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CAPÍTULO II: A FUNÇÃO PATERNA E A RECUSA AO PAI

SUMÁRIO

CAPÍTULO II: A FUNÇÃO PATERNA E A RECUSA AO PAI.......................................................................0


CAPÍTULO II: A FUNÇÃO PATERNA E A RECUSA AO PAI.......................................................................1
2.1 DE VOLTA AO CASO CLÍNICO.....................................................................................................................1
2.2 A ESTRUTURAÇÃO DO SUJEITO E A FUNÇÃO PATERNA............................................................................3
2.2.1A oposição significante e a ordenação da realidade..............................................................................3
2.2.2 O laço social e a função paterna...........................................................................................................5
2.2.3 O sujeito e os nãos do pai......................................................................................................................9
a) O pai Real e a disputa imaginária pelo lugar de objeto.....................................................................................10
b) O pai Simbólico e a Lei........................................................................................................................................13
c) O pai Imaginário e o desejo.................................................................................................................................16

2.3 A RECUSA AO PAI NA PSICOSE....................................................................................................................20


2.3.1 A Psicose como estrutura.....................................................................................................................20
a) A psicose e a carência paterna............................................................................................................................20
b) A Verwerfung freudiana e a Foraclusão do Nome-do-Pai....................................................................................24
c) Os fenômenos elementares da psicose..................................................................................................................29
2.3.2 O delírio como função..........................................................................................................................33
a) O delírio como suplência: uma lei imaginária.....................................................................................................33
b) Aimée e o retorno do foracluído...........................................................................................................................37
c) A construção delirante do nome e o congelamento de desejo...............................................................................46
Referências..............................................................................................................................................................51

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CAPÍTULO II: A FUNÇÃO PATERNA E A RECUSA AO PAI

2.1 De volta ao caso clínico

Na psicose o fragmento de realidade que dá origem aos fenômenos elementares é


rechaçado, ou seja, completamente desprezado. Que tipo de recusa é esta que se dá? Até onde
o fragmento de realidade rechaçado é importante para a compreensão da lógica estrutural da
psicose e, em conseqüência, para a direção do tratamento? Qual é a importância deste dado,
que nos diz que é após a tentativa de assassinarem-no que Alberto nunca mais será o mesmo?
A irrupção do Real na psicose parece ainda mais difícil de ser bordejada pela palavra.
Não é à toa que o sujeito, aí, seja falado: “Os malandros vão te matar”, diziam as vozes que
Alberto escutava. A experiência, radicalmente negada, retornava desde fora. Se ele morresse,
o mundo estaria perdido: ficaria sem chuva. É o que ele dizia em tom de ameaça, quando se
sentia, ele mesmo, ameaçado.
Como nos traz o caso de paranóia apresentado por Freud (1895) no Rascunho H, o
momento desencadeador da psicose pode ser facilmente relatado pelo próprio paciente, mas
ele mesmo não o reconhece como angustiante ou, menos ainda, como algo que pode se
relacionar ao seu delírio, às suas vozes. E o tema retorna no real.
Não que a morte não seja assustadora para todos. É o desconhecido em questão.
Entretanto, se a morte é algo intrínseco ao ser vivo, que só é vivo porque morre, Alberto
parecia tomar esta questão sempre como culpa do Outro: seja na escolha de Deus, seja na
maldade dos malandros. Sua mãe, por exemplo, já bastante idosa, teria morrido por culpa da
irmã de Alberto, que lhe causava muitas preocupações. Já ele mesmo não se sentia culpado.
Para Alberto, a morte é um tema carregado de gozo e a ameaça de morte é algo que
retorna a todo instante. Ora Alberto diz que Deus não o levou ainda porque gosta dele; ora, ele
tem medo de que Deus o leve: “vou morrer novo”. O sentido, entretanto, prevalece. Sua
morte, nunca poderia ser um acaso, uma contingência da vida; seria sempre pela vontade do
Outro, mas nunca por sua culpa – como acontece tão comumente na neurose. Certa vez, por
exemplo, encontrou um caroço na região lombar e foi dizer à analista que estava com câncer.
Foi avaliado pelo médico. O caroço – nada mais que um cisto sebáceo – foi retirado e, apesar
das explicações médicas de que aquilo não era um câncer, Alberto agradece à analista (que o
encaminhou para o médico) e conta para várias pessoas, tempos depois do acontecido, que foi
“salvo de um câncer”. Esse pensamento, que passa pela sua cabeça e toma proporções de

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realidade, parece apontar com bastante mestria a estrutura do delírio: ‘não é ele quem tem
medo de morrer, é o Outro quem o ameaça o tempo todo’.
Com um significativo empuxo-à-morte (num certo período, que compreendia alguns
meses, quebrou um braço, machucou uma perna, pulou de um barranco com uma faca na mão,
gastava toda sua aposentadoria em crack, ficava devendo os traficantes...), Alberto não queria
morrer. Mas vivia achando que sua hora estava próxima, que ia morrer novo. E parecia buscar
esse encontro. Nos dias em que chegava nervoso, com medo, ameaçava a todos: ‘vocês vão
ver, deus vai castigar vocês!’ E, dirigindo-se a analista, disse numa expressão de ódio: ‘Você
também, deus vai de castigar’. Ao que, ao silêncio da analista que permaneceu ali a seu lado,
Alberto respondeu: ‘Você não... me desculpe’.
Ao sentir-se ameaçado, Alberto chegava ao CAPS com muito medo, mas muito
nervoso também. Brigava com tudo e com todos, ameaçava quem lhe aparecesse na frente.
Esse medo, que diz respeito à ameaça da própria existência, parece convocar o sujeito a uma
luta do corpo a corpo, uma luta em que a sobrevivência está em questão. A perseguição
sentida por Alberto, tal qual a de tantos psicóticos, é perseguição dirigida a seu ser.
Intermediada aqui apenas pelo elemento imaginário das chuvas: ‘querem que eu faça chover’.
Essa ameaça ao ser, que perpassa o caso Alberto, diz respeito à própria estrutura da
paranóia. Certa vez, em entrevista com os pais de um outro paciente psicótico, a mãe relata
espantada: ‘Ele já quis até pegar o pai, ficava falando que ia pegá-lo...’. Em outro caso, o
paciente - filho adotivo que vivia a busca delirante de um pai - dizendo, em seu delírio, que o
pai (adotivo) já tinha matado muita gente, dizia que ia pegá-lo, que ia matá-lo, vivendo um
conflito gigantesco ao dizer repetidas vezes: ‘Meu pai é bom! Não, ele é mal! Ele é bom...’.
Se esse paciente queria matá-lo, era por se sentir ameaçado.
Alberto não tinha pai vivo, mas deus era quem, justamente, podia matá-lo – a seu bel
prazer, diga-se de passagem. Seu delírio estabeleceu uma certa ordenação imaginária a tais
ameaças. O que, entretanto, configura essa ameaça tão sem lei que invade o sujeito na
irrupção da psicose?
Será visto que o sujeito, em sua constituição, necessita passar pela prova do Édipo
para que seu mundo receba uma ordenação simbólica. Que ordem é essa de que se trata no
Édipo? No seminário sobre As psicoses e também no seminário sobre As formações do
inconsciente, Lacan aborda a questão fundamental da constituição do sujeito do inconsciente
com a dialética significante que esta comporta. Neste desenvolvimento, o pai aparece como
um significante primordial, fundando a estrutura simbólica da realidade.

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A ordem do mundo fica tão prejudicada no momento de irrupção da psicose que o
sujeito pode ser invadido por vozes e pensamentos delirantes a tal ponto assustadores que o
sujeito não dá conta de enfrentar a vida. ‘Fuga da realidade’, poderia ser dito. Entretanto, a
realidade criada pelo delírio primário – ou seja, aquele da fase de irrupção da psicose, em que
o sujeito se sente perseguido e usado - não parece melhor que a realidade partilhada pela
neurose, muito pelo contrário, parece muito mais assustadora, muito mais penosa. De que se
trata, então, nessa recusa à castração?
Trata-se da recusa ao pai enquanto função. Recusa esta essencial para o entendimento
da psicose enquanto estrutura, assim como para a direção do tratamento.
A psicose fica à margem do laço social. Seja na exceção da arte, seja na exceção da
mais estrita exclusão - como indicam as naus dos loucos, que os levavam a vagar sem rumo
(Foucault, 1987/2005). Dessa maneira, é imprescindível, num trabalho que aborde a loucura,
abordar também a entrada no laço social. A Lei simbólica - o acordo, o pacto - é uma função
originalmente humana, sem a qual não há vida em sociedade. A Lei simbólica incide em cada
um de nós, assim como aconteceu no advento da sociedade. Para essa regra, entretanto, há
exceções. Estudemos, portanto, a regra, para abordarmos a exceção e, em conseqüência, o que
é possível fazer com ela. Atenhamo-nos à importância da função paterna, à estrutura que esta
comporta e ao modo como ela se insere na constituição subjetiva, para, só então, estudarmos a
estrutura decorrente da recusa a esta função e suas possíveis conseqüências.

2.2 A estruturação do sujeito e a função paterna

2.2.1A oposição significante e a ordenação da realidade

A partir de Lacan e seu retorno a Freud, os fenômenos no campo analítico, os sintomas


e as formações do inconsciente podem ser abordados a partir de uma estrutura de linguagem,
o que indica a presença constante da duplicidade inerente ao sistema significante-significado.
As oposições significantes, oposições simbólicas, artificiais, como o dia e a noite, a
paz e a guerra, o homem e a mulher, o Fort e o Da, são oposições que não existem a priori no
mundo real, mas que nós inventamos para dar uma armação, para organizar, formar eixos e,
com estes, uma estrutura que componha o que chamamos realidade, para que nela possamos
nos localizar e, assim, nos mover através da vida. (Lacan, 1955-56/2002, p.227)

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É com a passagem pelo complexo de Édipo que ocorre a introdução significante
essencial à normalização sexual e às primeiras identificações do ser: homem ou mulher.
(Lacan, 1955-56/2002, p.216) Só a partir de uma estrutura simbólica que o sujeito pode dar
forma ao que aí se insere no nível do seu ser. Ou seja, é através do significante que o sujeito
pode se reconhecer como sendo isto ou aquilo (Lacan, 1955-56/2002, p.205).
Entretanto, existe algo de inassimilável ao significante, algo que diz respeito à
existência do sujeito. Porque apareceu e porque desaparecerá são respostas que o significante
seria incapaz de elaborar. E são questões que ligam o sexo à morte, na medida em que
abordam, ambas, a questão da existência do ser.
Assim, na estruturação lacaniana do sujeito, o significante é o pilar essencial para a
estruturação da realidade. E é por ser ‘sem sentido’ que o significante pode, não responder,
mas entrar no lugar da resposta à questão da existência do ser: “o significante é o instrumento
com o qual se exprime o significado desaparecido” (Lacan, 1955-56/2002, p.252).
Segundo o autor, a ordem significante está presente quando existe um sinal que não
remete a um objeto, mas a outro sinal. Desta forma, no caso da impossibilidade de resposta à
questão da existência do ser, não há objeto a ser remetido, não há sentido que possa ser
encontrado, nem mesmo na forma de rastro, pois, mesmo no rastro, o sinal remeteria a um
objeto, ainda que ausente. “Ele [o rastro] é também o sinal de uma ausência. Mas, na medida
em que ele faz parte da linguagem, o significante é um sinal que remete a um outro sinal, que
é como tal estruturado para significar a ausência de um outro sinal, em outros termos, para se
opor a ele num par.” (Lacan, 1955-56/2002, p.192)
A realidade é, portanto, ordenada pela cadeia significante, sendo que esta é fundada
por um significante primeiro, o significante Nome-do-Pai, um significante que tem estatuto de
Lei, tal qual o significante “não”. Vale lembrar, neste momento, a homofonia que a língua
francesa permite, entre as palavras nome (nom) e não (non).
“O significante é, enquanto tal, um significante que não significa nada. A experiência
o prova – quanto mais o significante nada significa, mais indestrutível ele é.” (Lacan, 1955-
56/2002, p.212) É assim que a existência do ser, algo sem significação possível, pode ser
ordenada pela dimensão significante, uma dimensão que carrega, em seu umbigo, a dimensão
do não-senso. E é neste umbigo, na fundação desta cadeia, que encontramos o significante
Nome-do-Pai, aquele que podemos escutar como não-do-Pai, e que é, como veremos,
proferido pela mãe, primeira encarnação do Outro.
Essa Lei que provém deste significante, o não, é essencial para a vida em sociedade,
uma vez que organiza e estrutura a realidade – que precisa ser partilhável, ainda que singular.

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Neste sentido, é também a partir de um não e de um nome, provenientes de Um pai, que todos
– a sociedade – e cada um – cada sujeito - se fundam.
Vejamos, portanto, como teria acontecido, por um lado, a fundação da Lei na
sociedade, e, por outro, a fundação da Lei no sujeito.

2.2.2 O laço social e a função paterna

Em Totem e Tabu, Freud (1913/2006) explicita a importância dessa Lei paterna na


fundação da sociedade a partir do mito darwiniano da horda primeva, no qual o pai primevo,
encarnando o lugar da exceção, seria o possuidor de todas as mulheres do grupo, ou seja, teria
acesso a um gozo irrestrito, enquanto os outros machos do grupo se submeteriam a ele, sendo
privados do acesso às mulheres, ou seja, do acesso ao gozo.
Vale destacar que o mito - como Lacan (1969-70/1992) salienta na lição Do mito à
estrutura do seminário O avesso da psicanálise - é aquilo que enuncia o impossível. Dessa
forma, o pai real, tal qual seria o pai da horda – esse que tem acesso ao gozo total - é um pai,
como o próprio real, impossível.
No mito, é só a partir da morte do pai da horda – assassinado pelos filhos - que a Lei é
incorporada pelos irmãos, isto é, que o impedimento não seria mais tomado como um
impedimento no real, mas como uma Lei simbólica, um acordo. O pai morto é aquele que
deixou de ser rival, que deixou de representar perigo, mas deixou também de oferecer
segurança à horda, passando, em conseqüência, a ser objeto de amor e de remorso. É após o
assassinato que se instaura a Lei. O acesso ao objeto, que antes era impedido – pela força
bruta de Um pai forte – agora é proibido. A ordenação do gozo se dá, não mais pela presença
do poder absoluto e despótico do pai, mas pela presença de um acordo simbólico, o de não
possuir nenhuma mulher da horda. É, pois, o pai morto – transformado em pai simbólico -
quem consegue fazer valer a lei. E isso graças ao sentimento de culpa oriundo do assassinato.
Culpa que é, vale lembrar, medo da perda do amor do Outro. (Freud, 1930/2006)
Afinal, se por um lado o pai da horda, esse ser forte, impedia o acesso ao gozo - às
fêmeas do grupo -, por outro lado, protegia o grupo dos perigos externos. É assim que o afeto,
o amor ao pai, retorna em todo o grupo em forma de culpa, de remorso pelo assassinato do
mesmo. E então “o pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo (...) O que até agora fora
interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos” (Freud,
1913/2006, p.146-147)

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É só com a morte deste Pai que o temor pode passar a amor; assim como o
impedimento real ao gozo pode passar à proibição, ou seja, uma Lei simbólica. É possível
compreender esta questão a partir da evolução histórica que traz a noção de temor a Deus, o
que se diferencia radicalmente do temor aos deuses.
A partir do monoteísmo teria sido possível convergir todos os temores da natureza em
um único Deus, o que transformaria o temor em coragem: “Todos os temores – Eu não tenho
outro temor – são trocados contra o que se chama o temor a Deus, que, por mais coercitivo
que seja, é o contrário de um temor.” (Lacan, 1955-56/2002, p.302). É desta forma, portanto,
que assim como no mito da horda primeva, toda uma sociedade foi regida por Um Pai todo-
poderoso, cheio de caprichos e possuidor de um gozo absoluto, mas capaz de salvar o povo de
outros perigos: o Deus temido de Moisés, isto é, o Deus do monoteísmo.
Esse Deus instaura uma lei que se compõe de dez mandamentos, e que é fundada no
temor daquele que é Todo Poderoso: capaz de ganhar guerras, mas capaz também de enviar
pestes.
Entende-se que o temor a Deus se aproxima da noção do pai na medida em que as leis
do universo seriam regidas por ele. Ou seja, toda a lei passaria por ele, passaria por seu
regimento, por sua promulgação, tal qual o Nome-do-Pai, o pai simbólico que, como veremos,
é o significante que “promulga a lei” (Lacan, 1957-58/1999, p.152). Mas “para haver alguma
coisa que faz com que a lei seja fundada no pai, é preciso haver o assassinato do pai. (...) o pai
como aquele que promulga a lei é o pai morto, isto é, o símbolo do pai. O pai morto é o
Nome-do-pai.” (Lacan, 1957-58/1999, p.152).
Desta forma, pode-se identificar, a partir do mito da horda, três tempos essenciais para
a fundação do laço social: o primeiro, aquele em que há um pai todo-poderoso, o pai da horda;
o segundo, aquele em que há o assassinato do pai e o rompimento com seu poder despótico –
aqui, o lugar da exceção se mantém vazio – havendo o retorno do pai morto enquanto
deificado e a instauração da Lei simbólica, uma Lei que é para todos; e o terceiro tempo, em
que se instala o desejo e, com ele, a busca de gozo para além da horda.
É preciso, pois, para que haja a instauração do laço social, que haja o tempo do temor.
Portanto, o temor enquanto significante seria ordenador do discurso, aquele que ata
significante e significado - que Lacan denomina ponto de basta – dando um significado aos
acontecimentos do mundo (Lacan, 1955-56/2002, p.303). É assim que, para acalmar os
ânimos divinos, faziam-se tantos sacrifícios: havia, pois, um sentido no envio das pestes, das
tempestades ou secas, assim como um sentido para as épocas de fartura... um sentido
essencial para a ordenação do mundo. Dessa forma, a noção de temor ao pai estaria na base

