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“Veste batina, podia vestir farda ou toga. É padre, podia ser dono
de um truste. E Zé-do-Burro, crente do interior da Bahia, podia ter
Clique nascido em qualquer parte do mundo, muito embora o
e cadastre -se
para re ce be r os
sincretismo religioso e o atraso social, que provocam o conflito
info rm e s ético, sejam problemas locais, fazem parte de uma realidade
m e nsais da brasileira. O Pagador de Promessas não é uma peça anticlerical
R e vista Espaço
Acadê m ico
– espero que isto seja entendido. Zé-do-Burro é trucidado não
pela Igreja, mas por toda uma organização social, na qual
somente o povo das ruas se confraterniza e a seu lado se coloca,
inicialmente por instinto e finalmente pela conscientização
produzida pelo impacto emocional de sua morte. A invasão final
do templo tem nítido sentido de vitória popular e destruição de
uma engrenagem da qual, é verdade, a Igreja, como instituição
faz parte” (p. 10).
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Porém, da mesma forma que a engrenagem mostra fissuras, representada pela
reação de solidariedade ao Zé-do-Burro, os indivíduos que representam a
instituição eclesiástica, em especial o Padre Olavo, também poderiam ter
atitude mais flexível diante do pagador da promessa. Em outras palavras, os
indivíduos agem diante da estrutura (engrenagem) num campo limitado de
ação, é verdade, mas como possibilidades. Se o indivíduo faz a história dentro
de determinadas condições, estas podem ser transformadas por ele. O
contrário é imaginarmos uma espécie de determinismo sob o qual os indivíduos
não têm escolha a não ser se submeter.
Candomblé e sincretismo religioso
O candomblé mencionado no contexto da peça O Pagador de Promessas se
constituiu na Bahia no século XIX, “a partir das tradições de povos iorubás, ou
nagôs, com influências de costumes trazidos por grupos fons, aqui
denominados jejes, e residualmente, por grupos africanos minoritários”
(PRANDI, 2001: 43 e 1995/96).[3] O Candomblé se constitui inicialmente como
uma religião de resistência dos escravos e seus descendentes, numa
sociedade de domínio branco e católico. Era através do candomblé, como das
demais religiões de origens africanas, que os negros mantinham e renovavam
seus vínculos com as tradições culturais da África.[4] “O negro podia contar
com um mundo negro, fonte de uma África simbólica, mantido vivo pela vida
religiosa dos terreiros, como meio de resistência ao mundo branco, que era o
mundo do trabalho, do sofrimento, da escravidão, da miséria” (PRANDI,
1995/96: 79).
Porém, os negros não podiam simplesmente fazer de conta que existia apenas
o mundo resguardado pela tradição e religião. Sua existência exigia se fazer
presente também no mundo dos brancos, interagindo com estes e sua religião.
Esta é a fonte do sincretismo religioso. Como esclarece PRANDI (id.:
p.1995/96: 79-80)
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analisa este processo e faz referência ao “pagador de promessas”:
O Pagador de Promessas
Recordemos, em resumo, a história da peça. A tempestade derruba uma árvore
e Nicolau, o burro, é atingido na cabeça por um dos galhos. Ele adoece e
piora. Seu dono, desesperado, faz uma promessa a Iansã (Santa Bárbara).
Nicolau se recupera e Zé, carregando uma pesada cruz de madeira por sete
léguas, se dirige à cidade para pagar a promessa. Antes de o sol raiar, lá está
ele e Rosa, sua esposa, defronte a Igreja de Santa Bárbara. Ao amanhecer, o
padre Olavo se dirige até ele, ouve toda a história e lhe nega a permissão para
adentrar na igreja com a cruz, impedindo-o de cumprir a promessa plenamente.
No diálogo entre o Padre Olavo e Zé-do-burro fica explícito a intolerância do
representante da Igreja Católica em relação às crendices populares e à religião
de origem africana. Ao narrar os acontecimentos que motivaram a promessa, a
certa altura Zé se refere às rezas do Prêto Zeferino. O padre questiona e ele,
num tom de desculpas, tenta se explicar:
O Padre repreende-o:
PADRE – Você fez mal, meu filho. Essas rezas são orações do
demo.[7]
Zé – Do demo, não senhor.
