esse ges-
quecimento passam a ser tematizados38. A decisão trouxe to apagar, da história brasileira, o instituto —
à tona também algumas das concepções que compõem o como se isso tivesse o condão de fazer desapare-
cer da memória nacional a carga de sofrimento
senso comum dos membros do Poder Judiciário sobre a suportada pelo povo africano e pelos afrodes-
presença dos negros na sociedade brasileira. cendentes — e evitar possíveis pedidos de in-
O Ministro Marco Aurélio acompanhou o racio- denização por parte dos senhores de engenho.
cínio do Ministro Relator e do Ministro Ayres Britto, O ilustre baiano não se apercebeu que determi-
nação em tal sentido, além de imprópria a al-
concedendo o habeas corpus, contra a posição da maio- cançar o fim desejado — apagar a mancha da
ria, com base em interpretação fundamentada na histó- escravidão feita a sangue no Brasil —, subtrairia
às gerações futuras a possibilidade de estudar a
ria brasileira. O seu foco central consistiu na preserva-
fundo a memória do País, o que as impediria,
ção da liberdade de expressão em função, sobretudo, de por conseguinte, de formar um consciente cole-
sua dimensão pública, essencial ao regime democrático. tivo baseado na consideração das mais diversas
fontes e de emergir do legado transmitido — a
Passível, portanto, de limitações tão somente em hipótese ignorância39.
excepcionalíssima, não justificável no caso concreto, pois Nesse sentido, a trajetória do negro em nosso país
a conduta no aspecto formal não seria uma incitação ao estaria (C) a justificar historicamente a aplicação da nor-
antissemitismo e, ademais, ela não encontraria no (A) ma da imprescritibilidade:
substrato histórico da sociedade brasileira, segundo sua
nesses termos, seria mais facilmente defensável
opinião, com sua “tolerância” para como judeu, solo fértil a ideia de restringir a liberdade de expressão se
para provocar o risco de desencadeamento de compor- a questão deste habeas resvalasse para os pro-
blemas cruciais enfrentados no Brasil, como,
tamentos discriminatórios. No mesmo sentido, num dos por exemplo, o tema da integração do negro,
trechos de citações sobre o valor da liberdade de expres- do índio ou do nordestino na sociedade. [...] O
são, refere-se ao polêmico caso da “Queima dos arquivos Brasil possui toda uma carga histórica de escra-
vização dos negros e dos índios, bem como in-
da escravidão por Ruy Barbosa”, esboçando a tese de que felizes episódios nos quais se cultivara, especial-
(B), a ignorância sobre o passado, constitui um dos ele- mente por grupos discriminatórios da região
sul, um ódio aos nordestinos, o que chegou até
mentos determinantes da cultura brasileira e de que ela mesmo a dar ensejo a uma ridícula e absurda
não foi natural, mas induzida pelo cerceamento da liber- proposta separatista40.
dade de expressão: Logo, segundo o Ministro, seria necessário que a
diante dos horrores da escravidão negra no Bra- solução passasse: (D) “por um exame da realidade social
sil, Rui Barbosa, à época Vice-Chefe do Gover- concreta, sob pena de incidirmos no equívoco de efetuar
no Provisório e Ministro da Fazenda, determi-
o julgamento a partir de pressupostos culturais europeus,
a partir de acontecimentos de há muito suplantados e
dade das tensões principiológicas e a superação do sistema que não nos pertencem, e, com isso, construirmos uma
de regras. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
38
Na síntese do Ministro Maurício Corrêa as questões deba- limitação direta à liberdade de expressão do nosso povo
tidas eram: “não sendo os judeus uma raça, mas sim um baseada em circunstâncias históricas alheias à nossa rea-
povo, revela-se impossível o cometimento de crime de ra- lidade.”41. Por fim, o Ministro (E) apresenta exemplos de
Universitas JUS, v. 26, n. 2, p. 23-39, 2015
mento brasileiro foi a mistura do português com a raça Não obstante, a posição do Ministro apontava
negra” e do qual o Ministro extrai diversas passagens so- para tema central para o constitucionalismo brasileiro:
bre a inferioridade da raça negra, e, o de José Bonifácio a possibilidade de dar dimensão jurídica ao fato de que
de Andrada e Silva, “Projetos para o Brasil”, no qual há somos um país construído a partir do colonialismo e da
diversas alusões racistas aos indígenas que são acusados escravidão. Como enfrentar as demandas sociais que ape-
de serem “povos vagabundos, envolvidos em guerras con- lam para a releitura do passado na compreensão do pre-
tínuas e em roubos, não tendo freios religiosos ou civis”. sente e que pretendem negar a naturalização da violação
Aduz o Ministro, ainda, a Gilberto Freyre que teria sido de direitos dos negros e indígenas?