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do amor ao pai, noção muito importante, tanto para a constituição subjetiva quanto para a
humanidade, e essencial para o desenvolvimento da ciência moderna. É com a morte de Deus,
na encarnação de seu filho, que surge o advento daquilo que Lacan chama amor ao pai: a
impotência de Deus é revelada ante a morte do filho que é ele próprio.
Lacan (1955-56/2002, p.78-79) nos diz que, para que se possa relacionar qualquer
coisa a algum fundamento no real, é preciso que haja em relação ao sujeito e ao Outro, uma
ordem que não engane. A noção de que o Real, de que a disposição da matéria no mundo seja
a mesma, ou seja, de que não haja um Deus enganador por trás disso, é o fundamento da
ciência. É o que faz com que um experimento científico, dando errado, o erro seja atribuído a
um problema na teoria, e não ao capricho do Outro, de alguém que engana o cientista. É o que
faz a ciência avançar e que só foi possível a partir do pensamento judaico-cristão, aquele que
permite um avanço do temor ao amor a Deus. Só a partir dessa relação de amor a Deus, a
natureza pôde ser encarada como um mistério a ser decifrado, isto é, sendo regida por uma
ordem simbólica, significante, e não por uma ordem imaginária, repleta de sentido e
significação. (Lacan 1955-56/2002)
A relação psicótica com o Outro comportaria a dialética do engano numa “dimensão
transversal” a esta que se faz necessária para o pensamento científico moderno (ibidem, p.85).
E é esse jogo de engano, estabelecido com esse que deveria ser o garante do Real, que torna
possível que o mundo seja transformado em uma ‘fantasmagoria’ na psicose.
Assim, no mito e na história, é só com o assassinato de Deus – ou, ao menos, de seu
representante, Cristo – que a culpa dos filhos advém e, com isso, sobrevém tanto o amor ao
pai quanto a Lei – esta, agora, com letra maiúscula, uma vez que os perigos já não são reais, já
não emanam de Deus. Há, portanto, duas mudanças: uma no lugar ocupado pelo líder, que de
temido, passa a amado, e outra, na regulação do gozo, que de absoluto passa a limitado, a
partir da instauração da Lei. A partir do assassinato de Deus são enfatizados os dois primeiros
mandamentos: amar o pai sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo. Leis estas que
ordenam as relações, por um lado, do grupo com o líder e, por outro, dos membros do grupo
entre si, os duplos especulares.
Em Psicologia de grupo e análise do eu, Freud (1921/2006) extrai essas duas relações
principais em um grupo: a primeira seria a relação libidinal desinibida em seu objetivo, que
ocorreria entre os componentes do grupo, e seria uma relação narcísica, na qual um não
poderia se sentir diferente do outro, sobretudo em relação ao líder - se um se sente mais ou
menos amado que o outro, a ordem do grupo pode ser desfeita. Tal relação pode ser traduzida
em “amar o próximo como a si mesmo”.

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Já o mandamento “Amar a Deus sobre todas as coisas”, parece sintetizar bem a
segunda relação: a relação libidinal inibida em seu objetivo, que ocorreria entre cada membro
do grupo e seu líder – seja ele uma pessoa ou uma ideia – e seria a relação fundamental para a
manutenção do laço social entre o grupo. Nesta segunda relação, o líder não seria visto como
um outro eu, mas como um Ideal de eu, alguém a ser seguido. (Freud, 1921/2006)

Sabemos que o amor impõe um freio ao narcisismo, e seria possível demonstrar como,
agindo dessa maneira, ele se tornou um fator de civilização.
O pai primevo da horda não era ainda imortal, como posteriormente veio a ser, pela
deificação. Se morria, tinha de ser substituído; seu lugar era provavelmente tomado por um
filho mais jovem, que até então fora um membro do grupo, como qualquer outro. (Freud,
1921/2006, p.134-135) [grifo nosso]

Desta forma, Freud marca uma diferença fundamental entre a dinâmica da relação
existente entre os filhos e o pai real da horda primeva - que poderia vir a ser qualquer um dos
filhos e, portanto, um semelhante, um outro eu - e a relação com o pai simbólico que,
deificado pelo assassinato, passa a ser insubstituível, inatingível – Ideal. O autor nos aponta
também a importância fundamental desse amor (da relação com o Ideal) como freio ao amor
narcísico (relação especular) na construção e manutenção do laço social.
A partir do exposto e lembrando que é exatamente essa a dificuldade maior da psicose,
a saber, a entrada no laço social, chama-se atenção para esta diferença entre o amor narcísico
e o amor ao Ideal, que se fará fundamental para o entendimento da estrutura psicótica.
No primeiro capítulo do presente trabalho, foi visto, com a ajuda da diferenciação
lacaniana entre eu ideal (relação imaginária) e Ideal de eu (relação simbólica), a indicação de
Freud de que, na constituição do sujeito, a formação do Ideal de eu é fundamental para a
estrutura do recalque: “Para o ego, a formação de um ideal seria o fator condicionante do
recalque” (Freud, 1914/2006, p.100). “O que ele [o indivíduo] projeta diante de si como sendo
seu ideal [Ideal de eu] é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o
seu próprio ideal [eu ideal].” (Freud, 1914/2006, p.101) É nesse sentido que Soler (2007) nos
diz que “Quando o ideal não faz senão encobrir a foraclusão, quando ele não se instaura sobre
o recalque de um desejo, o que ele exclui não deixa de retornar no real.” (p.44)
Qual seria, então, a relação destas identificações com a questão da promulgação da lei
pelo pai? Na horda primeva, é o pai morto, a partir da identificação simbólica, quem ocupa o
lugar de Ideal. Na constituição do sujeito, como advém este pai morto, que promulga a Lei?
Freud nos diz que “Um menino mostrará interesse especial pelo pai (...) Podemos
simplesmente dizer que toma o pai como seu ideal. Este comportamento nada tem a ver com

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uma atitude passiva em relação ao pai (...), pelo contrário, é tipicamente masculina” (Freud,
1921/2006, p.115) Assim, Freud nos indica que a submissão à Lei é possível na medida em
que a criança toma o pai como Ideal.
Este lugar, portanto, de Ideal, faz-se essencial para a promulgação da Lei, que só pode
ser simbólica a partir do assassinato do pai. Dessa forma, se no mito da horda é preciso o
assassinato do pai para que haja a entrada na Lei, vejamos, pois, como se dá o “assassinato”
na constituição do sujeito, ou seja, o que torna possível ao sujeito entrar no laço social.

2.2.3 O sujeito e os nãos do pai

Se no mito dos primórdios da civilização é a morte do pai que torna possível sua
passagem de rival a simbólico, o que tornaria possível, no sujeito, que o pai, em sua função
real, se torne um pai simbólico? O que torna possível que, no sujeito, a lei da castração não
permaneça no nível do par recusa-submissão, isto é, no nível da rivalidade, mas seja instituída
no sujeito através dessa promulgação simbólica? O que torna possível a submissão do sujeito
– de bom grado - à Lei da castração, tornando-o assim, através desta submissão, não
subjugado, mas, pelo contrário, ativo em sua passividade?
A lei que proíbe o incesto é a principal marca das relações simbólicas entre os
humanos: é aquilo que nos faz desdobrar a fêmea em mãe e mulher e o macho em pai e
homem. É só a partir dessa proibição que a civilização pode se estabelecer: criando grupos
nos quais o gozo sexual é regulado e, portanto, a luta rivalitária também. Dessa forma, perde-
se em gozo (campo pulsional), mas se ganha em ordenação (campo significante), ou como diz
Freud (o mal estar) perde-se um quinhão de liberdade em troca de um quinhão de segurança.
Se o mito da horda primeva fala da fundação da civilização, com as leis contra o
parricídio e o incesto, o mito de Édipo traz o tema da estruturação do sujeito, com os desejos
recalcados de matar o pai e de possuir a mãe. Como, entretanto, estes desejos chegam a ser
recalcados é o que o Complexo de Édipo pode elucidar.
Lacan traz, a partir do desdobramento da função paterna nos três registros Real-
Simbólico-Imaginário, o Édipo em três tempos: o primeiro, aquele da identificação especular;
o segundo, o da promulgação da Lei e; o terceiro, o do estabelecimento do desejo. Esses
tempos aqui serão chamados de três nãos do pai, já que serão abordados pelo viés da
instauração da Lei. A partir disso, portanto, pensaremos a função paterna, assim como as
conseqüências de sua recusa.

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a) O pai Real e a disputa imaginária pelo lugar de objeto

Na primeira realidade infantil, a lei que a mãe encarna é uma lei absoluta e de
caprichos, sem ordem. Lacan (1957-58/1999, p.195) vai dizer que a criança aqui não é
constituída enquanto sujeito, mas enquanto assujeito, uma vez que está assujeitada a esta lei,
que só se pode chamar de ‘lei’ por ‘antecipação’:

a primeira experiência que ele tem de sua relação com o Outro, ele a tem com esse
Outro primeiro que é a sua mãe, na medida em que já a simbolizou. É por já havê-la
simbolizado que ele se dirige à mãe de um modo que, por ser mais ou menos vagido,
nem por isso é menos articulado, porque essa primeira simbolização está ligada às
primeiras articulações, que reconhecemos no Fort-Da. (...)
Nessa medida, a criança, que constituiu sua mãe como sujeito com base na primeira
simbolização, vê-se inteiramente submetida ao que podemos chamar, mas
unicamente por antecipação, de lei. (Lacan,1957-58/1999, p.194)

A partir da ausência do Outro primordial já simbolizado pode surgir, por um lado, uma
primeira ordenação dessa lei sem ordem e, por outro, a instauração de um desejo primitivo.
Esse outro (outra coisa), que surge para além da relação dual mãe-criança, instaura
uma ordenação imaginária dessa lei sem ordem, ou seja, surge um objeto que é, para além da
criança, também objeto de desejo da mãe. Esse primeiro não, surge velado no impedimento
do outro enquanto objeto (rival) de desejo. Assim, a partir dessa referência, e dessa relação de
dependência da criança, não exatamente com a mãe, mas com seu desejo, pode surgir um
desejo primitivo do próprio sujeito: o desejo de ser desejado, tal qual o é esse objeto
imaginário. Destaca-se que, nesse caso, “É um desejo de desejo. (...) é diferente desejar
alguma coisa ou desejar o desejo de um sujeito.” (Lacan, 1957-58/1999, p.205).
Neste momento, portanto, que é o primeiro dos tempos edípicos, o pai apareceria de
forma velada, apenas como objeto de desejo da mãe.
O pai aqui ocupa o lugar de outro semelhante, de par do estádio do espelho que
constitui o modelo do registro imaginário do sujeito. O reconhecimento da criança enquanto
eu é correlato da identificação ao outro eu, semelhante, que é objeto de concorrência em
relação ao desejo do Outro. Não é à toa que aqui amor e ódio estão intimamente ligados, tal
qual no neologismo lacaniano henamoration1. (Lacan, 1955-1956/2002) Aqui, pai e criança
concorrem ao desejo da mãe, tal qual dois machos que se identificam como semelhantes
concorrem ao desejo da fêmea.

1
Este neologismo, junção de haine (ódio) e enamoration (enamoramento) pode ser traduzido por enamoródio,
como consta no seminário As psicoses, ou ainda, amódio, como consta no seminário Mais, ainda.

10
Eles – pai e criança – podem ser localizados, portanto, no lugar de objeto do desejo
desse Outro primordial, formando a estrutura terciária do Édipo freudiano. Há, entretanto,
nessa relação de semelhança e rivalidade, para além da ordem imaginária que se estabelece a
partir da imagem especular formada, uma ameaça de castração que diz respeito à existência
do próprio sujeito, já que é ele mesmo o objeto imaginário dessa castração, cujo agente será
chamado por Lacan (1957-58/1999) de ‘pai real’:

AGENTE ATO OBJETO/AMEAÇA


Pai Real 2 Castração (S) Imaginário/a

Nesse esquema, o Pai Real é o rival, aquele da identificação especular, mas também
da disputa imaginária pelo lugar de objeto, capaz de castrar o sujeito, o que se instala,
portanto, no nível da rivalidade, da agressividade, próprio à paranóia. O objeto imaginário
aqui é o falo imaginário: o pênis ou a própria criança. A rivalidade ao pai, portanto, está
inserida na ordem real do corpo (Lacan, 1956-57/1995). “De que se trata, no plano da ameaça
de castração? Trata-se da intervenção real do pai no que concerne a uma ameaça imaginária,
R.i, pois é muito raro suceder que ele lhe seja realmente cortado. Ressalto que, neste quadro, a
castração é um ato simbólico” (Lacan, 1957-58/1999, p.178)
No seminário O avesso da psicanálise, Lacan (1969-70/1992) retoma o termo pai real,
explicitando que “Numa primeira abordagem escorregamos para a fantasia de que o castrador
é o pai.” (ibidem, p.131). Aqui, Lacan (idibem) destaca que: “o pai real, está estritamente fora
de cogitação defini-lo de uma maneira que não seja como agente da castração.” (ibidem,
p.135) e nos diz que o termo agente se refere aqui àquele que é pago para fazer algo, para
agenciar uma determinada operação. Não é à toa que o pai, nesse primeiro tempo, é dito
velado, tal qual o agente. Ou seja, o pai real é o agente do impossível do acesso ao gozo total.
Ele é, nesse sentido, o “pai do real” (ibidem, p.130).
Didier-Weill (1997) em seu livro Os três tempos da lei nos diz que nesse primeiro
tempo haveria um supereu arcaico ante o qual o sujeito, siderado, sente-se ante um imperativo
absoluto, ao qual não pode dizer ‘não’, mas tampouco escolhe dizer ‘sim’ – e que está referido
a este desejo de desejo do sujeito em relação ao Outro primordial. Com a entrada do terceiro
surge o temor à castração, ao qual o sujeito seria incapaz até mesmo de pedir socorro, já que
não pode fazer apelo ao recurso do simbólico.
2
Na mesma página em que se encontra o quadro, Lacan explicita que “neste quadro, a castração é um ato
simbólico cujo agente é alguém real, o pai ou a mãe” (Lacan, 1957-58/1998, p.178)

11
O pai real é, portanto, o agente da castração na medida em que aparece velado no
lugar de objeto de desejo do Outro. Este primeiro momento é correlato da ação identificatória
que podemos reconhecer como a primeira das três identificações freudianas: “forma original
de laço emocional com um objeto” (Freud, 1921/2006, p.117) que proviria de um desejo
hostil de estar no lugar deste objeto: no caso da menina de “tomar o lugar da mãe” (p.116) e,
no caso do menino, de estabelecer esta identificação em relação ao pai, tendo “o desejo de
substituí-lo” (p.115). Esta identificação, que poderia acontecer “antes que qualquer escolha
sexual de objeto tenha sido feita” (p.116), teria um caráter “ambivalente desde o início”
(p.115) e seria derivada da fase oral, uma vez que, tal qual a incorporação canibalesca em que
o objeto desejado é aniquilado, esta identificação coloca o outro no lugar daquele que
“gostaríamos de ser” (p.117).
Freud fornece um exemplo fictício de sintoma provindo desta primeira identificação –
vale destacar o fictício, já que aqui, o recalque não foi estabelecido -, no qual uma menina
desenvolveria “o mesmo penoso sintoma que sua mãe, a mesma tosse atormentadora, por
exemplo” (p.116). Ele afirma, ainda, que esse sintoma seria decorrente “do sentimento de
culpa, de seu desejo de assumir o lugar da mãe” (p.116).
Neste primeiro tempo, portanto, a identificação está intimamente ligada à disputa pelo
lugar de objeto na relação de amor com o Outro: objeto de desejo/amor da mãe, ao qual o
sujeito deve sua existência enquanto ser. O outro, aqui, aparece apenas como aquele que
ocupa o lugar de desejado.
Este primeiro tempo do Édipo corresponde, assim, à forma “mais primitiva e original
do laço emocional” (p.116), aquela que nos remete à dependência do sujeito – em relação
mesmo à sua existência - ao Outro primordial.
Esta via do Complexo de Édipo, a do primeiro tempo, seria, segundo afirma Lacan em
seu seminário dedicado às psicoses, a via delirante, via psicótica em que se vê a função real
do pai na geração aparecer sob uma forma imaginária. (Lacan, 1955-56/2002, p.242-243). É o
que acontece imaginariamente entre Schreber e Deus – este último encarnando o impossível
do pai de toda a humanidade.
Didier-Weil (1997) afirma que se o sujeito não chega a conseguir se separar do olhar
siderante deste tempo, então pode-se falar em um olhar medúsico, o que indica não um
supereu arcaico, mas um supereu psicotizante. (p.68)

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b) O pai Simbólico e a Lei

Para que o pai real seja tomado como impossível, e não encarnado imaginariamente
como acontece na psicose, é preciso que ele – o pai, ou seja, o não - seja nomeado, isto é,
desvelado como agente simbólico. Didier-Weil (1997) nos fornece um exemplo clínico
bastante ilustrativo da importância do desvelamento desse olhar em palavra. Ele fala de
Robert, paciente que teria, após um ato falho, recebido um olhar de desaprovação, ao qual,
imóvel, não pôde responder, sentindo-se envergonhado. O interessante é que Robert diz que,
se essa mulher lhe tivesse dirigido a palavra, ainda que uma palavra de desaprovação, ele
poderia ter se defendido, poderia ter lhe pedido desculpas e explicado que enrolou a língua ao
falar, ou coisa parecida. Esse exemplo demonstra a importância do desvelamento do não, a
partir do qual o sujeito pode se defender. Sem esse desvelamento

a dor psíquica do sujeito, que vive a experiência do mau-olhado, como aquele, para Robert,
do olhar da mulher, implica numa experiência de despojamento: despojado da palavra, ele é
reduzido a um sentimento de transparência vergonhosa, isto é, de despojamento de sua
imagem especular. (p.72)

Dito de outro modo, para que advenha o segundo tempo do Édipo, é preciso haver o
surgimento de uma Lei simbólica para barrar o gozo do Outro primordial, isto é, uma palavra
- um não - que impeça o acesso irrestrito da mãe à criança e vice-versa: uma Lei que limite o
gozo e, em conseqüência, ordene – simbolicamente - o desejo (materno). Uma palavra,
portanto, que significantize esse olhar.
Aqui a castração seria apreendida pelo sujeito, mas não a sua própria castração: o
sujeito perceberia a mãe como castrada. O pai seria entendido como aquele que priva a mãe
do objeto fálico, isto é, a criança, na medida em que exerce o direito sobre ela. Aqui, tal qual
na lei que proíbe o incesto, a mãe não tem acesso irrestrito ao filho, e nem o filho à mãe.
Assim sendo, o pai é fundado como aquele que outorga a Lei à mãe, “o que significa que a
demanda endereçada ao Outro, caso transmitida como convém, será encaminhada a um
tribunal superior” (1957-58/1999, p.198). E isso, segundo Lacan (1957-58/1999) seria
apreendido a partir das relações da mãe, não com o pai, mas com “a palavra do pai – com o
pai na medida em que o que ele diz não é, de modo algum igual a zero” (Lacan, 1957-
58/1999, p.197). O segundo tempo lógico do Édipo é o tempo do pai enquanto “privador da
mãe”, como Lacan (1957-58/1999, p.198) o chama3. A mãe está privada do acesso ao filho e,

3
embora no mesmo seminário, em esquema apresentado anteriormente, o autor tenha designado o ato do pai
simbólico como o da frustração. A frustração, entretanto, é frustração do filho.

