Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Nos últimos dias, porém, o antipresidente levou a perversão da verdade, esta que torna a
verdade uma escolha pessoal, à radicalidade. Decidiu que a jornalista Míriam Leitão não foi
torturada – e ela foi. Insinuou que o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil teria
sido executado pela esquerda, quando ele desapareceu por obra de agentes do Estado na
ditadura militar. Decidiu que ninguém mais passa fome no Brasil – o que é desmentido não só
pelas estatísticas como pela experiência cotidiana dos brasileiros. Decidiu que os dados que
apontaram a explosão do desmatamento na Amazônia, produzidos pelo conceituado Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais, eram mentirosos. Isso porque apenas no mês de julho de
2019 foi destruída uma área de floresta maior do que a cidade de São Paulo, e o índice de
desmatamento foi três vezes maiores do que em julho do ano passado. E Bolsonaro decidiu
ainda que “só os veganos que comem vegetais” se importam com o meio ambiente.
Bolsonaro controla o cotidiano porque fora de controle. Bolsonaro domina o noticiário porque
criou um discurso que não precisa estar ancorado nos fatos. A verdade, para Bolsonaro, é a
que ele quer que seja. Assim, além da palavra, Bolsonaro destrói a democracia ao usar o poder
que conquistou pelo voto para destruir não só direitos conquistados em décadas e todo o
sistema de proteção do meio ambiente, mas também para destruir a possibilidade da verdade.
O que vivemos não é mal-estar, mas horror
“Narrar a história é sempre o primeiro ato de dominação. Não é por acaso que Bolsonaro quer
adulterar a história. A história da ditadura é construída por muitos documentos, é uma
produção coletiva. Mas ele decide que aconteceu outra coisa e não apresenta nenhum
documento para comprovar o que diz”, analisa Voltolini. “Não é que estamos vivendo o mal-
estar na civilização. Isso sempre houve. A questão é que, para ter mal-estar é preciso
civilização. E hoje, o que está em jogo, é a própria civilização. Isso não é da ordem do mal-
estar, mas da ordem do horror.”
Como enfrentar o horror? Como barrar o adoecimento provocado pela destruição da palavra
como mediadora? Como resistir a um cotidiano em que a verdade é destruída dia após dia
pela figura máxima do poder republicano? Rinaldo Voltolini lembra um diálogo entre Albert
Einstein e Sigmund Freud. Quando Einstein pergunta a Freud como seria possível deter o
processo que leva à guerra, Freud responde que tudo o que favorece a cultura combate a
guerra.
Os bolsonaristas sabem disso e por isso estão atacando a cultura e a educação. A cultura não é
algo distante nem algo que pertence às elites, mas sim aquilo que nos faz humanos. Cultura é a
palavra que nos apalavra. Precisamos recuperar a palavra como mediadora em todos os cantos
onde houver gente. E fazer isso coletivamente, conjugando o nós, reamarrando os laços para
fazer comunidade. O único jeito de lutar pelo comum é criando o comum – em comum.
É preciso dizer: não vai ficar mais fácil. Não estamos mais lutando pela democracia. Estamos
lutando pela civilização.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna
Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada,
Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email:
elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum