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Logic, Language and Knowledge.

Essays on Chateauriand’s Logical Forms


Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e

CDD: 149.7

Determinismo e necessitarismo nos


Essais de Théodicée
MARTA DE MENDONÇA
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa
LISBOA, PORTUGAL
mmag@fcsh.unl.pt

Resumo: Este artigo é consagrado ao exame de alguns aspectos do tratamento dado por Leibniz à
relação entre determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée com o objetivo de identificar a tese
sustentada por Leibniz a esse respeito, bem como algumas das estratégias que utiliza para enfrentar as
objeções a ela dirigidas. A investigação se concentrará em três questões: a) que razões teriam conduzido
Leibniz a defender o determinismo, b) que razões o teriam levado a rejeitar o necessitarismo e, por fim,
c) que razões sustentariam a sua convicção de que o determinismo não implica o necessitarismo ou de
que o primeiro é compatível com a contingência.
Palavras-chave: necessitarismo, determinismo, contingência, causalidade, omnisciência

Abstract: This paper is consecrated to examine some aspects of the treatment Leibniz gives to the
relation between determinism and necessitarianism in his Essais de Théodicée in order to identify his
thesis, as well as some strategies he uses to upholding his thesis against the objections addressed to it.
The investigation shall be concentrated on three issues: a) why has Leibniz endorsed determinism, b)
why has he rejected necessitarianism, and finally c) what reasons could support his conviction that de-
terminism does not imply necessitarianism or that determinism is compatible with contingency.
Keywords: necessitarianism, determinism, contingency, causality, omniscience

1. Introdução
A obra de Leibniz permite muitas leituras. Quer a história das
múltiplas controvérsias em que se viu envolvido, quer a das interpreta-
ções do seu pensamento, dão por vezes a impressão de que Leibniz
autoriza quase tudo e que é possível fundar na análise dos seus textos
interpretações alternativas, cujo balanço final apontaria para um pen-
samento no limite inconsistente ou mesmo nalguns aspectos aporético.

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Sendo assim, a análise de um problema filosófico com base


numa única obra de Leibniz pode considerar-se redutora ou até inten-
cionalmente manipuladora. Para compreender o que Leibniz pensa so-
bre cada um dos temas sobre que se debruçou é preciso geralmente ter
em conta o modo como a sua posição variou no tempo, o discurso
mais público e aquele, mais privado, que se encontra nas correspondên-
cias, os diversos alvos dos seus ataques filosóficos, etc. Em todo o caso,
a reconstituição de um pensamento como o de Leibniz, que tem muito
de caleidoscópico, está dependente da identificação tão precisa quanto
possível de cada um dos vários elementos que nele estão presentes e
operantes. Só este esforço de precisão e de isolamento permitirá com-
preender o que têm de pertinente ou eventualmente de precipitado al-
gumas acusações de inconsistência, pelo menos nos casos em que estão
em causa teses a que Leibniz voltou vezes sem conta ao longo de toda a
sua vida.
Quando se aborda a questão do necessitarismo, Leibniz é fre-
quentemente acusado de inconsistência e a sua solução tida como me-
ramente verbal ou falaciosa. Muitos, talvez a maioria, dos intérpretes de
Leibniz tendem a ver a sua forma de conceber a relação entre determi-
nismo e necessitarismo como uma solução insatisfatória, na qual, por
uma série de confusões ou de imprecisões, Leibniz tentou justificar o
que ele próprio sabia que não tinha justificação possível: que o deter-
minismo não se identifica com o necessitarismo ou que não o implica
inevitavelmente.
A questão é abordada num número quase infindável de textos,
ao longo de toda a vida de Leibniz, e a sua consideração implica ou tem
consequências em quase toda a sua obra filosófica. Pense-se, por exem-
plo, na doutrina da liberdade – tanto humana como divina -, na con-
cepção da substância individual, na doutrina da verdade, na concepção
da razão e no papel atribuído ao princípio de razão, etc.
O próprio Leibniz atribuiu um grande peso a esta questão: a
sua resolução é a resolução do “labirinto da liberdade e da necessida-

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de”, que afeta todo o gênero humano 1 . Ora, à vista disto, é difícil acei-
tar sem reservas a tese de que a posição leibniziana resulta ou de inad-
vertência ou de uma intenção oculta de mascarar uma identificação ir-
recusável entre determinismo e necessitarismo. A ser assim, a compre-
ensão da obra filosófica de Leibniz obrigaria a construir uma grelha de
interpretação que mostrasse, detrás do que afirmou vezes sem conta, o
que realmente quis dizer mas nunca se atreveu a afirmar, ou a admitir
que a inadvertência durou praticamente toda a vida, foi explorada e-
xaustivamente mas nunca trazida à luz. Com efeito, se se comparam
textos tão centrais como o Discours de Métaphysique ou a correspondência
com Arnauld, a que aquele deu origem, e os Essais de Théodicée, e se ad-
mite a tese da inadvertência e da confusão, teríamos que dizer que essa
inadvertência ou essa confusão duraram pelo menos os 25 anos que
separam estes textos.
Tendo tudo isto em conta, o objetivo das páginas que seguem é
bastante modesto: trata-se de explorar a forma como Leibniz aborda
alguns aspectos da questão do determinismo e do necessitarismo nos
Essais de Théodicée: identificar a tese que sustenta, algumas das objeções
que enfrenta e algumas das estratégias que utiliza para as solucionar.
Como é bem sabido, os Essais de Théodicée não tem apenas um
objetivo, e Leibniz enuncia-os em mais de uma ocasião. O próprio títu-
lo completo da obra apontava já para essa multiplicidade de objetivos
articulados. Por outro lado, o problema da relação entre determinismo
e necessitarismo é abordado nos Essais de Théodicée de forma, por assim
dizer, instrumental: Leibniz pretende abordar as grandes questões da
“bondade divina” da “origem do mal” e da “liberdade humana”. É para
resolver estas questões que é indispensável proceder à análise da relação
entre determinismo e necessitarismo. Assim, o que se pretende é abor-

1Cf. Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu, la liberté de l’homme et l’origine du mal,
Die Philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm Leibniz. Herausgegeben von C. I.
Gerhardt, Sechster Band, Berlin, 1885, p. 29. A partir de agora Théodicée, segui-
do do parágrafo e da página. Manteve-se a grafia original.

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dar um aspecto instrumental dos Essais de Théodicée e, reconhecendo


embora a centralidade e a presença constante que tem em toda a obra
de Leibniz, abordá-lo exclusivamente nessa obra, sem fazer recurso a
outras obras e sem, por assim dizer, completar com outros textos a po-
sição de Leibniz aí defendida.
Na impossibilidade de abordar todos os aspectos do problema
que são tidos em conta nos Essais de Théodicée, procurar-se-á a) identifi-
car as razões que levam Leibniz a defender o determinismo, b) identifi-
car algumas das razões que o levam a rejeitar o necessitarismo e, a partir
daí, c) compreender que razões fundam a sua convicção de que o pri-
meiro não implica o segundo ou de que o determinismo é compatível
com a contingência e a liberdade.
Trata-se de uma questão que Leibniz pensou maduramente. O
texto dos Essais de Théodicée revela que Leibniz possuía um conhecimen-
to profundo das várias dimensões do problema da relação entre deter-
minação e necessidade e elas vão aparecendo, ainda que de forma algo
desordenada, ao longo da obra. Assim, no horizonte do pensamento
pré-cristão destacam as análises do sofisma da razão preguiçosa e as
diversas referências às controvérsias que opuseram a lógica megárica à
de Aristóteles a propósito do conceito de possível 2 ; no horizonte, mais
próximo no tempo, das discussões em torno da presciência e a provi-
dência de Deus, Leibniz expõe amplamente as posições enfrentadas de
tomistas e molinistas, ou de predeterministas e defensores da ciência
média, e procura superá-las 3 ; mais perto ainda, discute amplamente as
posições diversas, mas em seu entender igualmente inaceitáveis, de
Hobbes e de Espinosa 4 .

2 Cf., entre outros, Théodicée, Preface, pp. 30-33, §§ 168-170, pp. 210-215.
3 Cf. Théodicée, §§ 39-48, pp. 124-129.
4 Cf., por exemplo, Théodicée, §§ 173-174, pp. 217-218; §§ 372-373, pp. 336-338;

Reflexions sur l’ouvrage que M. Hobbes a publié en Anglois, de la Liberté, de la Necessité


et du Hazard, pp. 389-399.

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Em qualquer destes contextos, a posição leibniziana apresenta-


se como uma via intermédia entre as posições em conflito. Nestes di-
versos casos, com exceção talvez do último, de ambos os lados da dis-
cussão há, segundo Leibniz, aspectos a reter, mas há também erros gra-
ves. Com efeito, quer se considere o “sofisma da razão preguiçosa”,
quer se considere o “argumento dominador” – que Leibniz aborda com
algum detalhe embora não o mencione sob esta designação – quer se
considerem as controvérsias em torno da ciência divina e do seu con-
curso à ação das criaturas, Leibniz tem a pretensão de dirimir todas as
dificuldades envolvidas nestas discussões, bastando para isso, em seu
entender, precisar melhor a relação existente entre determinação e mo-
dalidades. Em todos estes casos, Leibniz expressa a convicção de que
os recursos apresentados bastam para desfazer o nó do problema, para
eliminar as aporias, para conciliar as posições enfrentadas. Este fato –
que a posição leibniziana se apresente a si mesma como uma forma de
superar oposições antigas e aparentemente irresolúveis – basta para
destacar a radicalidade que pretendeu dar às suas análises e deixa entre-
ver o alcance que atribuiu à sua solução e às estratégias em que ela se
funda 5 . Em muitos casos, para dirimir a dificuldade basta denunciar o
erro ou a limitação de que enfermam as posições que combate, revelar a
incoerência ou inconsistência das argumentações utilizadas, o uso am-
bíguo de termos que as vicia, etc. 6 . Desta perspectiva, em lugar de in-

5 A esta discussão e a si mesmo se poderia aplicar o que Leibniz afirma no


Discours Preliminaire, § 80, p. 97 : « Lorsqu’elle [la raison] detruit quelque these,
elle edifie la these opposée. Et lorsqu’il semble qu’elle detruit en même temps
les deux theses opposées, c’est alors qu’elle nous promet quelque chose de
profond, pourvu que nous la suivions aussi loin qu’elle peut aller ».
6 Assim, por exemplo, se considerarmos a famosa controvérsia entre Diodoro

Cronos e Aristóteles que está na origem do capítulo IX do De Interpretatione, na


qual está em causa o problema da verdade dos enunciados futuros contingen-
tes, a posição leibniziana apresenta-se como uma tentativa de superação da
oposição, tida como irredutível tanto pelo pensador megárico quanto pelo
Estagirita: ou determinismo e necessitarismo (Diodoro) ou contingência e in-
determinismo (Aristóteles). Em contraste com esta alternativa, em seu enten-