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o filho, frustrado pelo não acesso à mãe. Essa etapa é o que costumamos entender como “a
entrada do terceiro”, o que quer dizer que a criança apreende que a mãe está sujeita a uma Lei
que é externa a ela. Aqui, existe um quarto elemento, para além da mãe, da criança e do falo:
o pai é desvelado na figura daquele que porta a Lei – o que é diferente de encarná-la -,
privando a mãe do falo – e em conseqüência, frustrando a criança do acesso à mãe. Segundo
Quinet (2003), este é o momento que corresponde ao recalque originário, para Freud, e à
castração simbólica, para Lacan.
Vale destacar que “a primeira pessoa a ser castrada na dialética intersubjetiva é a mãe.
(...) Se os destinos são diferentes no menino e a na menina, é porque a castração é
inicialmente encontrada no Outro.” (Lacan, 1957-58/1999, p.361) Assim, a mãe é privada
deste acesso ao filho, seja ele menino ou menina, e a criança passa, no primeiro caso, à
ameaça de castração - vislumbrando o falo - que pode perder - em si mesmo – ou, no
segundo caso, à inveja do pênis - vislumbrando o falo que pode ganhar daquele que é seu
detentor, o pai.
Aqui, portanto, no segundo tempo do édipo, a mãe é colocada no lugar de objeto
interditado – e é o pai o detentor do direito, um direito que lhe cabe enquanto homem.

AGENTE ATO OBJETO/AMEAÇA


Mãe Simbólica4 Frustração (I) Real (mãe)

O Pai enquanto Simbólico é aquele detentor do direito de acesso ao objeto - aquele,


pois, que promulga as leis, estabelecendo a relação de temor ao pai - o que gera no sujeito a
frustração própria à neurose, de não sentir-se no direito de gozar do objeto (na histeria,
esquivando-se dele e, na neurose obsessiva, postergando seu encontro). “O pai efetivamente
frustra o filho da posse da mãe” (p.178) O temor ao pai, portanto, encontra-se na ordem
simbólica do direito.
Assim, na via neurótica do Édipo, como Lacan (1955-56/2002) a chama em seu
seminário As Psicoses, a realização imaginária aconteceria através de um exercício simbólico

4
Embora encontremos escrito Mãe Simbólica e não Pai Simbólico no esquema, na mesma página do referido
seminário, Lacan se refere ao agente como o Pai Simbólico e à mãe como objeto desta ação: “Nesse ponto, é o
pai como simbólico que intervém numa frustração, ato imaginário concernente a um objeto muito real, que é a
mãe, na medida em que a criança necessita dela” (Lacan, 1957-58/1998, p.178). Dessa forma, entende-se que o
pai aqui, é uma função, já que é a palavra da mãe que indica o pai enquanto seu privador.

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da conduta. Neste caso, o autor dá o exemplo da Síndrome de couvade5, fenômeno no qual o
acontecimento é imaginário, mas se dá por uma atualização simbólica da conduta.
É só através do reconhecimento da submissão materna à Lei que pode surgir o enigma
do desejo do Outro: ‘o que será que ela quer?’. Esse enigma será significantizado através do
que Lacan chama o Nome-do-Pai. Ele é o que vai metaforizar o lugar de ausência da mãe, ou
seja, é o que vai associar um outro significante ao significante da ausência. É como se o Fort,
isto é, a ausência da mãe, fosse tomada como um enigma: ‘o que será isso com que ela se
ocupa que não sou eu?’ ‘O que será que ela busca?’ e, em resposta à este enigma, surgisse um
primeiro significante, potencialmente carregado de sentido. Lacan (1957-1958/1998) nos
apresenta o esquema a seguir, que representa a constituição da metáfora paterna:

NP DM Nome-do-Pai A
DM x Falo

Acrescenta-se que, no Complexo de Édipo, o pai é essencialmente o pai simbólico,


uma metáfora, “um significante que substitui o primeiro significante introduzido na
simbolização, o significante materno”. (1957-58/1998, p.180) É através do significante do
Nome-do-Pai (NP) que o desejo da mãe (DM), antes tomado como uma incógnita (x) pode
receber significação.
A dimensão da metáfora não é a da comparação, mas a da condensação, a da
identificação simbólica – que é a identificação a um traço destacado do objeto de desejo - e
depende diretamente da estrutura da cadeia significante. (Lacan, 1955-56/2002, p.249). A
metáfora só acontece a partir da suposição de que uma dada significação seja o dado que
domina, que comanda o significante. Aqui, “a significação arranca o significante de suas
dimensões lexicais” (Lacan, 1955-56/2002, p.249). Desta maneira, se é possível dizer a
alguém ‘você é uma rosa’ é porque se acredita que o significante ‘rosa’ pode ser substituído
por algum significado que predomine. A metáfora, pois, relaciona-se intimamente à questão
do ser, isto é, relaciona-se à significação como questão.
O Desejo da Mãe, neste momento do Édipo, está referido a um significante, ou seja, o
Outro - agora barrado (A) - não é mais o lugar do significante com significação arbitrária, o
que faz uma barra à cadeia significante: desta forma o Nome-do-Pai toma a função de ponto
5
A Síndrome de couvade ou Gravidez por simpatia é o conjunto de sintomas de gravidez sentidos por um
homem, em geral, quando a companheira está grávida.

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de basta entre significante e significado, um ponto no qual o significante, antes arbitrário,
pode ser referenciado a uma significação, entrando na dialética significante-significado. A
metáfora cria um ponto de parada no deslizamento do significado sob o significante. É através
do Outro que o sujeito apreende algo da sua significação, criando assim um referencial fálico:
isso que aponta ao ser que ele é algo enquanto sujeito.
Lacan (1955-56/1988) elabora o conceito de ponto de basta a partir do temor ao pai,
algo que, segundo ele, faria convergir todos os perigos, todos os temores do mundo em só um
ser: Deus, o pai. Ele nos diz que, na psicose a falta desse ponto de basta faz com que sejam
possíveis os fenômenos de automatismo, nos quais o sujeito escuta significantes que lhe
deixam perplexos: significantes sem significado. É a falta desse ponto de basta que faz com
que o sujeito não reconheça um discurso pessoal como sendo seu.
Por outro lado, o ponto de basta, além de promover a amarração entre significante e
significado é também o que delimita o gozo, uma vez que o temor a Deus é visto por Lacan
como o significante capaz de fazer convergir todos os perigos do mundo (Lacan, 1955-
56/1988, p.302).
Enfim, a partir desse momento, a criança apreende um Outro materno castrado
também no sentido da Lei, uma vez que ele é submetido à lógica do desejo, a uma busca de
falo.
É essa busca do objeto que domina o terceiro tempo do Édipo.

c) O pai Imaginário e o desejo

No mito da horda primeva, com a instauração da Lei surge o acesso ao gozo, ainda
que parcial, mas antes inacessível. Isso é possível a partir da tênue passagem do temor ao pai -
aquele que instalou a proibição do incesto e, com ela, a interdição ao gozo - ao amor ao pai -
aquele cujo culto permite aos filhos o acesso ao gozo para além das mulheres da horda. O
gozo que aí surge não é irrestrito, mas possível, limitado, e precisa, para acontecer, que o
sujeito ultrapasse – o que é diferente de quebrar - a barreira da horda. É assim que a busca do
objeto, isto é, a dialética do desejo, teria sido instaurada na humanidade. Tem-se, portanto, a
partir do mito, a estrutura do terceiro tempo do Édipo: a instauração da dialética do desejo a
partir da busca do objeto para além da interdição outorgada.
Já no seminário sobre As Psicoses, Lacan (1955-56/2002) aponta que seria a partir da
via imaginária que a integração simbólica se faria, constituindo aquilo que ele nomeia neste
momento como a via normal do Édipo.

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Assim, no terceiro nível, o Pai Imaginário é aquele que priva por um lado, mas abre a
via de acesso ao objeto - que aqui é simbólico - por outro.
Através da identificação simbólica, o pai, de temido, passa a amado, dimensão que
intervém na função terminal do Édipo, aquela que leva à formação do Ideal do eu: “no
momento da saída normatizadora do Édipo, a criança reconhece não ter.” (1957-58/1998,
p.179) O amor ao pai, portanto, está na ordem daquilo que imaginariamente falta, ou seja,
aquilo que se deseja.

AGENTE ATO OBJETO/AMEAÇA


Pai Imaginário Privação (R) Simbólico/a (falo)
(ideal)

Segundo Lacan, o Édipo invertido, com seu componente de amor ao pai, nunca estaria
ausente da função do Édipo, sendo esse componente mesmo o responsável pelo término do
complexo. “É na medida em que o pai é amado que o sujeito se identifica com ele, e que
encontra a solução terminal do Édipo numa composição do recalque amnésico com a
aquisição, nele mesmo, do termo ideal graças ao qual ele se transforma no pai.” (p.176) No
terceiro tempo o sujeito consegue, através do dom, “que lhe seja concedido ter um pênis para
mais tarde”. Ele carrega “o título de posse no bolso”. (p.212).
Sendo o pai o garantidor do acesso ao falo, ele sai definitivamente do lugar de rival
para o lugar de provedor simbólico. É assim que parece se instalar, no sujeito, a lei contra o
parricídio. Já é possível entender que o desejo tem papel fundamental neste terceiro tempo do
Édipo.
O objeto de desejo, falo, já foi entendido, no segundo tempo, como fora do sujeito,
mas agora é, também, algo a que o sujeito possa buscar. A partir da significantização do
desejo do Outro, ocorrida no segundo tempo, surge também a nomeação do objeto de desejo.
“É o campo do Outro que determina a função do traço unário, no que com ele se inaugura um
tempo maior da identificação na tópica então desenvolvida por Freud – a saber, a idealização,
o ideal de eu.” (Lacan, 1964/1998, p.242)
O pai se revela como aquele, não exatamente que tem o falo, mas que aponta o acesso
ao falo, e a identificação que aqui ocorre é da ordem de um ideal, o pai é internalizado como
Ideal do eu e o complexo de Édipo declina. (1955-56/1988). O não que aqui se estabelece, diz
respeito também ao pai, que é um pai desejante.

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Para tal, entretanto, vale destacar que é preciso a identificação ao pai morto, o que, no
sujeito, parece corresponder àquilo que Lacan (1959-60/1997) se refere como o pai manco,
um personagem viril, por um lado, mas não-todo-poderoso, por outro. Desta forma, não se
precisa, em definitivo, matar o pai: ele já é morto enquanto rival. A identificação viril só seria
possível a partir do amor ao pai e o efeito da normalização do desejo “só se produz de modo
favorável na medida em que tudo está em ordem do lado do Nome-do-Pai, isto é, do lado do
Deus que não existe. Resulta para esse pai uma posição singularmente difícil – até certo ponto
é um personagem manco.” (1959-60/1997, p.222). O pai nesse terceiro tempo é, portanto, um
pai faltoso, um pai que deseja. É dessa forma que Lacan irá afirmar que, para que o pai tenha
direito ao amor é preciso que ele esteja “père-vertidamente orientado, ou seja, que faça de
uma mulher objeto pequeno a que causa seu desejo.” (Lacan, 1974-75/inédito, p.23)
Este pai manco seria alguém a ser seguido e, para tanto, parece ser preciso que esta
privação do objeto materno seja sentida não como uma convocação à luta; mas como um
convite, isto é, como uma invocação a seguir o caminho do pai.
A invocação seria uma forma de apelo ao outro “no sentido de convidar a entrar na via
desse desejo, seja ele qual for, de maneira incondicional” (1957-58/1999 p.157), e que difere
radicalmente da convocação, do anúncio, da constatação de uma ordem. Nos seminários As
psicoses e As formações do Inconsciente, Lacan (1955-56/2002, p.342 et 1957-58/1999
p.159) nos diz que a invocação, em sua forma religiosa original, consistia em uma cerimônia
na qual, antes de um combate, o povo invocava os deuses do inimigo para que estivessem a
seu lado.

No seminário As formações do inconsciente, Lacan explicita a relação que se coloca


entre o sujeito e o outro quando é: por um lado, invocado - como ocorreria na frase Tu és
aquele me seguirás (na qual o verbo seguirás concorda com o sujeito da frase, o tu), a qual
implica o apelo e, em conseqüência, o sim do sujeito; e, por outro lado, quando é evocado, o
que implica a elisão da sua dimensão de sujeito do desejo:

Quando digo Tu és aquele que me seguirás, há uma coisa que não está no Tu és aquele que
me seguirá, e é a isso que se chama invocação. Quando digo Tu és aquele que me seguirás,
estou invocando você, atribuindo-lhe a função de ser aquele que me seguirá, suscito em você
o sim que diz Estou contigo [je suis à toi], entrego-me a ti, sou aquele que te seguirá. Mas,
quanto digo Tu és aquele que me seguirá, não faço nada parecido, anuncio, constato, objetivo
e até, vez por outra, rechaço. Isso pode querer dizer: Tu és aquele que me seguirá sempre, e
estou farto disso. Da maneira mais comum e mais conseqüente de proferir essa frase, ela é
uma recusa. (Lacan, 1957-58/1999, p. 157)

Neste último caso (no qual o verbo seguirá concorda com o objeto, isto é, aquele) só
há lugar para o desejo daquele que evoca, desejo este que, por não considerar o desejo do

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sujeito, se coloca na dimensão da rivalidade, da disputa pelo gozo. E é o que Lacan indica no
seminário As psicoses, ter ocorrido com Schreber:

Sem dúvida nos faltam no texto os elementos que nos permitiriam examinar mais de perto as
relações de Schreber com o pai (...). Mas não temos necessidade de mais nada para
compreender que é obrigatoriamente pela relação puramente imaginária que deve passar o
registro do tu no momento em que ele é evocado, chamado pelo Outro, pelo campo do Outro,
através do surgimento de um significante primordial, mas excluído para o sujeito. Esse
significante, nomeei-o na última vez – tu és aquele que é, ou que será, pai. (Lacan, 1955-
56/2002, p.343)

Entende-se que o termo invocação pode nos auxiliar a entender esse chamado que
ocorre com todo e cada sujeito do desejo: o chamado a reconhecer, no pai, alguém a quem ele
seguirá, e que implica, não a dimensão da identificação narcísica, e, nem mesmo a da
identificação simbólica, mas a da identificação ao desejo, que “deixa inteiramente fora de
consideração qualquer relação de objeto com a pessoa que está sendo copiada” (Freud,
1921/2006, p.117). E que seria a única identificação passível de colocar o pai no lugar de
Ideal de eu - a partir do par significante pai-filho. Essa identificação seria a única que
possibilitaria uma participação, a identificação ao desejo do Outro. (Granon-Lafont, 1990)
É, portanto, através da identificação ao desejo paterno, que não ocorre sem a
nomeação paterna, que advém a estrutura do sujeito do desejo. Pode-se entender que a
dialética do desejo se forma nos segundo e terceiro tempos do Édipo: se por um lado a
alienação ao desejo do Outro se liga intimamente ao sentido, isto é, à dimensão da
significação; por outro lado, a separação se liga intimamente ao significante, este que é por
natureza desprovido de sentido. E, tal qual significante e significado formam um sistema
indissociável, alienação e separação também o formam. Do mesmo modo, outros dois
elementos fundamentais para o entendimento da constituição desta dialética são a metáfora e a
metonímia. A metáfora - dita paterna - se relaciona intimamente com o significado e foi
instituída no segundo tempo, como foi visto; já a metonímia se relaciona ao nome – trata-se
da substituição, de algo que se quer nomear –, se relaciona, pois, intimamente com o objeto e,
portanto, com o desejo. É o que Freud chamou deslocamento e que predomina nas formações
do inconsciente (Lacan, 1955-56/2002, p.251-252). A metonímia está intimamente
relacionada a este terceiro tempo na medida em que se trata, não da relação do significante
com o sentido, mas da relação do significante com o objeto: é através dos deslocamentos que
a dialética do desejo se constituirá.
Assim, o processo da extração de gozo corresponde à operação da separação, na qual
o desejo do sujeito se separa do desejo do Outro. Essa separação não ocorre de maneira plena,

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o sujeito continuará, em parte, alienado, uma vez que o desejo do sujeito se funda no desejo
do Outro e carrega essas marcas consigo. É nesse sentido que Lacan afirma que “o desejo do
Homem é o desejo do Outro” (Lacan, 1959-60/1991, p.162). Isso ocorre porque a operação da
separação se constitui a partir de um ponto de fuga que se estabelece na significação do desejo
do Outro. Isto quer dizer que embora o desejo seja significantizado, continua a existir um
ponto cego, um ponto de não-sentido, um vazio de significação. E é esse vazio que será
preenchido pelo desejo do próprio sujeito. É assim que o traço unário seria “o fundamento, o
núcleo do Ideal do eu”. (Lacan, 1964/1998, p. 242)
Mas isso ocorre na neurose. Na psicose, com a recusa à Lei paterna, a dialética
significante fica prejudicada e esse vazio parece não ocorrer, o que faz a dialética aparecer
desvinculada, ora no pólo significante, com a falta de significação própria aos fenômenos
esquizofrênicos, ora no pólo oposto, com o excesso de sentido, próprio aos fenômenos
paranóicos. É o que será visto a seguir.