“duramente censurado” porque pregava que “a misci- E o que é esse passado que se faz presente? Na sín-
genação havia tornado o povo brasileiro sem segundo tese de Luis Felipe de Alencastro:
exemplo no mundo, e, em vez de isso revelar fraqueza, na realidade, nenhum país americano praticou
demonstrava a força do nosso povo”42. a escravidão em tão larga escala como o Brasil.
Do total de cerca de 11 milhões de africanos de-
Inicialmente, muito embora não interesse o de- portados e chegados vivos nas Américas, 44%
bate mais estrito sobre a interpretação constitucional da (perto de 5 milhões) vieram para o território
brasileiro num período de três séculos (1550-
aplicação da norma ao caso, convém demarcar o dissenso
1856). O outro grande país escravista do conti-
em relação à posição defendida quanto aos judeus pela nente, os Estados Unidos, praticou o tráfico ne-
minoria da Corte43. O argumento de que a discriminação greiro por pouco mais de um século (entre 1675
e 1808) e recebeu uma proporção muito menor
contra judeus estaria ausente na história brasileira esbar- -, perto de 560.000 africanos -, ou seja, 5,5%
ra num longa historiografia que demonstra os processos do total do tráfico transatlântico. No final das
de racialização dos judeus44. Apesar da reconstrução feita contas, o Brasil se apresenta como o agregado
político americano que captou o maior número
pela Corte do conceito de raça para a inclusão dos judeus, de africanos e que manteve durante mais tempo
efetivamente os judeus passaram por um processo social a escravidão.47
de racionalização que extrapola a ideia de discriminação Esse ponto de partida se encontra no citado epi-
religiosa, apresentando, efetivamente, práticas de redução sódio da “Queima de Arquivos” cuja narrativa inclui inú-
ao biológico45. Por fim, como apontou a posição majori- meras contradições em seu apelo à memória. Trata-se de
tária, num marco de internacionalização da universaliza- episódio polêmico em muitas dimensões.
ção dos Direitos Humanos46, e complete-se, de mundia- Em primeiro lugar, porque a narrativa afirma
lização dos meios de comunicação, não se pode tolerar uma finalidade que teria sido cumprida: garantir, com a
áreas de livre discriminação. queima das matrículas dos escravos, a não indenização
dos senhores de escravos. Efetivamente, o que ocorreu
o contrário, pois os senhores de escravos no Brasil, com
42
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Crime de Racismo e
Antissemitismo: um julgamento histórico no STF, habeas sua adesão a uma política de adiamento do fim da escra-
corpus n.º 82.424/RS. Brasília: STF, 2004. p. 184. vidão: a) implementaram uma política de reorganização
43
DUARTE, Evandro C. Piza. Do medo da diferença à liber- da definição de propriedade, com a Lei de Terras (1850)48
dade com igualdade: as ações afirmativas para negros no
ensino superior e os procedimentos de identificação de que impedia que novas forças sociais fossem capazes de
seus beneficiários. 2011. Tese (Doutorado) – Curso de Pós-
Universitas JUS, v. 26, n. 2, p. 23-39, 2015
enfrentar, no mercado49, sua incompetência produtiva, o tensas que a exploração capitalista e mais perversa ideo-
que lhes garantiu o mascaramento de propriedades su- logicamente do que a escravidão) passaram a compor o
butilizadas como supostamente modernas e produtivas. marco jurídico de não atribuição de direitos trabalhistas
Logo, houve a indenização aos senhores pela ingerência para os trabalhadores rurais e domésticos, ou até mesmo,
do Estado na perpetuação hereditária da propriedade que de tratamento diferenciado, que sobreviveu inclusive na
já tinha origem estatal, pois resultava das doações feitas Constituição de 1988.
