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Marcelo Bolshaw Gomes

ESTRUTURA NARRATIVA E
META COMUNICAÇÃO
Apontamentos para uma teoria interpretativa das mídias

NATAL
2012
INDICE

APRESENTAÇÃO 07

ESTRUTURA NARRATIVA E META COMUNICAÇÃO

O QUE TRANSMITO DO QUE ME DISSERAM 09

HERMENÊUTICA NARRATIVA 21

TEMPO E FILOSOFIA 25

NARRATIVAS HISTÓRICA E SOCIOLÓGICA 33

NARRATIVAS IMAGINÁRIAS 41

META NARRATIVAS AUDIOVISUAIS 45

TEMPO VIVIDO 51

REPERCUSSÕES E AFINIDADES TEÓRICAS 63

ENREDANDO IDEIAS, COISAS E PESSOAS 71

REFERÊNCIAS E APENDICES

BIBLIOGRAFIA 78
Nossa cultura está repleta de histórias. Cada
propaganda que lemos ou vemos é realmente uma
história – conta de modo inteligente, artístico e
dispendioso. O consumismo é a história principal de
nossa civilização. Ele alimenta nossos apetites não
saciados; nutre-se do fato de não estarmos sendo
supridos espiritualmente, de existir dentro de nós um
vazio que não pode ser preenchido, não importa a
quantidade bens ou guloseimas que compremos. O
consumismo é uma história perigosa e debilitante, mas
podemos trazer de volta – precisamos recuperar –
nossa força para contar histórias. Podemos afastar
aqueles hábitos com os quais gastamos bilhões de
dólares e horas. Podemos reaver esse desperdício e
reciclá-lo criando histórias mais autênticas. Podemos
anular os efeitos tóxicos de nossas pseudo-histórias,
substituindo-as por histórias mais gratificantes que
satisfaçam o coração, a mente, a imaginação e a
busca de cada um de nós por justiça e paz, pelo
retorno de benção de nossa vida diária.
(SIMPKINSON, 2002, 252)
APRESENTAÇÃO

Estrutura narrativa e Meta comunicação apresenta um


breve histórico dos estudos narrativos estruturalistas e mitológicos,
com a ênfase na hermenêutica filosófica e literária de Paul Ricoeur (e
nas noções de Mimese e Intriga) – da qual se resumem os últimos
livros. O objetivo é comparar suas ideias (e leituras filosóficas,
literárias e científicas) sobre a unidade da estrutura narrativa entre
história e ficção, com autores afins das áreas de ciências sociais,
artes dramáticas e comunicação social (Geertz, Thompson, Goffman
– entre outros). A partir desta perspectiva, estuda-se também a
globalização das narrativas pelos meios de comunicação e seus
efeitos de sentido nas estórias que contamos atualmente sobre nós
mesmos e sobre o mundo em que vivemos. E o resultado é a
possibilidade de construção hermenêutica de uma teoria
interpretativa das mídias através da ótica de uma meta comunicação,
ampliando a consciência narrativa que a mídia tem de si mesma.
Esse texto integra vários ensaios e artigos escritos em
função do Projeto de Pesquisa Discurso Político, Teatro e Retórica
da Mídia (desenvolvido na UFRN em 2008-2011), em que se elabora
e aplica a leitura hermenêutica a diferentes textos, filmes, histórias
em quadrinhos, seriados de TV extraindo dessas leituras um modelo
para compreensão das narrativas contemporâneas.
Marcelo Bolshaw Gomes possui graduação em
Comunicação Social - Jornalismo pela Faculdade de Comunicação e
Turismo Helio Alonso (1984), mestrado em Ciências Sociais pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1998), especialista
em Marketing político e persuasão eleitoral (2003, PUC/RS) e
doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (2006). Atualmente é professor adjunto do
Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, ministrando a disciplina Sociologia da
Comunicação nos cursos de radialismo e publicidade e a disciplina
Política e Comunicação Midiática no Programa de Pós Graduação
em Estudos da Mídia.
ESTRUTURA NARRATIVA E META COMUNICAÇÃO
Apontamentos para uma teoria interpretativa das mídias

O que transmito do que me disseram

George Orwell conta que, quando esteve no fronte da


guerra civil espanhola, lugar em que um ser humano não dá
nem um palito de fósforo usado para seu melhor amigo,
presenciou soldados que davam metade de sua comida para
ouvir uma estória. Aliás, muitos já disseram que a lista das
necessidades humanas tem apenas dois itens: pão (a comida
nutre o corpo) e circo (a narrativa alimenta a alma).

Mas será que a necessidade de diversão é tão


importante assim? Qual será a verdadeira importância da
narração de histórias para o equilíbrio psicológico? E será que
todas as histórias têm o mesmo valor?

Os estudos narrativos, como campo de reflexão


teórica, têm duas origens opostas e complementares.

Em primeiro lugar, estão os diferentes tipos de


estudos estruturalistas e de análise discursiva sobre várias
formas de narrativa: Vladimir Propp (1928), Roland Barthes
(2008), Gérard Genette (1972) e A.J. Greimas (2008).
Em um segundo momento, estão os estudos
narrativos inspirados na psicologia junguiana, principalmente
Joseph Campbell (1990) e Mircea Eliade (1992). Esses
autores partem do geral (do 'inconsciente coletivo', dos
'arquétipos') ao particular (o mito cultural específico), são
universalistas e cultuam o sagrado como uma epifania
transcultural. Enquanto as abordagens estruturalistas, no
sentido contrário, observam o aspecto local do mito e da
narrativa dentro de um quadro de referências globais. Ambos
abordam 'o todo e as partes' – mas de modo bem diferente e
até complementar em alguns aspectos. Os estruturalistas são
mais dedutivos; os mitólogos, mais indutivos.

Com Umberto Eco (1976) e Paul Ricouer (1994, 1995,


1997), os estudos narrativos passaram a também incluir os
textos não ficcionais (como a crônica histórica e o jornalismo).
Nessa terceira modalidade dos estudos, a formação cognitiva
de nossa identidade enquanto sujeitos sociais é o resultado
histórico das estórias que nos contaram e que contamos aos
outros: a fabulação. O essencial aqui é saber como
retransmitimos o que nos contaram.

Estruturalismo

Os primeiros estudos narrativos se aproximam


bastante da análise discursiva e da semiótica estruturalista,
trabalhando com a construção de uma gramática narrativa
formada por paradigmas, estruturas e repetições universais
entre as diferentes estórias analisadas, secundarizando os
diferentes contextos históricos e culturais em que foram
produzidas.
O resultado dessa predominância levou a criação de
fórmulas muito rígidas. Propp (1928), por exemplo, identificou
sete tipos de personagens, seis estágios de evolução da
narrativa e 31 funções narrativas das situações dramáticas.
Porém, essa estrutura narrativa se aplicaria apenas aos
contos de fadas russos. E sua importância foi a de inspirar
outros modelos estruturalistas, mais completos e abrangentes.

O mais importante dos modelos narrativos do


estruturalismo foi o elaborado por Greimas. Para ele, não
haveria apenas uma estrutura narrativa, mas várias estruturas
sobrepostas. As estruturas profundas seriam lógicas e
acrônicas, formada por relações de contradição, oposição e
contraponto (o quadrado semiótico), aos elementos dessas
relações, Greimas chamava ‘actante’ (que é equivalente a
arquétipo). Essas relações inconscientes entre os actantes
das estruturas profundas se tornariam dinâmicas nas
estruturas intermediárias (diacrônicas e narrativas) e voltariam
a ser simultâneas nas estruturas superficiais (sincrônicas e
discursivas). E essa ideia de que o universo cultural (ou o
campo específico em que os sujeitos se encontram antes de
contarem suas estórias) é um conjunto de estruturas
narrativas de uma única história foi adaptada por diversos
autores não estruturalistas de várias áreas de conhecimento.

Imagem 1 – Quadrado Semiótico Narrativo de Greimas


No modelo de Greimas, as estruturas profundas
correspondem ao inconsciente atemporal e é formado por três
séries elementos, duplas de 'actantes' que formam 'funções'
da narrativa: as relações de desejo ou de contradição
(protagonista x antagonista e ajudante x sociedade); as
relações de comunicação ou de contrariedade (protagonista &
ajudante e antagonista & sociedade); as relações de ação ou
de complementaridade (protagonista + sociedade e
antagonista + ajudante). Esses elementos expressam relações
arquetípicas que emergem à consciência através das
estruturas discursivas da narrativa, seja na literatura de ficção,
na história ou biografia.
Tabela 1 – Quadrado Semiótico Narrativo de Greimas

Posição Função Modelo gerativo Actantes

S1/S2 DESEJO eixo dos contrários protagonista x antagonista

~S1/~S2 relação de contradição eixo dos sub contrários ajudante x sociedade

S1/~S1 COMUNICAÇÃO esquema positivo protagonista & ajudante

S2/~S2 relação de contrariedade esquema negativo antagonista & sociedade

S1/~S2 AÇÃO diagonal positiva protagonista + sociedade

S2/~S1 relação de complementaridade diagonal negativa antagonista + ajudante

Mitologia comparada

A segunda geração dos estudos narrativos descende


de Joseph Campbell, o conhecido mitólogo que levou as
ideias de Jung aos campos da arqueologia, antropologia e
história das religiões, que elaborou um modelo universal
segundo o qual todos os grandes mitos fundadores das
culturas humanas seriam, em última análise, uma narrativa
universal: o 'monomito' (adaptado de James Joyce).
Campbell, que trabalhava com mitologia comparada,
delimitou os passos e percursos possíveis do herói
arquetípico, que viveria um "ciclo de iniciação" em sua
"jornada" (trajetória do anonimato à consagração).

O trabalho de Campbell influenciou cineastas como


George Lucas (Star Wars foi concebido a partir da jornada do
herói) e escritores como Christopher Vogler, roteirista de
Hollywood e executivo da indústria cinematográfica que usou
as teorias de Campbell para criar um memorando para os
estúdios Disney, depois desenvolvido como o livro (1997).
Porém, essa segunda geração de estudos narrativos, apesar
de audiovisual, ficou presa fórmulas, variações e até contra
fórmulas – narrativas que tentam quebras as regras estruturais
do monomito, mas apenas o reforçam.

Isto pode ser facilmente comprovado através de


alguns estudos narrativos. Por exemplo: a 11ª conferência
anual do Common Boundary - uma ONG norte-americana,
voltada para o estudo e divulgação de experiências sobre a
relação entre psicoterapia, espiritualidade e criatividade – foi
inteiramente dedicada ao tema das histórias sagradas.
Participaram pesquisadores de diferentes áreas e
especialidades. David Peat (SIMPKINSON, 2002, 79), por
exemplo, relacionou a atual teoria do caos e cosmovisão dos
nativos norte-americanos; John L. Johnson (SIMPKINSON,
2002, 165) falou sobre a reabilitação de dependentes de
drogas por meio da narração de histórias de origens africanas;
e John Daido Loori (SIMPKINSON, 2002, 199) apresentou um
trabalho sobre o ‘Zen e seus koans'.
Porém, o centro dos debates foi sobre o caráter
sagrado das narrativas. Neste sentido, é possível precisar três
posições distintas não conflitantes: os que têm nostalgia das
estórias tradicionais; os que consideram as histórias narrativas
cognitivas para constituição de biografias; e os que entendem
as narrativas sagradas e profanas como partes de um jogo
complexo de identidade.

Sam Keen integra o grupo tradicionalista. “Para nos


libertar do mito destrutivo do progresso, temos que redescobrir
nossas mitologias familiares e histórias pessoais”.
(SIMPKINSON, 2002, 43) No cenário tradicional, acreditava-se
em um mito que orientava nossa vida; no cenário moderno, a
história tomou o lugar das estórias míticas; e agora, na pós-
modernidade, não há nem uma única história formadora de
nossa identidade, mas somos bombardeados por várias
estórias de outros locais. Para Keen, essa multiplicidade de
narrativas globais gera uma cultura descontínua e
fragmentada, com rupturas de espaço/tempo, que afasta os
homens de si mesmos e da natureza.

Mary Catherine Bateson (SIMPKINSON, 2002, 47)


também considera a cultura atual descontínua, mas acredita
que há uma continuidade espiritual perpassando as diferentes
descontinuidades pelas quais passamos em nossa história de
uma vida. Por isso, enfatiza: o importante é viver a vida como
processo criativo. Sermos os autores de nossas histórias de
vida, ser os artistas e a própria obra de arte em evolução. As
estórias, neste contexto, são vistas como encontros entre
pessoas e imagens, como uma forma de arte-terapia. Bateson
tem um interesse especial pelas narrativas de conversão.
E, finalmente, existem os que acreditam que as
“narrativas sagradas são constituídas de símbolos e verdades
profundas sobre os mistérios da vida.” Vivemos em um
universo formado por histórias – histórias da família, da escola
e da mídia. As histórias nos informam, distraem, ensinam. Mas
nem todas são sagradas. Há também histórias tolas, obscenas
e até imorais. Conclui-se que as sagradas são aquelas que
“nos transformam e aproximam dos outros” (SIMPKINSON,
2002, 09).