2.3 A recusa ao Pai na psicose

2.3.1 A Psicose como estrutura

a) A psicose e a carência paterna

No seminário de 1952, dedicado ao estudo do caso Homem dos Lobos, Lacan afirma
que “neste caso, pode-se dizer que o complexo de Édipo ficou inacabado porque o pai é
carente” (Lacan, 1952/inédito,) e que toda a história do sujeito estaria marcada pela busca de
um Pai simbólico, castigador, uma vez que o Homem dos lobos teria fracassado em
simbolizar certas relações humanas. Sendo assim, o que se transmite de pai para filho neste
caso, segundo Lacan, é o patrimônio – a posse - evidenciando, assim, o caráter alienante do
poder encerrado pela riqueza e recobrindo a relação com o pai de forma unicamente narcísica.
O encontro do sujeito com o pai simbólico – aquele que, como foi visto, outorga a Lei
- acarretaria o temor ao mesmo, e isso rechaçaria o pai imaginário da cena primitiva, na qual a
relação é a dois, ou seja, uma relação de dominância e de submissão (Lacan, 1952/inédito).
Entretanto, essa relação do temor ao pai não se instala na psicose, sendo que, na
esquizofrenia, não ocorre sequer o estabelecimento da relação imaginária, a do primeiro

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tempo, enquanto, na paranóia, tal relação chega a ser estabelecida, acarretando diferentes
conseqüências para cada uma delas, como será visto adiante. (Quinet, 2003)
O pai, na vertente imaginária, só interessa enquanto objeto do desejo do Outro, que dá
as bases de uma imagem a ser copiada. Entretanto, por estar no mesmo nível do sujeito, por
ser, tal qual ele, objeto de desejo do Outro6, o pai se instala numa dimensão de rivalidade, de
concorrência, tal qual na dialética do senhor e do escravo.

a primeira síntese do ego é essencialmente alter ego, ela é alienada. O sujeito humano
desejante se constitui em torno de um centro que é o outro na medida em que ele lhe dá a sua
unidade, e o primeiro acesso que ele tem do objeto, é o objeto do desejo do outro. (...) Ele só
interessa enquanto objeto do desejo do outro. (Lacan, 1955-56/2002, p.50)

Isso ocorre uma vez que o sujeito não pode se relacionar diretamente com o Outro,
senão a partir do desejo do Outro – que já é uma referência simbólica, mas com estatuto de
enigma. É por isso que a relação direta do sujeito se faz a partir das relações imaginárias (eixo
a-a’), isto é, com o mundo empírico, com os outros enquanto semelhantes. São eles que
poderão fornecer ao sujeito uma imagem que venha em resposta a esse enigma.
A distinção entre o Outro - enquanto não é conhecido - e o outro - que é o eu, fonte de
todo conhecimento - é fundamental. “É nesse afastamento, é no ângulo aberto dessas duas
relações, que toda a dialética do delírio deve ser situada.” (Lacan, 1955-56/2002, p.51)
Esse alicerce especular e rivalitário no fundamento da constituição do sujeito é
precisamente o que é necessário ser superado para se chegar à neurose. Essa superação ocorre
através da palavra, do acordo, da entrada de um terceiro que é simbólico, que é significante. O
paranóico “está preso na relação imaginária, centro de gravidade do seu eu individual, e no
qual não há palavra.” (Lacan, 1955-56/2002, p.54)
Desta forma, se a função paterna não é assumida no nível simbólico, isto é, se o sujeito
não se reconhece ali como filho, resta-lhe a identificação à imagem. Esta alienação especular
permite ao sujeito, ao menos por um tempo, localizar-se no mundo, ater-se a um ponto de
enganchamento, que está, no entanto, no plano imaginário, uma vez que não comporta uma
dialética triangular: “A imagem adquire em si mesma e logo de saída a função sexualizada,
sem ter necessidade de nenhum intermediário, de nenhuma identificação com a mãe ou com
quem quer que seja” (Lacan, 1955-56/2002, p.233)

6
Na citação abaixo, Lacan faz referência ao desejo do outro, com minúscula, entretanto, utilizamos o Outro com
maiúscula uma vez que Lacan explicita no seminário em questão que, na psicose, o Outro está excluído em
relação ao significante, mas não está excluído em relação à lei, pelo contrário, encarna-se absoluto. Tal questão
será abordada mais adiante.

21
Da alienação radical que acontece na psicose decorre um aniquilamento do
significante. A partir desse aniquilamento, restarão as muletas imaginárias, isto é,
possibilidades de identificação imaginárias que podem, ao menos por um tempo, servir de
imagem, de cópia, na tentativa de saber o que é preciso fazer para ser homem – ou mulher.

A alienação é aqui radical, ela não está ligada a um significado aniquilante, como um certo
modo de relação rivalitária com o pai, mas com um aniquilamento do significante. Essa
verdadeira despossessão primitiva do significante, será preciso que o sujeito dela se
encarregue e assuma a sua compensação, longamente, na vida, por uma série de
identificações puramente conformistas a personagens que lhe darão o sentimento do que é
preciso fazer para ser um homem?
(...)
O que será que torna subitamente insuficientes as muletas imaginárias que permitiam ao
sujeito compensar a ausência do significante? (Lacan, 1955-56/2002, p.233)

Enquanto a diferença não aparecer, o sujeito pode utilizar a imagem do outro como
modelo. Entretanto, se a imagem captada é desmedida, se o outro se manifesta na ordem da
potência, sem a existência do pacto pai-filho, o que resta é a relação de rivalidade, de
agressividade e luta. Aqui, pode-se entender que há um lugar e duas pessoas para ocupar este
lugar, o que implica, logicamente, uma disputa.
Diferente do par significante, no qual a diferença entre pai e filho tem seu lugar, aqui a
diferença não pode existir. A alienação, portanto, é uma alienação à imagem, e não a um
significante. A alienação significante – aquela da neurose, que não ocorre sem a separação -
permitiria o deslizamento dos significados, suportando a diferença, mas a alienação
imaginária, sem o suporte simbólico, não permite esta dialética.
Não é à toa que o que estaria no cerne da entrada na psicose seria uma situação em que
o sujeito precise ‘tomar a palavra’: “o contrário mesmo de dizer sim, sim, sim à do vizinho”
(Lacan, 1955-56/2002, p.285). Assim, “o delírio começa a partir do momento em que a
iniciativa vem de um Outro, com um A maiúsculo”. (Lacan, 1955-56/2002, p.220)
O desencadeamento da psicose, portanto, se relaciona com um curto-circuito da
relação afetiva, um curto-circuito da relação triangular edipiana, o que faz da relação com o
outro, uma relação de puro desejo, uma relação dual, aquela que Freud tratou em termos de
homossexualidade. (Lacan, 1955-56/2002, p.343) Quando a referência imaginária do outro
não é suficiente, resta, do triângulo edípico, uma realidade tal qual a anterior ao primeiro
tempo do Édipo em que o sujeito, objetalizado, está à mercê do puro desejo desse Outro, um
desejo completamente desordenado.
Segundo Lacan (ibidem), “Freud supõe uma homossexualidade latente que implicaria
uma posição feminina – é aí que está o salto.” (ibidem, p.345). Ou seja, isso que Freud chama,

22
no caso Schreber, posição feminina, diz respeito não à feminilidade - que implica, para além
da passividade, uma atividade – mas à passividade do sujeito objetalizado, tal qual o objeto de
estupro ao qual Schreber se identifica. Seria, portanto, necessário abordar esta questão na
ordem simbólica, para entender que, “não é por estar foracluído do pênis, mas por ter que ser
o falo, que o paciente estará fadado a se tornar uma mulher” (1957-58/1998, p.571).
Entretanto, se o sujeito está fadado a esta posição feminina de objeto, é exatamente
pela recusa radical a uma posição feminina – no sentido da falta -, ou seja, a recusa à
submissão ao pai, recusa à castração que, no surto psicótico, retorna no real.
É por reconhecer a castração no Outro que - no segundo tempo do Édipo - a criança
fica submetida ao pai, isto é, à lei paterna. Mas, ao mesmo tempo, é por reconhecer o
impedimento do acesso da mãe à própria criança, que a primeira fica no lugar de objeto de
desejo e a criança poderá assumir uma posição masculina, ou seja, uma posição ativa, de
sujeito desejante. Assim, é na medida que falta algo, no Outro e, em conseqüência, nela
mesma, que a criança poderá advir enquanto sujeito do desejo.
A recusa ao pai, recusa à castração, ocorre na medida em que o sujeito não estabelece
a diferença pai-filho – que evoca o direito do pai e convida à busca do falo - mas apenas a
semelhança e a rivalidade da posição imaginária de objeto de desejo do Outro.

O que será que falta para que o sujeito possa acabar por ter necessidade de construir todo
esse mundo imaginário?
(...)
A constituição do sujeito na alusão imaginária, é este o problema que temos de fazer avançar.
(Lacan, 1955-56/2002, p.187)

Lacan (1955-56/2002, p.350) aponta para o fato de que, em Freud, a ideia da defesa
contra uma homossexualidade latente parte da ideia de um narcisismo ameaçado, sendo a
megalomania um mecanismo que responde ao temor narcísico – temor este que é, em última
instância, o temor à castração. Ele acrescenta, ainda, que é só em torno da suposição do falo
no pai que se instala o temor da perda do falo na criança. (Lacan, 1955-56/2002, p.358). O
que falta, portanto, é o significante que instaura a diferença, o significante do Nome-do-Pai,
que frustra o sujeito por um lado, mas abre o acesso ao desejo por outro.
Vale destacar que isto que Lacan chama aqui temor narcísico ou temor à castração,
não é equivalente ao temor a Deus. Enquanto o temor narcísico se refere ao eu, ao pai
imaginário, o temor a Deus se refere a uma ordenação do mundo, a um pai simbólico.
O temor a Deus, enquanto algo que organiza e concentra os perigos do mundo, não
existe na estruturação psicótica. O Deus de Schreber é um Deus que tem o poder de destruí-lo,
que tem o poder de intervir no mundo, entretanto, não é um Deus que organiza o mundo, que

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garante essa ordem. Tanto que é preciso que ele intervenha junto a Deus para reorganizar o
caos mundano, procriando uma nova raça junto a ele. Entretanto, ainda que carente, esse Deus
é poderoso: tem o poder de garantir-lhes a vida ou a morte. Sendo assim, em que tipo de
relação entra essa figura paterna que é a de Deus? Seria esse Deus portador de falo? Haveria
aí, nessa relação, o temor à castração?
Lacan sublinha que “efetivamente jamais se trata de castração em Schreber” (Lacan,
1955-56/2002, p.351). Mesmo a transformação em mulher, tema central de seu delírio, “não é
absolutamente castração” (Lacan, 1955-56/2002, p.351). Se “a função do pai é tão exaltada
em Schreber” (p.353), que exige nada menos que Deus para ocupar este lugar, entretanto, é
uma função paterna imaginária. Afinal, como Lacan chama a atenção, na perspectiva
freudiana a função do pai é indissociável do complexo de castração. O terceiro, nesta
perspectiva, carrega um elemento significante irredutível a uma abordagem imaginária.
(Lacan, 1955-56/2002, p.354)
Desta forma, a megalomania entra, nessa relação, como uma defesa à castração. Não
se trata, portanto, de reconhecer a castração, mas de negá-la radicalmente. Esta relação,
portanto, entre a paranóia e o pai, se coloca no nível imaginário.
Pergunta-se, a partir do exposto, como seria a relação de Alberto com esse outro de
seu delírio. Se por um lado o deus de Alberto é poderoso, podendo tirar-lhe a vida a qualquer
momento, por outro, Alberto precisa auxiliá-lo, vindo não em suplemento, mas em
complemento, em sua função de prover o mundo de águas. Desta forma, o Deus de Alberto
parece também ele estar no nível imaginário, não sendo aquele que outorga a lei, mas aquele
que exerce uma lei de caprichos. Se Alberto se coloca ao lado de Deus nessa relação de
complementaridade, parece-nos ser exatamente em uma relação narcísica que ele se encontra,
em uma relação de paridade e, por conseqüência, de rivalidade.
Desta forma, na psicose, quando se fala em carência paterna, está-se falando em
carência de uma ordem simbólica ordenada pelo Nome-do-Pai. Ordem que foi em algum
momento rejeitada. E é dessa rejeição que se trata a seguir.

b) A Verwerfung freudiana e a Foraclusão do Nome-do-Pai

No século XVI, Erasmo de Rotterdam (1511/2005), em seu Elogio da loucura, nos diz
que a loucura surge diante das coisas que o sujeito não suporta enfrentar, tais como a velhice,
a morte, a traição, etc., - e que pode-se condensar no termo castração. Em seu elogio ele vem

24
dizer que a loucura é o que, muitas vezes, possibilita ao ser humano suportar a vida. Falando
em primeira pessoa, enquanto a própria loucura, diz que é graças a si (ou seja, à loucura) que
as pessoas podem viver sem enxergar suas desgraças e assim serem felizes. E compara a
loucura ao enganar-se, ao pensar-se grande, poderoso, ao não reconhecer o não sentido da
vida.
Enfim, essa mentira sobre o impossível, necessária à vida, e tão bem ilustrada por
Erasmo, pode ser compreendida como o recalque freudiano. Uma mentira em relação à
castração.
Entretanto, se a mentira é a negação de algo, atrás do processo de recalque seria
necessária uma afirmação primordial, ou seja, uma simbolização primordial (a do Outro,
como foi visto) que possibilita a negação e, assim, o reconhecimento da falta, o que torna o
recalque e o retorno do recalcado o direito e o avesso de uma mesma coisa (Lacan, 1955-
56/2002). Sem esta inscrição, Bejahung primordial, não é possível haver a negação
primordial, Ausstossung. Entretanto, há uma espécie de negação muito mais radical que o
recalque. Uma rejeição cujo retorno aconteceria no Real.
A loucura descrita por Erasmo (1511/2005) - embora possa ser a loucura do dia-a-dia,
a loucura da fantasia neurótica - também se aproxima da psicose enquanto paranóia, isto é,
enquanto sentido dado às irrupções de Real que a vida oferece. Para ele, a loucura é o
conhecimento, é o entender o motivo da vida, as regras da física, os mistérios do mundo, isto
é, a loucura é o sentido dado ao não-senso.
Assim, a construção delirante, paranóica, seria o exemplo mais radical da loucura tal
qual a entende Erasmo. Já a psicose em seu momento de desencadeamento, na via dos
fenômenos esquizofrênicos, seria seu avesso. Ela estaria exatamente onde a função da loucura
- como a entende Erasmo - não teria dado conta: as alucinações verbais são um bom exemplo
daquilo de insuportável que, tendo sido rejeitado, retorna no Real.
O retorno dessa rejeição é observado por Freud (1918) no caso do Homem dos lobos,
no momento em que, vivenciando, quando criança, a alucinação de ter o dedo cortado - e não
conseguindo falar sobre sua experiência – o Homem dos Lobos demonstra que, na psicose, a
castração retorna desde fora, no Real. Mas é Lacan quem chama a atenção para este
mecanismo específico:

Ele sentou-se em seguida num banco, ao lado de sua ama, que é justamente a confidente de
suas primeiras experiências, e não teve a coragem de falar com ela sobre isso. Quão
significativa esta suspensão de toda possibilidade de falar – e precisamente com a pessoa a
quem ele falava de tudo. (Lacan, 1955-56/2002, p.22. [grifo nosso])

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O que há de tangível no fenômeno de tudo o que se desenrola na psicose é que se trata da
abordagem pelo sujeito de um significante como tal, e da impossibilidade dessa abordagem.
Não torno a voltar à noção da Verwerfung de que parti, e para a qual, tudo bem refletido,
proponho que vocês adotem definitivamente esta tradução que creio ser a melhor – a
foraclusão. (Lacan, 1955-56/2002, p.360)

O termo francês forclusion é um termo do direito que equivale em português à


prescrição, ou seja, a um acontecimento que perdeu o prazo para ser reclamado na justiça. No
entanto, em francês ele também é uma forma de negação, na qual o sujeito desconsidera um
determinado fato completamente. (Quinet, 2003)
Na relação simbólica do sujeito pode ocorrer, ali onde ocorreria a Bejahung -
afirmação primordial - uma Verwerfung – rejeição. Cada uma destas operações implica
diversos destinos.
Bejahung-Ausstossung – isto é, afirmação-expulsão - são termos destacados em Freud,
no artigo A negativa (1925), e se referem à função do julgamento, a qual é dividida em duas
decisões. A princípio, haveria o juízo de atribuição, ou seja, o juízo daquilo que seria bom (o
que causa prazer) - sendo, em conseqüência, introjetado pelo eu - ou mau (o que causa
desprazer) - sendo expulso do eu. “A partir do ego-prazer inicial” se desenvolveria “a outra
espécie de decisão tomada pela função do julgamento” (Freud, 2006/1925, p.267) – aquela
que trata da existência, na realidade, daquilo que foi representado, como bom ou mal. O
objetivo primeiro desse teste de realidade seria “reencontrar tal objeto, convencer-se de que
ele está lá” (idem). Vale destacar a afirmativa de Freud de que “é evidente que uma
precondição para o estabelecimento do teste de realidade consiste em que objetos, que outrora
trouxeram satisfação real, tenham sido perdidos” (ibidem, p.268), ou seja, é preciso que a
falta seja reconhecida.
No Comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung, feito a pedido de Lacan,
Hyppolite esclarece que para compreender o artigo de Freud seria “preciso considerar a
negação do juízo atributivo e a negação do juízo de existência como estando para-aquém da
negação no momento em que ela aparece em sua função simbólica.” (Lacan, 1998, p.898).
Entende-se que essa negação enquanto função simbólica diz respeito ao recalque. Ele também
enfatiza a prova da representação da realidade na repetição que caracteriza a busca ao objeto
perdido.
Dessa maneira, toda apreensão humana da realidade seria correlata da condição
primordial de que o sujeito está na busca do objeto de seu desejo, o qual se presentifica
apenas como ausência, isto é, como falta. O princípio de realidade consiste precisamente em
que o objeto do desejo, perdido miticamente, jamais será reencontrado. O sujeito encontra

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apenas um outro objeto, que o satisfaz parcialmente. E nisso se constitui a dialética entre
princípio de prazer e princípio de realidade (Lacan, 1955-56/2002p.101-102).
Lacan (1998/???, p.389) em Resposta ao comentário de Jean Hyppolite chama a
atenção que quando se trata de abolição simbólica – isto é, foraclusão - não se pode dizer que
nenhum juízo de existência tenha sido feito, mas que é como se ele nunca tivesse existido. E
afirma que “a Verwerfung, portanto, corta pela raiz qualquer manifestação da ordem
simbólica, isto é, da Bejahung que Freud enuncia como o processo primário em que o juízo
atributivo se enraíza” (ibidem, p.389).
Por um lado, o sujeito do desejo tenta se guiar através de uma Lei fundamental, que “é
simplesmente uma Lei de simbolização. É o que o Édipo quer dizer” (Lacan, 1955-56/2002,
p.100), entretanto, por outro lado, pode ser que essa Lei de simbolização não ocorra, que ela
seja rejeitada.