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correr em raciocínios incoerentes ou ser vítima de confusões que hou-


vesse que detectar, o que Leibniz pretende é precisamente denunciar ele
próprio as confusões que operam nos diversos problemas aqui em cau-
sa: sejam eles o “sofisma da razão preguiçosa”, o problema que opõe
Aristóteles à lógica megárica acerca da definição do possível, ou o que
opõe predeterministas e defensores da ciência média. A mesma preten-
são seria válida para os alvos das suas críticas: não são aceitáveis as so-
luções de Espinosa ou de Hobbes, pelo mesmo tipo de erros. Entre
ambos – entre o necessitarismo e a arbitrariedade – está a autêntica
contingência, a determinação não necessitante.
Em todo o caso, na medida em que a adoção de um ponto de
vista que permita compreender adequadamente a relação existente entre
determinismo e necessitarismo passa por denunciar posições redutoras
e parciais, uma abordagem minimamente completa do tratamento leib-
niziano desta questão, mesmo tendo em vista apenas os desenvolvi-
mentos elaborados nos Essais de Théodicée, obrigaria a deter-se naqueles
diversos aspectos em que a parcialidade, as ambiguidades, os equívocos
ou as incoerências deixaram a sua marca, suscitando posições opostas e
indefensáveis. Nos Essais de Théodicée, a denúncia destes erros faz-se a

der impossível de sustentar, o que Leibniz propõe é a defesa simultânea do


determinismo e da contingência. De Aristóteles (contra Diodoro) retém a con-
tingência dos acontecimentos futuros e de Diodoro (contra Aristóteles) retém
o determinismo de tudo o que será. Contra Aristóteles e Diodoro, sustenta a
possibilidade de um determinismo não necessitarista, isto é, rejeita a assimila-
ção do determinismo ao necessitarismo que sustentava as teses das duas esco-
las gregas. O mesmo se poderia dizer da maioria dos outros problemas aqui
em causa: a solução da controvérsia escolástica entre tomistas e molinistas –
entre predeterminadores e defensores da ciência média - não passa nem pela
aceitação nem pela rejeição plena de nenhuma das teorias enfrentadas, mas
pela identificação do ângulo preciso a partir do qual a oposição se dissolve e é
possível partilhar aspectos parciais das duas teses em conflito. Também a al-
ternativa ao necessitarismo espinosista não é a indiferença ou o acaso, como
pretendem Hobbes ou Bayle, mas uma posição intermédia, que nenhum deles
vislumbrou: nem necessária nem arbitrária

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par da apresentação dos operadores que permitem solucioná-los. As-


sim, seria importante considerar detidamente pelo menos os seguintes
temas: os diversos sentidos da necessidade e em concreto o sentido da
chamada necessidade moral; a caracterização leibniziana da liberdade e
o sentido preciso da vontade como potência ou virtualidade; a natureza
da relação entre vontade e razão e o papel do princípio de razão; a dis-
tinção entre potências ou faculdades ad unum e a vontade como potên-
cia para contrários; a natureza da relação entre causalidade e necessida-
de e entre esta e o princípio de razão. Todos estes aspectos interferem
como operadores na tese, diversas vezes repetida na obra, de que não é
o mesmo estar determinado e ser necessário. A determinação é algo que
acompanha e caracteriza o ser, quer se considerem as suas notas ou
propriedades, quer se considerem os seus processos. Ser é sempre ser
algo, ter uma forma, ser de certo modo, etc. E agir é também sempre
agir de certo modo, estar determinado ou autodeterminar-se. Em con-
trapartida, a defesa do necessitarismo ou a afirmação de que tudo o que
é e de que tudo o que ocorre são absolutamente necessários é uma ten-
tação fácil ou um erro grosseiro que há que evitar, por mais persuasivas
que sejam as aparências que militem em seu favor.
Uma das ocasiões em que Leibniz aborda com maior radicali-
dade ou de forma mais abrangente o problema da articulação entre de-
terminismo e necessitarismo é quando analisa as objeções necessitaris-
tas contidas no “sofisma da razão preguiçosa” ou no que designa tam-
bém como fatum mahometanum ou “destino à maneira dos turcos”. Na
sua formulação, como veremos, estão em causa pelo menos três fun-
damentos do determinismo que parecem concorrer como fatores para
um mesmo desenlace necessitarista: a previsão e providência de Deus,
o encadeamento das causas e a verdade da futurição. O que tem de ca-
racterístico o “sofisma da razão preguiçosa” é sustentar que o que ex-
plica a determinação de todos os acontecimentos parece obrigar a ad-
mitir a sua absoluta necessidade e o seu caráter inevitável. Articulando
estas três razões, os fundamentos do necessitarismo e da determinação

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parecem coincidir, e esta ser a expressão primeira daquele: a verdade


dos futuros está determinada e o que a determina – as causas estabele-
cidas por Deus – torna a verdade e o que nela se afirma necessário, i-
nalterável.
Resolver este problema – desvincular determinação e necessi-
dade absoluta – passa, portanto, por desvincular, pelo menos em parte,
causalidade e necessidade – admitindo uma causalidade livre, uma causali-
dade não necessitante mas apenas inclinante – e passa por desvincular
certeza e necessidade ou verdade e necessidade. Há causas contingentes e há
verdades contingentes. Se for possível fundar adequadamente estas te-
ses será possível compreender como se conjugam a presciência e a pro-
vidência, por um lado, e a contingência (e essa forma singular de con-
tingência que é a liberdade), por outro. Será possível, encontrar a tercei-
ra via – nem tomista nem molinista – que permite compreender em que
se funda o conhecimento divino da totalidade do real e em concreto do
futuro livre. E será possível ao mesmo tempo detectar o que tem de
insatisfatório – de ímpio – a concepção da divindade de Espinosa ou o
que tem de inaceitável – de tirânico – o conceito de liberdade de Hob-
bes.
Na impossibilidade de abordar todos os aspectos pertinentes
ou sequer alguns deles com detalhe, consideraremos, em primeiro lugar,
brevemente, os pressupostos da posição leibniziana: a sua convicção de
que tudo está determinado mas nem tudo é necessário. Considerare-
mos, depois, o modo como Leibniz resolve o problema da relação entre
determinação e necessidade ao conceber a solução de dois problemas
concretos: o “sofisma da razão preguiçosa” e o problema da verdade do
futuro.

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2. Os pressupostos da posição leibniziana: determinação e con-


tingência.

As teses que enquadram a posição leibniziana em torno do ne-


cessitarismo e do determinismo são, pelo menos à primeira vista, ine-
gociáveis para Leibniz. Umas referem-se a Deus, outras referem-se à
sua obra. Assim, Leibniz tem por certo que Deus é omnisciente e é li-
vre no seu agir ad extra. Isto significa que Deus cria criaturas contingen-
tes – que podiam não ser ou ser de outro modo – e que conhece perfei-
tamente tudo o que criou ou poderia criar: o que é, o que foi, o que será
e também o que não foi, mas podia ter sido, o que não é mas podia ser,
e o que poderia ser mas não será.
Leibniz justifica estas duas teses – a liberdade divina e a omnis-
ciência – de modos diversos. No contexto preciso dos Essais de Théodicé-
e, provavelmente o argumento decisivo que as funda é a consideração
de que são de verdades de fé. Trata-se de verdades reveladas, que não
admitem discussão nem podem ser postas em causa sem impiedade.
Com efeito, sabemos pela fé que Deus criou livremente: criou porque
quis e criou o que quis. O Deus cristão, o Deus da fé, não pode conce-
ber-se como o Deus de Espinosa. Deus não é uma potência cega, uma
mera e suma potência, é antes uma potência unida a uma razão e a uma
vontade, isto é, no qual é possível distinguir, por assim dizer, três virtu-
alidades: sabedoria, potência e bondade 7 . E com a mesma certeza com
que sabemos por fé que Deus criou livremente, sabemos também que
conhece exaustivamente e na perfeição tudo o que se pode conhecer:
que é omnisciente. Sabemos em concreto, por exemplo, que previu e
profetizou o futuro humano livre.
Mas, por outro lado, a liberdade divina é também uma verdade
a que a razão humana acede com relativa facilidade. Com efeito, não só
Deus se nos dá a conhecer deste modo, como possuímos uma espécie
de comprovação a posteriori de que é realmente assim, já que, se Deus
7 Cf. Théodicée, §§ 149-150, pp. 198-199; cf. também § 116. p. 167.

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carecesse de alguma destas perfeições – se quiséssemos assegurar a sua


potência infinita à custa de negar a sua inteligência ou a sua bondade
infinitas -, ou não haveria mundo ou ele não seria como é: um mundo
ordenado e compreensível, mas de tal modo constituído que é concebí-
vel outro diverso dele. A natureza ao mesmo tempo inteligível e não
absolutamente necessária do mundo que nos rodeia indica que este
mundo foi escolhido entre, preferido a, outros mundos também conce-
bíveis mas diversos deste que efetivamente existe 8 . Sendo assim, haverá
que admitir que dispomos de uma prova a posteriori da liberdade divina,
já que só há mundo porque Deus considerou no seu entendimento vá-
rias – infinitas – possibilidades e se decidiu por uma delas. Dito de ou-
tro modo, as características do universo criado evidenciam que, detrás
do mundo, como sua causa, está uma vontade livre, a qual determinou
a potência divina, que é por si mesma igualmente capaz de criar qual-
quer mundo possível e, portanto, incapaz de se autodeterminar por si
mesma a criar uma das possibilidades alternativas 9 . Assim, se Deus ca-
recesse de entendimento (como pretendeu Espinosa), não poderia criar,
porque seriam inconcebíveis possibilidades alternativas entre as quais
escolher; se carecesse de vontade, tampouco poderia criar, porque seria
incapaz de se determinar entre alternativas que conflituam e se com-
pensam; por último, se carecesse de potência, Deus não poderia criar,
porque lhe faltaria o poder de realizar o que o entendimento concebe e
a vontade prefere.
A vontade apresenta-se assim como uma fonte indispensável
de determinação – diversa e independente da potência – que, em virtu-
de do seu objeto próprio, atua escolhendo, isto é, identificando ou de-

8 Cf. Théodicée, § 349, p. 321: « les loix de la nature qui reglent les mouvements
ne sont ni tout à fait necessaires, ni entierement arbitraires. Le milieu qu’il ya a
à prendere, est qu’elles sont un choix de la plus parfaite sagesse ».
9 Cf., entre outros, Théodicée, § 45, p. 128: « (…) ce seroit un grand defaut ou

plustost une absurdité manifeste (…) s’ils [Deus e os santos] étoient capables
d’agir sans aucune raison inclinante ». Cf. igualmente § 128, p. 182 e § 130, pp.
182-183.