pelo Estado colonial e nacional. Essa prática de “doar” Enfim, essas três práticas compõem uma longa
terras públicas, indígenas e quilombolas, se manteve até tradição jurídica e de política pública que avança pela
a Constituição de 1988, apesar das proibições existentes República, compensando, de modo absurdo e contrário
na lei referida, e no período pós 1988, passou a integrar a ao desenvolvimento das forças produtivas nacionais, as
estratégia de politização administrativa de regularização famílias dos senhores de escravos. Assim, o mecanismo
das terras dessas comunidades. Há, portanto, práticas in- de expropriação e constituição da propriedade privada
denizatórias extensas e contemporâneas de indenizações (Pacto Agrário), a política fiscal e tributária favorável aos
às famílias de senhores de escravos que se instituciona- senhores de escravos (Pacto Fiscal/Tributário), a exclu-
lizaram como privilégios políticos no gerenciamento e são de amplos setores dos direitos trabalhistas e, muitas
expropriação da propriedade privada; b) de igual modo, vezes, a mera tolerância de novas formas de escravidão
os senhores de escravos implementaram política fiscal e (Pacto Trabalhista) compuseram consolidado arranjo
tributária de subsídios para a garantia da lucratividade de político-institucional que sobrevive até os dias atuais,
suas propriedades. Isso já estava evidenciado no finan- mas que somente adquire sentido quando compreendido
ciamento da imigração a partir de impostos, ou seja, o com base na ideia de indenização desses senhores e seus
Estado foi utilizado para manter excedente de mão de herdeiros. Efetivamente, o monopólio político do merca-
obra capaz de rebaixar o valor da mão de obra geral o do pelo Estado reproduz-se em nível local com o esta-
que, combinada com a desvalorização racista da mão de belecimento, por exemplo, de regras administrativas de
obra negra feita pela proliferação institucional do pre- comercialização de produtos favoráveis a uma parte dos
conceito racial50, permitia compensar a incapacidade ge- produtores rurais, ou a nível nacional, com a política mi-
rencial da propriedade privada por parte dos senhores. gratória subvencionada, a garantia da perpetuação da ra-
Essa política fiscal inaugura longa tradição de subsídios, cialização da propriedade privada no país. Os resultados
favores, isenções, créditos, parcelamentos etc., e de uma mais evidentes dessas estratégias foram: a) Há identifica-
retórica “senhorial” de abandono por parte do governo ção simbólica dos brancos como legítimos proprietários
central que, na prática, permitiu a inversão de uma parte e produtores do desenvolvimento, mesmo quando explo-
da riqueza pública para um setor da economia privada; c) ram latifúndios com técnicas de produção rudimentares,
além disso, conseguiram, com essa política de adiamento com danos ambientais, sem direitos trabalhistas, sendo
do fim da escravidão, impor política de escravização ile- beneficiados por políticas específicas de crédito e vanta-
gal de homens livres que representavam, ao final, a maior gens tributárias; b) Há uma identificação das terras dos
parte dos escravos conhecidos. De fato, o adiamento do pequenos proprietários (sobretudo quando percebidos
fim da escravidão baseou-se na importação ilegal de ho- de modo racializado como “não brancos”), das comuni-
Universitas JUS, v. 26, n. 2, p. 23-39, 2015
mens e mulheres livres. Logo, os senhores de escravos dades tradicionais, dos indígenas e dos quilombolas com
foram indenizados pela exploração de mão de obra livre o atraso e a impossibilidade prática de que esses grupos
escravizada ilegalmente. Ou seja, receberam o lucro de possam figurar como sujeitos proprietários.
“uma propriedade” que, efetivamente, não lhes pertencia. Em segundo lugar, a ideia de queima de arquivos,
Essas práticas de expropriação da mão de obra (mais in- ao afirmar a finalidade de “impedir a indenização”, ocul-
ta dimensão decisiva do modo como o direito reproduz
49
FAORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasi- práticas racistas no Brasil. O debate sobre as indenizações
leiro? São Paulo: Ática, 1994.
necessita ser inserido na política de escravização e supre-
50
SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias ra-
ciais e o papel do racismo na política de imigração e coloni- macia racial do século XIX. Neste contexto, a expressão
zação. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Marcos Ventura “para inglês ver” origina-se do modo como o Estado e o
(Org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz,
Poder Judiciário reagiram à proibição ao tráfico negreiro. 31
1996.