Histórias Sagradas

Digamos nosso ponto de vista então sem arrodeio: é a


distinção entre estórias de ficção e história 'real' que
dessacralizou as narrativas. Antes da escrita, as estórias eram
sagradas na medida em que eram míticas e reais ao mesmo
tempo. Não havia distinção entre as funções poética e
referencial da linguagem.

Para o filósofo inglês R. G. Collingwood, há duas


artes: a grande arte (art proper, isto é a arte propriamente
dita), que está a serviço da elevação da consciência; e a má
arte, que “se passa por arte sem realmente sê-lo, a arte 'assim
chamada' (so called)”, que serve a corrupção da consciência e
têm dois tipos ideais: o divertimento e a 'arte mágica' ou
utilitária (um hino patriótico evoca emoções cívicas, por
exemplo). A grande arte, ao contrário, é aquela que “capaz de
produzir, na audiência e no próprio artista, uma maior
compreensão de seus próprios sentimentos e, com isso, uma
ampliação e regeneração de seu autoconhecimento e
consciência” (COSTA, 2006, 30).
Com base nessa distinção, até se poderia classificar
as narrativas atuais entre sagradas e profanas, mas essa
distinção seria bastante arbitrária, pois há narrativas que estão
a serviço da elevação da consciência (e da compreensão do
outro) e são iconoclastas; enquanto outras, que reforçam ‘a
pertença’ (o sentimento de pertencimento a uma identidade
territorial), também tem um efeito de sentido transcendente.

Nos tempos da globalização, essa distinção não pode


ser seguida ao pé da letra, com as estórias industrializadas
através da mídia. Na prática, há sempre os três elementos - a
ampliação/reafirmação da identidade cultural e ética (o
aspecto cognitivo), o divertimento (o aspecto lúdico) e a
sugestão política de mudança e/ou de conservação dos
valores morais (o aspecto pedagógico) - distribuídos em
diferentes proporções, tanto no caso das narrativas ficcionais
como das narrativas chamadas de 'reais', as jornalísticas ou
cientificas.

Walter Benjamim é uma referência obrigatória quando


se trata de 'sacralidade' e arte. A Obra de Arte na era de sua
reprodutividade técnica (1983, 5-28) ressalta o impacto que a
produção em série de objetos pela indústria teve sobre a
percepção. Houve um tempo em que apenas as moedas
cunhadas e a xilogravura eram objetos em que as cópias não
se distinguiam dos originais. A obra de arte era única no
tempo e no espaço e isso lhe conferia uma áurea, uma
presença sagrada. Hoje praticamente tudo é reproduzido de
modo idêntico, em série. A arte, então, deixou de ser sagrada,
'objeto de culto' para se tornar expressiva dos sentimentos e
crítica da injustiça social.
Para Benjamim, com a reprodutividade técnica e o
desaparecimento da ‘áurea’ dos objetos de arte em geral, a
'originalidade' teria sido substituída pela 'novidade' também no
campo discursivo das narrativas.

Muitos, como Ricoeur, interpretam isto como 'o fim da


arte narrativa', mas acredito que o que Benjamim quis dizer foi
que, na modernidade, não é mais a narrativa em si que é
importante, mas sim a forma diferenciada como ela é contada
pelo narrador e pelo efeito de sentido transformador – da
experiência de verticalização do tempo e sabedoria perene, de
êxtase fugaz e compreensão permanente - que desencadeia
em seus ouvintes.

A arte continua representando o que é invisível,


tornando público o que é oculto, compreendendo o
inexplicado; sendo que a antiga invisibilidade povoada de
deuses e monstros é diferente da moderna, formada por
memórias coletivas, imagens inconscientes e arquétipos.

Além disso, o que faz uma história sagrada é sua


forma e não seu conteúdo. O que importa (o que sempre
importou) é 'como' se conta a estória e não sobre 'o que' ela
trata. Há histórias religiosas que não são sagradas fora do seu
contexto original. Reconhece-se sobretudo uma narrativa
sagrada pelos efeitos de sentido que ela desencadeia em
seus ouvintes e leitores.

O próprio Benjamim (1985b) observa que, com a


reprodutividade técnica dos objetos industrializados, também
houve uma mudança na forma narrativa através da qual
contamos estórias.
1. No ambiente tradicional, as estórias eram transmitidas
oralmente e, portanto, eram repetidas sempre da mesma
forma – como exigem as crianças em seus primeiros anos.
Quando ganhavam versões escritas, os narradores não se
assumiam como autores da narrativa: Homero, Hesíodo,
Virgílio, Apuleio apenas recontam narrativas que ouviram. A
ênfase cognitiva era da narrativa.
2. No ambiente moderno, no entanto, o contador de estórias
(escritores, cineastas, artistas) deve ‘ser criativo’, original e
primar pela novidade, não só contando uma mesma estória
de diferentes formas, mas sempre contando novas estórias.
Tornou-se lugar comum não apenas recontar as histórias
clássicas com um estilo autoral, mas também combinar
histórias de diferentes culturas e épocas, relacionando-as,
misturando seus personagens e textos, fazendo citações
para serem reconhecidas. A ênfase atual é do narrador.
Em outros textos, como em Sobre alguns temas em
Baudelaire (1983, 29-56), Benjamim enfatiza que artista
moderno é que possui a 'áurea' e que é sua vida que dá
sentido a sua obra. Para ele, a capacidade de produção em
série sem distinção entre original e cópia transformou nossa
percepção da realidade e nossa sensibilidade estética –
deslocando a singularidade da arte do campo do objeto para o
interior do sujeito, transformando a ‘espiritualidade da criação’
na ‘genialidade do seu criador’.

Tal fato realmente instaurou a metalinguagem (ou a


relação explícita entre o enunciador e a referência) no coração
da arte moderna e das narrativas audiovisuais. Hoje, os
personagens passaram a ser (sub) narradores da narrativa.
Porém, seria um exagero dizer que quem passa a ser
'sagrado' foi o narrador e não mais a narrativa.

Embora o deslocamento da áurea para o narrador seja


real, em nossa perspectiva, a narrativa para ser sagrada deve
ser mítica e histórica ao mesmo tempo.
A história e a ciência nos dizem quem somos e as
estórias ficcionais nos dizem como não somos, ampliando
assim nosso universo cultural1. A narrativa ficcional expressa o
'não-ser'; o a narrativa sagrada tradicional é um encontro do
Ser com 'o que não é'. Há uma unidade dialética entre a vida e
a morte, entre o eu e o outro, entre a narrativa e o narrador.

Ao invés de compreender e explicar o efeito espiritual


das narrativas sobre nossas vidas, tanto o estruturalismo
como os descendentes de Campbell apenas padronizaram as
estórias, gerando modelos para a produção de enlatados
audiovisuais pela indústria cultural. Na verdade, a “jornada do
herói” é um processo simbólico de formação histórica e mítica
do sujeito no ocidente, nas sociedades patriarcais. Outras
culturas tem estórias que fogem bastante ao escopo da
narratologia e ao modelo do monomito.

1
Nesse sentido, Gaston Bachelard, para nós é uma referência importante.
Para ele, o instante poético (e, consequentemente, o momento de criação
artística em geral ou insight criativo) é uma verticalização do tempo, que se
torna mais simultâneo e menos contínuo, comparada ao transe místico e à
experiência do sagrado. Bachelard é um pensador duplo: tem textos diurnos
dedicados à epistemologia da ciência e textos noturnos sobre o universo
simbólico da arte. Nos textos noturnos, ele adota uma perspectiva junguiana,
em que o inconsciente é coletivo e habitado por arquétipos, formas
transculturais recorrentes nos sonhos e nas artes. Há ainda na estética
bachelardiana, uma experiência cognitiva visual (ou a imaginação dos olhos)
e uma experiência cognitiva material (ou a imaginação das mãos). Para
Bachelard, a imaginação material, expressa através dos padrões dos quatro
elementos (terra, água, ar e fogo), é a linguagem primária do inconsciente.
Também é a partir da sua dialética de duração (como um contradição entre o
tempo vivido e o tempo sonhado) que se pode pensar a memória como intriga
ou inteligência narrativa.
ESTRUTURA NARRATIVA E META COMUNICAÇÃO
Apontamentos para uma teoria interpretativa das mídias

Hermenêutica narrativa

A hermenêutica de Paul Ricoeur - terceiro estágio dos


estudos narrativos aqui classificados - absorveu a metodologia
estrutural de Greimas e o foco histórico da mitologia, mas não
embarcou na hipótese do monomito de que todas as estórias,
no fundo, eram uma única história. Ao contrário, ele utilizou a
metodologia narrativa das estórias para estudar a noção de
História. E sua realização teórica mais importante foi
estabelecer a narrativa como uma 'função de linguagem',
através da re-interpretação teórica das noções filosóficas de
'Mimese' e 'Intriga', extraídas da Poética de Aristóteles,
atualizando-as para crítica literária e historiográfica.
Por ‘Mimese’, Ricoeur entende a imitação criativa ou
representação interpretativa da ação, através do qual
aprendemos atitudes, comportamentos e nos comunicamos. E
por ‘Intriga’, ele entende o agenciamento de fatos, sujeitos e
cenários – elementos estruturantes de sua própria narrativa.
Ricoeur desenvolve uma teoria da mimese em três momentos:
o tempo vivido (e ainda não configurado pelo ato poético); o
tempo narrado (o texto); e o tempo refigurado (o leitor). A
intriga narrativa, portanto, enreda-nos em três mimeses: há a
intenção do autor, o sentido da obra e as diferentes
percepções dos receptores.

Ricoeur demonstra ainda que a historiografia (a


narrativa histórica produzida pelos historiadores) é uma
construção poética que enreda os elementos presentes na
vida com os elementos do mundo re-figurado da cultura.
Narrar história é enredar pessoas, instituições e ideias – seja
em textos científicos ou jornalísticos. Assim, por um lado, a
noção de intriga resulta da competência narrativa do escritor
em agenciar incidentes de forma significativamente seletiva,
associando e encadeando acontecimentos segundo seus
valores, elegendo sujeitos como heróis e vítimas, intercalando
sub-enredos descontínuos em uma sequência lógica. E, por
outro lado, a intriga deriva da 'fabulação' de seus leitores e do
ambiente cultural em que ela é urdida.

A importância do pensamento de Ricoeur para os


estudos narrativos é enorme, uma vez que não apenas
sistematizou as contribuições anteriores como também lhes
deu um novo sentido, mais abrangente e filosófico.
E essa noção ampliada de intriga narrativa de Ricoeur
(o enredamento de sonhos e vidas em uma única estratégia) é
produtora de sentido e identidade. Ela corresponde a noção
de 'estrutura múltipla aberta' - em que o tempo narrado
(passado), o tempo vivido (presente) e o tempo sonhado
(futuro) são processados na forma de narrativa. A Intriga é a
tríplice estrutura da linguagem, formada pelas história/estórias
que nos contaram e que nós contamos aos outros para afirmar
nossa identidade.

A tese central da trilogia de livros Tempo e Narrativa


(RICOEUR: 1994; 1995; 1997) – obra esgotada em português
sem previsão de reedição no Brasil - é afirmar a identidade
estrutural entre historiografia científica e narrativa ficcional. E
nosso objetivo é aqui resumir e comparar essas ideias com
autores afins das áreas de ciências sociais, entrevendo a
possibilidade de construção de uma meta comunicação e de
uma teoria interpretativa das mídias.
Para provar que história e ficção partilham da mesma
estrutura narrativa, Ricoeur realiza quatro movimentos:
• A partir das concepções de Santo Agostinho e Aristóteles
estabelece a circularidade entre tempo e narrativa, extraindo
da analogia as noções de mímese e intriga;
• Estuda a diferentes contribuições da historiografia francesa
(Fernand Braudel, George Duby, Le Goff) à luz da intriga
como competência narrativa (defendida por Paul Veyne);
• Dialoga com Northrop Fryre e Frank Kermode, confronta e
assimila a semiótica narrativa (Propp, Greimas, Barthes) e
utiliza seus conceitos para crítica de textos literários sobre o
tempo;
• E, finalmente, retornando a Santo Agostinho e Aristóteles (e
à filosofia da história enriquecida da ciência e da ficção),
Ricoeur se indaga “(... ) até que ponto uma reflexão filosófica
sobre a narratividade e o tempo pode ajudar a pensar juntas
a eternidade e a morte”. (1994, 131)
Vejamos detalhadamente, nos capítulos seguintes,
cada um desses movimentos.
ESTRUTURA NARRATIVA E META COMUNICAÇÃO
Apontamentos para uma teoria interpretativa das mídias