PADRE – Do demo, sim. Você não soube distinguir o bem do
mal. Todo homem é assim. Vive atrás do milagre em vez de viver
atrás de Deus. E não sabe se caminha para o céu ou para o
inferno.
ZÉ – Para o inferno? Como pode ser, Padre, se a oração fala de
Deus? (Recita.) “Deus fêz o Sol, Deus fêz a luz, Deus fêz tôda a
claridade do Universo grandioso. Com Sua Graça eu te benzo, te
curo. Vai-te Sol, da cabeça desta criatura para as ondas do Mar
Sagrado, com os santos podêres do Padre, do Filho e do Espírito
Santo.” Depois rezou um Padre Nosso e a dor de cabeça sumiu
no mesmo instante.
SACRISTÃO – Incrível!
PADRE – Meu filho, êsse homem era um feiticeiro.
ZÉ – Como feiticeiro, se a reza é pra curar?
PADRE – Não é para curar, é para tentar. E você caiu na
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tentação.
ZÉ – Bem, eu só sei que fiquei bom. (pp. 43-44)
O Padre Olavo fala com a autoridade que a Igreja lhe confere. É enquanto tal
que demoniza a crença popular. Zé-do-burro, um homem simples, um homem
do campo, expressa em sua simplicidade a perplexidade diante das verdades
que o padre pronuncia. Mas seus argumentos, embora simples, são
comprovados pelos fatos da vida. Ao padre só resta a demonização e a
afirmação de que o homem caiu em tentação.
Não obstante, Zé-do-burro parece não se abalar com o discurso condenatório
da autoridade eclesial. Continuando o relato, conta que as rezas não surtiram
efeito para o burro Nicolau.[8] Então, a comadre Miúda sugeriu que ele fosse
ao “candomblé de Maria de Iansã”. O padre, que até então procurava conter a
sua indignação, exclama: “Candomblé?!” Zé responde:
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PADRE – (Explodindo.) Não é Santa Bárbara! Santa Bárbara é
uma santa católica. O senhor foi a um ritual fetichista[11].
Invocou uma falsa divindade e foi a ela que prometeu êsse
sacrifício!
ZÉ – Não, Padre, foi a Santa Bárbara. Foi até a igreja de Santa
Bárbara que prometi vir com a minha cruz. E é diante do altar que
vou cair de joelhos daqui a pouco, pra agradecer o que ela fêz por
mim! (p. 46)
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Considerações conclusivas...
Se considerarmos a sua sociedade enquanto uma realidade contraditória e em
movimento, é possível rompermos com o determinismo de cunho político e
economicista. Se a sociedade modela o indivíduo e determina os limites da sua
ação, este, por ser agente histórico e ativo, também pode influir sobre os
rumos da sociedade. Assim, a intolerância e o preconceito não são fixos e
naturais, mas algo que interage com os diferentes contextos sociais.
Diferentes épocas podem dificultar ou favorecer sua manifestação. E, mesmo
em tempos sombrios, sempre há indivíduos cujas posturas contribuem para o
questionamento e superação da intolerância, ainda que sejam minoritários e
talvez não se façam ouvir.
A peça de Dias Gomes é uma contribuição fundamental para que possamos
pensar as relações entre as diversas religiões e a necessidade de
desenvolvermos meios e comportamentos que favoreçam a tolerância religiosa.
Pois, mesmo hoje os novos cruzados semeiam os ventos da intolerância. Os
tempos são outros, mas o acirramento da competição no mercado de salvação
das almas termina por reproduzir as pequenas e grandes inquisições que
opõem o bem ao mal. A demonização da religião considerada como
concorrente ainda é um recurso muito utilizado.