Evandro Piza Duarte, Guilherme Scotti, Menelick de Carvalho Netto
A proibição foi instituída por diversos dispositivos (Tra- de formas de trabalho escravo no presente e a existên-
tado anglo-português de 1818, tratado anglo-brasileiro cia desse pacto de ilegalidade sugerem que a escravidão
de 1826, Lei de 7 de novembro de 1831), todavia, não ces- adentrou o período republicano e se manteve viva em
sou a entrada de africanos ilegalmente escravizados e os muitas partes do país. As tratativas parlamentares sobre
senhores de escravos não foram condenados pelo crime o trabalho doméstico e a leniência institucional quanto às
de redução à condição de escravo, conforme previa o art. práticas tradicionais dos patrões, especialmente no caso
179 do “Código Criminal” de 1830. Ao final, A Lei de 4 de do uso de mão de obra juvenil, bem como a permanência
setembro de 1850, a lei Eusébio de Queirós, determinou do poder dos coronéis, demonstram como os senhores
outra vez o fim do tráfico negreiro: não precisavam ser indenizados porque ocorreu transfor-
porém, na década de 1850, o governo imperial mação do status de escravo, mas não necessariamente sua
anistiou, na prática, os senhores culpados do extinção. Há bons argumentos para se suspeitar que a Lei
crime de sequestro, mas deixou livre curso ao
crime correlato, a escravização de pessoas livres. Áurea foi, de certo modo, mais uma “lei pra inglês ver”.
De golpe, os 760.000 africanos desembarcados Assim, a ideia de queima dos arquivos da escra-
até 1856 -, e a totalidade de seus descendentes
vidão oculta que a matrícula dos escravos serviu como
-, continuaram sendo mantidos ilegalmente na
escravidão até 1888. Para que não estourassem modo de legitimar a propriedade privada ilegal dos es-
rebeliões de escravos e de gente ilegalmente cravos53 e, sobretudo, para frear as demandas por emanci-
escravizada, para que a ilegalidade da posse
de cada senhor, de cada sequestrador, não se pação e os ataques abolicionistas. A escravidão no Brasil
transformasse em insegurança coletiva dos pro- foi um fato jurídico que se legitimava com a presunção
prietários, de seus sócios e credores -, abalando racista de que ser negro é ser escravo. Desde o início da
todo o país -, era preciso que vigorasse um con-
luio geral, um pacto implícito em favor da vio- escravidão colonial, o Estado e a sociedade pouco ou ne-
lação da lei. Um pacto fundado nos “interesses nhum valor deram à ideia do “justo título” como prova do
coletivos da sociedade”, como sentenciou, em
status de escravo. O justo título de propriedade nunca foi
1854, o ministro da Justiça, Nabuco de Araújo,
pai de Joaquim Nabuco51. a matrícula, mas a posse branca de um corpo negro. Por
Logo, a lei pública, estabelecida no Parlamento, e essa razão, as análises sobre a existência de um arcabouço
as declarações internacionais feitas pelo Estado Brasileiro jurídico formal de segregação tendem a repetir suas pre-
não aparecem instituindo o Direito na realidade, cuja di- missas de afastamento da realidade.