Tempo e filosofia
Primeiro movimento teórico de Ricoeur: o ciclo entre
narrativa e temporalidade é definido como aquele em “que o
tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado
de um modo narrativo, e que a narrativa atinge seu pleno
significado quando se torna uma condição da existência
temporal.” (1994, 85)
Ricoeur parte de dois pontos distintos e arbitrários do
ciclo entre temporalidade e narrativa: o livro XI d'as
Confissões de Santo Agostinho, que versa sobre paradoxos
psicológicos da experiência do tempo; e A Poética de
Aristóteles, que trata da organização racional da narrativa.
Para Ricoeur, esses dois pontos apresentam uma simetria
invertida: na representação do tempo de Agostinho, a
discordância filosófica desmascara o desejo de concordância
psicológica (1994, 19-54), enquanto, em Aristóteles, a
concordância poética supera as discordâncias políticas
através da configuração da intriga (1994, 55-84).
Da Poética de Aristóteles, Ricoeur extrai dois
conceitos: mímese e intriga. Mimeses é a imitação criadora da
experiência viva. Ela não é uma cópia, réplica do idêntico; a
mímese produz sentido através da intriga, do agenciamento
dos fatos (1994, 60).
Ricoeur estabelece (1994, 85-132) três mímeses: a
mímese I, atividade cognitiva do enunciador; a mímese II, a
auto configuração da linguagem; e a mímese III, atividade
cognitiva do leitor. A 'tessitura da intriga' é equivalente à
mímese II, que articula as mímeses I e III (media enunciação e
recepção) e resolve, para Ricoeur, o círculo entre a poética da
narrativa e o paradoxo do tempo. Nesse sentido, Intriga é
sinônimo de configuração. Ou melhor: a intriga é 'quem'
configura os acontecimentos de uma narrativa.
A noção de tessitura da intriga de Aristóteles estava
estruturada para os gêneros literários ficcionais de sua época:
a comédia, a epopeia e, principalmente a tragédia.
A epopeia e a tragédia eram mitológicas. Mas,
enquanto na epopeia, a avó do romance de aventuras, havia
uma ênfase na ação dos heróis e reis, que desafiavam e
venciam os deuses; na tragedia, o protagonista central era
vítima que padecia com a destruição ou loucura por seu
orgulho ao tentar se rebelar contra as forças do destino.
A tragédia era também oposta à sátira (ou comédia)
por vários motivos. Enquanto a tragédia expressava o conflito
entre o passado mítico dos deuses e o presente da cidade; a
sátira tratava de ridicularizar os costumes e as figuras
públicas, usando a ironia e o espírito cômico. Elas evocam
sentimentos diferentes - uma é alegre; a outra, triste. Porém, o
que caracteriza realmente a tragédia não é o final infeliz, mas
a tensão nervosa que se estabelece desde o início da
antecipação deste desfecho de sofrimento, para que, quando
este aconteça, seja um alívio. É quando se sabe que tudo vai
acabar mal e a narrativa apenas retarda a fatalidade.
Para Aristóteles, a catarse é o principal 'efeito de
sentido' da tragédia, proporcionando o alívio de sentimentos
negativos do público. Segundo a psicanálise, a catarse ocorre
quando a energia utilizada na manutenção dos sentimentos de
separação das partes do Self é liberada. Esta energia é
sentida como uma sensação de alívio. Na Grécia do século V
a.C. acreditava-se que, ao assistir as apresentações das
tragédias, saia-se do teatro purificado. A tragédia, assim
concebida, resultaria de uma catarse da audiência e isto
explica o prazer de assistir ao sofrimento dramatizado – o que
pode ser generalizado em relação a outros gêneros.

A tragédia clássica é uma forma de drama, que se


caracteriza por sua seriedade e dignidade, frequentemente
envolvendo um conflito entre um personagem central e algum
poder de instância maior, como a lei, os deuses, o destino ou
a sociedade. Inicialmente ela era um ritual orgiástico que
promovia o transe místico, formado por um coral (as bacantes)
e um personagem central (Dionísio) que era sacrificado,
depois evoluiu para um espetáculo teatral com vários
personagens e público. A palavra grega "tragédia" significa
"canto do bode" e se refere possivelmente ao ritual em honra
a Dionísio do qual, o teatro se originou. O bode expiatório é
uma expressão alegórica oriunda de um fato literal: um bode
era imolado para expiar os pecados dos participantes. O rito a
dionísio, no qual se sacrificava um bode, ligava-se ao culto da
fertilidade e ao ciclo vegetal e ao ciclo da vida humana,
condicionada pela sombra da morte e aberta, pelo ritual, à
possibilidade de ressurreição. Esquilo introduziu um segundo
ator além do corifeu, o que reforçou a dramatização. Sófocles,
no século V, escreveu diálogos para um terceiro ator que,
como os outros dois, podia desempenhar vários papéis
mediante o tradicional recurso das máscaras. A partir do
século IV a. C., a tragédia grega, já despojada de sua função
catártica, tornou-se retórica e sobrecarregada.

Nietzsche vai se opor às ideias de Aristóteles


afirmando que ‘a finitude, as perdas e o sofrimento’ não eram
vistos na Antiguidade como males que precisavam de
expiação e penitência. Ele lamenta a moralização da tragédia
e a leitura que convertia o herói trágico em um pecador
arrependido e o sofrimento como uma punição. Para
Nietzsche, o destino trágico não é um castigo, mas uma
possibilidade de libertação; a catarse trágica é um êxtase
libertador e não como uma agonia purificadora.

Ricoeur, no entanto, isola propositalmente em um


primeiro momento a noção de 'intriga' da noção de 'catarse',
prometendo recolocar a relação entre a duas categorias
novamente na quarta parte de seu trabalho, voltado para a
mímese III (os efeitos de sentido temporais da leitura das
narrativas no receptor).
Uma contribuição significativa para re-interpretação
das noções aristotélicas de cartase e também de intriga pode
ser encontrada no clássico A Interpretação dos Sonhos (1990)
de Sigmund Freud. Para ele, todo sonho seria ‘a realização
simbólica de um desejo inibido’, mas nem sempre a expressão
deste desejo é clara e inequívoca, ao contrário, haveria
mecanismos psicológicos responsáveis pelo mascaramento
simbólico dos impulsos recalcados. Freud chamaria esses
mecanismos: condensação, deslocamento, processo de
elaboração secundária, simbolismo e dramatização. Lacan, ao
tomar o inconsciente estruturado como uma linguagem e o
sonho como um discurso a ser decifrado, reconheceu os
mecanismos freudianos de condensação e de deslocamento
nos termos ‘metonímia’ e ‘metáfora’, importados da linguística
estruturalista. A dramatização e a simbolização são
mecanismos coletivos análogos aos processos de
condensação e deslocamento individuais.
A elaboração secundária se revela como o processo
pelo qual, à medida que se aproxima a vigília, a produção
onírica é reorganizada por uma lógica racional. Assim, nos
lembramos dos sonhos sempre de trás para frente, apagando
seus detalhes e paradoxos. A noção freudiana de 'processo de
elaboração secundária' corresponde à de Intriga narrativa de
Paul Ricoeur, pois a Intriga também é regressiva, isto é,
organiza a estória detrás para frente, buscando agenciar os
incidentes em função do final desejado.

E mais: para Freud, o processo de simbolização se


explicaria ainda através da censura e dos quatro movimentos
de defesa do ego diante da crueza dos seus instintos e
desejos objetais: identificação (Eu sou o Outro/Objeto),
projeção (Eu me vejo no Outro/Objeto), introjeção (Eu vejo o
Outro/Objeto em mim) e sublimação (Verticalização: Eu e o
Outro somos um). Em trabalhos vários posteriores, Freud
equiparou essa noção de sublimação a uma 'cartase estética'.
A catarse (seja estética ou terapêutica) ocorreria quando a
energia usada na manutenção dos sentimentos de separação
das partes do todo psíquico é liberada, sentida como uma
sensação de alívio, acompanhado de lágrimas e risos.

Para Jung, o primeiro crítico da noção de simbolismo


de Freud como recalcamento de desejos, as imagens oníricas
se oferecem como narrativa em que o protagonista é o próprio
narrador: o sonhador. Do ponto de vista pessoal, há uma
função psíquica compensatória entre as relações dos eixos
ego-self x consciência individual-inconsciente coletivo. E esse
quadrilátero psíquico é também uma estrutura narrativa: herói-
narrador (ego-sefl) x antagonista-companheira (a sombra-
sagrado feminino). Aliás, todos os mesmos parametros
produzidos pela psicanálise para investigar as biografias
pessoais também podem ser utilizados para analisar estórias
fictícias ou relatos históricos verdadeiros.

O importante hoje, para nós, é ressaltar a ideia de que


a catarse tem origem em um herói anterior à representação,
de um sujeito imanente/transcendente à representação.
Sujeito, tanto no sentido político de 'submetido a outro por
controle e dependência', quanto no sentido narrativo de
'consciência, identidade de si'.
A catarse cômica está diretamente ligada à meta
dramatização satírica. Em oposição ao humorismo moderno
(em que se deprecia intelectualmente o Outro), o que
caracteriza o 'cômico' é o deboche ao próprio corpo (que pode
inclusive representar o Outro de vários modos). A diferença é
que o palhaço debocha de si próprio (e do Outro, apenas
indiretamente). Ele é simultaneamente sujeito e objeto,
narrador e narrado, mesmo que em uma mimese exagerada,
em uma imitação caricatural de outras pessoas.

E o que caracteriza a catarse trágica é a tensão


nervosa que se estabelece pela antecipação deste desfecho
doloroso, quando a narrativa apenas retarda a fatalidade.
Além disso, enquanto na comédia os protagonistas são
agentes de acontecimentos inusitados; na tragédia, eles são
vítimas do destino, que sofrem as consequências de seus
erros. Entretanto, o herói trágico não é um sujeito racional ou
reflexivo, dissociado da vida. Ele é ‘um de nós, sofrendo por
todos’ e permitindo que o público transcenda a situação
encenada através da sublimação, vivendo uma existência
ampliada ao mítico e ao divino.

Todavia, trágico e satírico formam ainda um oposição


mais complexa, a qual Marx involuntariamente se referiu em
sua famosa frase sobre a precedência histórica da tragédia
sob a farsa. Primeiro sentimos, depois pensamos: no trágico,
a expressão do ser leva a transcendência da representação;
no cômico, a representação da representação forma uma
imitação crítica da realidade. São os dois extremos da
representação.
As narrativas atuais (assim como a vida atual) são
tragicômicas, isto é, combinam simultaneamente os dois
movimentos da dupla representação no mesmo texto. O
aspecto trágico representa um retorno ao arcaico e ao
sagrado; o aspecto cômico reintegra a crítica social à farsa do
inconsciente da modernidade. A narrativa tragicômica é o
exercício da consciência total, de adequação das narrativas
míticas com as vidas biográficas e das histórias pessoais com
a memória coletiva da comunidade.

Com essa compreensão da necessidade de um novo


sujeito, trágico e cômico ao mesmo tempo, retornar-se à
catarse primária das emoções, redentora de nossos
sofrimentos e esperanças, porém motivados pela a alegria da
crítica social e a felicidade da transformação em todos os
níveis. Pois hoje, tanto a arte contemporânea como a mídia
combinam as cartases de medo da morte e de alegria pela
vida em uma única narrativa.
ESTRUTURA NARRATIVA E META COMUNICAÇÃO
Apontamentos para uma teoria interpretativa das mídias

Narrativas histórica e sociológica


O segundo movimento teórico de Ricoeur é dedicado
ao confronto entre história e a narrativa (133, 1994). A história
é disciplina ambígua, meio científica, meio literária, cuja a
epistemologia registra justamente esse conflito discursivo
entre a referência e a metáfora. Não se trata de estabelecer
um 'meio-termo' entre o externo e o análogo, mas sim de
reconhecer um laço indireto e multifacetado entre a explicação
histórica e a compreensão narrativa.
Em um primeiro momento, Ricoeur compara o modelo
histórico da epistemologia neopositivista (em que o objeto
central não é mais o individuo agente e sim o fato social total)
com a historiografia francesa (Raymond Aron, Henri Marrou,
Marc Bloch). Chega, então, a nova história (Fernand Braudel,
George Duby, Le Goff), ressaltando suas diferenças.
Tanto o modelo histórico científico quanto a 'história
das mentalidades' são visões parciais para se chegar à noção
de organização da história pela intriga narrativa. E esse salto é
dado por Paul Veyne (242-249) – a quem Paul Ricoeur na
verdade deve a noção de intriga como competência narrativa
do historiador, importada da noção original de Aristóteles de
intriga como configuração de narrativas ficcionais. Porém,
Ricoeur considera-o muito radical: “Como se escreve a
história (livro de Veyne) tem a notável vantagem de conjugar
um rebaixamento científico da história com uma apologia da
noção de intriga.” (243) Para Veyne, o historiador é livre para
recortar o campo indeterminado dos acontecimentos; para
Ricoeur, o recorte dos fatos também 'faz' o historiador, a
linguagem configura a si própria e aos seus enunciadores.
Em um segundo momento do estudo entre história e
narrativa, Ricoeur investiga também o modelo histórico
nomológico oriundo da filosofia analítica inglesa (ou teoria dos
atos da fala, que classifica as formas discursivas de ação e
descrição do mundo). Arthur Danto, por exemplo, que estuda
os tempos verbais dos discursos históricos, propondo que
uma gramática discursiva substitua a filosofia da história e/ou
as metodologias de análise dos acontecimentos. Danto
caracteriza uma frase como narrativa quando o enunciado se
diferencia da enunciação, quando existe o que hoje
chamamos de 'contação' ou 'metateatro'.
Essa metalinguagem narrativa, consciência subjetiva
dos historiadores diante dos fatos narrados, se refere tanto ao
diálogo explícito entre narrador e protagonistas históricos,
como também implica na coexistência pelo menos duas
dimensões temporais paralelas: o mundo objetivamente
descrito e o universo subjetivamente prescrito – formado pelo
aperfeiçoamento coletivo das regras e procedimentos
utilizados para descrição objetiva do mundo. Apesar levar em
conta a autonomia relativa do narrador, para o modelo
nomológico de análise histórica, a intriga narrativa só tem um
caráter episódico e não uma função configurante. Ao contrário:
toda narrativa é vista como uma estrutura imposta aos
acontecimentos, agrupando alguns dentre eles com outros e
excluindo certos outros como sem pertinência.
A solução do conflito entre filosofia analítica e nova
história é encontrado em Hayden White e na noção de 'meta
história' (1994, 230), a “poética da historiografia”.
Há ainda um capítulo interessante dedicado à
intencionalidade histórica (1994, 251) explora a ruptura do
laço indireto entre a competência narrativa e a historiografia
em três níveis: a) procedimentos metodológicos, b) entidades
e c) temporalidade.