Previamente a qualquer simbolização - essa anterioridade não é cronológica, mas lógica – há


uma etapa, as psicoses o demonstram, em que é possível que uma parte da simbolização não
se faça. Essa etapa primeira precede toda a dialética neurótica que está ligada ao fato de que
a neurose é uma palavra que se articula na medida em que o recalcado e o retorno do
recalcado são uma só e mesma coisa. Assim pode acontecer que alguma coisa de primordial
quanto ao ser do sujeito não entre na simbolização, e seja, não recalcado, mas rejeitado.
(Lacan, 1955-56/2002, p.97)

Vimos que o Édipo é o complexo em que o sujeito reconhece as leis que lhe permitem
fazer parte do laço social: a proibição do incesto, esta que, através do significante, desdobra a
fêmea em mãe - aquela que não pode ser objeto de satisfação sexual – e mulher - aquela que
pode; e a proibição do parricídio, que desdobra o macho em pai – aquele que não pode ser
objeto de rivalidade – e homem – aquele que pode.
É o significante primordial, o Nome-do-pai, um significante mítico (1955-56/2002,
p.175) ao qual o Outro está referido, e que é o único capaz de outorgar a Lei simbólica ao
sujeito, que será rejeitado na psicose.

“De que se trata quando falo de Verwerfung? Trata-se da rejeição de um significante


primordial em trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível. Eis o
mecanismo fundamental que suponho na base da paranóia. Trata-se de um processo
primordial de exclusão de um dentro primitivo, que não é o dentro do corpo, mas aquele de
um primeiro corpo de significante.” (Lacan, 1955-56/2002, p.174)

Portanto, a estrutura psicótica se funda em uma negação radical à função paterna, em


uma recusa ao pai enquanto pai simbólico, aquele que outorga a Lei. E a transmissão dessa
Lei, essa recusa paterna, seria devida àquilo que, em De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose, Lacan (1998) chama, Um-pai: “Basta que esse Um-pai se

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situe na posição terceira em alguma relação que tenha por base o par imaginário a-a’, isto é,
eu-objeto ou ideal-realidade, concernido ao sujeito no campo de agressão erotizado que ele
induz.” (ibidem, p.584).
Didier-Weill (1997) explicita que o Um-pai designaria “uma função através da qual o
pai intervém na transmissão da lei simbólica” (p.143-144). Assim, é preciso que esse Um-pai
se situe em uma relação terceira do par imaginário para transmitir a Lei simbólica, como
convém ao Nome-do-Pai.
O Um-pai seria aquele que torna “transmissível, através do temor, o significante
siderante do Nome-do-Pai.” (P.149) Temor que não é o temor à castração – temor aos deuses –
mas sim o temor a Deus, já que o primeiro transmite o sentimento de terror, de pânico,
enquanto o segundo condensa em si os temores de todo o mundo.
Assim, se é preciso que a mãe faça apelo à palavra do pai, dando-lhe valor, Didier-
Weill (1997) salienta que é necessário também, que este Um-pai esteja presente,
diferenciando-se do pai real e apontando para o Nome-do-Pai. “Que o falo do pai real deva
dizer a lei para simbolizar essa procriação, eis a tarefa do ‘Um-pai’” (ibidem, p.148).
Caminhando teoricamente nesse sentido, o autor diferencia a perversão estrutural, isto é, a
pére-version, que localiza a mãe como objeto de desejo do pai, da perversão indutora de
foraclusão, “quando o Um-pai não introduz o simbólico mas interrompe sua transmissão.”
(ibidem, p.145). O autor exemplifica tal questão com o fragmento de uma mãe que, no parto,
vendo seu bebê recém-chegado ao mundo, pergunta ao parteiro que estava a seu lado “Quem
é?”, ao que o parteiro responde com o gesto de colocar o sexo da menina ante o olhar da mãe.
Ali, o parteiro, que não pôde acolher esse apelo simbólico, interrompe a transmissão que seria
a da filiação: no lugar de uma palavra potencialmente carregada de sentido, instala-se um
olhar fixante, intransmissível, intransmutável, intransponível.

“é preciso que haja entre o grande ‘Ele’ que é o Outro e o grande ‘eu’ que é o sujeito por vir,
a intercessão de um ‘você’ pela qual o ‘Um-pai’ constitui essa presença que, recebendo o
apelo do Outro: ‘Você será aquele que será pai’, o repercute como um: ‘ Você será aquele que
será meu filho ou minha filha’” (ibidem, p.145)

A necessidade desse Um-pai na transmissão da metáfora paterna seria devida à própria


estrutura do desejo. Da mesma forma que é necessário uma estrutura quaternária para
transmitir um chiste - ou seja, além daquele que fala, daquele que é falado e da palavra falada,
é necessário o Outro para atestar a compreensão do sentido subjacente, isto é, do passo-de-

28
sentido7 - é necessário também essa mesma estrutura para transmitir a metáfora paterna, ou
seja, o Nome-do-pai. Esse quarto elemento, para além da mãe, da criança e do significante,
seria o Um-pai.
Vejamos, portanto, as conseqüências dessa recusa paterna para a estrutura psicótica e,
em seguida, como o delírio se destaca, não apenas como conseqüência, mas também como
tentativa de cura.

c) Os fenômenos elementares da psicose.

Quando, na neurose, algo não se encaixa na cadeia simbólica estabelecida - porque a


posição em que o sujeito se encontra comporta um sacrifício impossível no plano das
significações - ou seja, quando um conflito psíquico se estabelece, o sujeito recalca este
acontecimento - isto que não se encaixa na cadeia. Mas a cadeia continua a correr, cobrando
sua dívida e assinalando este buraco através do sintoma neurótico. (Lacan, 1955-56/2002,
p.101) Se este sintoma for tomado como mensagem, o sujeito pode localizar aí seu desejo e,
então, ser “chamado a renascer para saber se quer aquilo que deseja...” (Lacan, 1960/1998, p.
689).
Já no fenômeno psicótico, o acesso ao conflito fica impossibilitado. O que ocorre é o
encontro com uma significação que não se encaixa na cadeia, que não se liga a nada - por não
ter sido simbolizada – e que ameaça a ordem com que foi construída, até então, a realidade.
(Lacan, 1955-56/2002, p.102)
Por não poder refazer o pacto simbólico entre o próprio sujeito e o Outro, entre a
cadeia e o que há de novo, por não conseguir encaixar essa diferença através da mediação
simbólica, a mediação que ocorre é através da proliferação imaginária.
Segundo Lacan (1955-56/2002) o ego nunca estaria totalmente só, uma vez que
comporta sempre o eu ideal, uma espécie de gêmeo, reflexo que surge na dialética do
narcisismo, e que, na psicose, fala. O eu ideal, na psicose, comporta uma “fantasia falada”,
diferente da fantasia neurótica - que embora exista e insista através do sintoma, é calada.

7
No seminário As formações do inconsciente, mesmo seminário que Lacan apresenta longamente os três tempos
do Édipo, é apresentado um abrangente estudo sobre o chiste, de onde surge o termo pas-de-sense que traz, na
ambigüidade francesa do pas, a própria estrutura do chiste: do não ao passo de sentido. Ou seja, para que um
chiste ocorra, é preciso haver tal qual na metáfora, a crença em um significado subjacente àquele sem sentido
inicial que se apresenta.

29
Através do fenômeno das alucinações verbais é possível observar a diferença entre o
sujeito que fala concretamente, que sustenta o discurso e o sujeito inconsciente, que aparece
literalmente no discurso alucinatório. O sujeito inconsciente, nas alucinações verbais, aparece
não num além, mas num aquém do outro – uma vez que o outro não está presente, que não há
dialética. Ele aparece, pois, no que Lacan chama de “uma espécie de além interior”. (Lacan,
1955-56/2002, p.144)
O sujeito normal é este capaz de não levar a sério seu discurso interior – ou pelo
menos a maior parte - como nos diz Lacan (1955-56/2002, p.144). E esta seria talvez a
primeira diferença a ser estabelecida entre o alienado e os outros. Dessa forma, a relação do
sujeito a esse discurso interior que é o Outro seria o ponto fundamental na distinção entre
psicose e neurose.
Pompeu (1983), um sujeito psicótico, cujo livro sobre a loucura será mais bem
discutido no terceiro capítulo, define tal situação da seguinte forma: “Ele [o louco] tende a
acreditar que tudo que lhe passa pela cabeça tem existência real, fora dele. (...) É nisso que
consiste a loucura: em acreditar nas produções do inconsciente” (Pompeu, 1983, p.22).
Chama-se a atenção, portanto, para o núcleo delirante, um núcleo que pode até parecer
compreensível, ou seja, que pode demonstrar a preservação das faculdades mentais, mas que
tem seu interesse, não nesse fato, mas no fato de ser inacessível a qualquer dialética. (Lacan,
1955-56/2002, p.31)
E é a partir deste ponto, da falta de dialética, que paranóia e esquizofrenia podem se
reaproximar. Os fenômenos elementares funcionariam como elementos a partir dos quais seria
possível identificar uma estrutura, tal qual é possível, em biologia, identificar uma espécie ou
uma família de plantas a partir da observação de uma folha e dos elementos específicos
existentes ou não nela.
Elementos aparentes opostos, como a rigidez de uma certeza delirante, em que há uma
significação plena e a labilidade da desestruturação esquizofrênica em que o significante não
remete a significado algum, podem ser aproximados: em ambos os casos, a dialética
significante-significado não funciona. Veríamos aqui, portanto, o direito e o avesso de uma
mesma moeda, o que vai na mesma direção já apontada por Freud, ao defender o termo
parafrenia, em detrimento à divisão nosológica radical entre esquizofrenia e paranóia.
Como foi visto no primeiro capítulo, com a psiquiatria clássica - anterior à Kraepelin –
identificava-se no estudo evolutivo das psicoses uma unidade entre as fases iniciais da
enfermidade, comumente referida pelos profissionais da área como surto esquizofrênico e as
fases posteriores, em que o delírio é sistematizado, ou seja, a fase paranóica.

30
Portanto, o que deve chamar a atenção nos fenômenos psicóticos não é a confissão do
sujeito de que ele está ouvindo algo não partilhável, mas a certeza do sujeito de que aquilo de
que se trata – alucinação ou interpretação – lhe concerne. É essa certeza em relação a si
próprio, essa ‘crença nas produções do inconsciente’, que diz respeito aos fenômenos
elementares, seja aqueles do momento da irrupção da psicose, seja os de uma crença delirante
sistematizada.
Nesses dois fenômenos tão próprios à psicose, a saber, alucinação e delírio, ressalta-se
o quanto eles revelam da estrutura da linguagem. Se de um lado a alucinação traz a dimensão
do enigma, da perplexidade e do não-senso próprios da dimensão significante; de outro lado,
o fenômeno delirante traz a dimensão oposta, do conhecimento, da resposta, do sentido,
próprios à dimensão do significado.
O enigma principal de todo sujeito diz respeito ao ser: “de onde vim?”, “pra onde
vou?”, “quem sou eu?”. Perguntas às quais a ordenação significante-significado não dão conta
de responder, podendo, no máximo, fazer borda. Na psicose, entretanto, essas questões
parecem retornar: no período do desencadeamento, em caráter de enigma absoluto; e, no
período de sistematização delirante, em caráter de resposta absoluta:

Dois estilos se opõem, dois alcances. De um lado, a escansão, que joga sobre as propriedades
do significante, com a interrogação implícita que ela comporta, e que vai até a coerção. Por
outro lado, o sentido que tem por natureza ocultar-se, acusar-se como algo que se oculta, mas
que se põe ao mesmo tempo como um sentido extremamente pleno cuja fuga aspira o sujeito
em direção ao que seria o cerne do fenômeno delirante, seu umbigo. Vocês sabem que este
último termo, umbigo, é empregado por Freud para designar o ponto em que o sentido do
sonho parece acabar num buraco, um nó, além do qual é verdadeiramente no cerne do ser
que parece se prender o sonho. (Lacan, 1955-56/2002,p.294)

É dessa forma, entre estes dois pólos, entre o puro significante e o pleno significado,
que os psicóticos constroem sua empreitada: “a função deles é a de compreender algo sobre o
que eles não compreendem nada”. (Lacan, 1955-56/2002,p.297)
Na psicose, portanto, não há uma dialética significante-significado, mas uma divisão
radical, na qual o caráter significante daquilo que bordeja a pergunta sobre a existência do ser
foi rejeitado.
É essa relação com o significante que determina a ênfase que vai assumir para o sujeito a
primeira parte da frase, tu és aquele que..., segundo a qual a parte significante terá sido para
ele conquistada, e assumida, ou ao contrário verworfen, rejeitada. (Lacan, 1955-56/2002,
p.318)

Esse significante é o significante “ser pai” (Lacan, 1955-56/2002, p.319), significante


que nomeia o par pai-filho, estabelecendo uma diferença simbólica naquilo que anteriormente

31
seria apenas identificação narcísica e, mais que isso, possibilita, tal qual no terceiro tempo do
Édipo, o advento do desejo, desejo de ser, ele também, pai. Sem este significante, nomeador,
a alteridade é “reduzida ao registro único da alteridade absoluta” (Lacan, 1955-56/2002,
p.319), ou seja, sem este registro do Ideal, quando algo da diferença se evidencia naquilo que
era apenas semelhança, o pólo do amor narcísico se transforma em seu avesso, o ódio. É,
portanto, em torno desse significante fundamental rejeitado que giram todos os termos do
delírio, isto é, tudo aquilo que tenta dar conta de alguma diferença que se evidencia e que não
encontra seu lugar na ordem imaginária.
Aquilo que é rejeitado no simbólico, retorna no real. E parece retornar a partir daquilo
que Lacan chama evocação, e que concorda, não com o sujeito da frase, mas com o objeto:
“tu és aquele que é, ou será, pai.”. Em Schreber, Lacan nos diz que “é obrigatoriamente pela
relação puramente imaginária que deve passar o registro do tu no momento em que ele é
evocado, invocado, chamado pelo campo do Outro, através do surgimento de um significante
primordial, mas excluído para o sujeito.” (ibidem, p.343)
A questão da existência do ser, da procriação e da morte, está essencialmente ligada ao
“ser pai”: “É preciso um efeito de retorno a fim de que o fato de copular para o homem receba
o sentido que ele tem realmente, mas ao qual nenhum acesso imaginário é possível, o de que a
criança seja tanto dele quanto da mãe.” (Lacan, 1955-56/2002, p.330) A experiência da
couvade8 denotaria essa necessidade, de realizar ritualmente “a segunda parte do caminho”
(p.330), parte essa que corresponde, não à compreensão de que uma criança é gerada pela
copulação (função do homem), mas a compreensão de que esta criança pertence também ao
pai. A localização do pai enquanto função simbólica, isto é, o Nome-do-Pai, portanto, é o que
permite ao sujeito a possibilidade deste significante que entra no lugar de Ideal, o significante
ser pai, significante que nomeia o sujeito e ao qual Lacan (1973-74/inédito) chamará, em
seminários posteriores, a função Pai-do-Nome, ou seja, aquele que invoca o sujeito, aquele
que o nomeia a ser alguma coisa.
Alucinação e delírio, portanto, são fenômenos elementares, que giram em torno deste
significante foracluído, ser pai, significante que nomeia o sujeito a ser alguma coisa. Em
ambos os casos este significante nomeador do sujeito parece retornar desde fora, entretanto,
de formas distintas.
A alucinação pode ser localizada, como foi visto, no pólo da dimensão de puro
significante, colocando o sujeito numa posição de puro objeto. Perplexo ante a falta de
significação, o sujeito fica numa posição passiva, sem ação possível ante o desconhecido.
8
Ver nota p. 15

32
“Tentem imaginar em conseqüência o que pode ser a aparição de um puro significante.”
(Lacan, 1955-56/2002, p.227)
Já o fenômeno delirante, que se localiza no pólo oposto do par significante-significado
- ou seja, no pólo da significação – possibilita ao sujeito uma posição ativa. Através da
significação delirante, alguma ordem pode ser estabelecida na realidade do sujeito. O delírio,
portanto, se aproxima da alucinação enquanto fenômeno elementar, mas difere dela por ser
também uma tentativa de cura.