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terminando o preferível entre alternativas igualmente possíveis em si


mesmas e incompossíveis entre si. Essas alternativas coexistem no en-
tendimento divino como meras possibilidades de ser, todas susceptíveis
de serem atualizadas pela potência infinita de Deus 10 , mas que só pode-
rão ser atualizadas quando o equilíbrio entre as alternativas for vencido
por alguma razão diversa da da mera possibilidade.
Deste modo, a contingência do mundo criado não é um ponto de
chegada, mas um ponto de partida da argumentação leibniziana; é a expressão
modal da liberdade divina e a sua principal tradução ontológica. A con-
tingência do criado não é só a marca da diferença existente entre Deus
– o ser necessário – e as criaturas que têm na vontade divina a razão da
sua existência; é também algo que elas próprias trazem, por assim dizer,
gravado no seu próprio ser ou no seu modo de ser: são na forma de
poder não ter sido; são como algo que tanto poderia ser como não ser.
Isto quanto à liberdade divina e à correlativa contingência no
ser e no modo de ser das criaturas. Porque, por outro lado, a omnisci-
ência divina é também, além de uma verdade de fé, vezes sem conta
testemunhada no texto sagrado, uma das notas essenciais da noção que
temos de Deus. Quem nega a omnisciência nega realmente a divindade.
É inconcebível Deus como um intelecto limitado e é inconcebível o
conhecimento divino como lacunar ou incerto: Deus conhece tudo e
conhece-o perfeitamente. Aqui, ao contrário do que se verifica no caso
da contingência do mundo, que expressa a liberdade divina, o raciocínio
não é a posteriori mas a priori. Mesmo que não pareça, mesmo que pareça
impossível, mesmo que sejamos tentados a afirmar que tem que haver
coisas que Deus não sabe, a razão obriga a afirmar que o conhecimento
divino é omnisciente, de tal modo que a negação da omnisciência é re-
almente uma negação de Deus enquanto tal.

10 Cf., por exemplo, Théodicée, § 124, p. 178: « il est permis de dire que Dieu peut

faire que la vertu soit dansle monde aucun melange de vice, et même qu’il le
peut faire aisement ».

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É a impossibilidade de dissociar Deus e omnisciência e o cará-


ter a priori desta relação que Leibniz expressa no princípio de razão:
tudo o que é tem uma razão para ser em vez de não ser e para ser assim
em vez de ser de outro modo. Tem que ser assim – mesmo que pareça
o contrário – porque Deus conhece tudo e o conhece de modo funda-
do, nas razões que o explicam. Assim, há que sustentar que tudo tem
uma razão, mesmo que essa razão nos seja temporária ou permanente-
mente inacessível, porque Deus é omnisciente. O princípio de razão é o
operador que, por um lado, enuncia a exaustiva inteligibilidade do real –
possível ou atual – a partir da certeza da omnisciência, e que, por outro
lado, regista que essa inteligibilidade nos é em grande medida inacessí-
vel no pormenor. É necessário dizer que tudo tem uma razão – porque
Deus é omnisciente – mesmo que tenhamos que aceitar que essa razão
é desconhecida ou inacessível – porque nós não somos omniscientes 11 .
A conjugação das duas teses – Deus é livre (cria seres contin-
gentes) e é omnisciente – situa-nos no ponto de partida da argumenta-
ção de Leibniz: tem que haver alguma forma de conciliar contingência e
omnisciência. Ou, se quisermos, nem o que fundamenta a contingência
e a ação livre de Deus pode constituir um obstáculo à sua omnisciência,
nem a omnisciência pode pôr em causa, até a anular, a liberdade da es-
colha divina e a contingência do escolhido. Mais radicalmente, se ti-
vermos em conta que a liberdade humana é também um pressuposto
(pelo menos teológico) da argumentação desenvolvida nos Essais de
Théodicée, Leibniz não está disposto a escolher entre omnisciência divina
e liberdade (divina ou humana). Há omnisciência e há liberdade e isso
significa para Leibniz que a ação livre – divina ou humana – possui as
suas razões, pelas quais é cognoscível e é efetivamente conhecida por
Deus.
A partir daqui, Leibniz serve-se de um conjunto razoavelmente
vasto de conceitos e de princípios para articular estas duas certezas e

11Estabelecer e tornar plausíveis estas teses é um dos principais objetivos do


Discours Preliminaire.

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Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 41

para operacionalizar a relação entre conhecimento certo e contingência do co-


nhecido. Alguns desses conceitos e princípios provêm diretamente da
sua metafísica, outros são desenvolvidos ad hoc e acabam por informar a
própria metafísica. É difícil determinar quais estão antes e quais são
derivados, tanto mais que a sua doutrina modal não parece conceber-se
como um sistema dedutivo, mas resultar antes de uma multiplicidade de
perspectivas de abordagem irredutíveis entre si e complementares.

3. A verdade do determinismo

Consideremos em primeiro lugar o elenco de teses que funda o


determinismo. Leibniz não se refere ao determinismo como a uma de-
terminada corrente filosófica. Afirma, no entanto, vezes sem conta que,
em seu entender, tudo está determinado 12 , que nada é indeterminado, e
apresenta esta tese como uma verdade geral, cuja negação violaria o
princípio de razão. E refere-se à indeterminação real – ao acaso – con-
siderando-a uma impossibilidade metafísica, um absurdo lógico 13 . Tra-
ta-se do mesmo absurdo que se observa e há que denunciar nas teorias

12 Cf., por exemplo, Théodicée, § 52, p. 131: « Tout est donc certain et determiné
par avance dans l’homme comme par tout ailleurs ». Cf. também Reflexions sur
l’ouvrage que M. Hobbes a publié… , p. 389 : « Ce qui revient à ce que j’ay dit tant
de fois, que tout arrive par des raisons determinantes, dont la connoissance, si
nous l’avions feroit connoistre en même temps pourquoy la chose est arrivée,
et pourquoy elle n’est pas allée autrement ».
13 Cf., entre outros, Théodicée, § 303, pp. 296-297 : « Mais comme je me suis

expliqué plus d’une fois, je n’admets point une indifference d’equilibre, et je ne


crois pas qu’on choisisse jamais, quand on est absolument indifferent. Un tel
choix seroit une espece de pur hazard, sans raison determinante, tant
apparente, que cachée. Mais un tel hazard, une telle casualité absolue et reelle,
est une chimere qui ne se trouve jamais dans la nature. Tous les sages
conviennent que le hazard n’est qu’une chose apparente, comme la fortune :
c’est l’ignorance des causes qui le fait. Mais s’il y avoit une telle indifference
vague, ou bien si l’on y choisissoit sans qu’il y eût rien qui nous portât à
choisir, le hazard seroit quelque chose de réel… ».

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
42 Marta de Mendonça

da vontade que radicam a liberdade na indiferença de equilíbrio, que


vinculam a liberdade à arbitrariedade 14 . A determinação é, como já se
indicou brevemente, uma nota do ser, de todo o ser, e tudo tem um
certo modo de ser ou é de certo modo. O que é válido para o ser da
realidade é válido também para os seus processos e portanto também
para as ações livres divinas ou humanas: nenhum processo real escapa a
um princípio de determinação ou poderia ocorrer na ausência dele 15 .
A absoluta determinação de todo o real, tanto do seu ser como
dos seus processos, é, portanto, antes de mais uma verdade ou um e-
nunciado metafísico: é inconcebível a indeterminação, a sua defesa é a
hipostasiação ou a reificação de uma lacuna, de uma ignorância, de uma
falta. A exploração desta tese e da centralidade que ela possui na onto-
logia de Leibniz obrigaria a sair dos Essais de Théodicée, mas é inquestio-
nável que eles a assumem como uma tese nuclear, de cariz ao mesmo
tempo ontológico e epistemológico.
Mas não é apenas que a absoluta determinação de tudo o que é
decorra diretamente do modo como Leibniz concebe o ser, de tal mo-
do que pudéssemos dizer que, se o tivesse concebido de outro modo,
poderia eventualmente ter sustentado a tese da não absoluta determina-
ção do real. Esta tese metafísica encontra, por assim dizer, a sua con-
firmação ou a prova da sua verdade na omnisciência. A razão para que
assim seja é que não são, em seu entender, conciliáveis a omnisciência e
a indeterminação. Com efeito, como seria possível afirmar a omnisciên-

14 Cf. III, Théodicée, § 303, p. 297 : « (…) une liberté d’indifference indefinie, et

qui fût sans aucune raison determinante, seroit aussi nuisible et même
choquante, qu’elle est impracticable et chimerique. (…) Mais il est tres vray
aussi que la chose est impossible, quand on la prend dans la rigueur de la
supposition ».
15 Cf. Théodicée, §§ 44-45, p. 127: Leibniz refere-se ao princípio de razão deter-

minante apresentando-o como “une regle generale de la nature des choses”.


Cf. também § 320, p. 306: « Vouloir qu’une determination vienne d’une pleine
indifférence absolument indeterminée, est vouloir qu’elle vienne naturellement
de rien ».

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 43

cia e sustentar que há realidades indeterminadas? Ou, noutros termos,


se ser omnisciente significa conhecer sem risco de erro a totalidade do
que é ou será, como é possível admitir que esteja indeterminado – inde-
cidido – algum acontecimento? Também aqui, a determinação afirma-se
a priori, de tal modo que, onde as razões de determinação não são per-
ceptíveis, não só não estamos autorizados a negar que existem, como
temos a certeza de que existem razões imperceptíveis. Em suma, Leib-
niz considera que não pode admitir nenhuma forma de indeterminação
real, ou que não está autorizado a entender a contingência como inde-
terminação real, sob pena de ter que negar a omnisciência.
Compreende-se bem o que esta tese significa para Leibniz: em
virtude dela, a oposição clássica entre necessitaristas e indeterministas -
entre Diodoro Cronos e Aristóteles e os múltiplos discípulos de um e
de outro - apresenta-se aos seus olhos, inevitavelmente, como uma falsa
oposição. Algo está mal nos raciocínios dos dois lados, posto que am-
bos fundam a sua argumentação na assimilação entre determinação e neces-
sidade, por um lado, e indeterminação e contingência, por outro. Ora, não é
possível sem impiedade escolher um dos temos da alternativa: se optás-
semos por Aristóteles negaríamos a omnisciência, se nos inclinássemos
para Diodoro negaríamos a contingência do mundo e a liberdade do
homem. A única posição defensável obriga a reter a determinação de
Diodoro e a contingência e a liberdade de Aristóteles. Mas esta via in-
termédia obriga, como já indicamos, a abandonar os pressupostos de
ambos 16 .
Há múltiplos indícios nos Essais de Théodicée de que Leibniz vin-
cula diretamente a tese da exaustiva determinação da realidade – pode-
ríamos dizer, o seu determinismo – à omnisciência. Um dos sinais mais
claros desta vinculação é a frequente identificação entre certeza e determi-
nação. Assim, por exemplo, no § 2 lê-se: “há que notar que a liberdade é

16Cf., por exemplo, § 362, p. 329: “Ceux qui ont confondu cette determination
(dos futuros contingentes) avec la necessité ont forgé des monstres pour les
combattre ».