nâmica de eficácia normativa sempre foi mais complexa52. A separação analítica feita pela literatura brasileira
A promulgação de leis e de acordos internacionais não entre as demandas pelo reconhecimento da liberdade por
pode ser identificada nem com o começo ou o fim da es- parte de escravos ilegais versus demandas por reconheci-
cravidão. Vale dizer, a instituição da propriedade privada mento da condição de sujeito de direitos dos anônimos
sobre outros humanos decorre de uma dimensão jurídi- brasileiros após a proclamação da República constitui se-
ca prática que incluía a apropriação racial, por parte dos paração ideológica. Essa separação, que produz descon-
brancos, dos aparatos ideológicos de Estado e dos meca- tinuidade das lutas sociais, está vinculada a um modelo
nismos de administração da justiça. De modo direto, a de história que pretende fazer coincidir as transforma-
ideia de que a queima iria evitar uma demanda por inde- ções formais do Estado com uma superação efetiva das
nização parece supor que a escravidão no Brasil deixou práticas sociais. Porém, ela está distante da compreensão
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posterior a década de 198056, havia e há inúmeras fon- O documento prova a exceção ontológica, ou seja, a liber-
tes documentais da escravidão57. Logo, aquela ideia teve dade de um “negro” (que era presumidamente reconhe-
como efeito servir de barreira para o desenvolvimento cido como naturalmente escravo). Isso poderia remeter a
da pesquisa no país. Pior ainda, os arquivos que contêm um primeiro conjunto de problemas: para que negros, no
documentação têm sido destruídos silenciosamente pelo período pós-escravista, julgaram necessário valorizar um
descaso público 58 e pela ausência de uma interpretação episódio como a queima documental que provava a sua
adequada do conteúdo da tutela constitucional. condição de escravos? Haveria continuidade de deman-
Por sua vez, é preciso pensar um pouco mais na das trabalhistas contra seus senhores? Quereriam provar
palavra “arquivo”. Essa palavra remete a uma forma de or- algo? Não haveria demanda pelo registro das origens, ou
ganizar elementos, ou melhor, de constituir “algo” como melhor, dos dados de seu nascimento? Não haveria a su-
elementos a partir de uma organização. O arquivo por- posição de que a matrícula era o caminho para a regulari-
tanto, não apenas recolhe e reconhece um dado elemento zação do registro civil de nascimento de inúmeros negros
existente “na” história. O arquivo materializa e confere (in)documentados e sem sobrenome? Não estariam ago-
operacionalidade a uma verdade59. Ou seja, o arquivo ra submetidos à condição de não existentes? Não seria a
constitui-se com base em uma dada concepção histórica falta de documentos, com a ação repressiva das polícias
sobre a História. Mesmo as coleções privadas expressam urbanas utilizada, como ainda hoje, para colocar essa po-
gostos pessoais, indicam valores no mercado de objetos, pulação na condição de não cidadãos? O apagamento dos
legitimam posições sociais e ordenam-se com base em arquivos não teria sido mais uma estratégia de descons-
mapas de reconhecimento social. O episódio da queima trução da cidadania dos negros?
das matrículas remete a um tipo de valorização do meio Nesse contexto, pode-se sugerir segundo conjunto
de prova: o documento com fé pública (peça móvel, es- de questões sobre a retórica das fontes documentais para
crita, reconhecida por um funcionário etc.). Logo, não refazer a história da escravidão, o papel conferido aos re-
haveria nenhuma verdade mais verdadeira do que aquela latos dos ex-escravos. Um pouco de prática jurídica indi-
que a burocracia legitima (muito embora se saiba que as caria que, mesmo no caso dos inquéritos e processos ju-
declarações de propriedade eram falsas). Paradoxalmen- diciais, quando aparecem algumas falas atribuídas a esses
te, apesar do apelo ao documento, a história oficial desde sujeitos é nítida a presença de um filtro racial que marca
o Império esteve calcada no uso dos “relatos” (dos letra- as fontes documentais em geral. Os relatos dos próprios
dos, membros da burocracia, padres, viajantes) que, por negros ex-escravos são uma raridade. Isso se insere na
sua condição, passavam a ser reconhecidos como fontes própria lógica do racismo, que não se estrutura apenas
dos fatos. De modo paralelo, a retórica documental do pelo ódio ou desprezo, mas, sobretudo, pela indiferença
passado, ao que parece, constitui mais uma retórica dos pelo ponto de vista das vítimas. A ideia da queima de ar-
alforriados e reescravizados do que dos senhores de es- quivos oculta que a maior barreira contra a garantia da
cravos. De fato, um negro, em nosso sistema legal, foi pre- memória sobre a escravidão foi o desprezo em relação a
sumidamente um escravo, devendo provar sua liberdade. palavra dos negros que estavam vivos naquele momento.