2.3.2 O delírio como função

a) O delírio como suplência: uma lei imaginária

Freud já indicara que o delírio é uma tentativa de cura. Lacan, sobretudo em seu
seminário As psicoses, explicita a estrutura do delírio enquanto função. Segundo ele, o
diálogo do delírio seria o único pelo qual o psicótico poderia sustentar em si uma
intransitividade do sujeito. “Penso, logo existo, dizemos intransitivamente. (...) Essa é a
dificuldade para o psicótico”. (Lacan, 1957-58/1999, p. 14)
Desta forma, entende-se que a função do delírio se relaciona à questão da existência
que, como foi visto, na psicose, não é bordejada por um Ideal simbólico – tal qual acontece na
neurose, na qual a impossibilidade de significação da existência é mantida, ainda que
disfarçada pelo Ideal –, mas pode ser “respondida” pela significação delirante, que surge,
como Lacan (1953/54-1986) nos indica, sustentada pelo simbólico – “um simbólico marcado
de irreal”(p. 139-, já que é através das palavras, dos significantes, que as construções
delirantes surgem e se sustentam.
Quando o psicótico se encontra em uma posição na qual não há imagem especular a
ser seguida, a falta do Ideal de eu se escancara. Não havendo pares na posição que ele ocupa,
o sujeito fica sem imagem a ser copiada e, não havendo Ideal a ser perseguido, o sujeito fica
sem rumo, vagando pela vida, com seu mundo desmoronado. Aqui, o pólo do puro
significante se evidencia. E é neste desarranjo da ordem que o surto pode ser localizado. Em
Schreber, esse desarranjo se dá quando ele se vê eleito Juiz Presidente, ao mesmo tempo em
que é privado de ser pai. O delírio, pois, tentará reconstituir a ordem anterior, privilegiando o
campo do sentido, ainda que, vale lembrar, sustentado pelo significante.

33
No momento do surto psicótico, evidencia-se um gozo desgovernado, sem Lei, como
se pode constatar na obra do próprio Schreber que, no capítulo sobre a Onipotência divina e
livre-arbítrio humano de suas Memórias de um doente dos nervos, nos diz que, a partir de
suas experiências, pôde concluir que quando a obra da criação terminou Deus retirou-se para
longe e abandonou o mundo às suas próprias custas, às custas de suas próprias leis, realizando
um ou outro milagre apenas.
Nas vivências psicóticas, os dois pólos da dialética significante ficam em evidência: na
vivência esquizofrênica, o sujeito fica à deriva, preso à estrutura do puro significante, aquele
que não remete a significação alguma; na vivência paranóica, diferentemente da errância
esquizofrênica, o sentido da existência não surge a partir de um significante, passível de
infinitas significações, mas retorna desde fora, a partir de um significante cristalizado,
impondo um sentido unívoco para a vida deste sujeito. (Lacan, 1973-74/inédito) É após o
encontro com algo de inassimilável, ou seja, um encontro com o Real, que o delírio virá com
sua função: fazer frente a essa falta de significantização. Ele virá, portanto, em suplência à
metáfora paterna, aquela que significantiza o ser.
Assim, por constituir o sujeito, ainda que precariamente, Lacan (1998/1957-58)
denomina – em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose - a
construção paranóica de “metáfora delirante” (ibidem, p.584). “Assim como todo discurso, o
delírio deve ser julgado em primeiro lugar como um campo de significação que organizou um
certo significante” (1955-56/2002, p.141).
A metáfora delirante viria em suplência à ausência da metáfora paterna – fundadora do
sujeito do desejo, sujeito do inconsciente. A primeira compensaria, a seu modo, a falta da
última; mas não sem conseqüências. Entende-se que o delírio viria, não para significantizar a
questão do ser, mas para significá-la: “ali onde faltava o falo vem uma significação de
suplência” (Soler, 2007, p.201). A evolução da psicose nos indica estes dois pólos opostos que
o sujeito pode se colocar: do significante puro ao significado cristalizado.

A partir da estrutura do delírio de Schreber é possível perceber que, se na fase de


irrupção da psicose o sujeito fica objetalizado ante o Outro, no momento da estabilização há
um sistema que liga o eu do sujeito ao outro imaginário - que, aqui, será esse Deus que
enganava o sujeito, que não o compreendia – e que passa, com a estruturação9 delirante, a ser
remetido a uma ordem superior.

9
Utilizamos aqui a palavra estruturação já que Lacan nos diz que o delírio não acontece por dedução e nem tão
pouco por construção, mas que ele será estruturado (ibidem, p.65 e p.248).

34
Lacan (ibidem) nos adverte que embora seja o mecanismo imaginário que dê forma à
alienação psicótica, não é ele o responsável por sua dinâmica. Seria na relação do sujeito ao
Outro que a dinâmica delirante poderia ser abordada (Lacan, 1955-56/2002, p.170). Como
fica, portanto, na paranóia, a relação entre o sujeito e o Outro, uma vez que a ordem que as
regularizaria, ou seja, a função paterna, não comparece?
No campo da neurose, deus está morto, ou seja, colocado no lugar de uma Lei
universalizada pelo significante, isto é, uma Lei que não é déspota, mas cuja ordem mantém
uma estrutura perene. Por outro lado, na dimensão psicótica da lei, não há, ao menos a
princípio, uma ordem que se estabeleça acima da vontade, acima do gozo. A metáfora
delirante surge exatamente em suplência a tal questão, como será visto a seguir.
Desse modo, inicialmente, o Deus de Schreber - muito diferente do Deus monoteísta
do temor a Deus - não reúne em si os perigos do mundo, não rege as leis do universo – aliás,
Schreber sequer sabe se os “corpos cósmicos” teriam ou não sido criados por Deus. (Schreber,
2002, p.198). Na irrupção da psicose não há, portanto, entre esse Outro que, tantas vezes é
encarnado por Deus, e a humanidade, a relação do temor a Deus ou, muito menos, a relação
de amor a Deus. Pelo contrário, o que há nessa fase da psicose paranóica é uma relação de
rivalidade, na qual um ameaça a existência do outro.
Se pensarmos nas interpretações delirantes, sobretudo as de caráter persecutório, é
possível entender que, não só nas alucinações verbais, mas também na interpretação delirante,
aquilo que é dito, é dito pelo outro: o outro da rivalidade. É assim que na interpretação
delirante a dimensão da rivalidade está em voga a todo instante. O uso de um simples óculos
escuros, por exemplo, pode ser interpretado como a significação do desejo de um outro de
matar o sujeito em questão. Dessa forma, na psicose, o Outro está excluído do significante,
mas não da lei, a qual ele encarna, absoluto.

Esta exclusão no nível do Outro é exatamente o que implicaria a desorganização


significante própria ao surto psicótico e a qual a estruturação delirante virá em suplência:

Suponho que o sujeito reage à ausência do significante pela afirmação tanto mais reforçada
por um outro que, como tal, é essencialmente enigmático. O Outro, com um A maiúsculo, eu
lhes disse que ele estava excluído, enquanto detentor do significante. Por isso ele é tanto
mais potentemente afirmado, entre ele e o sujeito, no nível do outro com minúscula, do
imaginário. (Lacan, 1955-56/2002, p.221)

a falta de um significante leva necessariamente o sujeito a reconsiderar o conjunto do


significante.
Eis a chave fundamental do problema da entrada na psicose, da sucessão de suas etapas e de
sua significação. (Lacan, 1955-56/2002, p.231)

35
há para ele [Schreber] um outro, um outro singularmente acentuado, um Outro absoluto”
(...) “Há um Outro, e isso é decisivo, estruturancial (Lacan, 1955-56/2002, p.309).

O buraco no nível do Outro se identifica na falta do significante que constitui a relação


do sujeito com a realidade, ou seja, o Nome-do-Pai, aquele que outorga a Lei. Não havendo
tal significante, o sujeito precisa se estabelecer nisso que Lacan chama da dimensão
imaginária da lei e que nos parece, em Schreber, estar relacionada ao que ele próprio
denomina a “Ordem do Mundo”. Lacan nos indica (1955-56/2002, p.248) que a ordem do
universo tem, para Schreber, uma “noção fundamental na estruturação de seu delírio.” (Lacan,
1955-56/2002, p.248). Esta ordem estaria indo bem até a tentativa de assassinato de sua alma,
mas seria restabelecida num segundo momento, com a construção delirante de ser a mulher de
Deus com o objetivo de procriar uma nova raça.
É importante destacar que, à “ordem do mundo”, até mesmo Deus estaria referenciado,
o que nos denota seu estatuto de lei. Entretanto, como nos aponta Lacan (ibidem), uma lei
imaginária. O estatuto imaginário desta lei pode ser observado no trecho a seguir, em que
Schreber a descreve. Chama-se a atenção para a posição especular – rivalitária – em que Deus
se encontra, sendo colocado como semelhante aos homens. Atenta-se também para a lei que
rege o mundo, a Ordem do Mundo, que estaria, em Schreber, acima da disputa rivalitária, mas
sempre referenciada à significação e não ao significante, tal qual ocorre no temor a Deus:

Que o próprio Deus fosse cúmplice do plano que visava o assassinato de minha alma e o
abandono do meu corpo como prostituta feminina, é um pensamento que só muito mais tarde
se impôs a mim.
(...)
O plano (...) foi inspirado por aquele instinto de conservação que em Deus é tão natural
quanto em qualquer outro ser vivo – um instinto de conservação que (...) de fato deveria em
certos casos compelir Deus a visar a aniquilação não apenas de indivíduos, mas também de
corpos celestes inteiros. (...) De resto, em todo o domínio do mundo criado ninguém
considerará imoral – sem que isso entre em contradição com a Ordem do Mundo – o fato de
que o mais forte domine o mais fraco, o povo de civilização superior expulse de seus
territórios os de cultura inferior, o gato coma o rato, a aranha mate a mosca etc. O conceito
de moralidade existe exclusivamente no interior da Ordem do Mundo, isto é, do vínculo
natural que liga Deus com a humanidade; uma vez quebrada a Ordem do Mundo, resta
apenas uma questão de poder, na qual quem decide é o direito do mais forte. No meu caso, o
atentatório do ponto de vista moral consistia no fato de que o próprio Deus se colocasse
fora da Ordem do Mundo, válida também para Ele. (...) A Ordem do Mundo conserva toda a
sua grandeza e sublimidade à medida que, num caso tão contrário às regras, nega até o
próprio Deus os meios de poder adequados para atingir um objetivo que a contradiga.
Fracassaram todas as tentativas de cometer assassinato de alma, de emasculação para fins
contrários à Ordem do Mundo (isto é, para satisfação do desejo sexual de um ser humano).
(Schreber, 2006, p.70) [grifos nossos]

Em nota, Schreber acrescenta que a emasculação para um outro fim será concebível,
sendo, em suas próprias palavras, a “provável solução do conflito” (Schreber, 2006, p.70).

36
Dessa forma, a construção delirante de Schreber parece submeter Deus a uma ordem, a
uma lei, acima dele, e uma lei reguladora do gozo sexual. Qual seria, porém, a diferença
estrutural entre esta lei e a Lei proibidora do incesto – que também é reguladora do gozo
sexual?
Na “Ordem do Mundo” schrebiana não se pode identificar uma lei universal, que
ordene o gozo – tanto em relação ao sexo quanto em relação à morte - entre os sujeitos,
estabelecendo quando isso seria possível e quando não seria. Aqui, o que torna possível ou
não esse gozo não é uma ordem significante - uma ordem simbólica, estrutural, universal -
mas um significado - um sentido. Deus pode utilizar-se de Schreber, desde que em prol de um
sentido, que nesse caso é o sentido assintótico da procriação de uma nova raça. Assim, tal
qual na metáfora da rosa, em que um sentido subjacente aparece, do mesmo modo, no delírio,
surge o retorno de um sentido – este, entretanto, retorna desde fora, localizado no Outro,
como será visto a seguir.
Sem esse significante paterno, que ordena a existência do ser, essa problemática
retorna no Real: no tema do sexo ou em seu avesso, isto é, a morte; ambos, no final das
contas, em referência ao enigma da existência do ser. A partir dessa carência paterna resta ao
sujeito a tentativa de estruturação de uma ordem delirante.
Foi visto, portanto, a importância que a estruturação delirante exerce sobre a
organização da realidade para o sujeito, o que nos esclarece o porquê de o psicótico amar seu
delírio como a ele mesmo. É através dessa significação do ser, e não significantização, que o
psicótico pode organizar sua realidade. Uma realidade, no entanto, não partilhável. Essa
ordenação, por se fixar no sentido, e apesar de sua importância, traz conseqüências tanto para
o campo do gozo quanto para o campo do significante.

b) Aimée e o retorno do foracluído

Em A paranóia: Marguerite ou a Aimée de Lacan, Jean Allouch (1997) revisita o


caso Aimée (Lacan, 1932) a partir de um saber formalizado posteriormente pelo próprio
Jacques Lacan. Com a estrutura da foraclusão e a noção dos fenômenos elementares como
retorno do foracluído, Allouch nos apresenta uma segunda versão da tese, versão latente na
própria apresentação do caso, que traz, em Aimée, o empuxo ao assassinato do filho -
localizado, entretanto, pela paciente, no Outro do delírio. A partir deste caso é possível

37
apreender que é no Outro, e não no sujeito, que se localiza o saber delirante. A lei imaginária
do delírio retorna, pois, desde fora, na premente ameaça externa.
Em uma família de camponeses, uma mãe perde sua filha, a pequena Marguerite,
queimada na lareira da casa. Após um aborto, nasce outra menina, a quem esta mãe, Jeane
Pantaine, dá o mesmo nome da menina falecida. Com este nome, já se pode antever, cunha-se
uma marca na história, marca esta que carrega o estatuto de uma missão: substituir
Marguerite, a irmã morta. Essa história, portanto, se inicia antes mesmo da existência de
Marguerite Pantaine, aquela que viria a ser Marguerite Anzieu ao se casar, e que, mais tarde,
seria chamada por Lacan, Aimée - tal qual é nomeada a personagem de um romance da
própria paciente. (Roudinesco, 2008)
Marguerite, que será paciente de Lacan, terá seu sistema delirante girando em torno
da ameaça de assassinato de seu filho, assim como das acusações a ela dirigidas, por ter seu
jardim secreto revelado.
O primeiro surto de Marguerite ocorre em decorrência de sua primeira gravidez, da
qual nasce uma criança morta. Com a chegada do segundo filho, retornam as ideias delirantes.
Seu delírio de perseguição era, ao menos aparentemente, voltado para seu filho, já que era ele
o ameaçado de morte. Entretanto, Marguerite indica claramente que, se ameaçavam a seu
filho, era por sua falta, por sua culpa.