1. Em relação aos procedimentos metodológicos de seleção e


hierarquização dos acontecimentos pelo historiador, Ricoeur
combate a visão subjetiva de Paulo Veyne, observando o
condicionamento mútuo dos fatos e sua múltipla
determinação estrutural.
2. Em seguida (1994, 274), Ricoeur traça um paralelo entre
entidades historiográficas (nações, comunidades, pessoas)
e papéis (heróis, vítimas, tiranos, etc). Ricoeur reafirma sua
fé nos agentes individuais, condicionados por seus
contextos de formação, em detrimento dos sujeitos
históricos coletivos (estados, instituições, classes sociais).
3. E, finalmente, o autor trata da relação entre o tempo narrado
e o tempo vivido, como a narrativa histórica se acelera e
retarda, entrecortada por descontinuidades (culturais,
econômicas, políticas), enquanto o tempo histórico é
constante, linear, contínuo.
A mesma simetria entre realidade histórica e narrativa
dos historiadores (solucionada pela noção de 'meta história')
pode ser transposta em relação à realidade social e a imagem
construída pela mídia em geral e em particular pela imprensa.
E essa simetria aponta para necessidade de construção de
uma 'meta comunicação' e de um 'meta jornalismo'.
Da mesma forma que a epistemologia positivista crê
em uma única história objetiva, o jornalismo de informação vê
a mídia como um espelho da realidade social. Nessa
proposição, acredita-se poder separar os fatos de sua
interpretação. Geralmente, essa perspectiva vê a mídia como
um ‘contrapoder’, capaz de, através da imagem fiel da
realidade, corrigir e compensar as injustiças do sistema.
Em contrapartida, existem os defensores da ação
pessoal (teoria do Gatekepeer), em que o processo de
produção de mensagens midiáticas é resultante de uma série
de escolhas, representadas por 'portas' em que ela pode ser
aprovada ou não segundo um critério específico. Esta visão
não acredita na imparcialidade da mídia, mas os critérios de
seleção midiática são demasiados subjetivos e pessoais. Este
ponto de vista corresponde à posição de Paul Veyne.
Há também os que entendem que a mídia é um
instrumento de persuasão política, defendendo interesses
específicos de grupos sociais e/ou que os critérios de seleção
midiática são resultantes de um processo complexo de
constrangimentos e incentivos institucionais e psicológicos da
organização na qual está inserido.
Esta posição tem muitas versões, tanto no campo no
campo dos estudos históricos (as historiografias marxistas, as
historiografias funcionalistas, e até a 'nova história' – que, em
seu viés semi estruturalista, anula os indivíduos como agentes
históricos) como no campo dos estudos de comunicação (a
mídia defende o interesse de classe de seus proprietários, a
mídia manipula a favor do mercado devido sua dependência
comercial em relação à publicidade, a mídia é que é
manipulada politicamente pelas fontes governamentais e
empresariais, e, finalmente, a mídia defende a interpretação
hegemônica dos fatos em virtude da ideologia dominante de
seus agentes: jornalistas, publicitários, produtores culturais).
A posição equivalente à 'meta história' e ao ponto de
vista de Ricoeur no campo da comunicação social é a noção
de enquadramento de Gaye Tuchman, que tanto leva em
conta a autonomia relativa dos agentes da mídia e dos seus
valores culturais, como também considera os diferentes tipos
de condicionamentos estruturais que os enquadram (o público,
o mercado, a empresa, o grupo social, etc). Tuchman entende
que as notícias veiculadas pela imprensa (bem como os
programas de entretenimento e de publicidade da mídia em
geral) são narrativas breves que atualizam e reconfiguram
uma estrutura narrativa de longo prazo sobre o tema.
Uma 'meta comunicação' é possível a partir da
consciência sociológica dos agentes da mídia de seu papel de
intérpretes dos acontecimentos e de um enquadramento mais
abrangente dessas estruturas narrativas menos imediatas,
que formam padrões de interpretação dos fatos de longo
prazo: os enquadramentos (frames). No Brasil, a noção de
enquadramento foi muito utilizada para o estudo campanhas
eleitorais (PORTO, 2004b, 73; 2007).
Outra contribuição importante ao intercambio entre
ciências sociais, artes dramáticas e estruturas narrativas é o
clássico A Representação do Eu na Vida Cotidiana (1985)
de Irving Goffman; e da corrente teórica dele derivada, a
Antropologia da Performance, principalmente Vitor Turner.

Para Goffman, a representação faz parte integrante da


vida cotidiana, em que o relacionamento social é montado
como uma cena teatral, com seu cenário, seus adereços e seu
script, por meio da qual a pessoa se dirige às audiências
encenando determinados papéis. Goffman, no entanto,
entende essa representação como um jogo coletivo da
identidade individual, tendo como foco os grupos, em uma
perspectiva da psicologia social.

Já os trabalhos do antropólogo Victor Turner (1974,


2005) são voltados para entender a representação social no
âmbito dos rituais. Turner usa a antropologia para propor um
‘metateatro’ do cotidiano, compreendendo a vida social a partir
dos momentos de suspensão de papéis, roteiros e cenários;
fazendo emergir os conteúdos expressivos das contradições e
tensões inerentes à realidade social em que se inserem.
Turner elabora o conceito de ‘drama social’, como de um
processo de quatro momentos: crise ou ruptura inicial;
intensificação da crise; ação reparadora; e desfecho, que pode
levar tanto à ruptura quanto ao fortalecimento da estrutura. O
drama é sempre um conflito mediado pela representação. E, a
partir desses quatro momentos ideais, presentes em todos
rituais e no teatro, passa a investigar diferentes situações em
que o drama social se coloca como uma realidade em parte
representada, em parte vivida pelos atores.
Goffman e Turner utilizaram conceitos teatrais para
repensar a psicologia social e a antropologia, e essas
abordagens e teorizações criaram novos conceitos, noções
comuns às artes dramáticas e às ciências sociais, uma nova
nomenclatura e uma nova forma de pensar.

• Atores (e não agentes ou sujeitos) são os elementos


intencionais do modelo. Eles são condicionados por vários
outros elementos fixos ou estáticos (Cenários e Roteiros),
mas têm iniciativa própria – o que os caracteriza.
Consideramos ‘Atores Políticos’ não apenas os indivíduos,
mas, sobretudo, os atores coletivos: os partidos políticos, as
diferentes instituições da sociedade civil, os diferentes níveis
de governo.
• Quando os Atores estão em Cena, eles assumem Papéis (e
não funções ou lugares na estrutura social).
• Entende-se por Roteiro ou texto (script) a sucessão
narrativa de ações ee interação entre os Personagens.
• Pode-se subdividi-los em três tipos principais:
Protagonistas, Antagonistas e coadjuvantes. Os atores,
ao assumirem papéis, dão vida aos personagens dentro de
uma sequência de acontecimentos que formam o roteiro.
• Cenário (e não contexto ou conjunturas) é o conjunto de
relações que envolvem os atores.
• Performance é, mais do que o desempenho dos atores
(dos diretores e do próprio público), sua capacidade de
interpretação do roteiro, a liberdade de improvisar em cena.
• Repertório é o conjunto de recursos dramáticos disponíveis.
Essa noção é oposta a de performance,substituindo a
oposição linguística entre língua e fala (parole).
• Enquadramento (e não de recorte epistemológico ou
paradigma), são “princípios de organização da experiência
cotidiana” para Goffman e “as narrativas de longo prazo”
para Tuchman.
Seguindo a tendência dos estudos narrativos, alguns
pesquisadores brasileiros da área de comunicação social
substituíram a perspectiva dos historiadores pela ótica dos
jornalistas elaboraram trabalhos sobre produção de sentido
pela mídia, utilizando o modelo de Ricoeur.
• Schramm (2002) toma como ponto de partida a questão do
público ou da equivalência entre o “leitor” de Ricoeur e o
telespectador dos atuais estudos de recepção.
• Souza (2006) estudou a existência de um único fluxo
narrativo em que estão inseridas as notícias sobre Lúcio
Flávio Vilar Lírio e Leonardo Pareja. O pressuposto
fundamental é que notícias são estórias, ou seja,
construções narrativas sobre o universo criminal para
comprovar a existência de um fluxo e descrever como o
jornal produz memória e recria mitos.
• Matheus (2009) traz algumas reflexões sobre as condições
de inteligibilidade e legitimidade do jornalismo dentro de um
sistema cultural, a partir de uma dada temporalidade.
Procura investigar a contribuição do jornalismo na formação
do tempo social, não somente por meio da enunciação que
faz do presente, mas, sobretudo por diferentes usos que
realiza do passado. A pesquisa procura ainda mapear
algumas operações jornalísticas que têm como efeito a
percepção da notícia e o estabelecimento de ritmos ao
cotidiano, em consequência de suas rotinas narrativas.
• Em relação ao estudo específico das relações entre tempo e
jornalismo, Franciscato (2005) observa que o jornalismo é
responsável por um tipo específico de experiência do
presente, de modo a alargá-lo. É a 'fabricação do presente'.
Ele não usa Ricoeur, mas se aproxima muito dele, pois
pensa o tempo dentro dos discursos, em um modelo
interpretativo das narrativas jornalísticas com base em
Gurvitch2.

2
Tempo resistente, em que o passado persiste se projetando sobre o
presente e o futuro; tempo decepcionante, em que durações longas são
rompidas bruscamente por mudanças imprevistas; tempo errático,
caracterizado por uma irregularidade de pulsação e ritmos entre o aparecer e
o desaparecer; tempo cíclico, em que há uma circularidade entre o passado,
presente e futuro, semelhante à ideia de eternidade; tempo retardado, em
que fatores estáveis passados permanecem ativos, com tendência à
preservação de valores e em oposição à renovação; tempo alternado, em
que há uma alternância entre atraso e aceleração, e a descontinuidade é
maior do que a continuidade; tempo em antecipação, em que os processos
se aceleram, típicos de irrupções e descontinuidades nos quais o futuro se
torna presente; e tempo explosivo, em que o presente e o passado são
dissolvidos em um futuro imediatamente transcendente.
ESTRUTURA NARRATIVA E META COMUNICAÇÃO
Apontamentos para uma teoria interpretativa das mídias

Narrativas imaginárias
O terceiro movimento de Paul Ricoeur e o segundo
livro da trilogia Tempo e Narrativa (1995) trata da configuração
do tempo na narrativa de ficção. A intriga é a inteligência
narrativa. O tecer da intriga é “um dinamismo integrador, que
tira uma história una e completa de um diverso de incidentes,
ou seja, transforma esse diverso em uma história una e
completa”. (1995, 16)
Ao estudar a narrativa de ficção, Ricoeur deseja
ampliar a noção aristotélica de tessitura da intriga; aprofundar
e enriquecer essa noção com as ferramentas da narratologia
estruturalista (Propp, Greimas e Todorov); e, finalmente, abrir
as narrativas a uma transcendência externa, abri-las à leitura
e ao mundo. Entender o 'efeito de sentido' do narrado sobre o
vivido. A narrativa de ficção é definida a partir do conjunto dos
gêneros literários (conto popular, epopeia, tragedia, comedia,
romance). Aliás, para Ricoeur, o romance, gênero recente,
emblemático da modernidade, é um 'imenso canteiro de
experimentação', avesso as convenções da crítica
previamente aceitas pelos gêneros 'tradicionais'.
Aliás, essa 'tradicionalidade' literária é que permite a
Ricoeur, apoiando-se significativamente no livro Anatomia da
crítica de Northrop Fryre, entrever um esquema trans histórico,
aberto e sistemático da inteligência narrativa, diferente dos
modelos formais do racionalismo a-histórico da semiótica
narrativa (1995, 26-33). Por exemplo, as regras de
encerramento das narrativas. Enquanto o estruturalismo
classifica as narrativas com trágicas as de final desfavorável
aos protagonistas e cômicas/romancescas as de 'final feliz',
Frype leva em conta às expectativas do leitor. O desfecho da
narrativa tem um efeito de configuração do leitor diante do
mundo (moral ou pedagógico) uma vez que leva a rearranjos
retrospectivos e a uma solução de aprovação geral como
justa, seja feliz ou não.
Outro ponto de apoio importante utilizado por Paul
Ricoeur em sua crítica ao estruturalismo é o crítico Frank
Kermode e seu trabalho The Sense of Ending (1995, 40-47).
Nessa perspectiva, o 'sentido do fim' é, no plano pessoal, a
morte e seu aprendizado; e no plano histórico, o apocalipse, o
mito escatológico do final dos tempos. As narrativas teriam
então com função central o aprendizado do tempo que um dia
se extinguirá.
Assim, o confronto entr e a inteligência configurativa
da intriga e a racionalidade estrutural da semiótica narrativa se
dá de modo assimilativo, isto é, Ricoeur absorve os conceitos
de Todorov e Greimas em um esquema configurativo aberto.
Na verdade, considera a semiótica narrativa um grande
avanço em relação, tanto porque procura explicar as
narrativas concretas e suas configurações temporárias por
estruturas profundas atemporais (o que enriquece a noção de
Intriga), como também porque, em relação ao próprio
movimento estruturalista, a noção de narrativa como um
processo que configura os textos, discursos e signos,
retirando a análise linguística de um universo atomista sem
intencionalidade.
A crítica assimilante de Ricoeur à semiótica narrativa
tem três estágios: a morfologia de Propp, o quadrado
semiótico de Greimas3 e a enunciação narrativa de Todorov.