Na sociedade em tempos de globalização parece acirrar-se a intolerância
religiosa. No tempo presente, apesar de toda a sua evolução social e
tecnológica, persistem o preconceito e a intolerância expressados na obra dos
anos 1960. São renitentes e revitalizados não apenas por setores da Igreja
Católica, mas também por outros grupos religiosos vinculados ao
neopentecostalismo. Como ressalta Prandi:
* Agra de ço à Profª Drª Cle yde Rodrigue s Am orim (DC S/UEM) pe la le itura,
re visão e suge stõe s.
Referências [3] “O candom blé da Bahia, se m dúvida o de m ais e sple ndor de todo o Brasil,
bibliográficas que ainda agora se rve de e spe lho a to dos os outros cultos, te m um a
de signação com que não concordam se us a de ptos, e m bora não te nham um a
C ARNEIRO , palavra m e lhor para substituí-la. Um a das da nças outrora corre nte s e ntre os
Edison. Ladinos e scravos, nas faze ndas de café , e ra o candomblé. Este e ra o nom e dado a ce rto
e Crioulos tipo de atabaque s”, afirm a CAR NEIRO (1964: 127).
(Estudos sôbre o
Negro no Brasil). [4] “Era m re ligiõe s de pre se rvação do patrim ônio é tnico dos de sce nde nte s dos
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R io de Jane iro: antigos”, e scre ve PRANDI (2004: 223). Isso se tra nsform ou com o passa r do
C ivilização te m po , com e stas re ligiõe s adquirindo um caráte r unive rsal. Se gundo Prandi,
Brasile ira, 1964. e las de spre nde ram -se “das am arras é tnicas, racia is, ge ográficas e de classe s
sociais. Não tardou e form a lançada s no m e rcado re ligioso, o que significa
GO MES, Dias. com pe tir com outras re ligiõe s na disputa por de voto s, e spaço e le gitim idade ”
Teatro de Dias (id.).
Gomes. R J:
C ivilização [5] “Em re sum o”, e scre ve Prandi, “ ao longo do proce sso de m udanças m ais
Brasile ira, 1972. ge ral que orie ntou a constituição da s re ligiõ e s dos de use s africanos no Brasil,
o culto aos orix ás prim e iro m isturou-se ao culto dos sa ntos católicos para se r
O RTIZ, R e nato. brasile iro, forjando-se o sincre tism o; de pois apa gou e le m e ntos ne gros para
A morte branca se r unive rsal e se inse rir na socie da de ge ral, ge stando-se a um banda;
do feiticeiro finalm e nte , re to m ou suas orige ns ne gras para transform a r tam bé m o
negro: umbanda, candom blé e m re ligião para todos, iniciando um proce sso de a fricanização e
integração de de de ssincre tiza ção para alcançar sua autonom ia e m re lação ao catolicism o.
uma religião Nos te m pos atuais, as m udanças pe las qua is passam essas re ligiõe s são
numa sociedade de vidas, e ntre outros m otivos, à ne ce ssidade da re ligião se e x pandir para
de classes. e nfre ntar de m odo com pe titivo as de m ais re ligiõe s. A m aior parte dos
Pe trópolis: se guidore s das re ligiõe s afro-brasile ira s nasce u católica e adotou a re ligião
Voze s, 1978. que profe ssa hoje e m idade adulta. Não é dife re nte pa ra e vangé lico s e
PR ANDI, m e m bros de outros cre do s” (P RANDI, 2004: 224).
R e ginaldo. As [6] Essa transform ação tam bé m é inte rna , isto é , no âm bito do da cultura
religiões negras ne gra e sua re lação co m a socie dade de consum o e m ge ral. A ide ntidade
no Brasil. Para ne gra tam bé m passa por m utaçõe s. (Ve r SANSO NE, 2000).
uma sociologia
dos cultos afro- [7] As citaçõe s m antê m a ortografia original e os grifos são nossos.
brasileiros. In:
R e vista USP, [8] È im portante obse rvar os laços de am izade e ntre Zé e o burro, a tal ponto
São Paulo (28): que dão-lhe o a pe lido de “Zé -do-burro ”. “Nicolau não é um burro com o os
64-83, outros. É um burro com alm a de ge nte ”, diz Zé (p.44). O padre fica indignado
De ze m bro / com e sta fala.