Interpretações delirantes “surgem da leitura dos jornais, dos cartazes, das fotos expostas. ‘As
alusões, os equívocos no jornal fortaleceram-me em minha opinião’, escreve a doente. Um
dia (ela precisa o ano e o mês), a doente lê no jornal Le Journal que seu filho ia ser morto
‘porque sua mãe era caluniadora’, era ‘vil’ e que se ‘vingariam dela’.”
(...)
“Eu temia muito pela vida de meu filho, escreve a doente; se não lhe acontecesse algum
infortúnio agora, seria mais tarde, por minha causa, eu seria uma mãe criminosa.” (Lacan,
1932/1987, p.160)

Assim, embora a perseguição ocorra em torno de seu filho é, desde o início, ela
mesma o objeto alvo deste Outro indeterminado que a condena – num julgamento, diga-se de
passagem, em que a misericórdia não aparece sequer como tangência.
Que falta seria essa? Desde a sintomatologia pré-psicótica até os sintomas
propriamente psicóticos - ou seja, neste caso, interpretações claramente delirantes e sensação
persecutória - o problema abordado é o mesmo: a figura do poeta porta os traços do desejo,
enquanto a da mulher, os traços da puta. É a questão da sexualidade que estaria o tempo todo
em jogo. (Allouch, 1997, p.252)
O sistema delirante de Marguerite culmina em uma passagem ao ato na qual ela
atinge, com uma facada, a mão de uma atriz famosa e vai presa. Após 20 dias deste ataque,

38
Marguerite apresenta uma mudança de quadro a partir da qual foi considerada “curada”, já
que reconheceria em si mesma os delírios como tais. Segundo a tese de Lacan (1932/1987),
estes 20 dias seriam o tempo necessário para Aimée realizar que, atingindo a atriz, atingiu a si
mesma, seu espelho, e assim foi punida. Os diversos temas do delírio de Aimée se originariam
no sentimento de culpa por suas próprias condutas anteriores; assim como as figuras que
encarnavam os perseguidores representariam o ideal de eu da paciente, exteriorizado.
Allouch (1997) nos diz que essa seria a versão manifesta do caso, versão que mais
tarde será questionada pelo próprio Lacan, sobretudo no que diz respeito ao diagnóstico, o
qual ele próprio considerará ‘bizarro’ (Lacan, 1976, p. 9-10). Entretanto, segundo Allouch é
possível desdobrar na própria tese de Lacan e com a ajuda do vasto estudo histórico realizado
uma outra versão. Na tese, a irmã mais velha de Aimée é considerada seu duplo especular por
ser boa mãe, esposa ideal, ou seja, tudo que ela almejaria ser, sem, no entanto, conseguir.
Seria essa irmã a verdadeira perseguidora, ainda que não declarada. A atriz também é
considerada seu duplo, entrando na série dos perseguidores. Entretanto, observa-se que essa
atriz está em uma outra vertente, a da mulher depravada. A atriz parece ser, não seu ideal, mas
aquilo exatamente ao que Aimée não gostaria de ser acusada de ser, aquilo ao que considera
estranho à ela mesma, embora evidencie, em suas acusações, ser familiar. Parece haver, aqui,
portanto, uma identificação que, estando foracluída, retorna no real, como um saber que
pertence ao Outro.
Huguete ex-Duflos, atriz atacada, representava as peças de Pierre Benoit, um
romancista acusado por Marguerite de revelar, através de seus escritos, a conduta anterior de
Marguerite. Diversos jornais da época teriam revelado que um dos maiores receios da
paciente era o de que seu marido, René Anzieu, a reconhecesse nos romances. Seu marido
leria nas entrelinhas do romance ‘suas confissões e suas vergonhas’. Do mesmo modo,
“Marguerite teria deixado Melun “para escapar ao escândalo provocado em torno de sua
pessoa pelo sr. Pierre Benoit.” (Allouch, 1997, p.167). Marguerite “sente-se ultrajada com o
fato de que ele divulgue uma certa verdade que ela reconhece como sua” (idem).
O tema da reivindicação - que surge inicialmente com a tentativa de publicar seus
romances em resposta a Pierre Benoit e, posteriormente, com a passagem ao ato – visa pôr um
fim às afirmações caluniosas de que sua conduta é objeto. O tema da reivindicação evidencia
uma perseguição da qual Marguerite, como mulher, é objeto diretamente visado. “A
reivindicação desloca metonimicamente a perseguição da criança para a mãe, e revela, assim,
que esta não pode ter sido mãe sem ter sido mulher.” (ibidem, p.316)

39
Ao ler os romances deste autor, Marguerite parece se reconhecer na personagem
devido a certa aventura amorosa com a qual teria se envolvido, anterior ao marido, aquela
com o poetastro. Entretanto, ao se identificar a tal personagem, se confunde com ela, numa
identificação que não é a do traço, ou a do ideal, mas a da imagem. Imagem assustadora, por
sinal. Assim, Marguerite culpa não a si mesma pelas atitudes cometidas, mas ao Outro, por
saber sobre essa verdade e por denunciá-la. É o Outro quem sabe, e um saber repleto de gozo.
A paranóia, portanto, também identifica “o gozo no lugar do Outro como tal” (Lacan,
1966/2003, p.221).
Aimée parece não suportar ver em si própria uma imagem que é diferente daquela
formada por seu ideal. E tenta, a todo custo, fazer com que ninguém o saiba. Ninguém – nem
ela mesma - saiba disso que a atriz expunha: que ela era sexuada. É o que Aimée denomina
seu ‘jardim secreto’ e que vem à tona com aquilo que Allouch (1997) chama ‘declaração de
sexo’ – algo que diz respeito ao seu reconhecimento, pelos outros, como mulher, uma mulher
sexuada – e que está intimamente relacionado à gravidez: conseqüência última do encontro de
um homem com uma mulher.

O escândalo, aos olhos de Marguerite, está ligado em particular ao fato de que a puta parece
exercer sem remorsos nem vergonha a sua sexualidade. (...) Ora, tais sentimentos não
cessarão de habitar Marguerite, mesmo nos momentos mais agudos de seu delírio. Eles
ocorrem desde que é revelada a sua intimidade, mesmo se acontece de ser René, a quem no
entanto ela faz confissões, quem, lendo por sobre seus ombros os escritos de Pierre Benoit,
sabe reconhecer ali o jardim secreto de Marguerite, as ‘incessantes alusões à sua vida
privada’. René permanece ‘o remorso em pessoa’ – notarão onde encontramos uma
confirmação de que seu lugar não é o de um perseguidor. Essa vergonha e esses remorsos
mereceriam ser sublinhados, pois fazem disparidade entre a imagem ideal que Marguerite
tem de si mesma e a imagem da atriz; esta, certamente, representa aquela, mas sob a
condição de enucleá-la dessa característica de ser fêmea sem vergonha (Allouch, 1997,
p.279)

É desta forma que Allouch (1997) nos indica que duas interpretações do caso são
apresentadas na tese. A primeira, manifesta, entenderia a sintomatologia psicótica de
Marguerite como a realização de uma tendência autopunitiva, enquanto a segunda centraria o
núcleo delirante de Marguerite na “pulsão de assassinato do filho”, como será visto a seguir.
(Allouch, 1997, p.119) “Aqui já se entrevê que o delírio é posto em tensão por dois vetores
contrários: realizar o ato (manifestá-lo é parte disso) / não realizar o ato” (Allouch, 1997, p.
118-119). O ato, aqui, vale esclarecer, é o ato assassino, aquele que tentaria revogar a
declaração de sexo feita a partir da gravidez. Assim, o conflito não surge conscientemente,
nem mesmo retorna em forma de sintoma, mas retorna desde fora, na realidade, com a ameaça
premente em relação à criança.

40
Como simulacro de ato sexual, essa passagem ao ato será para ela o único ato sexual vivido
sem vergonha, sem marca de vulgaridade, o único em que ela teria consentido, e que não
será, de sua parte, o objeto de uma condenação ética. Mesmo mais tarde, quando falando
com Lacan, sobrevêm a vergonha e o sentimento do ridículo a propósito de certas ideias
delirantes então evocadas, esses sentimentos jamais se irão referir ao atentado, apenas à
erotomania e às ideias de grandeza. (Allouch, 1997, p.334) [grifo nosso]

A erotomania, assim como as ideias de grandeza, pareceriam, então, vir em


contraponto ao delírio de perseguição, ou seja, no sentido de garantir a não realização do ato.
Por outro lado, o delírio de reivindicação - o qual dá origem ao ato de publicar seus romances
assim como ao atentado à atriz – já indica a mesma direção do vetor persecutório - isto é, a de
realização do ato - ainda que a reivindicação - diferente da pura perseguição - marque a
importante diferença de retirar o sujeito do lugar de pura passividade. O ato de revogar a
declaração de sexo consegue, pois, ser deslocado do filho para a mãe. Mas essa declaração
continua sem poder existir, ao que sobrevêm, por vezes, as ideias persecutórias em relação ao
filho. É assim que, apesar da “cura” de Aimée, algo de sua sintomatologia psicótica
permanece juntamente a seu longo período de internação.
A sexualidade, para a psicanálise, trata sobretudo da “confissão do sujeito como
afetado por um sexo” (Allouch, 1997, p.336), já que é a diferença sexual que insere o sujeito
no Complexo de Édipo, complexo normatizador do gozo na sociedade. Assim, para ser
homem ou mulher, é preciso passar pelo dizer, o que não necessariamente ocorre por palavras,
mas pode ocorrer também através do ato. A relação sexual é uma dessas formas de ato.
Entretanto, a publicação desse ato não é suportada por Marguerite. “Marguerite nunca pôde
(exceto, talvez, com seu poetastro) superar essa vulgaridade do ato sexual a que sua passagem
ao ato tenta pôr um termo.” (ibidem, p.334).
Allouch (1997) nos indica que essa impossibilidade estaria atrelada ao conflito entre o
desejo de ter um filho e a responsabilidade por sua morte – tal qual aconteceu a Jeanne
Pantaine, cuja culpa pelo acidente, também retornava desde fora, em forma persecutória
(Jeanne Pantaine foi considerada paranóica através de relatos da família). Assim, a
possibilidade de sua mãe ser responsável pela morte de sua irmã parece ser rechaçada,
retornando desde fora, na acusação de si própria. O ato, pois, pretende defendê-la de tal
acusação, dizendo, em sua face significante, aquilo que não foi possível ser dito em palavras –
embora não se possa dizer que ela não tenha tentado: Marguerite bem que tentou publicar seus
romances, os quais tinham um estatuto de réplica àqueles escritos por Pierre Benoit.
O atentado à Huguete ex-Duflos, parece afirmar, pois, em ato, Marguerite, não como
mulher, mas como mãe, apaziguando de alguma forma aquilo de que ela se sentia acusada
anteriormente, ou seja, de ser uma mãe “vil”, “criminosa” (1932/1987, p.160). É assim,

41
protegendo seu filho, que Marguerite afirma, em ato, o contrário daquilo de que se sente
acusada pelo Outro: de ser uma mãe criminosa.

Uma demanda que incide sobre aquilo que em caso algum poderia ser confessado, mas que
só se pode formular pelo viés do ato. Mas essa loucura, e em especial na última passagem ao
ato, porta a questão da sexualidade feminina na medida em que ela se declara, não no lugar
da mulher, e sim no da mãe ( Allouch, 1997, p.337).

Uma outra indicação da importância da representação materna para Marguerite seria a


observação de Lacan a seguir: “Nos períodos em que ela reencontra seu papel materno, onde
sua surménage10 habitual é interrompida, as crenças delirantes se reduzem ao estado de
simples ideias obsidiantes11.” (1932/1987, p.236).
Para Allouch (1997), a queda do delírio corresponderia à realização do ato, enquanto o
delírio apareceria como reação de fuga ante o ato agressivo, ou seja, do lado do vetor
contrário. O delírio

diferente do sonho, não precisa de interpretação, já que é, ele mesmo, uma interpretação. O
delírio não seria a expressão da tendência à autopunição, como notara Lacan no fechamento
do caso, mas alguns de seus temas revelariam, sem mascarar, a pulsão de assassinato na mãe.
Além dessa função de expressão, o delírio provocaria um comportamento de fuga diante da
criança, isto é, diante do ato assassino: ele seria, então, ao mesmo tempo, o lugar de
expressão da pulsão mortífera e o modo segundo o qual ela é mantida à distância de sua
realização. (ibidem, p.118)

Vemos, portanto, que - como notou Freud em 1937 – o delírio porta um elemento de
verdade histórica e que entra no lugar do fragmento de realidade rechaçada. Esse elemento,
que é uma forma de saber, embora inventado, não é qualquer elemento. Lacan, já em 1932,
indica que as identificações feitas ao longo da estruturação delirante, ainda que sejam
“racionalmente ilusórias, nem por isso estão menos em uma relação constante com um
complexo ou um conflito, de natureza ético-sexual, e gerador do delírio. (...) As concepções
delirantes têm sempre um certo valor de realidade.” (Lacan, 1932/1987, p.299-300). Dessa
forma, o delírio portaria consigo uma verdade.

Bem diferente da obscuridade simbólica dos sonhos, ela [a evidência da significação do


delírio] faz com que se diga que ‘no delírio o inconsciente se exprime diretamente no
consciente’. Notamos as dificuldades especiais que resultam disso na psicanálise dos
delírios. Pode-se dizer que, contrariamente aos sonhos, que devem ser interpretados, o
delírio é por si mesmo uma atividade interpretativa do inconsciente. (Lacan, 1932/1987,
p.297)

10
Estafa, excesso de trabalho.
11
Obsedantes, preocupação excessiva; ideias obsessivas.

42
É assim que a premência do assassinato do filho remete, por um lado, e de forma
alusiva, à morte da primeira Marguerite, com todo gozo que poderia estar aí implicado;
enquanto, por outro lado, o vetor contrário, que tenta repelir o ato, remete à questão da
declaração de sexo, num claro repúdio a esse gozo. Um conflito ‘ético-sexual que retorna no
real.
Por sentir-se puta, Aimée fica interditada pelo Outro, de ser mãe. Por sua falta, vão
tirar-lhe o direito de ser mãe. Assim, na paranóia, é o Outro quem encarna o impedimento ao
gozo, e no Real.
O significante puta atribui significado a uma determinada forma de gozo, um gozo
proibido. E é o que ‘acusavam’ Marguerite de ser. O significante mãe, de um modo análogo,
atribui outro significado a determinada forma de gozo, desta vez, entretanto, melhor aceita no
laço social, e é como ela luta para ser reconhecida. A partir de determinados significantes que
ordenam o gozo, surge a atribuição de saber sobre o mesmo. É assim que surgiria a fantasia
neurótica e, em conseqüência, os sintomas. Na paranóia, entretanto, o conflito psíquico
decorrente dessa atribuição de saber sobre o gozo aparece a céu aberto: não há um sujeito que
se divide, mas um eu e um Outro.
Nesse sentido, vale destacar que em Les non dupes errent12, Lacan (1973-74/inédito)
associa à paranóia a invenção de saber sobre a relação sexual. Na lição de 19 de fevereiro de
1974, ele cita o caso Aimeé para dizer de onde lhe adveio a ideia de que “o saber, isso se
inventa” (ibidem, lição VIII, de 19 de fevereiro de 1974), pois “ela inventava, claramente ela
inventava”.

A lógica epistêmica parte de que o saber é forçosamente verdadeiro 13. Vocês não podem
imaginar onde isso leva. A loucuras! A loucura... não seria senão aquilo, enfim, em falso do
qual se inscreve o saber inconsciente, que ele é impossível de saber (...) Quero dizer, saber
que se sabe.
Donde resulta que ele é completamente impossível, não muito difícil de obter [...] o saber
que se suportaria disso que não se sabe que se sabe, é estritamente inconsciente, enfim,
impossível de enunciar na lógica epistêmica.
(ibidem, lição VIII, de 19 de fevereiro de 1974 [grifo nosso])

Todos inventamos um troço para tampar o buraco no Real. Onde não há relação
sexual, isso faz ‘troumatisme’. Inventa-se. Certamente, inventa-se o que se pode.
(idem)

o saber inconsciente é justamente o que se inventa para fazer suplência (ibidem, lição
IX, de 12 de março de 1974)

12
O título original deste seminário Les non dupes errent,, cuja tradução seria Os não tolos erram, guarda uma
homofonia à Les non du pére (Os nomes do pai).
13
A lógica epistêmica é aplicada para representar o conhecimento e, por isso mesmo, também é conhecida como lógica do
conhecimento. Neste tipo de lógica, o operador modal, em geral representado por K, e lido como “sabe-se que” considera o
determinado conhecimento de um indivíduo sem o questionar, relacionando-o a outros. Este operador agrega o princípio da
certeza ou o da incerteza, como por exemplo: "é impossível a existência de gelo a 100°C" ou "não se pode saber se duendes
existem ou não".

43
Assim, entende-se que a loucura, isto é, a paranóia, seria o avesso do saber
inconsciente, ou seja, seria não o saber que não se sabe que se sabe, mas o saber. A isso,
Lacan (ibidem) acrescenta que estaria associado o gozo fálico – o mesmo que ele havia
associado à masturbação, e denominado o “gozo do idiota” (Lacan, 1972-73/1985, p.109), um
gozo, acrescenta-se, que não faz laço entre dois sujeitos - mas entre sujeito e objeto.
Na lição de 11 de junho de 1974, Lacan afirma que o gozo fálico seria em suma aquele
trazido pelo ‘semas’, e explica que o ‘semas’ é o que faz sentido. Explicita dizendo que o
sentido é sexual porque ele se substitui justamente ao sexual que falta. Afinal, se não há a
relação sexual, a relação natural, como ele aqui a chama, é preciso o sentido para substituir o
que falta. “Não que o sentido reflita o sexual, mas que ele é aí suplente”. (1973-74/inédito,
XV/p.7)
Portanto, Lacan aproxima o gozo fálico do sentido, do saber enquanto invenção, que
viria em suplência à inexistência da relação sexual.
Em sua posição de objeto, o psicótico assemelha-se à mulher, mas não enquanto
objeto-causa, ou seja, objeto causa de desejo (Soler, 1998). Num primeiro momento – o do
surto - o psicótico pode ser assemelhado – tal qual Schreber o faz - à mulher enquanto objeto
de gozo, representada mesmo pela prostituta ou, talvez, pelo objeto do estupro. Neste
momento o psicótico está como que assujeitado ao gozo do Outro, seja pela invasão
alucinatória, seja pela perseguição delirante. Num segundo momento, se ele faz uma
estruturação delirante, surge uma ordem para reger esse gozo e, sendo assim, o psicótico sai
desse lugar de dejeto – puro objeto de gozo – para alcançar o lugar de um objeto almejado.
Entretanto, tanto na fase pré-psicótica quanto após uma estabilização, por crer-se
ideal, o apontamento pelo outro – e por si mesmo – de uma falha nesta imagem, acarreta
conseqüências desastrosas: o sujeito sente-se ameaçado em sua própria existência, como
atestam os inúmeros sintomas esquizofrênicos, assim como a ameaça persecutória dos delírios
paranóicos.
No caso Aimée, por exemplo, pode-se notar com certa clareza a relação de Marguerite
com o Outro que a acusa em sua falta. A atribuição de culpa a ela não ocorre por si mesma,
mas pelo Outro. Acusação esta, a qual ela nega mais uma vez, devolvendo a culpa ao Outro.
Lacan nos diz em sua tese, em relação ao laudo de uma internação anterior de Marguerite, que
“ela acreditava que zombavam dela, que era insultada, que lhe reprovavam a conduta” (Lacan,
1932/1987, p.151); que a julgavam: “‘Julgam-me muito frequentemente de modo diferente do
que eu sou’” (idem); mas que havia coisas das quais parecia realmente se sentir culpada: “Há

44
também coisas muito vis e remotas sobre mim que são verdadeiras, verdadeiras, verdadeiras,
mas a planície está a favor do vento.” (idem). Do mesmo modo, há um trecho em que a
localização da culpa em si própria fica patente:

‘Por que, perguntaram-lhe pela centésima vez, em nossa presença, você acredita que seu
filho está ameaçado?’ Impulsivamente ela responde: ‘Para me castigar’ ‘Mas de quê?’ Aqui
ela hesita: ‘Porque eu não cumpria minha missão...’ Mas logo depois: ‘Porque meus inimigos
se sentiam ameaçados por minha missão’
(...)
Muitas das interpretações delirantes da doente, como já assinalamos de passagem, não
exprimem mais do que seus escrúpulos éticos: faz-se alusão às menores faltas de sua
conduta. (ibidem, p.253)