• Primeiro estágio (1995, 61-76): Vladimir Propp, teórico


russo que em 1928 publicou A Morfologia dos Contos de
Fadas, na qual estabelece os elementos narrativos básicos
dos contos folclóricos russos. Além de um encadeamento
muito mecânico (e pouco teleológico) das funções de Propp,
Ricouer argumenta que a finalidade na intriga é regressiva
(é para punir o vilão que se faz que o mal seja cometido).
• Segundo estágio (1995, 77-108): Com A. J. Greimas, os
personagens (ou actantes) passam a desempenhar um
papel mais importante que as funções narrativas. Eles
encarnam elementos das estruturas mais profundas da
narrativas - as relações de contradição, complemento e
contraponto – de onde emergem os elementos discursivos
das estruturas mais superficiais da narrativa.
• Terceiro estágio (1995, 109-180): a distinção entre
'enunciação' e 'enunciado' ou brecha entre o discurso do
narrador e o discurso narrado (que carateriza a frase
narrativa para a filosofia analítica).
3
Além do famoso livro Semântica estrutural, Ricoeur analisa ainda dois outros
livros de Greimas: Do sentido e Maupassant, escritos dez anos depois.
A distinção entre o tempo levado para contar e o
tempo das coisas contadas, permite a Ricoeur estudar agora
três textos literários reflexivos sobre a própria narrativa, três
'fábulas do tempo e sobre o tempo' em sua relação com a
linguagem (1995, 183-274):

• Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf (183-199), em que, a


medida que a narrativa avança, descobrimos o passado dos
personagens – é uma fábula do tempo em rede que
contrasta o tempo progressivo objetivo com diferentes
tempos regressivos psicológicos – dando uma ideia de teia
entre diferentes bolhas subjetivas;
• A montanha mágica, de Thomas Mann (199-223) é uma
fábula de anulação do tempo, em que a narrativa está
mergulhada na simultaneidade espacial e em uma lenta
decadência diante da morte, e os personagens se dividem
entre “os que estão em cima” (que vivem livres do tempo
cronológico) e os “que estão embaixo”, presos pelos relógios
e calendários;
• e Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust (223-255),
em que o tempo é perdido (o aprendizado dos signos) e o
tempo redescoberto (a exaltação extratemporal da arte). O
tempo perdido refere-se ao que no futuro Ricoeur chamará
de 'Mesmidade' (ou a identidade de mim) e o tempo
redescoberto à ipseidade (ou identidade de Si).

Transpondo-se essa noção de dupla dimensão


temporal da narrativa e da meta narrativa do universo literário
das 'fábulas do tempo' de Ricoeur para outros tipos de textos,
observa-se que a metalinguagem se tornou um lugar comum e
problematiza o tempo (e a vida) de outras formas.
ESTRUTURA NARRATIVA E META COMUNICAÇÃO
Apontamentos para uma teoria interpretativa das mídias

Meta narrativas audiovisuais


Nas artes dramáticas, pode-se dizer que o Metateatro
está em todo canto: na crítica satírica da vida da polis
(política) da comédia grega; na Commedia dell’arte italiana;
em Brechet nas intervenções do diretor como narrador durante
a peça; no Teatro do Absurdo (Beckett, Ionesco e Genet) e no
Teatro do Oprimido de Augusto Boal. Isto para não falarmos
que Shakespeare nos lega uma galeria de metadramas, desde
Sonhos de uma noite de verão, onde a fantasia dialoga com a
realidade, até Hamlet, que trata da representação dentro da
própria representação - técnica de auto reflexão do teatro
dentro do teatro, chamada de ‘the play within a play’.
No cinema pode-se classificar filmes em diferentes
tipos de metalinguagem. Em relação às 'fábulas do tempo
sobre o tempo', o gênero conhecido por 'ficção científica'
tornou um verdadeiro laboratório de experiências temporais,
importando e popularizando noções da física contemporânea,
e também um campo privilegiado de reflexão sobre as ideias
de utopia e máquina. Costuma-se dividir o gênero em
momentos a partir dos diferentes arranjos destes elementos.
Em um primeiro momento (Julio Verne e H. G. Wells)
sonhavam com uma utopia tecnológica do futuro como uma
sociedade igualitária e justa mas desprovida de sentimento. Já
o segundo momento vai projetar uma sociedade dominada
pelas máquinas, em que o homem é oprimido e escravizado
(Aldous Huxley, George Orwell). Nessa concepção, a
humanidade e a verdade estão perdidas no passado. São as
máquinas que dominam os homens através de sua falta de
memória. É o reino da distopia tecnológica. No primeiro
momento, o tempo é histórico, linear e contínuo; e os viajantes
do tempo se maravilham com uma sociedade sem trabalho
manual nem luta de classes econômicas. No segundo
momento, o tempo é sincrônico, instantâneo, as máquinas
usam a simultaneidade do tempo para dominar os homens
através do esquecimento. Muitos estudiosos de narrativas
míticas, como Joseph Campbell (1990), consideram 'a
máquina' como o principal antagonista das narrativas atuais.
Mas filmes de ficção científica com o tema de retorno
do futuro para o presente e com cyborgs abrem uma terceira
etapa do gênero: o paradigma do paradoxo temporal e da
fusão homem/máquina. Nele, encontramos tanto a
compreensão de que a tecnologia pode ser utilizada para o
bem-estar ou para o controle quanto a mesma ideia de que a
simulação virtual do futuro está mudando nossa atualidade, de
que vivemos agora em um tempo contínuo e sincrônico,
simultaneamente. A chave para o futuro está no presente e no
uso que fazemos da tecnologia. É um terceiro momento, um
tempo, simultaneamente, progressivo e regressivo.
Esse terceiro paradigma está presente em filmes
bastante diferentes entre si: De volta para o futuro (1985,
1989, 1990); O Exterminador do futuro (1984, 1991, 2003,
2009); O Som do Trovão (1993); Efeito Borboleta (2004, 2007,
2009); além de inúmeros seriados e filmes de aventura
contemporâneos. Há inclusive vários filmes nacionais satíricos
(A máquina, O homem do futuro, Barbosa) sobre voltar ao
passado e mudar o presente.
Há, no entanto, filmes que se destacam dos demais
por sua originalidade e amplitude, como campo privilegiado de
reflexão narrativa sobre o tempo: Blander Runner, o caçador
de androides; 12:01 (meia noite e um) / Groundhog Day e a
trilogia Matrix.
Blade Runner (1982), dirigido por Ridley Scott e
estrelado por Harrison Ford, mostra uma distópica Los
Angeles em novembro de 2019, onde robôs orgânicos criados
geneticamente chamados de 'replicantes' - indistinguíveis dos
humanos - são fabricados por uma poderosa corporação. Os
replicantes são como escravos e os que desafiam essa
condição são caçados e desativados. O enredo se foca em um
grupo de replicantes rebeldes e no caçador de androides que
concorda em caçá-los.
Fracasso de público e crítica, na época de seu
lançamento, Blade Runner tornou-se um clássico do gênero
com o passar dos anos e pode ser considerado o filme que
estreou o terceiro paradigma das relações entre tempo e
máquina: o protagonista descobre que é uma biomáquina e
que sua memória havia sido implantada. Homens e máquinas
são equivalentes – diferindo apenas na memória.
12:01 (1990), de Hillary Ripp e Jonathan Heap, é um
curta metragem feito para televisão, que mostra um dia que se
repete da mesma forma menos para o protagonista em um
'laço no tempo' (ou time loop), uma situação em que o tempo
corre normalmente durante um determinado período (um dia
ou algumas horas), mas em certo ponto o tempo "pula" para
trás, de volta ao ponto inicial, como um disco de vinil riscado,
repetindo o exato período em questão. No caso de 12:01, um
funcionário de um laboratório descobre que o tempo está se
repetindo, vê o assassinato de uma cientista, se apaixona por
ela e para salvá-la (de continuar morrendo todos os dias),
consegue descobrir o motivo da recorrência do tempo,
resolvendo-a.
Porém, foi o filme Feitiço do Tempo (Groundhog Day,
1993) dirigido por Harold Ramis, que popularizou a narrativa
de recorrência temporal. No filme, Bill Murray interpreta Phil
Connors, um repórter de TV, que durante o dia da marmota
(dois de fevereiro), encontra-se repetindo o mesmo dias várias
vezes. Depois de se deixar levar por todas as formas de
prazer, ele começa a reavaliar sua vida e prioridades,
aprendendo a tirar proveito da recorrência de tempo.
Ao contrário do filme 12:01, Feitiço do Tempo foi um
grande sucesso de público e de crítica, ganhando vários
prêmios importantes e gerando filmes similares, inúmeras
adaptações em episódios de seriados de TV e até vários jogos
eletrônicos4 foram elaborados dentro do paradigma narrativo
do 'laço de tempo'. A expressão "Groundhog Day" (dia da
marmota) tornou-se gíria em inglês, significando uma situação
desagradável que se repete continuamente, sendo usada por
políticos, celebridades e por outras narrativas da mídia.
A trilogia Matrix (1999) é o melhor exemplo de
metanarrativa dimensional. Há duas realidades paralelas, na
primeira, ilusória, vivemos nossas vidas normalmente; mas na
segunda somos dominados por máquinas, que vivem de
nossa energia através de um regime de dependência química
e hipnose audiovisual. A dupla realidade é resultado de
simbiose entre os homens e as máquinas. Neo, protagonista e
narrador, é o messias virtual que tem por missão derrotar a
Matrix e o grande Programador, que controla e planeja tudo,
inclusive rebeliões periódicas para otimização do sistema.
Como 'fábulas do tempo sobre o tempo', as narrativas
de ficção científica complexificam bastante a relação entre
tempo e narrativa – de um modo impensável para Ricoeur.
E existem ainda outras formas de metanarrativa
audiovisual que não são 'fábulas do tempo', mas que a
questão da dupla representação e da interferência do narrador
na narrativa são bastante significativas; como é o caso dos
filmes O show de Truman e A vida é bela.

4
The Legend of Zelda: Majora's Mask; Dragon Quest VII; Prince of Persia:
The Sands of Time; Final Fantasy; entre outros menos conhecidos.
O show de Truman (1998) do diretor Peter Weir, conta
a história de Truman Burbanks (Jim Carrey), um homem de 30
anos que imagina levar uma vida simples na pequena cidade
de Seahaven quando, na verdade, é o protagonista de um
programa de TV. A cidade onde vive é um imenso cenário,
sua esposa, amigos, vizinhos, todos são atores contratados.
Sua vida é uma farsa, acompanhada por milhares de
telespectadores e supervisionado pelo diretor do programa
Christof (Ed Harris). O foco aqui é a liberdade do protagonista
frente sua vida artificial e a absoluta passividade da audiência
diante de suas próprias vidas.
A Vida é Bela (1997) do diretor/ator Roberto Benigni,
tem um enredo mais complexo, mas usa os mesmos
elementos. Durante a Segunda Guerra, o italiano Guido, filho
de judeus, é preso em um campo de concentração com seu
filho. Para preservar o menino da violência nazista, Guido
consegue fazer com que filho acredite que ambos estão
participando de um jogo, sem que o menino perceba o horror
no qual estão inseridos.
A vida é realmente bela? Ou a beleza é uma mentira
não vermos a crueldade da vida? O jogo entre o narrador da
estória e quem vive a história é menos evidente, mas a
questão principal que esses filmes (e de outros tantos que
poderíamos citar) tratam é a mesma: O que é a realidade?
Como e porque vivemos em duas dimensões? Quem escreve
o roteiro de nossas vidas?
As narrativas imaginárias nos rementem à vida e ao
tempo vivido.
ESTRUTURA NARRATIVA E META COMUNICAÇÃO
Apontamentos para uma teoria interpretativa das mídias