De fato, não se encontra, efetivamente, nas fontes docu-
mentais construídas por um poder institucional racia-
Universitas JUS, v. 26, n. 2, p. 23-39, 2015
56
WOLKMER, Antônio Carlos. Paradigmas, historiografia,
crítica e direito moderno. Revista da Faculdade de Direito, lizado, uma percepção da escravidão em seu conjunto,
Curitiba, v. 28, n. 28, p. 55-67, 1994-1995. pois o negro foi excluído como sujeito do conhecimento
57
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das
e, quando muito, foi transformado em objeto de estudo
últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1990. pela Antropologia nascente60.
58
SLENES, Robert. Escravos, cartórios e desburocratização: De fato, a indiferença e a estratégia de silenciar
o que Rui Barbosa não queimou será destruído agora? Re-
vista Brasileira de História, São Paulo, v. 5, n. 10, p. 166-197, compuseram esse quadro, como argumenta José Jorge de
mar./ago. 1985. Carvalho:
59
“Historiadores não sobrevivem sem arquivos” e do mesmo
temos que definir o racismo não pela adesão
modo, “invertendo o postulado inicial: arquivos não sobre-
a um credo de superioridade racial, mas pelo
vivem sem historiadores.” AGUIAR, Marcos Magalhães
de. Historiadores e arquivos: testemunho de uma experi-
ência. Revista Múltipla, Brasília, v. 5, n. 7, p. 109-116, dez. 60
DUARTE, Evandro C. Piza. Criminologia e racismo: intro-
34
1999. dução à criminologia brasileira. Curitiba: Juruá, 2002.
Ruy Barbosa e a queima dos arquivos: as lutas pela memória da escravidão e os discursos dos juristas
efeito continuado dos discursos que celebram a institucional com o passado. E, nesse caso, torna-se
mestiçagem e silenciaram a afirmação da con-
necessário destacar que essa impossibilidade não foi
dição de negro no Brasil. Nesse sentido, quan-
do Gilberto Freyre defendeu a morenidade e construída apenas pela falta de liberdade de expressão,
repudiou a presença no Brasil de ideologias de mas, sobretudo, pela produção massiva de discursos
negritude, ele, branco, utilizou-se de sua grande
influência para impedir que os negros afirmas- ou pelo monopólio62 desses discursos sobre o passado.
sem sua identidade de negros. E por que o fez? Esse monopólio, assim como a exclusão e a repressão
Porque o discurso da negritude deslocaria a dis- dos negros na esfera pública, parecem estar na origem
cussão de uma celebração abstrata da interpre-
tação das culturas para uma denúncia veemente da necessidade de buscar mito de perda ou de impos-
das condições de vida precárias e sempre desi- sibilidade da memória que, apesar de ser considerado
guais, enfrentadas pela população negra no país
da suposta democracia racial61.
mito, carrega elemento de contato com a realidade,
Enfim, a retórica da ideia de queima de arquivos constituindo-se em forma de expressar a condição de
também se insere numa certa gestão do conhecimento vítima de apagamento na História.
sobre o passado em que as “vozes negras” são sempre A crítica de nossa tradição negreira e a considera-
consideradas inadequadas para a descrição das “vidas ne- ção da queima de arquivos da escravidão como expressão
gras”, cabendo aos filhos da elite a elaboração de uma nar- subjetiva de processo institucional de apagamento são
rativa oficial da escravidão. Essa voz autorizada repete-se os dois pontos de partida para leitura constitucional do
e constituiu-se no monopólio acadêmico em áreas como tema da memória em relação aos negros.