A culpa, estruturalmente, está intimamente associada ao assassinato do pai,


correspondente maior da entrada da Lei. Mas, sem essa Lei simbólica que regulamenta o
gozo, essa culpa parece retornar no real, como uma ameaça externa, não internalizada – ao
contrário do que seria o supereu, ou seja, uma instância internalizada. “Essa rejeição da culpa
é uma recusa em admitir no simbólico os significantes que constituam vestígios da implicação
do sujeito. (...) a culpa foracluída lhe retorna do exterior, sob a forma de censuras que os
outros supostamente lhe dirigem.” (Soler, 2007, p.58)
Tal qual o Outro é absoluto na psicose, o eu, na paranóia, também parece ser. Como
foi visto anteriormente, Outro e outro se confundem nessa estrutura. É assim que o eixo das
relações objetais, a-a’, formador da imagem do eu, parece se atualizar na imagem do Outro,
não barrado, não castrado.
É assim que Aimée é acusada pelo Outro, e não por ela mesma, como poderia
acontecer na neurose. E é exatamente isso que evidencia sua psicose: que este saber sobre si
mesmo, esta auto-acusação, não apareça como um saber que não se sabe, mas em seu avesso,
como um saber: sabe-se, e é real. É um saber que se impõe no real, desde fora, sem dialética.
Entretanto, esse saber parece poder ser apaziguado em momentos de calmaria, em que uma
estabilidade imaginária prevalece, como atesta a fala do filho de Marguerite, Didier Anzieu:

Nossos encontros se tornavam cada vez mais satisfatórios para ela e para mim – salvo
quando sua desconfiança persecutória a retomava. (...) Aprendi a compreendê-la, a acalmá-la,
a ajudá-la permanentemente a restabelecer um equilíbrio instável. Eu servia a ela de laço
seguro com uma realidade que, sem isso, era temível e vacilante para ela. (Didier Anzieu,
1986, p.16, apud Allouch, 1997, p.74)

Portanto, a partir do consagrado caso Aimée, pode-se observar com certa clareza a
estrutura de saber que está presente na psicose: em Aimée, como na psicose, o saber se impõe.
A relação com o Outro, por ser absoluto, não permite a dialética desejante, em que o sujeito se
incluiria, ele também, como faltante. Na fase persecutória da paranóia, portanto, o gozo se

45
localiza no Outro, absoluto, e o sujeito faz-se objeto desse gozo. Na fase megalomaníaca,
entretanto, o próprio sujeito encarna o lugar de exceção, ainda que em referência a um Outro
absoluto. Sem a falta como motor do desejo, a dialética fica excluída e a existência do sujeito
fica referenciada a Um significante absoluto, como ver-se-á a seguir.

c) A construção delirante do nome e o congelamento de desejo

Em 1975, no seminário O Sinthoma, ao comentar a reedição de sua tese Da psicose


paranóica em suas relações com a personalidade, Lacan dirá que "Se por muito tempo resisti
que ela fosse novamente publicada foi simplesmente porque a psicose paranóica e a
personalidade não têm, como tais, relação, pela simples razão de que são a mesma coisa."
(Lacan, 1975-76/2007, p.52.)
Entende-se que a afirmação transcrita acima diz respeito à fixidez relacionada ao
conceito de personalidade. Vejamos, portanto, que fixidez seria esta, que levaria Lacan a
afirmar que a paranóia é a própria personalidade.
Em seu seminário “ A Identificação”, o autor (Lacan, 1961-62) nos traz a letra
associada à noção de um, que ele problematiza a partir do conceito freudiano de traço unário e
compara a uma pegada apagada na areia: inscrita, mas apagada. A letra, nesse sentido, estaria
associada ao um da unicidade. Tal qual cada significante, na cadeia, é um, é único, a letra
assim o seria.

se devemos considerar que o inconsciente é esse lugar do sujeito onde isso fala, por nos
aproximarmos desse ponto onde podemos dizer alguma coisa, à revelia do sujeito, está
profundamente remanejada pelos efeitos da retroação do significante, implicados na fala. É
que na medida – e pela menor de suas palavras – em que o sujeito fala, que tudo o que ele
pode sempre fazer, uma vez mais, é nomear-se sem o saber, sem saber por qual nome (Lacan,
1961-62/2003, p.102-103.)

O toro, objeto topológico utilizado por Lacan (1957-58/1999), pode ser empregado
para auxiliar no entendimento desta questão: o sujeito neurótico, na medida em que traça as
voltas da demanda (1), não reconhece a volta do desejo (2), a volta que o direciona sem que
ele perceba, ou seja, esse nome que o nomeia sem que ele saiba.

46
Foi visto a importância que a segunda identificação freudiana, a identificação ao traço
(significante), tem para a constituição do sujeito do desejo: uma identificação que
significantiza a questão do ser a partir da identificação simbólica do sujeito ao objeto.
Na psicose, entretanto, não ocorre a substituição do ideal imaginário pelo Ideal
simbólico, permanecendo como ideal do sujeito a imagem do próprio eu (eu ideal). Portanto, a
identificação que ocorre não é a identificação ao traço do objeto, ao um da unicidade, que
carrega consigo a diferença, mas sim a narcísica, da imagem totalizante.
Ramalho (2007) nos diz que é comum que as construções delirantes se reportem à
questão das origens, e questiona que talvez isso não ocorra por acaso, mas porque o delírio
surge exatamente como tentativa de responder à questão “quem sou eu?”.
Desta maneira, entende-se que na paranóia, o Nome-próprio não está associado ao um
da unicidade, como propõe Lacan para a neurose, mas ao um da totalidade. Na paranóia, o
nome próprio não entraria na cadeia como um nome comum. Veja-se o desenvolvimento de
Lacan a esse respeito a partir do seminário XXI, “Les non-dupes errent” (Os não tolos
erram), que carrega em seu título uma homofonia a les noms du père (Os nomes do pai).
Neste seminário, na lição X, de 19 de março de 1974, Lacan afirma que Freud, em
Psicologia das Massas e Análise do Eu teria associado o amor à identificação e acrescenta
que o amor tem a ver com aquilo que ele isolou do título de Nome do Pai. Prossegue dizendo
que
a perda disso que se suportaria da dimensão do amor a esse nome do pai se substitui uma
função que não é senão aquela do nomear-a. Ser nomeado de qualquer coisa, de alguma
coisa, eis o que coloca numa ordem que se encontra efetivamente em se substituir ao nome
do pai. (1973-74/inédito, lição X, de 19 de março de 1974)

“Ser nomeado a alguma coisa, eis o que, para nós, acontece preferir – passar para frente – o
que há aí do nome do pai. (...) O desejo do Outro designa à sua criança esse projeto que se
exprime pelo nomear-à.” (1973-74/inédito, lição X, de 19 de março de 1974).

Parece ser no mesmo sentido que Lacan (1975-76/2007) afirma, dois anos mais tarde,
em seu seminário 23, O Sinthoma, que “é na medida em que o Nome-do-pai é também o Pai

47
do Nome que tudo se sustenta” (Lacan, 1975-76/2007, p. 23). Entretanto, e se isso não
acontece?
Em Les non-dupes errent, ele acrescenta que a forclusão deste traço é o princípio da
loucura:
O que é que este traço designa como retorno do nome-do-pai no Real, enquanto
precisamente: que o nome do pai é werworfan, forcluído, rejeitado, e que a esse título ele
designa se esta forclusão da qual eu disse que ela é o princípio mesmo da loucura, será que
esse nomear-a não é o signo mesmo de uma degenerescência catastrófica? (1973-74/inédito,
lição X, de 19 de março de 1974)

E também, que

Há alguém que me definiu dizendo que eu era alguém que acreditava que era Lacan. Era a
maneira pela qual eu havia, eu mesmo, definido Napoleão, mas (...) no fim de sua vida ele
estava louco, não é? Porque crer em seu próprio nome, enfim... é a própria definição disso.
(1973-74/inédito, lição XIV, de 23 de maio de 1974)

Entende-se que quando ele se refere à loucura em relação à foraclusão deste traço ele
estaria falando de psicose, isto é, de esquizofrenia, e não de paranóia; e ao falar dessa crença
no nome, de Napoleão, ele estaria falando da loucura em sua vertente paranóica.
Afinal, se pensarmos que na paranóia há um “congelamento de desejo” 14, e que o
delírio vem, tal qual o fenômeno elementar, desde fora, então haveria esse nome... como
retorno do foracluído, fixado, congelado - como atesta a crença paranóica do exemplo de
Napoleão. Aqui, o nome próprio poderia ser associado ao um da totalidade, e não ao um da
unicidade, como ocorre na neurose. No seminário 23, O Sinthoma, pode-se apreender algumas
contribuições de Lacan nesse sentido.
Joyce é um escritor irlandês, ao qual Lacan dedica este seminário. Ele não analisou
Joyce, no entanto, conheceu sua obra literária e algo de sua biografia. A partir disso, o autor
questiona se Joyce é um sujeito psicótico, dizendo que o desejo de Joyce de ser artista se
coloca imperiosamente como um chamado e que isso só poderia ser uma compensação pela
foraclusão do Nome-do-Pai. (Lacan, 1975-76/2007, p.86). Ao longo do seminário, Lacan
desenvolve, a partir de seu estudo topológico, o nó de trevo, nó de Joyce, que ele afirma ser o
nó da paranóia.
Vejamos o que Lacan fala da função do Nome Próprio para este paranóico que é
Joyce:

Seu desejo de ser um artista que fosse assunto de todo mundo, do máximo de gente possível,
em todo caso, não é exatamente a compensação do fato de que, digamos, seu pai jamais foi
um pai para ele?

14
Na lição de 8 de abril de 1975, do seminário RSI, Lacan afirma que “A paranóia é a voz que sonoriza, é o olhar
que se faz prevalente, é um caso de congelamento de desejo.”

48
(...)
Não há nisso alguma coisa como uma compensação dessa demissão paterna, dessa
Verwerfung de fato, no fato de Joyce ter se sentido imperiosamente ‘chamado’? (...) É a mola
própria pela qual o nome próprio é nele, alguma coisa estranha.
(...)
o nome próprio faz tudo o que pode para se fazer mais que o S 1, o significante do mestre, que
se dirige rumo ao S que convoquei com o índice pequeno 2, aquele em torno do qual se
acumula o que concerne ao saber:
S1 => S2
É claro que foi uma invenção haver dois nomes que sejam próprios ao sujeito, difundida no
curso da história. Que Joyce também se chamasse James apenas se sucede ao uso do
cognome – James Joyce, designado pelo cognome Dedalus.
O fato de que possamos colocar assim um monte de nomes implica apenas o seguinte – fazer
entrar o nome próprio no âmbito do nome comum.
(...) Reduzo, assim, meu nome próprio ao nome mais comum. (1975-76/2007, p.86 e 87
[grifos nossos]).

Joyce tem um sintoma que parte do fato de que seu pai era carente, radicalmente carente –
ele só fala disso. Centrei a coisa em torno do nome próprio, e pensei que – façam o que
quiserem desse pensamento - ao se pretender um nome, Joyce fez a compensação da
carência paterna. (Lacan, 1975-76/2007, p.91[grifo nosso])

desde o começo, ele quis ser alguém cujo nome, muito precisamente o nome, sobrevivesse
como nunca (1975-76/2007, p.161).

A partir do exposto, entende-se que Joyce toma esse nome próprio não como um nome
comum, mas como uma encarnação de quem ele é. Assim como no exemplo em que Lacan
afirma que Napoleão era alguém que acreditava que era Napoleão.
Portanto, entendemos este nome criado pelo paranóico, como um significante que,
apreendido no Outro – tesouro dos significantes – dá significado ao Desejo do Outro – e
nomeia o sujeito, nomeia-o a alguma coisa. Assim, se Schreber é nomeado a mulher de Deus,
nomeado a ser a mãe de uma nova humanidade; Joyce é nomeado artista, aquele que levará o
nome da família ao reconhecimento: “Joyce, através de sua arte não apenas faz sua família
subsistir, como vai torná-la, se podemos dizer assim, ilustre. (...) É a missão que Joyce se dá.”
(Lacan, 1975-76/2007, p.23). E “o impressionante é que ele promoveu seu nome antes mesmo
de haver promovido sua obra.” (Soler, 2007, p.206), o que nos indica o aspecto de imposição
que havia nesse saber.
A partir do exposto, pergunta-se se este não seria um mecanismo próprio à paranóia,
aquele da “Verhaltung15” – referido por Lacan (1932/1985) em sua tese de doutorado sobre o
caso Aimèe – e traduzido por Quinet (2006) como “retenção significante”. Mecanismo este
que, com seu próprio nome, aponta para as conseqüências dessa estruturação para a dialética
do desejo: uma estruturação na qual se trata da retenção do significante.

15
O termo Verhaltung é tomado emprestado por Lacan de Kretschmer, e traduzido por ele (Lacan) como
repressão, ainda que ele mesmo indique, em referência ao termo, que “Essa repressão nada mais é do que a
exacerbação da função da retenção dos complexos ideo-afetivos na consciência” (Lacan, 1932/1985, p.83 [grifo
do próprio autor])

49
No seminário RSI, Lacan afirma a existência de um Nome-do-Pai que não é privilégio
do simbólico (Lacan, 1974-75/inédito), isto é, que é inscrito imaginariamente, como vimos
acontecer através da construção delirante: “afinal não é só o Simbólico que tem o privilégio
desses Nomes do Pai, não obrigatoriamente está no buraco do Simbólico conjunta a
nominação. Indicarei isso ano que vem.” (Lacan, 1974-75/inédito, lição de 15 de abril de
1975, p.65 [grifo nosso])
Temos assim que na psicose a escrita do nome, como possibilidade de favorecer laço
social funciona como inscrição do Nome-do-Pai, ou melhor, como sua suplência, na vertente
assinalada por Lacan, de Pai-do-Nome, enodando os registros do Real, Simbólico e
Imaginário. Sendo o pai-do-nome aquele que interessa à realidade psíquica, através dele algo
nesta realidade pode se manter. Entretanto, tal conformação não permite ao sujeito o acesso à
dialética do desejo, à entrada do nome próprio no nome comum, ou seja, o apagamento do
primeiro e seu retorno, em metáfora, na cadeia significante.
É nesse sentido, por essa limitação, que Schreber, apesar de ter podido viver anos
estabilizado - após a escrita e publicação de suas memórias - acabou morrendo em um
hospital psiquiátrico. Diferente de Joyce, Schreber não pôde sustentar, ao menos não até sua
morte, o nome que se deu.
Neste ponto, questiona-se se esta nomeação, que vem como um chamado ao sujeito
psicótico, seria da ordem da invocação, tal qual foi visto no segundo tempo do Édipo, ou se
seria da ordem da evocação, um chamado que não implica a identificação ao desejo.
Soler (1998) nos diz que a posição de John Joyce, foi a de fazer seu filho, James
Joyce, um substituto para si próprio, o que estaria evidenciado na biografia do escritor, tanto
no fato de que John esperava que James, o irmão mais velho, cuidasse dos mais novos, quanto
no fato de que a família depositava neste filho as esperanças de salvação, após a falência
financeira do pai.

ele [Joyce] recebeu esta mensagem de ter que fazer suplência à missão do pai. Talvez ele
tivesse podido tomá-la de outra forma, mas é fato que ele foi chamado a este lugar vazio.
Que ele se o tenha recusado, disso não podemos duvidar, mas ele de qualquer modo inventou
uma versão para seu uso. (Soler, 1998, p.118)

Esse substituto paterno é aquilo a que, afinal, todo sujeito precisa ser nomeado: ser um
pai, isto é, ser alguém para alguma coisa, ou, de outra forma, um homem para uma mulher.
Entretanto, a ideia de que este nome esteja associado a um sentido cristalizado, - ao qual, ao
menor sinal de fracasso, o sujeito se sente perseguido e subjugado - nos aponta para um
imperativo que parece ser da ordem de uma evocação – e não de uma invocação -, um

50
imperativo que não é calado, não é internalizado, como a cobrança neurótica, mas uma
cobrança que exclui o sujeito, que vem de fora. “Talvez ele tivesse podido tomá-la de outra
forma” (idem), diz Soler. Talvez ele tivesse podido tomá-la não como ordem absoluta, mas
como pedido, afinal, um pedido pode ser negado, uma ordem não. E, talvez, assim, pudesse
não precisar recusá-la, ou seja, foracluí-la. Lembra-se, ainda, que esta recusa diz respeito ao
próprio ser.
De qualquer forma, a seu modo, com sua literatura, Joyce parece ter cumprido esta
missão que lhe veio como imperativo, que retornou desde fora: ser artista – ser ilustre, ser Um
pai.

REFERÊNCIAS

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(1896a) “Rascunho K: As neuroses de defesa”, v.I
(1896b) “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa”, v. III.
(1897) “Carta 61”, v. I.
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(1905) “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, v.VII.
(1907) “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen”, v. IX.
(1911) “Notas psicanalíticas de um relato autobiográfico de um caso de paranóia”,
v.XII.
(1913[1912]) “Totem e Tabu”, .XIII.
(1914) “Sobre o narcisismo: uma introdução”, v. XIV.
(1915) “Os instintos e suas vicissitudes”, v. XIV.
(1915b) “O insconsciente”, v. XIV.

51
(1916[1915]) “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos”, v. XIV.
(1918) “História de uma neurose infantil”, v. XVII.
(1920) “Além do princípio do prazer”, v.XVIII.
(1921) “Psicologia das Massas e Análise do Ego”, v.XVIII.
(1924[1923]) “Neurose e Psicose”, v.XIX.
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(1931) “Sexualidade Feminina”, v. XXI.
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(1950 [1895]) “Projeto para uma psicologia científica”, v. I.

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