O tempo vivido
E, no quarto e último movimento, o terceiro livro da
trilogia Tempo e Narrativa (1997), Ricoeur convida um terceiro
parceiro para o debate entre historiografia científica e narrativa
de ficção: a fenomenologia da consciência do tempo. Trata-se
agora de demonstrar que o “trabalho inerente ao ato de
configuração narrativa se encerra numa refiguração da
experiência temporal”. Ou seja: que a poética da narrativa com
suas múltiplas temporalidades embutidas deseja alterar nossa
percepção do tempo exterior, nossa consciência da
temporalidade do mundo, tornando-a mais complexa.
O autor quer, após ter investigado a contradição entre
narrativa e temporalidade em várias disciplinas e formas de
pensar, realizar uma síntese no campo da filosofia da história.
Começa agora o “grande debate triangular entre o tempo
vivido, o tempo histórico e tempo narrado”.
Para tanto retoma o debate entre a investigação
psicológica do tempo de Agostinho e a definição física e
externa dada por Aristóteles – deixado incompleto na primeira
parte da obra – em três aporias da experiência do tempo.
'Aporia' significa 'caminho sem saída', paradoxo. Ricoeur
utiliza o termo para definir os pontos que, ao invés de tornar
os dois filósofos pensadores simétricos e complementares, faz
com que as formas de pensar o tempo mais psicológica e
mais física se ocultem mutuamente: a aporia da representação
do tempo, a aporia da consciência enraizada no presente e a
aporia da irreversibilidade da vida.
Além do confronto entre Agostinho e Aristóteles,
referente a aporia da temporalidade; Ricoeur convoca ainda
Husserl e Kant, para debater aporia da totalidade entre
passado, presente e futuro; e, finalmente, há ainda uma
polarização entre Heidegger e a concepção vulgar de tempo,
referente à aporia da inescrutabilidade do tempo e aos limites
discursivos da narrativa.
Deste tripé, extrai-se três conclusões:

• Identidade narrativa é resultante do embate do tempo vivido


com o tempo cosmológico. “Um sujeito reconhece-se na
história que conta a si mesmo sobre si mesmo” (p. 426). A
comunidade judaica que se chama povo judeu, por exemplo,
tirou sua identidade da recepção dos textos que produziu.
• Só existe o aqui-agora e a unidade plural das
temporalidades: o passado é memória; o presente,
percepção; o futuro, imaginação coletiva simulando
soluções no horizonte das possibilidades.
• A irreversibilidade do tempo sempre supera a reversibilidade
da linguagem que deseja eternizar o momento.
Em seu último trabalho significativo - O si mesmo
como o Outro (1991), Ricoeur enfrenta a questão da
identidade pessoal (a consciência do Eu diante do Outro) e da
identidade narrativa, vista agora como resultado sempre
provisório da dialética entre a mesmidade (consciência de
Mim) e da ipseidade (consciência de Si ou Self). Em relação
aos seus trabalhos anteriores, há algumas novidades:

• 'Narrar' passa a ser considerado um 'ato da fala' na


linguagem, intermediário entre 'Descrever' e 'Prescrever'.
Isto é: a mediação entre o relato (de uma ação) e ética
(prescrição) resulta ou se estabelece por meio/na narrativa. 5
• A identidade narrativa é definida, simultaneamente, como
uma mediação interna da dialética entre ipse e da idem – do
conflito entre o descritivo (e o ego) e o prescritivo (e o self);
e um diálogo externo com a identidade pessoal (e o outro). 6
• Ricoeur vai sugerir a utilização da metodologia do quadrado
semiótico de Greimas para ler os percursos biográficos não
ficcionais do enunciador, da mesma forma que o usou para
ler narrativas míticas e históricas. (1991, 173)
A ideia é entender os elementos básicos da estrutura
profunda do inconsciente a partir das estruturas intermediárias
da linguagem e das estruturas discursivas superficiais de
modo aberto e auto configurativo.

5
No livro Teoria da Interpretação (RICOEUR, 1999), a hermenêutica é a
teoria da interpretação dos discursos e da dialética entre Explicação e
Compreensão. 'Explicar' é quando se descreve um fato ou objeto externo (a
referência), em que as hipóteses, leis e teorias se submetem à verificação
empírica da realidade, quando se transmite uma informação clara sobre algo.
Explicar é uma operação analítica das formas discursivas e compreender é
uma operação sintética do conteúdo proposicional do discurso. Compreensão
é o entendimento semântico do que as mensagens significam.
6
A noção de identidade narrativa ganha assim uma dimensão de reflexão
autobiográfica e aproxima-se da noção de conexão ou estória de vida (1991,
168) do narrador. Ricoeur já havia dado um passo nesse sentido em sua
análise da autobiografia ficcional do narrador do livro Em busca do tempo
perdido em relação a biografia 'real' de Marcel Proust. Agora essa dimensão
pessoal do enunciador é explícita.
Teoria das mídias

Há também abordagens sobre as relações entre o


tempo vivido e a meta comunicação (que, no entanto, não
utilizam as ideias de Ricoeur como referencia teórica) que
merecem ser destacada. Norval Baittello Junior (2010), a partir
da Semiótica da Cultura de Ivan Bystrina e da teoria das
mídias de Harry Pross, associa o aspecto simbólico da
linguagem à transcendência do tempo, focando como a ‘mídia
terciária’ associa o corpo e a comunicação imediata com um
projeto voltado para o futuro.

Na comunicação primária, os participantes não contam com


outros recursos senão aqueles que seu próprio corpo possui
(os sons e ruídos naturais, os gestos e a aparência, os odores
naturais). Sua principal característica é a presença imediata
dos corpos no mesmo tempo e no mesmo espaço, por isso é
chamada de comunicação presencial. Na comunicação por
meios secundários, os corpos deixam marcas sobre outros
suportes, extracorporais, sendo estes suportes os portadores
de mensagens até outros corpos, que então podem estar
distantes uns dos outros, separados por milhas e milhas ou
por séculos e séculos. Estas marcas, no princípio muito
simples, vão se transformando em sistemas complexos de
sinais, desde pictogramas a ideogramas ou a alfabetos,
criando as diversas formas de escrita. As mediações
secundárias, realizadas por meio de tais suportes que recém
e guardam sinais (as pedras, os ossos, o metal, o couro, a
madeira, o papel), representam uma enorme expansão n
tempo e no espaço da comunicação e a escrita possibilita ao
homem uma enorme expansão de sua memória. Os meios
terciários surgem com a eletricidade, com a criação de
aparatos que transmitem mensagens para outros aparatos
similares, instantaneamente, ou rementem a mensagens
gravadas em suportes que somente podem ser lidos por
aparatos similares. (2010, 62)

A mídia terciária engloba a secundária e a primária,


formando uma 'segunda realidade'. O tempo das mídias seria
um contínuo repetitivo, que pode ser dilatado ou reduzido
dependendo da manutenção de um mesmo assunto.
Baittello aponta ainda para um tempo flexível e
múltiplo. As mídias funcionam como uma sincronização dos
eventos e das vidas, não apenas pautam e enquadram os
temas correntes no imaginário social (como pensam os
estudos narrativos sobre o jornalismo) também agendam
socialmente rotinas coletivas e individuais, criando um retorno
à simultaneidade das imagens dentro da máquina social que
produz a história. Além disso, há a expansão do conceito de
mídia: a comunicação é vista em sua complexidade tanto em
seu aspecto imediado como no mediado, com a valorização
do corpo e da mídia primária. Os meios secundários também
ganham novos referencias, englobando não só a escrita, mas
tudo aquilo que serve de suporte à comunicação: a roupa, a
moda, a arte, o design – tudo enfim que agrega sentido aos
corpos que deles se utilizam.

O que nos interessa, no entanto, é a nova relação de


tempo instituído pelas mídias terciárias ou elétricas. A
simultaneidade histórica e a hiper visibilidade das imagens
produzida pelos meios de comunicação de massa é bastante
diferente da simultaneidade arcaica das culturas orais e seus
mitos. Na cultura contemporânea, o tempo social é regido uma
retroalimentação entre o presente e o futuro, entre o atual e
sua simulação virtual.

Vivemos em uma sociedade semelhante à descrita no


filme Matrix, aprisionados por tubos químicos e hipnotizados
por sistemas audiovisuais, sonhamos viver outra vida
enquanto somos dominados por máquinas - em que as drogas
e as mídias são, mais que sonhos alienantes da realidade,
novos modos de sujeição e controle.
Vivemos a experiência subjetiva do laço temporal
recorrente, em que os dias se repetem iguais como nos filmes
12:01 e Groundhog Day. E mais: as mídias invadiram nosso
corpo. Usamos vários tipos de próteses (carros, óculos,
relógios, celulares). Nos transformamos em máquinas como
no filme Blade Runner.

Há uma nova experiência subjetiva de tempo


semelhante a que acontece quando baixamos arquivos no
computador, pode-se perceber que alguns segundos
demoram mais que outros, em função do peso do arquivo e da
aceleração da conexão da internet. As estruturas narrativas,
nesse cenário tecnológico, se assemelham a programas (ou
softwares) dentro de um sistema operacional (a cultura), cuja
a função é produzir e gerenciar arquivos de memória.

Em uma analogia entre as memórias neurológicas e


tecnológicas, Pierre Levy (1983) associou as memórias RAM
(operacionais e imediatas) às lembranças de curto prazo e a
memória ROM (os HDs), à nossa memória biográfica de longo
prazo. Uma distopia em que o mecânico domina o humano, a
memória de longo do prazo dos homens (a memória social, a
cultura) se extinguirá. Em contrapartida, em uma utopia a
tendência é subtrair das máquinas as memórias ROM,
aumentado-lhes apenas a capacidade operacional. Quanto
menos memorizamos comandos em nossa memória biológica
de curto prazo, mais nos dedicaremos ao aperfeiçoamento
subjetivo. Quanto menos as máquinas tiverem memória local
ou personalidade própria, mais funcionarão como extensões
amplificadoras de nossos corpos criativos.
E essa é a mensagem principal dos filmes de ficção
científica de terceira geração: o futuro dependente de sua
simulação no presente e do que fizermos com a tecnologia
para realizá-lo. É claro que existem também outros fatores
como o corpo simbiótico e a morte imanente à vida, mas o
foco aqui é a experiência subjetiva temporal.

O amor narrativo

Atualmente, graças em parte à ação combinada das


mídias, existe uma fusão de gêneros narrativos. Os filmes
mais recentes, principalmente os baseados na linguagem dos
mangás e animês japoneses, são simultaneamente de terror,
ficção científica, romance, suspense, humor e principalmente:
hoje a maioria das estórias que conhecemos, na mídia e fora
dela, tem como protagonista um casal que luta pelo seu amor
contra as mais diferentes situações. E mesmo as narrativas
que não são abertamente ‘de amor’, mas ‘de aventura, terror
ou suspense’, têm algum ingrediente romântico no enredo.

No entanto, no livro Amor: do mito ao mercado


(LÁZARO, 1996) fica claro que o amor romântico, tal qual nos
o conhecemos, é uma construção histórica bastante recente.
A Antiguidade clássica rejeita a paixão amorosa e critica os
indivíduos livres que são escravizados por suas paixões. No
Banquete de Platão, o verdadeiro Eros resulta do controle do
desejo, o amor filosófico ritualizado pela virtude é um o
caminho para reconduzir o homem à plenitude cósmica. A
relação erótica é um método de conhecimento da verdade. Só
a verdade satisfaz o desejo e o amor é um meio para a alma
unir o sensível e o inteligível.
O cristianismo, principalmente com São Paulo,
distanciará ainda mais o amor da terra. A noção de “amor
ágape” - amor desinteressado e doador, afastado da
sensualidade e da paixão - passará a ocupar um lugar central
na moral e na ética do Ocidente.

Na idade média, no entanto, como aponta Lázaro,


esse amor espiritualizado reencarnará nas mulheres (ou na
mulher-símbolo, no singular, objeto de desejo inalcançável) no
ideal do amor cortês. O amor trovadoresco formou um sistema
de regras de conduta para fundamentar a organização familiar
e, ao mesmo tempo, aprofundar a subjetivação dos indivíduos.
Por um lado, este novo amor realça os valores cavalheirescos
(a coragem, o serviço, a submissão e o controle do desejo) e,
por outro lado, oferece à juventude um desejo espiritualizado,
uma reverência quase religiosa que o amante sente ao menor
pensamento da mulher a que ama; o uso da delicadeza, a
sofisticação da conduta amorosa, um sentimento elevado.

O século XII é marcado por uma grande mudança em


vários aspectos da Idade Média, a partir daí observa-se um
movimento intrincado e complexo de aproximação entre
casamento e amor, que se desenvolverá através do período
medieval até sua plena ascensão na Idade Moderna. O
casamento era uma instituição que visava apenas à
estabilidade da sociedade, servindo apenas para a reprodução
e união de riquezas, dando continuidade à estrutura feudal. A
partir do momento em que o amor cortês aparece associado
ao casamento, a reprodução e a união de riquezas passam a
um segundo plano, com a afetividade individual dos amantes
ameaçando toda essa estrutura.
E, neste contexto históricos, surgiram as estórias de
amor recíproco trágico, as primeiras narrativas sobre o amor
apaixonado entre homens e mulheres: Abelardo e Heloísa,
Romeu e Julieta e Tristão e Isolda; a estória mais antiga e
pode ter dado origem às outras, posteriores. De origem
medieval, a lenda foi contada e recontada em muitas
diferentes versões ao longo dos séculos. Na lenda de Tristão
e Isolda o amor pelo amante (a afetividade) é colocado acima
do amor pelo marido (e pelos laços sociais) pela primeira vez.