Fe ve re iro 95/96. [9] Cultuada no C andom blé e na Um banda, Iansã é um O rix á fe m inino. Na
__________. O África e la é Oyá, de usa do Níge r. O yá, O x ún e O bá, que tam bé m dão no m e s a
Brasil com axé: rios da nação nagô, são e sposas de Xangô. Iansã /O yá é a de usa dos ve ntos
candomblé e e da te m pe stade , foi um a prince sa re al na cidade de Irá, na Nigé ria e m 1450
umbanda no a.C. No sincre tism o re ligioso, Iansã é associa da a Santa Bárbara , a qual
mercado tam bé m é invocada pe los fié is diante dos pe rigos da te m pe stade .
religioso. [10] O s parê nte se s incluídos por Dias Gom e s suge re m ao le itor o to m da fa la ,
Estudos a re ação dos pe rsonage ns e tc. Não tive a oportunidade de assistir a pe ça, m as
Avançados 18 sim a ve rsão cine m ato gráfica . Então, os diá logos ganham vida e é im possíve l
(52), 2004, pp. pe rm a ne ce r im passíve l diante do que ve m os e ouvim os. Isto suge re que o
223-238. le itor e /ou e spe ctador dificilm e nte se m ante rão ne utros.
__________. O [11] O bse rve -se a linguage m do padre .
Candomblé e o
Tempo – [12] Hoje , por e x e m plo, o discurso dos grupos re ligiosos que com bate m o
Concepções de candom blé e a um banda, por e x e m plo, afirm a a m alignidade do orix á Ex u.
tempo, saber e Ele s ide ntificam o m aligno com a re ligião afro e m sua totalidade . Se isto é
autoridade da usado para fins de disputa do m e rcado re ligioso, tam bé m é um a
África para as de m onstração de ignorância, o que favore ce a intolerância e pre co nce ito. Já no
religiões afro- final dos ano s 1950, C ARNEIR O (1964, 133), obse rvava que Ex u “te m sido
brasileiras. e quiparado ao diabo cristão por obse rvadore s apre ssado s”. Ele “se rve de
R BCS, Vol. 16 corre io e ntre os hom e ns e as divindade s, com o e le m ento indispe nsáve l de
nº 47 ligação e ntre uns e outras. Todos os m om e nto iniciais de qualque r ce rim ônia,
outubro/2001, individual ou cole tiva , pública ou privada, lhe são de dicados para que possa
pp. 43-58. transm itir às divindade s os de se jos, bons ou m aus, daque le s que a ce le bram ”.
__________. Por [13] Esta tradição te m dificuldade e m re conhe ce r as cara cte rísticas pe culiare s
que Exu é o da cultura e re ligiõe s africanas. A colonização im pôs a inte gra ção e a e x clusão
primeiro? dos dife re nte s, o outro. A intole rância não é re strita á re ligiosidade , m as te m
Ace sso e m fundam e ntos e conôm ico s e sociais e abrange a cultura, costum e s e tradiçõe s.
31.01.07. O RTIZ (1978), tam bé m analisa o proce sso de de m onização de Ex u, “o a njo
de ca ído”. (Ve r a inda “Por que Exu é o primeiro?, de Re gina ldo Prandi).
SANSO NE, Livio.
Os objetos da [14] Ve r tam bé m PRANDI (2004: 228): “Para o candom blé , que e stá m ais
identidade negra: pe rto do pe nsam e nto africano que a um banda, o be m e o m al não se
consumo, se param , não são cam pos distintos”.
mercantilização,
globalização e a [15] A re fe rê ncia de R ose nfe ld é : Sábato Maga ldi, Panorama do Teatro
criação de Brasileiro, Difusão Europé ia do Livro, São Paulo, 1962. O s grifos são nossos.
culturas negras
no Brasil. MANA
6 (1): 87-119,
2000. por ANTONIO OZAÍ DA SILVA
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