a Antropologia, a História e a Sociologia ao tratar da ges-
tão das linhas de pesquisa. Essa mesma voz constitui os 4 Um lembrete: os arquivos apagados da me-
documentos cotidianos e os relatos dos viajantes. A quei- mória do presente
ma dos arquivos da escravidão (se com isso se pretende
indicar a impossibilidade de uma historia da escravidão A Constituição de 1988 é uma Constituição me-
que leve em conta as demandas sociais dos negros) tor- moriosa. Está preocupada em lembrar e permite revisão
nou-se processo que se organizou e se institucionalizou do passado. Depois de cem anos da abolição formal, a
como presente ao longo do século XX. Constituição de 1988 é a primeira a reconhecer em nos-
Essa última sugestão remete à quinta ideia so- sa história a presença da escravidão e do colonialismo,
bre a queima dos arquivos da escravidão. De fato, ela usando palavras como racismo, afro-brasileiros, indíge-
poderia ser lida com base na noção de “trauma his- nas e quilombos. De fato, em alguns dispositivos é possí-
tórico”, ou seja, como uma construção social sobre o vel perceber que a escravidão surge como um problema
passado que constrói versão distinta de fatos efetiva- que atravessa a história e vem provocar efeitos no presen-
mente ocorridos, mas que tenta elaborar, simbolica- te. O artigo 215 afirma que o “Estado garantirá a todos o
mente, experiência real e traumática para determinado pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes
grupo social. Nesse caso, não interessa se Ruy Barbosa da cultura nacional”, reconhecendo a existência de “ma-
efetivamente ordenou a queima ou se ela estava orde- nifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasi-
nada antes de sua chegada, muito menos se a queima leiras”, de “grupos participantes do processo civilizatório
foi “verdadeira ou não”, ou seja, não interessam se to- nacional”, de “diferentes segmentos étnicos nacionais”. Já
Universitas JUS, v. 26, n. 2, p. 23-39, 2015
das as “fontes” foram objetivamente perdidas. Ao invés o artigo 216 dispõe que
disso, interessa o que a ideia de “queima dos arquivos” “constituem patrimônio cultural brasileiro os
bens de natureza material e imaterial, tomados
significa como retórica no argumento das vítimas des- individualmente ou em conjunto, portadores de
se processo de negação: a impossibilidade de contato referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade bra-
sileira”, determinando em seu parágrafo quinto
que “ficam tombados todos os documentos e os
61
CARVALHO, José Jorge de. Ações afirmativas para negros sítios detentores de reminiscências históricas
na pós-graduação, nas bolsas de pesquisa e nos concursos dos antigos quilombos”.
para professores universitários como resposta ao racismo
acadêmico endêmico. In: SILVA, Petronilha B. G.; SILVÉ- Na ordem constitucional da cultura e no título
RIO, Valter Roberto (Org.). Educação e ações afirmativas:
entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília: 62
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo:
35
INEP, 2003. p. 161-192. p. 175. Loyola, 1996.
Evandro Piza Duarte, Guilherme Scotti, Menelick de Carvalho Netto
dedicado aos indígenas, bem como em artigos espar- mínimo de normatividade capaz de acoplar o texto às
sos que lhes fazem referência, a pluralidade das formas demandas políticas que não eram satisfeitas no âmbito
de vida e de culturas alcançou maior densidade cons- dos mecanismos conhecidos das descrições de funcio-
titucional, revelando a tensão entre o pluralismo como namento da política, tais como os partidos políticos ou
expressão identitária de grupos sociais e o pluralismo os sindicatos, e abrindo espaço para uma política de
social como valor reconhecido pela sociedade brasilei- reconhecimento.
ra em sua “unidade”. No artigo 215, o Estado, para ga- Infelizmente, o pensamento jurídico nacional
rantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e dominante já se apressou, no presente, em “queimar os
acesso às fontes da cultura nacional, necessita proteger arquivos da escravidão”, deixando de conferir eficácia
manifestações culturais de grupos específicos, enun- interpretativa às inovações trazidas pela Constituição.
ciados com base no reconhecimento histórico de sua Insistem, os juristas de sempre, de ontem e de hoje,
exclusão (populares, indígenas e afro-brasileiras). Ao em ler o direito de propriedade, a liberdade religiosa,
mesmo tempo, o dispositivo permite identificar outros o acesso à justiça, a politica cultural e educacional etc.,
grupos a partir de um modelo de interação definido de forma alheia aos quinhentos anos de história de
como processo (processo civilizatório nacional). O Es- aprendizado constitucional. Para além da retórica do
tado estabelece marcos simbólicos para diferentes seg- “Nacional”, é necessário retomar as dimensões univer-
mentos étnicos nacionais, valoriza a identidade étnico sais e transformadoras das lutas locais pela construção
regional, mas também propugna pela defesa e valoriza- de direitos.
ção de um patrimônio cultural “brasileiro”. Observe-se
que o patrimônio brasileiro não é definido com a busca
Referências
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