Tristão, cavaleiro a serviço de seu tio, o rei Marc da


Cornualha, viaja à Irlanda para trazer a bela princesa Isolda
(ou Iseu) para se casar com seu tio. Durante a viagem de volta
à Grã-Bretanha, os dois se apaixonam perdidamente. Após
várias tentativas de separação, no final da estória, Tristão
morre e Isolda, ao achá-lo morto, também.

No século XV, a narrativa passou a ser parte das


estórias sobre o rei Arthur e nos séculos XVIII e XIX, o rei
Marc foi substituído por um vilão, que tenta impedir o amor do
casal apaixonado, e o desfecho final deixando de ser trágico
com a união dos amantes. Aos poucos, as narrativas de amor
romântico foram se fundindo com as narrativas de aventuras
mitológicas e, mais recentemente, com outros gêneros
narrativos (terror, humor, ficção científica, drama, etc).

Esse processo levou a uma padronização dos


triângulos amorosos nas narrativas contemporâneas - e,
consequentemente, na(s) vida(s) contemporânea(s) também;
mas, é claro, existem várias e diferentes reinterpretações
criativas e singulares do modelo original.
Em outra ocasião (GOMES, 2009), analisamos o filme
Romance de Guel Arraes, uma releitura da estória de Tristão
e Isolda. O filme não faz apenas mais uma nova leitura da
lenda dos amantes medievais, ele utiliza a narrativa para fazer
um exercício de Metateatro em relação a linguagem teatral no
palco, na TV, no cinema e da própria vida pessoal dos atores.
Quase todos personagens são atores que discutem a
evolução da estória e de suas próprias vidas com produtores,
o público e patrocinadores. O filme envolve emocionalmente a
vida dos atores (do teatro na TV) com os personagens da
narrativa (da peça Tristão e Isolda) em uma meta narrativa de
múltipla camadas de representação.

Como se trata de um filme sobre uma adaptação de


uma peça teatral trágica para TV (onde o público e os
anunciantes exigem finais felizes), a questão do final é crucial.
A solução foi encenar um final trágico para a estória de Tristão
(em que morte eterniza a paixão, “como a noite”, em um
êxtase de dissolução) e um final feliz e realista para os
personagens do filme.

A narrativa do filme termina com a peça Tristão e


Isolda no teatro em uma montagem que faz a revisão
metateatral do que acabamos de assistir. Na primeira
montagem da peça (no início do filme) tratava-se de uma
tragédia clássica; no final, o mesmo texto é encenado como
farsa incorporando elementos de comédia do filme que conta
a adaptação da primeira versão para TV. Trata-se agora de
uma peça teatral sobre atores que estão encenando a própria
vida. Ou seja: a arte imita a vida que imita a arte.
O importante agora é ressaltar que apesar de todos os
méritos filosóficos e estéticos do filme Romance (e das
diferentes camadas meta narrativas de representação e
metalinguagem em que os co-enunciadores tramam a estória
que tentam aproximar a narrativa ficcional da realidade), ele é
uma obra ficcional, elaborada e produzida industrialmente e
não verdadeira uma 'história sagrada', pois nunca aconteceu
de fato. Ela é uma releitura de uma estória medieval, que pode
realmente ser acontecido, de onde emana sua força e sentido.
Todas as estórias atuais são globalizadas e midiatizadas,
resultantes das fusões, sobreposições e adaptações das
antigas estórias locais em um novo cenário mundial de
comunicação audiovisual – porém, elas ainda buscam sua
manifestar e atualizar o sentido sagrado das antigas
narrativas, dissociado culturalmente de sua historicidade.

E nossos modelos narrativos são incapazes de


explicar nem as estórias tradicionais de outras culturas, nem
algumas das novas narrativas contemporâneas produzidas
pela mídia em nossa própria cultura, que subvertem todos os
parâmetros estabelecidos pelos primeiros estudos narrativos.
As narrativas atuais da mídia audiovisual fogem dos padrões
narrativos e misturam gêneros (são, ao mesmo tempo, de
amor, de aventura, de suspense); combinando modos
narrativos (são simultaneamente épicas, líricas e dramáticas);
sobrepondo focos narrativos (Onisciente, Incluso e Oculto); e,
principalmente, encadeando e alternando os diferentes
tempos narrativos (cronológico, histórico, psicológico e
discursivo).
O mais grave, no entanto, é que o discurso
audiovisual das mídias ameaça refundir as narrativas 'reais'
com as simbólicas, gerando um efeito de sentido sagrado.
Como, por exemplo, nas mortes midiatizadas de Aírton Sena e
da princesa Diana.

Hoje, os estudos narrativos chegaram à área de


comunicação, pois é através da mídia que conhecemos e
contamos nossas estórias. Ela é uma 'metanarradora' e uma
pretensa protagonista (uma personagem secundária para as
narrativas de outras ciências sociais) da vida social
contemporânea. A mídia é um ator social invisível que se
disfarça em campo para outros atores.
ESTRUTURA NARRATIVA E META COMUNICAÇÃO
Apontamentos para uma teoria interpretativa das mídias

Repercussões e afinidades teóricas


A hermenêutica de Ricoeur é um genial modelo de
adequação das narrativas literárias míticas/reais com as vidas
biográficas de seus autores com história e a memória coletiva
da comunidade. Porém, para uma crítica hermenêutica não só
do discurso audiovisual contemporâneo, mas também da
própria vida atual mergulhada no regime de hiper visibilidade e
de simultaneidade tempo dos meios de comunicação, ela tem
algumas limitações contextuais.
E embora ainda encontre resistência em algumas
áreas específicas do conhecimento a hermenêutico de
Ricoeur tem um valor e uma abrangência inegáveis.
No campo das ciências sociais, suas ideias sobre
teoria da interpretação tem pelo menos dois desdobramentos
teóricos importantes: a antropologia simbólica de Clifford
Geertz e a sociologia da mídia de John Thompson.
A perspectiva teórica do interacionismo simbólico de
Geertz descende diretamente da teoria da interpretação
hermenêutica de Ricoeur, tanto pelo pluralismo relativista
como também pela constante autocrítica discursiva de si.
Considerado o antropólogo cujas ideias tiveram maior impacto
no século passado após Levi Strauss (que o considerava
apenas mais um “etnógrafo relativista”), Geertz na verdade
desmascarou o caráter etnocêntrico da antropologia
estruturalista através de trabalhos teóricos brilhantes sobre
temas concretos diversos.
Em seu trabalho mais conhecido Deep Play: Notes on
the Balinese Cockfight (1973), Geertz desenvolve a ideia da
leitura da prática cultural como texto, examinando a rinha de
galo de Bali a partir do uso da emoção em sua finalidade
cognitiva. Observa que a rinha de galos é uma forma de
educação emocional para o balinês, onde ele ensina as
emoções e reações dos seus participantes para serem
desempenhadas em um outro texto exterior. Por exemplo,
'aprender a perder' na rinha ensina a saber se comportar nas
derrotas amorosas e profissionais da vida.
A antropologia de Geertz descende diretamente da
hermenêutica de Ricoeur porque quer conhecer cada cultura a
partir de suas próprias narrativas e não das interpretações de
outras narrativas culturais.
A outra grande repercussão do pensamento
hermenêutico na área das ciências sociais é a desenvolvida
por John Thompson sobre o estudo das ideologias (1995) e
sobre a interpretação das mensagens dos meios de
comunicação (1998). Thompson define ideologia como uma
forma simbólica que está a serviço do poder, deixando claro
que existem outras formas simbólicas que não cumprem este
papel (formas simbólicas não-ideológicas), ou mesmo que a
ideologia é apenas uma das formas de interpretação possíveis
de uma determinada forma simbólica. São Jorge e o dragão,
por exemplo, tanto representam a luta do bem contra o mal
quanto à dominação da cultura celta pelo Império Romano.

Hoje, com a ampliação na formação de nossa


identidade cultural para além dos limites geográficos
imediatos, habitamos um mundo trans presencial constituído
indistintamente tanto de objetos imediatos e distantes. Assim,
a comunicação mediada globalizada tornou o processo de
auto formação dos indivíduos muito mais aberto e reflexivo
que na relação face a face. O mundo das narrativas
globalizadas não somente enriquece e transforma o processo
de formação do Self, mas também troca da experiência vivida
pela experiência mediada, gerando novamente a percepção
dã simultaneidade de tempo, esquecida desda pré-história.

Por isso, esta nova experiência do Self em um mundo


mediado aponta para uma nova ancoragem das tradições.
Thompson (1998) considera equivocada tanto a tese de que a
cultura moderna e a ciência (a narrativa histórica) superaram
definitivamente as narrativas míticas das tradições anteriores
à escrita como também a ideia pós moderna de que a
modernidade, a história e a ciência são apenas tradições
contemporâneas que não se reconhecem enquanto tal. Para
ele, as narrativas tradicionais se modificaram com a
comunicação mediada, mas que ainda sobrevivem na vida
moderna através de várias formas simbólicas.

Para demonstrar seu ponto de vista, Thompson faz


uma distinção operacional em quatro aspectos da tradição: a)
hermenêutico (a estrutura de interpretação); b) normativo do
cotidiano; c) legitimador do poder (ou ideológico); e d)
identificador cultural. A tese de Thompson é que a
globalização acabou com os aspectos Normativo e
Legitimador das narrativas tradicionais, mas os aspectos
Hermenêutico e Identificador Cultural permanecem vivos na
história ocidental da cultura moderna. (1998; 165)

Prefiro pensar que somos mais normativos e


ideológicos quando se trata das narrativas histórica e
jornalística, e mais abertos em nossa bagagem cultural e na
auto formação de identidade coletiva e individual, quando se
trata das narrativas ficcionais.

Thompson parte da compreensão imediata que se tem


de uma determinada forma simbólica na vida cotidiana, depois
busca construir uma concepção objetiva explicativa desta
interpretação preliminar (consorciando vários métodos de
análise), e finalmente reinterpreta o significado da forma
simbólica.
A esta metodologia geral de interpretação dos
discursos dos meios de comunicação, chama-se “enfoque
tríplice”. (THOMPSON: 1995; p. 355)
MÉTODOS
OBJETO ETAPAS RESULTADO
CONJUGADOS

Situações espaço-
temporais
Campos de interação
Análise sócio-histórica da
Emissor Instituições Sociais
produção e transmissão
Estrutura Social
Meios técnicos de
transmissão

Análise semiótica
Análise de conversação Síntese
Análise Formal ou Hermenêutica
Mensagem Análise sintática
Discursiva
Análise narrativa
Análise argumentativa

Interpretação das
Mensagens
Análise sócio-histórica da Mapa das diferentes
Receptor
apropriação interpretações
Re-interpretação da
interpretação