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
44 Marta de Mendonça

combatida (aparentemente) pela determinação ou pela certeza, qualquer


que ela seja, e, no entanto, o dogma comum dos nossos filósofos esta-
belece que a verdade dos futuros contingentes está determinada” 17 .
Mas o texto mais explícito é o do § 36. Leibniz escreve: “Assim (…) a
determinação, que se chamaria certeza se fosse conhecida, não é incompa-
tível com a contingência. Consideram-se frequentemente o certo e o de-
terminado como uma mesma coisa, porque uma verdade determinada
está em estado de poder ser conhecida, de maneira que se pode dizer
que a determinação é uma certeza objetiva” 18 . No parágrafo seguinte a
ligação entre determinação e certeza expressa-se diretamente em termos
de omnisciência: “a determinação em si mesma não acrescenta nada à
determinação da verdade dos futuros contingentes, a não ser que esta
determinação é conhecida” 19 ; e logo a seguir: “a presciência em si mes-
ma não torna a verdade mais determinada: ela é prevista porque está
determinada, porque é verdadeira” 20 . Já no final da obra, o vínculo en-
tre determinação, certeza e omnisciência é de novo explicitamente e-
nunciado: “Agora que já fizemos o suficiente para ver que tudo se faz
por razões determinantes, não se poderia encontrar aqui nenhuma difi-
culdade acerca do fundamento da presciência divina: pois embora estas

17 P. 102 : « il faut remarquer que la liberté est combattue (en apparence) par la
determination ou par la certitude, quelle qu’elle soit, et cependant le dogme
commum de nos philosophes porte, que la verité des futurs contingens est
determinée ».
18 P. 123 : « Ainsi (…) la determination, qu’on appelleroit certitude, si elle étoit

connue, n’est pas incompatible avec la contingence. On prend souvent le


certain et le determiné pour une même chose, parce qu’une verité determinée est
en état de pouvoir être connue, de sorte qu’on peut dire que la determination est
une certitude objective » ; cf. também § 44, p. 127: « la certitude objective ou la
determination ».
19 § 37, p. 124 : « la determination en elle même n’ajoute rien à la determination

de la verité des futurs contingents, si non que cette determination est connue”;.
20 § 38, p. 124 : « la prescience en elle-même ne rend point la verité plus

determinée : elle est prevue parce qu’elle est determinée, parce qu’elle est
vraye »

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 45

determinações não necessitem, não deixam de ser certas, e de permitir


prever o que acontecerá” 21 .
São múltiplos e complexos os aspectos em causa no modo co-
mo Leibniz concebe as relações entre ser, determinação, verdade e certeza.
Muito amplamente, neles se expressa, de diversos pontos de vista, o
sentido novo que adquire no pensamento leibniziano a tese de que o
ser é inteligível e que é o fundamento da verdade 22 . Mas o que não há
dúvida é que admite a tese da exaustiva determinação de toda a realida-
de: ser é sempre ser determinado. E isto independentemente de que
nos refiramos ao ser incriado ou às criaturas, que tenhamos em vista o
ser ou os processos a que as criaturas estão sujeitas, que consideremos
os seres inanimados e os seus processos ou as criaturas livres e as suas
ações, etc.
Abordar a questão da ação livre, seja ela divina ou humana, e
pensar a modalidade dos seus efeitos – a realidade criada e os compor-
tamentos humanos livres – não significa, portanto, conter o determi-
nismo (ou a omnisciência que, como vimos, é inseparável dele) e sub-
trair a ele a liberdade e os seus efeitos. Pelo contrário, obriga a pensar
de que forma, ou a partir de que ângulo, o determinismo (ou a omnisci-
ência) é conciliável com a contingência ou a liberdade, de tal modo que
não constitua para elas uma ameaça. Há determinismo e há liberdade,
isto é, determinismo e necessitarismo não se equivalem nem se impli-
cam: estar determinado não significa ser absolutamente necessário.

21 Théodicée, § 360, pp. 328-329 : « Maintenant que nous avons asses fait pour

voir que tout se fait par des raisons determinées, il ne sauroit y avoir aucune
difficulté sur ce fondement de la prescience de Dieu: car quoyque ces
determinations ne necessitent point, elles ne laissent pas d’être certaines, et de
faire prevoir ce qui arrivera ».
22 Cf. Théodicée, § 320, p. 306: referindo-se à concepção da liberdade como

liberdade de indiferença, Leibniz escreve: « Cette fause idée de la liberté,


formée par ceux qui ne contents de l’exemter, je ne dis pas de la contrainte,
mais de la necessité même, voudraient encor l’exemter de la certitude et de la
determination, c'est-à-dire de la raison et de la perfection ».

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
46 Marta de Mendonça

Mas, como desvincular estas duas noções que a tradição filosó-


fica associava tão intimamente? Nos Essais de Théodicée, Leibniz propõe
um elenco de procedimentos destinados a romper esse vínculo milenar.
Além do brevemente invocado nas citações anteriores – que fixa a in-
dependência conceptual das noções de necessidade, determinação e certeza -,
destaca a necessidade de modalizar, por assim dizer, a própria determi-
nação: determinação e necessidade não têm por que implicar-se se ad-
mitirmos que há formas de determinação necessitante dos seus efeitos e
formas de determinação não necessitante dos seus efeitos. Assim, a par
da afirmação incondicional da exaustiva determinação de toda a reali-
dade, Leibniz é levado a propor uma certa modalização da própria de-
terminação ou dos seus princípios. Que tudo esteja determinado não
significa que tudo esteja determinado do mesmo modo, ou com a
mesma necessidade. As razões de determinação são por vezes necessi-
tantes dos seus efeitos, mas noutros casos são meramente inclinantes,
sem serem necessitantes. É a esta dupla modalidade de determinação
que Leibniz alude quando refere que há dois grandes princípios de to-
dos os nossos raciocínios: o princípio de contradição e o princípio de
razão. Não se trata de dois princípios complementares, de tal forma que
um se aplique quando o outro não se aplica: pelo contrário, nenhum
deles admite exceção 23 . O que acontece é que nalguns casos a razão
suficiente de uma determinação é a referência à contradição – é assim
no caso das razões necessitantes – e que noutros casos a referência à
contradição – que não pode evidentemente deixar de considerar-se -
não basta para dar razão da determinação em questão e é então indis-
pensável invocar razões que inclinam – que determinam - sem necessi-
tar. Dito de outro modo, o princípio de razão estabelece que há sempre
algum critério de determinação que singulariza os seres e os processos,
que os determina exaustivamente, e, ao mesmo tempo, estabelece que
esse critério não é unicamente o da impossibilidade do oposto, embora

23Cf., entre outros, Théodicée, § 44, p. 127 e Remarques sur le Livre de l’origine du
mal, publié depuis peu en Angleterre, § 14, pp. 413-414.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 47

o próprio princípio não identifique imediatamente os procedimentos


concretos de determinação que operam em cada caso. Esta distinção
entre razões ou formas de determinação necessitantes e razões ou for-
mas de determinação inclinantes mas não necessitantes é indispensável
para quebrar o vínculo entre determinismo e necessitarismo. A inclina-
ção é suficiente para determinar o processo, mas não basta para decla-
rar impossível o processo oposto - por isso não é necessitante.
Para compreender a relação entre determinismo e necessitaris-
mo, importa observar ainda que nos Essais de Théodicée, Leibniz distin-
gue três formas de determinação: para além da determinação absoluta-
mente necessária, lógica ou geométrica, que fixa uma nota, um modo de
ser ou um processo como o único possível – ter três lados, para um
triângulo – há a determinação física própria da maioria dos processos natu-
rais, que é uma determinação contingente, mas própria de potências
determinadas ad unum – obedecer às leis do movimento, para qualquer
corpo - e a determinação própria dos comportamentos livres. Leibniz
considera-a uma forma de autodeterminação que é inclinante mas não ne-
cessitante do seu efeito. Trata-se da forma de determinação que carac-
teriza as potências racionais que, enquanto tais, podem ser consideradas
potências para contrários 24 , mas que, enquanto faculdades, se definem
por uma inclinação ou disposição à ação: a vontade quer sempre algum
bem, move-se entre bens (neste sentido está determinada pelo seu obje-
to próprio 25 ), mas não está determinada a um único bem, pelo contrá-
rio, tem que escolher entre bens diversos e incompossíveis (neste senti-
do, não está determinada ad unum). Em todo o caso, é importante ad-
vertir que a segunda forma de determinação – a determinação física –

24 Neste sentido, reconhece Leibniz, pode dizer-se que há uma certa indiferen-
ça nestas potências, coisa que não pode dizer-se das potências ad unum. É a
inclinação ou a disposição que impede que a indiferença seja de equilíbrio. É ela
que define a faculdade.
25 Cf. Théodicée, § 45, p. 128: « Jamais la volonté n’est portée a agir, que par la

representation du bien ». Sobre a relação entre predeterminação e disposição,


cf. também § 46, p. 128.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
48 Marta de Mendonça

se funda sempre sobre a terceira – sobre uma forma de autodetermina-


ção. Se o mundo físico e as suas leis não se concebessem como resulta-
do de uma escolha, como obra de uma criação, os seus procedimentos
de determinação seriam inconcebíveis, já que não poderia deixar de
constatar-se que são contingentes, mas não ficaria suficientemente fun-
dada a sua existência entre outras também possíveis. Dito de outro
modo, o traço distintivo da determinação própria do contingente é que
ela tem sempre na sua base uma escolha. O fundamento da determina-
ção contingente, mesmo a determinação contingente ad unum, ou de-
terminação física, é sempre uma liberdade. O caráter inclinante da de-
terminação contingente significa precisamente que ela é a determinação
que, direta ou indiretamente, tem na sua base uma preferência 26 .

4. A rejeição do necessitarismo

Como se acaba de ver, a defesa leibniziana do determinismo


vai acompanhada de uma certa flexibilização ou modalização da deter-
minação e dos seus mecanismos. No entanto, em diversos momentos
dos Essais de Théodicée, encontramos estas diversas formas de determina-
ção associadas às três formas de necessidade que Leibniz distingue nes-
ta obra: a necessidade absoluta, a necessidade física e a necessidade moral. Este
fato - e até a própria identidade dos termos que qualificam a determina-
ção e a necessidade - parecem não só anular a estratégia de desvincula-
ção entre determinismo e necessitarismo que aquela flexibilização se
destinava a possibilitar, como dar razão à maioria dos críticos de Leib-
niz, que o acusam de necessitarismo, já que ele parece associar as diver-
sas formas de determinação a outras tantas formas de necessidade. Isto
obrigaria, portanto, a fazer corresponder à tese da absoluta determina-
ção de toda a realidade – ao determinismo total – a tese da absoluta

26 Por isso, como vimos, Leibniz indica que as leis da natureza, que não são

nem absolutamente necessárias nem arbitrárias, são produto de uma escolha.


Cf. supra nota 8.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 49

necessidade de todas as coisas – um necessitarismo igualmente abran-


gente e total.
Mas a questão é bastante mais complexa. Pois, se é verdade que
Leibniz associa as diversas formas de determinação a outras tantas for-
mas de necessidade, é evidente também que isso não significa, em seu
entender, renunciar ou pôr em causa a tese segundo a qual o determi-
nismo não se identifica com o necessitarismo nem o implica. Como é
isto possível?
Uma vez mais, as estratégias argumentativas de Leibniz são di-
versas e complementares. Como no caso da defesa do determinismo,
passam em primeiro lugar por uma clarificação conceptual: neste caso,
pela clarificação conceptual dos conceitos modais e pelo reconhecimen-
to do caráter analógico da necessidade. Dito de outro modo, tal como
ocorria no caso do conceito de determinação, também o conceito de
necessidade admite uma certa flexibilização, de tal modo que é possível
afirmar que há sempre um certo grau de necessidade em cada um dos pro-
cessos ou dos seres da natureza, sem ter por isso que afirmar que esses
processos ou esses seres são absolutamente necessários.
É precisamente quando falta rigor na distinção destes diversos
sentidos ou quando eles se confundem que, segundo Leibniz, se cai no
necessitarismo: quando falta o rigor e a confusão se verifica interpre-
tam-se todas as formas de necessidade como necessidade absoluta e
anula-se a especificidade de cada uma delas. Dito muito brevemente,
Leibniz considera que a forma mais básica de pôr em evidência a falsi-
dade do necessitarismo consiste em reconhecer que há formas de ne-
cessidade não absoluta, isto é, que há mais do que uma forma de neces-
sidade.
Mas bastará a distinção de sentidos do conceito de necessidade
para evitar o necessitarismo? Não se trata de um recurso meramente
verbal e manifestamente insuficiente? Muitos leitores dos Essais de Théo-
dicée entenderam-no assim. Trata-se de uma solução insatisfatória – ar-
gumentam - porque Leibniz concebe um vínculo muito estreito entre

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
50 Marta de Mendonça

determinação e necessidade, vínculo que o leva precisamente a associar


as diversas formas de determinação a outras tantas formas de necessi-
dade. Com efeito, por um lado, como se indicou, Leibniz rejeita todas
as formas de indiferença real ou de acaso, considerando que são noções
quiméricas, impossibilidades metafísicas, etc. Ora, se é assim, se a indi-
ferença absoluta ou a contingência absoluta é uma impossibilidade real
- seria, se fosse possível, outro nome da arbitrariedade - isso significa
que nas diversas realidades contingentes e nos seus processos está sem-
pre presente algum grau de necessidade: ou, se preferirmos, nada é tão
absolutamente contingente que não possua nenhuma forma de necessi-
dade ou que possa ser dito não necessário em todos os sentidos. A en-
tidade – na medida em que está determinada - está sempre associada a
alguma forma de não indiferença ou de necessidade.
Por outro lado, o vínculo entre determinação e necessidade (es-
tando estas noções assim flexibilizadas) é muito estreito também por-
que o elo que as vincula é o conceito de razão. A universalidade deste
vínculo entre determinação e alguma forma de necessidade é precisa-
mente o que leva Leibniz a conferir-lhe o estatuto de um princípio: o
princípio de razão. É a razão (que funda ocultamente cada determina-
ção e, por esse motivo, funda tanto a omnisciência quanto os âmbitos
regionais de certeza que podemos ter os homens), que obriga a consi-
derar as diversas modalidades de determinação como modos diversos
de algo poder dizer-se nalgum sentido necessário. Dito de outro modo,
se é sempre possível reconduzir uma determinação – seja ela de que
tipo for – a alguma razão, tem que se admitir também que é sempre
possível dar razão da determinação em questão, de tal modo que quem
conheça as razões que a fundam sabe que, na presença dessas condi-
ções, a determinação tem que ocorrer. Dar razão de algo é explicar a
necessidade da sua ocorrência nas circunstâncias definidas, sejam elas
quais forem. Ora, é sempre possível dar razão de uma determinação;
portanto, é sempre possível associar cada uma das diversas formas de
determinação a alguma forma de necessidade.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 51

Admitido isto, a argumentação leibniziana tendente a desvincu-


lar o determinismo e o necessitarismo – de tal modo que seja possível
manter o primeiro e rejeitar o segundo – leva-o a sustentar que algumas
formas de necessidade são compatíveis com a contingência ou que nem
todas as formas de necessidade fundam ou implicam o necessitaris-
mo 27 . Dito de um modo mais radical, a estratégia de Leibniz nos Essais
de Théodicée passa por defender que as formas não absolutas de necessi-
dade são o verdadeiro nome da contingência. Ou, se quisermos, passa
por defender que as formas de determinação não metafísica ou lógica,
são formas de determinação contingente ou do contingente. E isto num
sentido muito preciso: antes de mais, as formas não absolutas da neces-
sidade são outro nome da contingência porque explicitam o caráter não
absolutamente necessário daquilo que nelas se afirma; por outro lado,
são-no também porque vinculam a contingência à inteligibilidade, de tal
modo que a alternativa à necessidade absoluta não é a indiferença ou o
acaso, mas alguma razão não necessitante 28 .
Compreende-se agora melhor a falsidade do necessitarismo e
alguns dos erros que se ocultam detrás das suas argumentações aparen-
temente irrefutáveis. Além das razões teológicas já referidas – as verda-
des de fé de que Deus é livre e de que os homens são agentes morais –,
que bastariam para o rejeitar, o necessitarismo estabelece uma tese teó-

27 Cf. Théodicée, Preface, p. 37: ao enunciar as diversas dificuldades que espera


resolver, Leibniz escreve: « Enfin l’on fera juger que la necessité hypothetique,
et la necessite morale,qui restent dans les actions librés, n’ont point d’incon, et
que la Raison paresseuse est un vray sophisme » ; cf., também, entre muitos
outros, § 236, pp. 258-259: « être necessité moralement par la sagesse, être
obligé par la consideration du bien, c’est être libre, c’est n’être point necessité
métaphysiquement. Et la necessité métaphysique seule, comme nous l’avons
remarqué tant de fois, est opposée a la liberté ».
28 Assim se compreende, por exemplo, que Leibniz vincule internamente a

liberdade à necessidade moral e apresente esta forma de necessidade como


uma “necessidade feliz”. O vínculo é tal que, na ausência dessa forma de ne-
cessidade, a ação livre ou a autodeterminação seriam impossíveis.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
52 Marta de Mendonça

rica e praticamente indefensável e funda-se num conjunto de inferên-


cias incorretas.
Com efeito, o que caracteriza o necessitarismo é que afirma e
sustenta a tese da absoluta necessidade de tudo o que acontece. Ora,
segundo os seus defensores, quando se aceita que alguma forma de ne-
cessidade está presente em todas as coisas, o necessitarismo torna-se
irrecusável pois a presença da necessidade – seja de que tipo for – anula
o seu oposto, a contingência. Dito de outro modo, o necessitarismo
estabelece a absoluta necessidade de tudo o que acontece esquecendo
ou anulando a diferença que existe entre ser absolutamente necessário e
ser necessário nalgum outro sentido. O que significa que, mesmo dis-
tinguindo teoricamente entre necessidade absoluta e necessidade não
absoluta ou hipotética, os defensores do necessitarismo acabam por
considerar que é igualmente necessário o que decorre de uma e de ou-
tra: aquilo cujo oposto implica contradição e aquilo cujo oposto é falso
mas não impossível. Mas não é possível aceitar a confusão ou a identi-
ficação entre falso e impossível, ou entre verdadeiro e necessário: convivemos
com esta distinção quotidianamente e ela apresenta-se-nos como irre-
dutível e como não podendo ser negada. Dito brevemente, segundo
Leibniz, o erro fundamental do necessitarismo consiste em não reco-
nhecer que a admissão de formas não absolutas de necessidade é sem-
pre uma defesa da contingência ou, se preferirmos, que quem admita
uma multiplicidade de sentidos do conceito de “necessidade” não pode
sem incoerência ser necessitarista. Admitir diversas formas de necessi-
dade é flexibilizar a necessidade e isso equivale a abandonar o necessita-
rismo. Ou, dito de outro modo, basta isto para ter que abandonar o
necessitarismo.
Leibniz denuncia de diversas perspectivas o erro necessitarista
e propõe recursos variados para o superar. Uma das formas mais inte-
ressantes de captar a posição de Leibniz neste ponto – o modo como
simultaneamente rejeita o necessitarismo e combate o indeterminismo
– é seguir a análise que faz do “sofisma da razão preguiçosa” e a solu-

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 53

ção que propõe para ele nos Essais de Théodicée. O diagnóstico e a solu-
ção deste sofisma correspondem, por assim dizer, a uma aproximação
negativa, tendente a mostrar que a determinação dos acontecimentos
não implica a sua necessidade absoluta, ou que podem ser integralmente
determinados comportamentos contingentes. Dito de outro modo, a
consideração do “sofisma da razão preguiçosa” permite afastar um
problema, apresentando-o como um falso problema 29 . O sofisma iden-
tifica-se e o problema resolve-se porque se compreende que é defensá-
vel, ou que é possível admitir, uma certa forma de destino e ainda assim
sustentar que o mundo é contingente e que os homens são capazes de
realizar atos livres.
De uma perspectiva complementar, o mesmo problema da ar-
ticulação entre determinismo e necessitarismo – e a mesma solução –
são amplamente desenvolvidos nos Essais de Théodicée a partir da consi-
deração do problema clássico da determinação do valor de verdade dos
enunciados futuros contingentes. Também aqui, como no caso do “so-
fisma da razão preguiçosa”, de que na realidade é inseparável, a resolu-
ção do problema consiste em descobrir como conciliar a contingência e
a omnisciência. Com efeito, o que tem de problemático a questão dos
futuros contingentes é que aparentemente a verdade de um enunciado
futuro é incompatível com a contingência do que nele é estabelecido e,
portanto, ou se afirma a sua verdade e se nega o seu caráter contingente
ou se afirma a sua contingência e se nega a sua verdade. Leibniz aborda
esta questão em vários momentos e de vários pontos de vista. Por um
lado, discute as posições divergentes de predeterministas e defensores
da ciência média a propósito do conhecimento divino do futuro ou da
“verdade da futurição”; por outro lado, detém-se longamente na análise
do conceito de possível, discutindo e criticando a definição diodoriana –
que é também a de Hobbes e de Espinosa – segundo a qual só “é pos-
sível o que é ou será”. A novidade que se encontra na abordagem da
questão dos futuros contingentes relativamente à do “sofisma da razão
29 Cf. Théodicée, Preface, p. 30.

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54 Marta de Mendonça

preguiçosa” é que neste caso Leibniz não se limita a denunciar uma


inferência incorreta e procura uma solução positiva para o problema
dos futuros contingentes ou, o que é o mesmo, para o problema da
inscrição da liberdade no destino. Essa solução põe as bases “metafísi-
cas” da sua doutrina da conciliação do determinismo com a contingên-
cia ou as bases metafísicas da sua simultânea defesa do determinismo e
rejeição do necessitarismo. Essa solução – que permite, como já indi-
cámos brevemente, abandonar a oposição aparentemente irredutível
entre Aristóteles e Diodoro – consiste em propor uma nova definição
do possível, resolvendo de outro modo a questão da existência de possí-
veis não atualizados: Aristóteles tinha razão em defender que “é possí-
vel o que não é nem será” ou que é falsa a tese megárica segundo a qual
só “é possível o que é ou será”. Mas não tinha razão quando supôs que
a aceitação deste conceito do possível obriga a admitir que os futuros
contingentes estão indeterminados ou que são imprevisíveis. E não ti-
nha razão porque não compreendeu que a sede dos possíveis não reali-
zados não é o mundo atual incompletamente determinado mas sim a
mente divina na qual eles têm um ser, por assim dizer, eterno. Por isso,
segundo Leibniz, a argumentação aristotélica que vincula a possibilida-
de ao tempo – em concreto ao futuro - é inaceitável e deve ser rejeita-
da: é tão possível o futuro que poderia ser mas não será como é possí-
vel o passado que não foi mas poderia ter sido.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 55

5. O “sofisma da razão preguiçosa” e a sua solução

Leibniz menciona o “sofisma da razão preguiçosa” logo no iní-


cio dos Essais de Théodicée e é uma versão deste mesmo sofisma que é
formalizada e solucionada na terceira objeção do Abregé de la Controver-
se 30 . Nas suas implicações práticas, Leibniz associa este sofisma ao fatum
mahometanum ou à interpretação mais necessitarista do destino, por con-
traposição à visão menos estrema dos estóicos - o fatum stoicum – e em
oposição ao que é a sua própria visão do destino – o fatum christianum 31 .
A formulação do sofisma, bem assim como a sua justificação,
encontram-se no Prefácio:
“Os homens de quase todas as épocas foram perturbados por
um sofisma, que os Antigos chamavam a Razão preguiçosa, porque
levava a não fazer nada, ou pelo menos a não se preocupar com nada, e
a não seguir senão a inclinação dos prazeres presentes. Pois, dizia-se, se
o futuro é necessário, o que deve acontecer acontecerá, faça eu o que
fizer. Ora, o futuro (dizia-se) é necessário, quer seja porque a Divindade
prevê tudo, e inclusivamente o estabelece, ao governar todas as coisas

30 Cf. pp. 379-381.


31 Cf. Théodicée, Preface, pp. 30-31 : « Les hommes presque de tout temps ont
esté troublés par un sophisme, que les Anciens appelloient la Raison
paresseuse, parce qu’il alloit à ne rien faire, ou du moins à n’avoir soin de rien,
et à ne suivre que le penchant des plaisirs presents. Car, disoit-on, si l’avenir est
necessaire, ce qui doit arriver arrivera, quoyque je puisse faire. Or l’avenir
(disoit-on) est necessaire, soit pace que la Divinité prevoit tout, et le préétablit
même, en gouvernant toutes les choses de l’univers ; soit parce que tout arrive
necessairement, par l’enchainement des causes ; soit enfin par la nature même
de la verité, qui est determinée dans les enonciations qu’on peut former sur les
evenemens futurs, comme elle l’est dans toutes les autres enonciations, puisque
l’enonciation doit tousjours estre vraye ou fausse en elle-même. Et toutes ses
raisons de determination qui paroissent differentes, concourent enfin comme
des lignes à un même centre, car il y a une verité dans l’evenement futur, qui
est predeterminée par les causes, et Dieu la préétablit en établissant les
causes ». Cf. p. 31: « la raison paresseuse, tirée du destin irresistible».

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
56 Marta de Mendonça

do universo; quer seja porque tudo acontece necessariamente, pelo en-


cadeamento das causas; que seja, finalmente, pela própria natureza da
verdade, que está determinada nos enunciados que se podem formar
acerca dos acontecimentos futuros, como o está em todas as outras
enunciações, já que a enunciação deve ser sempre verdadeira ou falsa
em si mesma. E todas estas razões de determinação, que parecem dife-
rentes, concorrem finalmente como linhas para um mesmo centro, pois
há uma verdade no acontecimento futuro, que está predeterminada pe-
las causas, e Deus preestabeleceu-a ao estabelecer as causas” 32 .
Vejamos com um pouco de detalhe o argumento. Em primeiro
lugar, o sofisma infere da necessidade do futuro a inutilidade da ação e
a sua inimputabilidade: se o futuro é necessário, acontecerá, façamos
nós o que fizermos. O futuro é irresistível e por isso é absurdo tentar
opor-lhe resistência ou alterá-lo.
Num segundo momento, funda-se ou justifica-se a necessidade
do futuro. Leibniz menciona três argumentos ou três razões; estas ra-
zões são tais que cada uma delas por separado bastaria para fundar a
tese da necessidade do futuro. Assim, o futuro é necessário: a) porque
tudo é previsto por Deus e mesmo preestabelecido por ele, através da
sua providência universal; b) porque tudo acontece necessariamente,
pelo encadeamento das causas; c) pela própria natureza da verdade,
uma vez que qualquer enunciado deve ser verdadeiro ou falso em si
mesmo. Nestas três razões parecem invocar-se três princípios a que não
é possível escapar: o princípio de causalidade (2ª razão), o princípio de
bivalência (3ª razão) e uma verdade universal de origem teológica - a
presciência e providência universal de Deus (1ª razão).

32 P. 30. Uma argumentação similar, agora sem alusão expressa ao “sofisma da

razão preguiçosa”, encontra-se no §2, pp. 102-103. Embora o sofisma não seja
aludido, é a tese que nele se sustenta que é aqui apresentada também, numa
argumentação em que Leibniz expõe as razões que parecem opor-se à liberda-
de.

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Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 57

Por último, a independência destes argumentos é matizada e


eles são vinculados, considerando-se como diferentes linhas que con-
correm para um mesmo centro – a necessidade do futuro. Leibniz rela-
ciona-as partindo, por assim dizer, do argumento menos radical para o
mais radical. O futuro é necessário porque há uma verdade dos enunci-
ados que o expressam, verdade essa que está determinada nas causas ou
razões do futuro, e que foi estabelecida por Deus ao estabelecer as refe-
ridas causas. O ato criador – que estabeleceu as causas – é portanto a
origem da necessidade do futuro e Deus é a origem de toda a necessi-
dade.
É interessante observar a linguagem utilizada por Leibniz na
reconstituição do argumento, porque ela explicita a relação que o so-
fisma guarda com o problema do determinismo e do necessitarismo.
Leibniz explicita as razões que, segundo o “sofisma da razão preguiço-
sa”, fundam a afirmação da necessidade absoluta de todas as coisas, e
portanto também do futuro. Invoca a previsão e a providência de Deus,
o princípio de causalidade e o valor universal do princípio de bivalência.
No entanto, ao vincular estas três razões, refere-se a elas como “razões
de determinação que parecem diferentes”. Dito de outro modo, as ra-
zões de determinação entendem-se como razões necessitantes: o futuro
diz-se necessário porque concorrem estas três razões de determinação.
Uma escolha divina determina as causas e estas, uma vez determinadas,
predeterminam os seus efeitos e, por isso, fundam e predeterminam a
verdade. Na raiz da necessidade do futuro está uma escolha, uma esco-
lha inalterável simultaneamente predeterminante e necessitante.
Mas, se é assim, onde está o sofisma? Onde reside, e como des-
fazer, o erro inscrito num sofisma que “afligiu os homens de quase to-
das as épocas”?
Consideremos em primeiro lugar a posição leibniziana a respei-
to dos argumentos invocados. Parece evidente que Leibniz rejeitaria o
segundo argumento mas aceitaria o primeiro e o terceiro. Assim, relati-
vamente ao primeiro argumento - a divindade prevê tudo e até preesta-

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58 Marta de Mendonça

belece tudo ao governar todas as coisas do universo -, se não tivermos


em conta o caráter, por assim dizer, prévio do conhecimento divino e
do seu governo, veiculado pelo prefixo “pre”, que obrigaria a algumas
precisões significativas, poderíamos dizer que se trata de uma tese parti-
lhada por Leibniz e que ele fez sua: Deus é omnisciente e a sua provi-
dência estende-se a tudo. O mesmo se poderia dizer em relação ao ter-
ceiro argumento - um enunciado deve ser sempre verdadeiro ou falso
em si mesmo, ainda que nós ignoremos qual é realmente o seu valor de
verdade. O argumento enuncia de forma universal o princípio de biva-
lência, que é, na opinião de Leibniz, uma verdade necessária ou lógica,
que expressa a própria natureza da verdade. Em contrapartida, embora
reconheça que o princípio de causalidade é um princípio com valor u-
niversal no universo criado, Leibniz rejeitaria o segundo argumento.
Trata-se de uma formulação incorreta deste princípio, que confunde a
necessidade de que tudo tenha uma causa com o caráter necessitante do
vínculo causal 33 . Há que dizer que nada carece de causa, mas não se
pode afirmar sem incoerência que toda a causalidade é necessitante.
Aceitar esta tese é já renunciar à liberdade, não é proporcionar um ar-
gumento que permita pô-la em causa. A raiz do sofisma encontra-se
aqui. Assumiu-se que a causalidade é sempre necessitante, o que não
está provado, e é com base nesse erro que se infere o necessitarismo da
validade universal do princípio de causalidade.
Trata-se de três argumentos independentes, cada um dos quais
bastaria para estabelecer a necessidade do futuro. Desses três argumen-
tos Leibniz mantém dois e rejeita um. Por que razão então não é con-
duzido à mesma conclusão necessitarista a que conduziu o sofisma?

33A causa é uma condição ideal, uma razão inclinante ou determinante, mas
não é sempre uma razão necessitante: cf. Théodicée, § 54, p. 132. Sobre o valor
universal do princípio de causalidade, cf. § 55, pp. 132-133: «l’effect étaint
certain, la cause que le produira l’est aussi; et si l’effect arrive, ce sera par une
cause proportionnée »

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Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 59

A esta questão a resposta parece ser a seguinte: embora possam


considerar-se autonomamente, os argumentos invocados não são ar-
gumentos independentes mas sim razões que concorrem para um
mesmo desenlace e que têm graus de radicalidade diversos. O modo
como se interpreta a necessidade associada à providência ou a presciên-
cia e o modo como se interpreta a necessidade associada à verdade dos
enunciados futuros depende do modo como se interpreta o princípio
de causalidade, ou como se interpreta a segunda razão. Só se o vínculo
causal fosse necessitante as duas formas de necessidade associadas aos
enunciados a) e c) seriam necessitantes, irresistíveis. Com efeito, escla-
rece Leibniz ainda no Prefácio, a pretensa necessidade absoluta do des-
tino só deixa de paralisar e pode ser resolvida quando se compreende
“em que consiste o defeito do Sofisma. É que é falso que o aconteci-
mento acontece faça eu o que fizer; ele acontecerá, porque se fará o que
leva a isso; e se o acontecimento está escrito, a causa que o fará aconte-
cer, está também escrita. Assim, a ligação dos efeitos e das causas, mui-
to longe de estabelecer a doutrina de uma necessidade prejudicial à prá-
tica, serve para a destruir” 34 .
Dito de outro modo, há certamente uma necessidade associada
a cada um destes argumentos, mas trata-se de uma necessidade tal que
não só não destrói a moralidade, como permite combater o argumento
que a destrói. Na raiz da dissolução do sofisma está, antes de mais, a
compreensão de que as causas, que Deus decidiu criar e que fundam a
verdade dos enunciados futuros, são a verdadeira razão dos aconteci-
mentos futuros, que acontecerão porque elas os produzirão: não é o
destino mas sim as causas que produzem o futuro, e fazem-no, nuns

34 P. 33 : « en quoy consiste le défaut du Sophisme. C’est qu’il est faux que


l’évenement arrive quoyqu’on fasse; il arrivera, parce qu’on fait ce qui y mene;
et si l’évenement est écrit, la cause qui le fera arriver, est écrite aussi. Ainsi la
liaison des effects et des causes, bien loin d’établir la doctrine d’une necessité
prejudiciable à la practique, sert à la détruire ». Cf. também § 55, pp. 132-133: «
la liason des causes avec les effect, bien loin de causer une fatalité
insupportable, fournit plustost un moyen de la lever ».

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60 Marta de Mendonça

casos, necessariamente porque são causas necessitantes e, noutros ca-


sos, fazem-no livre e responsavelmente porque são causas livres e res-
ponsáveis 35 . Mas de que necessidade se trata? Ou qual é a necessidade
que está associada aos três argumentos mas que, no entanto, não permi-
te concluir – como pretende o sofisma – que tudo o que tem que acon-
tecer acontecerá necessariamente, façamos nós o que fizermos?
Ao analisar a objeção III no Abregé de la controverse… 36 , Leibniz
esclarece este ponto. A objeção sustenta que “é injusto punir porque o
pecado é necessário”. Parte do enunciado condicional: “se é impossível
não pecar, é injusto punir” e, com base na prova do antecedente, con-
clui a injustiça do castigo. Como se prova a verdade do antecedente: “é
impossível não pecar” ou “é necessário pecar”? Leibniz apresenta uma
possível prova construindo dois prossilogismos, que justificam sucessi-
vamente a premissa menor do argumento de partida - “o pecado é ne-
cessário” - e a premissa menor do primeiro prossilogismo - “tudo está
predeterminado”. Os prossilogismos são os seguintes:

1. Tudo o que é predeterminado é necessário.


Todos os acontecimentos estão predeterminados
Todos os acontecimentos (também os pecados) são necessários.

2. O que é futuro, o que é previsto, o que está contido nas causas, é


predeterminado.
Todos os acontecimentos (também os pecados) são assim.
Todos os acontecimentos estão predeterminados.

35 Que é realmente assim é o que se verifica quando registamos que o “sofisma


da razão preguiçosa” só parece ser convincente quando o conhecimento das
causas é difícil: ninguém, estando doente, deixa de tomar o medicamente na
convicção de que não o necessita porque não está escrito no livro do destino
que não morrerá daquela doença. Cf. Théodicée, Preface, pp. 31-32.
36 Cf. pp. 379-381.

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Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 61

Apresentados os prossilogismos, responde à objeção. É aceitável a con-


clusão do segundo prossilogismo – “tudo está predeterminado” – mas
não é aceitável a premissa maior do primeiro prossilogismo – “tudo o
que é determinado é necessário”. Ou antes, não é aceitável esta tese se a
necessidade de que estamos a falar é a necessidade absoluta, que destrói
a moralidade e que tornaria injusto o castigo. Pois se tivéssemos em
vista alguma outra forma de necessidade – uma forma de necessidade
hipotética ou moral – seria o próprio ponto de partida do argumento
que haveria que rejeitar: haveria que negar que seja verdade que “Se é
sempre impossível (hipotética ou moralmente) não pecar, é sempre in-
justo punir”. Bastaria argumentar assim para anular a objeção. E caberia
ao objetor provar o enunciado condicional que está na base da objeção:
“Se é sempre impossível (hipotética ou moralmente) não pecar, é sem-
pre injusto punir”. Mas – prossegue Leibniz – os Essais de Théodicée pre-
tenderam ir mais longe: não se limitaram a responder à objeção, procu-
raram mostrar positivamente que as coisas são de outro modo. Pois
bem, para lançar luz sobre esta matéria, o que Leibniz tentou nos Essais
de Théodicée foi foi precisamente explicar “a necessidade que deve ser
rejeitada, e a determinação que deve ter lugar” 37 . Ora, a necessidade
que deve ser rejeitada é apenas a necessidade absoluta, a necessidade
invencível, que tornaria inútil a oposição. Mas esta necessidade não se
aplica às ações voluntárias, que precisamente não seriam feitas se não se
quisesse fazê-las. Por isso também a sua previsão e predeterminação
não são absolutas, mas pelo contrário pressupõem o gesto voluntário
que as produz, de tal modo que se pode dizer que a razão da predeter-
minação e da previsão é precisamente a realização da ação e a volunta-
riedade de a realizar. Assim, a própria previsão e predeterminação pres-
supõem a vontade e contam com ela. Trata-se, esclarece Leibniz neste
texto, de uma necessidade condicional ou hipotética, ou de uma neces-

37 P. 380 : « on a bien voulu encor rendre raison de ce procedé dans l’ouvrage

present (…) en explicant lanecessité qui doit être rejetée, et la determination


qui doit avoir lieu ».

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sidade da consequência, que deve ser assim considerada porque supõe a


vontade e os outros requisitos de determinação. Esta necessidade hipo-
tética não destrói a moralidade. A moralidade é destruída pela necessi-
dade absoluta ou essencial. Ora, quem não reconhece que estamos em
face de uma necessidade hipotética ou da consequência, na qual contam
as escolhas livres, etc., cai no “sofisma da razão preguiçosa”. Assim, “a
predeterminação dos acontecimentos pelas causas é precisamente o que
contribui para a moralidade, em vez de a destruir, e as causas inclinam a
vontade sem a necessitar. É por este motivo que a determinação de que se
trata não é uma necessitação: é certo (para quem sabe tudo) que o efei-
to seguirá esta inclinação; mas este efeito não se segue dela por uma
consequência necessária, isto é, cujo contrário implique contradição; e é
também por uma inclinação interna deste tipo que a vontade se deter-
mina, sem que haja necessidade” 38 .
Se na primeira apresentação do “sofisma da razão preguiçosa”,
Leibniz invocava o princípio de causalidade para negar o caráter irresis-
tível do vínculo causal, aqui explica o mecanismo que funda esta sua
tese. Só a necessidade absoluta se opõe à moralidade. Só ela poderia
fundar o “sofisma da razão preguiçosa”. Mas a necessidade em causa
no destino, a necessidade em causa nas ações futuras, não é uma neces-
sidade absoluta. É uma necessidade hipotética, que pressupõe, em vez
de a negar, a causalidade da vontade e a ação do agente. A predetermi-
nação é real, mas é, como a necessidade que a acompanha, uma prede-
terminação hipotética, não absoluta 39 . É precisamente porque as causas

38 P. 381 : « la predetermination des evenemens par les causes est justement ce

qui contribue à la moralité, au lieu de la detruire, et les causes inclinent la


volonté, sans la necessiter. C’est pourquoy la determination dont il s’agit, n’est
point une necessitation : il est certain (à celuy qui sait tout) que l’effect suivra
cette inclination ; mais cet effect n’en suit point par une consequence
necessaire,c'est-à-dire, dont le contraire implique contradiction : et c’est aussi
par une telleinclination interne que la volonté se determine, sans qu’il y ait de la
necessité ».
39 Cf. p. 380

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Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 63

inclinam a vontade sem a necessitar, que a determinação não é uma


forma de necessitação 40 . Mas a determinação – inclinante e não necessi-
tante – não deixa por isso de ser conhecida com certeza: é certo que
ocorrerá o efeito da inclinação prevalente, mas não é verdade que esse
efeito seja absolutamente necessário.
Deste ponto de vista, poderia dizer-se que a resolução do “so-
fisma da razão preguiçosa”, aqui apresentado como uma objeção à tese
central de Leibniz – há determinismo mas não há necessitarismo –, as-
senta sobre o princípio de causalidade, ou sobre a convicção leibniziana
de que as causas bastam para determinar os acontecimentos mas não
bastam para os declarar absolutamente necessários, já que existe causas
necessárias e causas não necessárias; há mecanismos causais necessitan-
tes dos seus efeitos e mecanismos causais que determinam sem necessi-
dade – inclinando a potência para o efeito que se verificará. Uma vez
mais, é esta tese que o princípio de razão pretende expressar: um efeito
tem sempre uma causa; essa causa dá razão do efeito, porque dá razão
de que seja e de que seja como é; mas não dá razão dele como um efei-
to necessário de uma determinada causa. Dá razão dele como efeito
contingente ou livre de uma causa contingente ou livre. A determinação
ou a inclinação bastam para declarar o efeito em questão determinado,
e portanto cognoscível na sua causa ou nas razões que o fundam, mas
evidentemente não autoriza a declará-lo necessário, se por necessidade
se entende a impossibilidade do contrário.
No parágrafo 37 e seguintes, a relação entre predeterminação e
necessidade, ou o tipo preciso de necessidade que é a predeterminação,
são mais amplamente desenvolvidos. Leibniz reconhece que é verdadei-
ro o enunciado que afirma que “o que Deus prevê não pode não ocor-
rer”. Trata-se de uma necessidade hipotética, formulável nos seguintes
termos: “Se Deus previu, não pode não ocorrer”. Mas considera que a
verdade deste enunciado condicional não autoriza a afirmar que “o que
Deus previu ocorre necessariamente”. A consequência – “Se Deus pre-
40 Cf. p. 381.

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64 Marta de Mendonça

viu ocorrerá” – é necessária, mas não é necessário o consequente – ou


não pode afirmar-se “Isto (que Deus previu) ocorrerá necessariamen-
te”. Se assim fosse Deus só poderia prever o necessário. A consequên-
cia é necessária – necessariamente verdadeira – porque o acontecimen-
to foi previsto e Deus é infalível, omnisciente. Ou seja, a necessidade
aqui em causa é uma necessidade hipotética, não é uma necessidade
absoluta, e só esta permitiria afirmar que a ação é necessária. Só a ne-
cessidade absoluta é nesta circunstância uma autêntica necessidade de re.
A outra, a necessidade hipotética, é uma necessidade de dicto – a neces-
sidade da verdade de uma previsão que se sabe infalível. Como diz
Leibniz no mesmo parágrafo 37 e repete em diversas ocasiões: a presci-
ência não acrescenta nada à determinação, a não ser que a predetermi-
nação é conhecida, e a necessidade que a acompanha é a necessidade de
um dictum verdadeiro. Esta forma de necessidade não aumenta – mais
radicalmente, deixa intacta – a determinação ou futurição dos aconte-
cimentos 41 .
Ao analisar o “sofisma da razão preguiçosa”, Leibniz procura
salvaguardar a compatibilidade do determinismo com a contingência e a
liberdade. A tese que sustenta – que a presciência não produz a deter-
minação dos acontecimentos – não é uma novidade sua. E realmente –
como bem viram os intervenientes na controvérsia em torno da ciência
divina – a principal dificuldade não reside aqui. A dificuldade maior – e
a originalidade da resposta de Leibniz – encontra-se quando nos per-
guntamos pelo fundamento da presciência 42 . É ele, não a presciência
em si mesma, que parece impedir a contingência, pois não se vê qual
possa ser o fundamento do conhecimento certo do que é contingente e
futuro. Dito de outro modo, pode uma causalidade inclinante e não
necessitante, ser um fundamento suficiente da determinação da verdade
de todos os enunciados e, portanto, um fundamento suficiente da pres-
ciência? Não será, uma vez mais, uma pura solução verbal?

41 Cf. pp. 123-124.


42 Cf. Théodicée, § 38, p. 124.

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Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 65

6. A verdade da futurição

Algumas dimensões do problema dos futuros contingentes já


foram abordados ao considerar o “sofisma da razão preguiçosa”; não é
possível considerar aqui os inúmeros aspectos deste problema que
Leibniz discute nos Essais de Théodicée. Leibniz refere-se a ele em diver-
sas ocasiões e considera-o de distintas perspectivas. Começa por se de-
ter na controvérsia que em torno deste problema se desencadeou em
meados do século XV e que opôs as soluções predeterministas, propos-
tas pelos dominicanos, às soluções propostas por Molina e pelos defen-
sores da “ciência média” 43 . Por outro lado, refere-se habitualmente ao
problema dos futuros contingentes para frisar a distinção entre certeza e
necessidade ou entre verdade e necessidade. Além disso, é também este pro-
blema que é considerado quando Leibniz aborda as “considerações me-
tafísicas” que se opõem à sua explicação da causa moral do mal moral,
e que se “referem à natureza do possível e do necessário” 44 . Referire-
mos apenas dois aspectos desta questão que são relevantes para com-
preender a posição leibniziana em torno do necessitarismo e do deter-
minismo.
Como já indicamos, a posição leibniziana em torno do proble-
ma dos futuros contingentes é clara: os enunciados futuros contingen-
tes, como qualquer outro enunciado, têm um valor de verdade determi-
nado e não é concebível nenhum enunciado que escape ao princípio de
bivalência. Na medida em que – como já recordara Aristóteles – os e-
nunciados contingentes acerca do passado e acerca do presente não
colocam qualquer problema quanto à determinação do seu valor de
verdade, nem quanto ao fundamento dessa determinação, o aspecto
problemático desta tese diz respeito apenas à “verdade da futurição”.
Qual é o fundamento dessa verdade?

43 Cf. Théodicée, §§ 39-43, pp. 124-127.


44 Cf. Théodicée, II, § 168, p. 210. A discussão prolonga-se até ao § 174, p. 218.

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66 Marta de Mendonça

Por outro lado, como vimos, no centro da resolução do “so-


fisma da razão preguiçosa” está a consideração de que são concebíveis
processos causais inclinantes mas não necessitantes. Não admiti-lo é
negar à partida ou anular na sua raiz a possibilidade da ação livre ou da
ação contingente. Se tudo tem uma causa ou razão – considera Leibniz
– a condição de possibilidade da ação contingente ou livre é que os me-
canismos causais não anulem essa contingência ou essa liberdade mas
sejam capazes de a expressar: a escolha fundada na inclinação é preci-
samente a forma de determinação causal associada à liberdade. E a es-
colha é possível se uma faculdade puder mover-se entre possibilidades
alternativas e fazê-lo de tal modo que os próprios requisitos da própria
ação causal não anulem a possibilidade alternativa rejeitada. Mas o que
é que é preciso para pensar esta possibilidade?
Vejamos muito brevemente como Leibniz resolve estas ques-
tões. Em diversos momentos indica que a chave da solução se encontra
na natureza dos possíveis, isto é na natureza das coisas que não impli-
cam contradição 45 . De outro ponto de vista, a mesma tese é apresenta-
da em termos negativos, quando Leibniz sustenta que, se todos os pos-
síveis existissem, tudo seria absolutamente necessário: é neste ponto
que, como explica, se separa de Espinosa. A chave da solução encontra-
se, portanto, na questão da possibilidade das coisas que não acontecem
ou na realidade dos possíveis que não existem, e esta possibilidade ou
esta realidade decorrem da natureza do possível. É aqui que se encontra
a solução dos dois problemas anteriores: o fundamento da verdade da
futurição e a garantia de que a determinação do futuro – a futurição -
não anula a contingência. Assim, em primeiro lugar, tanto a determina-
ção dos enunciados acerca do futuro como o caráter livre do que se
enuncia nalguns deles é justificável a partir da existência de mundos
possíveis incompossíveis com o mundo atual. E, em segundo lugar, a
existência dessa multiplicidade de mundos está diretamente implicada

45 Cf., por exemplo, Théodicée, § 173, p. 217

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Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 67

na própria definição do possível, como o que carece de contradição 46 .


Esta possibilidade – definida em termos lógicos – é intemporal e en-
contra-se eternamente presente à mente divina, que a contempla. Ela
basta para fundar o conhecimento certo do contingente. Como Leibniz
esclarece no § 42, referindo-se ao que há de verdadeiro tanto na tese
molinista como na tomista: “Para este efeito volto ao meu princípio de
uma infinidade de mundos possíveis, representados na região das ver-
dades eternas, isto é, no objeto da inteligência divina, onde é preciso
que todos os possíveis condicionais estejam compreendidos. (…) Te-
mos portanto um princípio da ciência certa dos futuros contingentes,
quer eles aconteçam atualmente quer devam acontecer num certo caso.
Pois na região dos possíveis, eles estão representados tais como são,
isto é contingentes livres. Não é portanto a presciência dos futuros con-
tingentes, nem o fundamento desta presciência que nos deve embara-
çar, ou que pode ameaçar a liberdade” 47 . E basta também para fundar a
contingência e a liberdade do que é contingente e livre, porque – como
bem viu Aristóteles – permite distinguir o possível e o atual e isso basta
para não confundir o atual e o necessário. O atual e o possível não só
não se confundem – “é possível o que não é nem será” – como as pró-
prias possibilidades não realizadas (e que se reportam ao passado e ao
presente) não deixam por isso de ser possibilidades. Isto é assim porque
perguntar pela possibilidade de uma coisa não é perguntar pela existên-
cia da causa ou das causas que podem produzi-la mas é perguntar pela

46 Cf. Théodicée, §§ 173-174, p. 217.


47 P. 126: « Pour cet effect je viens a mom principe d’une infinité de mondes
possibles, representes dans la region des verités eternelles, c’est-à dire dans
l’objet de l’intelligence divine, ou il faut que tous les futurs conditionnels soient
compris. (…) Donc nous avons un principe de la science certaine des
contingens futurs, soient qu’ils arrivent actuellement soit qu’ils doivent arriver
dans un certain cas. Car dans la region des possibles, ils sont representés tels
qu’ils sont, c'est-à-dire contingens libres. Ce n’est donc pas la prescience des
futurs contingens, ni le fondement de la certitude de cette prescience, qui nous
doive embarrasser, ou qui puisse faire prejudice à la liberté ».

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
68 Marta de Mendonça

possibilidade dessas causas 48 . Para que uma coisa seja possível não é
necessário que a sua causa seja atual, é apenas necessário que seja tam-
bém possível, isto é, concebível. Assim, o fundamento do ato livre – a
razão inclinante que o determina – é ao mesmo tempo o fundamento
do conhecimento que é possível ter dele: e Deus contempla esses atos
contemplando as razões – inclinantes – que os produziriam se fossem
criados “os sistemas universais” de possíveis de que eles fazem parte 49 .
Em conclusão, Leibniz tenta pensar a compatibilidade do de-
terminismo e da contingência – a afirmação do primeiro e a rejeição do
necessitarismo – procurando à sua maneira uma nova forma de pensar
o conceito aristotélico de possível – “é possível o que não é nem será”.
Admitindo esta tese, é possível evitar o necessitarismo porque ela funda
– como pretendia Aristóteles – a distinção entre o possível e o atual.
Leibniz encontra essa nova forma de pensar o conceito aristotélico de
possível na definição do possível pela ausência de contradição. Assim
definido, o possível é o concebível e são concebíveis possíveis contin-
gentes porque são concebíveis possíveis alternativos. Mas, precisamente
porque se definem pela ausência de contradição – como ideias ou es-
sências concebíveis –, os possíveis não podem pensar-se como inde-
terminados, como incompletos, e a história contingente do mundo a-
presenta-se como uma das infinitas possibilidades de ser que é possível
pensar. Em cada uma dessas “sequências possíveis do universo” a cau-
salidade livre – a razão inclinante – intervêm como o que torna possível
48Leibniz insiste neste ponto. Quando nos perguntamos pela possibilidade de
uma coisa, não nos perguntamos pela existência dos requisitos ou das condi-
ções que a fariam existir, perguntamo-nos pela possibilidade – pela interna não
contradição – dessas condições e desses requisitos. A impossibilidade absoluta
é antes de mais uma impossibilidade lógica, não é primariamente uma impos-
sibilidade efetiva ou real: cf. Théodicée, § 172, p. 216. Cf. também § 235, p. 257:
« (…) quand on parle de la possibilité d’une chose, il ne s’agit pas de les causes
qui peuvent faire ou empecher qu’elle existe actuellement: autrement on
changeroit la nature des termes, et on rendroit inutile la distinction entre le
possible et l’actuel ».
49 Cf. Théodicée, § 225, p. 252.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.
Determinismo e necessitarismo nos Essais de Théodicée 69

o efeito e o produzirá se esse mundo vier a ser criado: como diz Leib-
niz, a previsão da causa inclinante é a causa da previsão do efeito 50 .

50 Cf. Théodicée, § 83, p. 147.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 29-69, jan.-jun. 2011.

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