Inicialmente (1995, 366), o objetivo da análise sócio


histórica é reconstruir as condições sociais e históricas de
produção, circulação e difusão das formas simbólicas. As
maneiras como essas condições influenciam podem variar de
acordo com a situação e o objeto pesquisado, mas Thompson
propõe alguns níveis de análise: as situações de tempo
espaço em que as formas simbólicas são produzidas; os
campos de interação (face-a-face, interação mediada); as
instituições sociais; a estrutura social (as classes sociais, as
relações entre gêneros e outros fatores sociais permanentes)
e os meios técnicos de transmissão de mensagens (a fixação
material e a reprodução técnica dos sinais).
Em um segundo momento (1995, 369), toma-se a
forma simbólica como um texto, isto é, como uma estrutura
narrativa relativamente autônoma de sua produção e de seu
consumo. Neste sentido, a análise simbólica implica em uma
abstração metodológica das condições sócio históricas de
produção e recepção das formas simbólicas. Thompson adota
vários métodos de análise discursiva: semiótica, sintática,
narrativa, argumentativa, etc. Finalmente (1995, 375), na
última fase de sua hermenêutica, Thompson leva em conta a
interpretação criativa do significado das formas simbólicas em
diferentes contextos de recepção, inclusive no próprio
contexto do analista/enunciador da interpretação. A análise
dos diferentes contextos de recepção demonstra que por mais
rigorosos que sejam os métodos e técnicas, eles não podem
abolir a liberdade de interpretação dos públicos e das
situações em que se encontram inseridos.
Outro ponto importante é que Thompson utiliza a
hermenêutica não como uma alternativa aos outros métodos
de análise já existentes, mas sim como um referencial
metodológico geral, dentro do qual alguns desses métodos e
técnicas específicas podem ser correlacionadas entre si. Aliás,
temos, dentro da proposta do enfoque tríplice, uma síntese
entre três tipos de estudos distintos da área de comunicação:
• a sociologia dos meios de comunicação (os estudos
centrados no contexto de transmissão – seja na versão
crítica que denuncia a industria cultural ou na funcionalista
que enaltece a comunicação de massa);
• a semiótica (e os vários tipos de estudos em torno da
linguagem verbal e visual, retórica, filosofia analítica, analise
discursiva e a própria hermenêutica de Ricoeur);
• e, finalmente, os diferentes tipos de estudos de recepção
(pesquisas de opinião quantitativas e qualitativas, pesquisas
de agendamento e de análise bibliográfica especializada).
Há uma diferença marcante entre a hermenêutica de
Ricoeur e a de Thompson. Ricoeur dá mais ênfase ao ‘texto’
(e a Mímese II), isto é, configuração da linguagem pela intriga,
do que às condições de enunciação (a Mímese I) e de
apropriação deste sentido (a Mímese III).
E, para Thompson, a ‘autonomia semântica das
mensagens’ é secundária diante dos contextos históricos de
transmissão e recepção. E com essa ênfase sociológica nos
contextos históricos dos interlocutores, Thompson não está
apenas ampliando o alcance discursivo da hermenêutica, mas
também adaptando a teoria da interpretação para a interação
social dentro do regime de simultaneidade de tempo da mídia.
Porém, de uma forma geral, pode-se dizer que Geertz,
Thompson e outros hermeneutas contemporâneos enfatizam
mais à percepção dos receptores (as questões de estrutura e
sentido) do que aos problemas de referência objetiva e da
pretensão filosófica à verdade – como fazia Ricoeur. São,
inclusive, muito criticados por isso, sendo considerados
'relativistas', porque seus discursos teóricos sempre são
interpretações das interpretações centradas na recepção de
públicos específicos.
A teoria hermenêutica sempre fundamentou o sentido
dos textos que estuda na intenção do autor, nas suas histórias
e na relevância dessas histórias para os leitores. Além disso, a
abordagem hermenêutica é a única que realmente leva em
conta a intenção do receptor.
Ela começa pela contextualização do enunciador
(Quem fala? Para quem fala?), passa pela contextualização
do discurso (Em que condições e por quê?) e conclui com a
contextualização da leitura final e da própria intenção como
interprete (Porque eu interpreto isso dessa maneira?)
A hermenêutica nunca foi universalista nem aspirante
à Verdade, encontrando seus limites quando a interpretação
do sentido dobra-se sobre si mesma.
E esta inclusão da subjetividade do intérprete está
presente nos primeiros hermeneutas. Schleiermacher tentou
unificar procedimentos de tradução comuns à exegese bíblica
e à filologia greco-romana. Dilthey desenvolveu uma
hermenêutica mais metodológica, histórica e psicológica.
No século XX, Heidegger e Gadamer mudaram o foco
da interpretação de textos para a compreensão existencial do
‘ser-no-mundo’. Reagindo a essa tendência existencialista,
Habermas propôs uma hermenêutica crítica, reconstrução
compreensiva e metodologicamente auto reflexiva das bases
sociais do discurso e da compreensão intersubjetiva.
Finalmente, Ricoeur sistematizou as diversas
correntes, combinando a filosofia da compreensão com o
conjunto de diversas técnicas modernas de interpretação em
domínios específicos (psicanálise, linguística, história).
E o desafio dos hermeneutas atuais é o de expender
essa metodologia compreensiva aos discursos audiovisuais e
ao tempo virtual.
ESTRUTURA NARRATIVA E META COMUNICAÇÃO
Apontamentos para uma teoria interpretativa das mídias

Enredando ideias, coisas e pessoas

Há uma simplificação em moda que dita que os


filósofos pensam o mundo através de ideias; os sociólogos
descrevem a vida através das instituições; e, os jornalistas
narram os acontecimentos através das pessoas. Enunciam o
mesmo conteúdo semântico através de sujeitos, objetos e
enquadramentos discursivos diferentes. E a intriga política
midiática enreda tudo em sua teia complexa, tecendo uma
única rede integral de personalidades, instituições e conceitos.

Para maioria dos pensadores atuais, a criatividade é a


produção de formas através da qual o desejo consegue
vencer os obstáculos impostos pela realidade. Alguns (a partir
da noção de gramática gerativa de Chomsky) acreditam que a
criatividade é mais coletiva que individual, que linguagem é
autogerada a partir de uma estrutura cultural profunda. Outros
pensam que a criatividade é predominantemente individual e
que as imposições externas (obstáculos ao desejo, regras da
cultura, vontades de poder) é que são ‘sociais’.
Para uma teoria interpretativa das mídias, a linguagem
não se produz apenas a partir da criatividade individual e/ou
das estruturas sócio linguísticas, mas sim através de uma
complexa rede de intrigas agendadas, principalmente, pelas
estruturas narrativas formada pelas três mídias integradas.
Assim, há o foco individual está localizado naqueles que
narram as estórias (jornalistas, historiadores, atores-
narradores) sobre a passado, o presente e o futuro; que forjam
a identidade de todos e de cada um particular. E há um foco
coletivo, em que é a intriga das mídias que enreda a vida com
sonhos narrando nossas histórias pessoais. É essa intriga
política midiática que, em seus agenciamentos, associa ideias,
coisas e pessoas.

Acontece que o grande encantamento da mídia como


um todo está justamente nesse jogo de reflexos duplicados
em que ela 'se tornar invisível', fazendo com os fatos se
confundam com sua narrativa, com que se seu discurso se
confunda com a realidade. Ela é uma meta narradora tanto
dos fatos como das narrativas simbólicas.

A meta comunicação deve ser uma negação crítica,


um distanciamento objetivo de si, para que se observe o
conjunto e a estrutura do real. Há metalinguagens em que a
reflexão otimiza ainda mais a estrutura; e há metalinguagens
de ruptura de representação, em que a leitura externa dos
fatos contradiz o enunciador. Daí a importância de se entender
a história da mídia como uma meta narrativa, como também
como as meta histórias de seus agentes individuais (os sub
narradores), pois a história viva sempre é feita por pessoas
enquadradas nas narrativas sociais que engendram.
Toda intriga é feita a partir de dois personagens
(protagonista e antagonista) e de um narrador externo,
aparentemente não envolvido, que os enreda em um conflito.
E, nessa ótica, a formação cognitiva de nossa identidade
enquanto sujeitos sociais é o resultado histórico das estórias
que nos contaram e que contamos aos outros.

Um texto teórico não é exceção. Aqui, por exemplo,


apresentamos as gerações de estudos narrativos de modo
que o estruturalismo e a mitologia comparada ocupassem o
lugar de predecessoras teóricas da hermêutica de Ricoeur.
Depois estabelecemos um conflito central, apresentando a
questão da mídia e da globalização das narrativas e a
incapacidade dos estudos narrativas de darem conta de
compreendê-las e explicá-las.

Ora, há duas grandes deficiências na hermenêutica de


Ricoeur: a) sua preferência pela escrita como campo de
inovação semântico (isto é, do ainda não dito, do inédito) em
detrimento do caráter cognitivo das imagens, presentes nas
narrativas mitológicas7; b) e o fato dele não perceber as
mudanças cognitivas resultantes do regime de tempo
simultâneo instaurado da comunicação instantânea.

Para resolver esse conflito, fizemos uma leitura


detalhada da trilogia Tempo e Narrativa (1994, 1995, 1997),
atualizando a ideias de Ricoeur em relação ao novo regime de
simultaneidade de tempo e hipervisibilidade instaurado pelas
mídias terciárias.
7
Em outra ocasião (GOMES, 2009) analisei a 'mudança' de Ricoeur, da
ênfase visual no estudo do simbólico de seus primeiros trabalhos pela teoria
da metáfora com ênfase no discurso verbal do texto escrito, em seus últimos
livros, resultantes da influência inconfessa de sua leitura de Lacan.
As mídias tornaram-se assim as antagonistas de
nosso texto e Ricoeur, o protagonista invisível da nossa meta
narrativa (um herói aparentemente impotente para atualidade).
Convocamos, em seguida, vários ajudantes para fortalecer a
hermenêutica filosófica e literária de Ricoeur, dando a ela
novos instrumentos analíticos para o estudo das narrativas
midiáticas atuais: Walter Benjamim, Freud, Irving Goffman,
Victor Turner, Gertz, John Thompson … Porém, foi graças a
uma aliança de última hora com Baitello Junior (e a teoria das
mídias de Harry Pross) que nosso 'herói', sujeito da meta
narrativa teórica, conseguiu equilibrar forças com seu inimigo
epistemológico, sendo então capaz de compreendê-lo por
inteiro e assim assimilá-lo na sua narrativa, a hermenêutica.

Em contraponto narrativo, as estórias imaginárias


contemporâneas, principalmente a ficção científica, ocuparam
o lugar do arquétipo feminino, que é raptada pelo antagonista,
precisando ser resgatada pelo protagonista. Sugeriu-se ainda
que, tanto o casamento entre 'os mocinhos' (a hermenêutica
de Ricoeur e a imaginação narrativa) como a vitória do vilão (a
máquina da mídia), nos leva de volta às estórias sagradas,
reunindo as narrativas ficcionais e históricas que foram
separadas desde tempos imemoriais.

Chega-se então ao clímax do suspense: A Intriga


midiática é legítima? Qual a solução para o conflito triangular
entre narrativa, tempo e meta comunicação? Como integrar o
esboço de uma teoria interpretativa das mídias à
hermenêutica em geral e à nossa meta narrativa em
particular? E finalmente: como terminaremos este texto?
Intriga meta narrativa

Uma boa classificação primária para narrativas (sejam


fictícias ou reais) pode ser proposta a partir da solução do
conflito, subdivindo-as em: as de final feliz e as de fim trágico
(independente de elementos dramáticos cômicos ou trágicos).

As históricas com final feliz são as pedagógicas e


hipnóticas. São narrativas para produzir esperança e fazer
com que todos acreditem que 'as coisas vão dar certo’,
fazendo com elas realmente deem certo. Há, um dito otimista
referente à vida pessoal que reza “que as coisas não vão bem,
é porque a história ainda não acabou”.

E as histórias com fins trágicos são aquelas que


querem nos alertar que as coisas podem terminar mal. As
narrativas trágicas são as que, pela catarse da representação,
expiam nossas culpas e medos, nos ensinando a viver uma
vida sem ilusões.

Bom, coerentes com tudo que foi dito e defendido até


aqui, dois finais podem se constituir para este ensaio:

1. O final feliz – A utopia social: a imaginação criativa casa-se


com meta narrativa histórica. Final que aponta para a
possibilidade de uma nova configuração cultural em escala
planetária em que a narrativa da história escrita se encerra
com o desfecho previsto desde o começo: a nova jerusalém
do Apocalipse é um retorno ao paraíso perdido do éden na
Gênesis, como sustenta corajosamente a exegese do crítico
Frank Kermode (RICOEUR,1995, 40-47). E, nesse desfecho
utópico - acrescente-se por minha conta: as mídias teriam a
missão social e histórica da condução narrativa deste ‘happy
end’ escatológico, re-combinando conscientemente os
aspectos simbólico e referencial da linguagem em narrativas
integrais; reeducando todos na sociedade para uma vida
menos destrutiva.
2. O fim trágico – A distopia social: seremos controlados por
máquinas. A intriga das mídias não é mais que mera
manipulação de um poder gerenciado por quem não sabe o
que realmente o quer e acaba se tornando um fantoche das
próprias narrativas. É o universo do 'funcionário do aparelho'
descrito por Flusser: o 'nomadismo sem corpo', em que a
alma viaja através das imagens técnicas; o apocalispe da
mídia devoradora da 'escala de abstração' que nanifica a
linguagem (BAITELLO, 2010, 13-59).

Um jornalista experiente, ao escreve uma matéria,


intriga suas fontes, colocando seus entrevistados no posição
de protagonistas e antagonistas. Ele deve, no entanto, deixar
claro sua posição e deixar a decisão final para seus leitores.
Somente assim ele será ético e justo. Creio que o mesmo vale
para textos científicos ou filosóficos. Há artimanhas que o
jornalista pode ensinar ao historiador, como também há a
disciplina que o escritor aprende com o cientista. E essa foi
nossa intenção aqui: levantar, através do estudo dos trabalhos
de Paul Ricoeur, uma metodologia geral que possa servir de
base para construção hermenêutica de uma teoria
interpretativa das mídias a partir da meta comunicação.

No entanto, há ainda uma diferença fundamental a


ressaltar. Na hermenêutica de Ricoeur, a perspectiva
descritiva corresponde à função referencial e ao presente; a
perspectiva prescritiva, à poética (a configuração da
linguagem por ela mesma) e ao futuro; a perspectiva narrativa,
à função metalinguística e ao passado. E na visão de uma
teoria interpretativa das mídias, a perspectiva descritiva
corresponde à mídia primária e ao corpo; a perspectiva
narrativa, à mídia secundária e à a memória; e a perspectiva
prescritiva, à mídia terciária e à simulação virtual do tempo.
A tessitura da intriga é uma dialética que opera os três
princípios: do conflito entre a narrativa do passado e a
descrição do presente resulta a simulação do futuro. Para
Ricoeur, no entanto, o coração da tessitura está na Mimese II,
na configuração da linguagem por ela mesma – o que equivale
a dizer que a descrição do presente (e da referência) resulta
do confronto entre as perspectivas narrativa (ou
metalinguística) e prescritiva (ou poética). Isto se dá porque
Ricoeur, talvez contaminado pelo estruturalismo que estudou,
entende a perspectiva prescritiva mais como sendo uma
dimensão 'moral' do presente do que como uma projeção da
imaginação no campo das possibilidades enquadrada pelos
constrangimentos narrativos do passado e descritivos atuais.
E esses três princípios – a narração do passado, a
descrição do presente e a simulação do futuro – formam o que
chamo de 'tecelãs da intriga' – as moiras do destino,
antagonistas do herói pós-moderno, porque esse mito é o que
melhor representa a máquina social de fabricação do tempo
formado pelas três mídias.
Mas, isso é assunto para outros textos.
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